Cidades globais para a formação de um império: comerciantes e urbanismo / História Revista / 2016

O presente dossiê se propõe refletir sobre o papel desenvolvido pelos entornos urbanos e portos comerciais nas diferentes estruturas imperiais durante a Idade Moderna. De um ponto de vista transnacional e interdisciplinar se levam em consideração quatro casos de estudos através dos quais, e a partir de diferentes perspectivas, se aborda a interação estabelecida por estas cidades com os sistemas imperiais nos quais se integravam. Cidades entendidas como lugares físicos, mas também como cenários onde os indivíduos atuam.

Os quatros estudos, situados cronológicamente entre os séculos XVI e XVIII, cobrem um amplo raio espacial incluindo as áreas do Mediterrâneo, Atlântico e Pacífico. Ademais, se considera a interconexão e interação destes espaços comerciais integrados graças a um primeiro processo de globalização de natureza mercantil iniciado, em grande medida, pelas expansões ultramarinas dos impérios ibéricos. Embora não podemos afirmar que a chamada era dos descubrimentos fosse a primeira a interrelacionar territórios e culturas distantes, a partir deste momento se incorporaria América à economia mundial e os intercâmbios de pessoas, objetos e ideias entre os quatro continentes sofreriam um aumento quantitativo sem precedentes.

Se trata, portanto, de analisar vários espaços específicos como laboratórios a partir dos quais observar dinâmicas de ação imperiais que estiveram orientadas, sobretudo, à prática do comércio e à busca de oportunidades de negócio. Além disso, se tomam em consideração outros aspectos entrelaçados com o econômico, como os intercâmbios culturais, evidentes no caso do urbanismo, e migratórios, exemplificados aqui pelo deslocamento de comerciantes bascos e portugueses em busca de novas oportunidades, ou pelo aumento demográfico do porto de Livorno.

Nesta linha, se consideram os seguintes espaços de ação. Em primero lugar, se analisam os territórios insulares atlânticos dos Açores e as Canárias e seu protagonismo na articulação das estruturas imperiais ibéricas. Por outro lado, se faz uma incursão no porto italiano de Livorno que, situado no Mediterrâneo ocidental, se converteu em epicentro de intercâmbios comerciais e articulação de lucrativas estratégias econômicas. Finalmente, se analisa o porto de Lima, situado na América Hispânica continental, orientado para o Pacífico, e sede de importantes intercâmbios tanto com o resto do continente como com o espaço Atlântico.

A natureza variada dos espaços econômico‐comerciais considerados, assim como a amplitude cronológica, nos permitem ter uma visão de conjunto e longue durée de núcleos fundamentais no funcionamento das estruturas imperiais, tão dinâmicas e permeáveis na prática como pretenciosas e regulamentadas na teoria. Desta forma, o diálogo entre impérios, cidades, comerciantes e urbanismo pode ser um interessante ponto de partida para calibrar os efeitos e consequências de uma primeira globalização durante a Idade Moderna. Caminhando do concreto para o geral, se recuperam aqueles fios que formaram a rede de relações e as trocas de todo tipo.

A primeira das pesquisas aborda o papel do porto de Angra, situado na ilha de Terceira (arquipélago dos Açores), no processo de urbanização utilizado pelo império português. A ilha, enclave comercial atlântico desde o século XVI, toma relevância como modelo urbanístico imitado posteriormente no resto dos territórios ultramarinos portugueses. Com a ajuda de uma perspectiva multidisciplinar, Antonieta Reis Leite, estabelece um novo redimensionamento de Angra como porto luso sobre a base de documentos históricos e não sobre a narrativa existente sobre o enclave.

A partir de uma perspectiva também urbanistíca se analisa o porto de Livorno, situado no Mediterrâneo ocidental. O crescimento populacional do porto sob o amparo de um marco legal de promoção comercial e de proteção dos intercâmbios, provocou um processo de crescimento urbanístico. Em grande medida, o desenvolvimento se iniciou para dar resposta à demanda populacional que, em sua maior parte, era de origem estrangeira. Neste sentido, Livorno se converteu em um espaço privilegiado para o investimento imobiliário e posterior aluguel destes bens. Este proceso atraiu a atenção de muitos comerciantes e, obviamente, significou um canal de ingressos para a dinastia dos Medici, que se beneficiaram dele através da imposição de diversos impostos. Neste âmbito, Zamora Rodríguez analisa as estratégias dos Silva e Silva Henriques ao serviço da Monarquica Hispânica e de Portugal respectivamente, entrelaçados por vínculos familiares mais além de 1640. Apesar de sua localização, Livorno se considera como porto “imperial” devido ao protagonismo que manteve na articulação dos entramados imperiais ibéricos e a presença de intermediários como canalizadores das relação político‐comerciais. O porto é tratado, portanto, como mercado e ponto geoestratégico mediterrânico integrado nos impérios ibéricos de um ponto de vista prático, ainda que excluído do ponto de vista jurisdiccional.

Nesta linha de tratamento transnacional das relações imperiais, o artigo de Álvarez Santos parte dos pressupostos da nesologia e dos debates historiográficos mais recentes a respeito, para integrar o arquipélago das Canárias como parte fundamental no funcionamento das relações com os portugueses. As Canárias se converteram, durante todo o período da União Ibérica, em território estratégico e com muitas oportunidades de negócio para comerciantes portugueses que se estabeleceram ali. A partir destes enclaves atlânticos se teceram relacções fundamentais que involucraram e integraram mercados como Portugal e portos americanos e africanos por sua proximidade com a costa deste continente. A utilização de uma rica documentação notarial oferece dados inéditos sobre a presença e atividades econômicas de estes portugueses nas ilhas.

Finalmente, continuando com as estratégias seguidas pelas redes de comerciantes, o estudo de Lamikiz salienta a importância de Lima borbônica no contexto geral do vice‐ reinado do Peru. Efetivamente, o texto se articula em torno da experiência de seis comerciantes vasconavarros tomados como estudos de caso já que, na medida em que pertenenceram a duas gerações distintas, podem oferecer una análise diacrônica de suas atividades. Os três primeiros conheceram o declínio do sistema de Galeones a Tierra Firme enquanto que os três restantes foram testemunhos do renascer do comércio colonial pelo Cabo de Hornos. Desta forma, Lamikiz oferece um panorama das transformações que sofreu o comércio colonial hispânico durante o século XVIII até seu progressivo colapso durante o primeiro quarto do XIX. Este interessante e duradouro processo é observado a partir da experiência vital e desafios afrontados por comerciantes concretos que, por fim, contribuíram com seus interesses particulares para dinamizar o comércio transoceânico e não sempre consoantes com os objetivos governamentais.

Em resumo, este dossiê examina eixos comerciais que contribuíram com a  engrenagem dos entramados imperiais ibéricos, ainda que não se ocupe dos portos tradicionalmente considerados como fundamentais. Com o objetivo de aportar mais dados aos debates historiográficos em torno da dialéctica centro‐periferia, os assuntos tratados colocam em evidência que o funcionamento destes sistemas, de clara natureza polinuclear, dependeu de centros considerados tradicionalmente de menor importância, ainda que básicos para a dinamização de todo o conjunto. Efetivamente, o estudo dos arquipélagos Açores e Canárias, de portos “fora” do sistema imperial (como Livorno), ou a reformulação do rol de Lima no seio das políticas imperiais, confirmam a importância destes contextos menos estudados pela historiografía mais recente. Finalmente, se recupera o papel ativo de alguns dos protagonistas de “histórias conectadas” que se deram através de cidades e portos.

Francisco Zamora Rodríguez (CHAM)

Alberto Baena Zapatero (UFG)

Organizadores


RODRÍGUEZ, Francisco Zamora; ZAPATERO, Alberto Baena. Apresentação. História Revista. Goiânia, v. 21, n. 3, set. / dez., 2016. Acessar publicação original [DR]

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