Noites Festivas de Junho: História e Representações do São João no Recife (1910-1970) | Mário Ribeiro Santos

Noites Festivas de Junho: História e Representações do São João no Recife (1910- 1970) é fruto da tese de doutorado apresentada em 2015, na Pós-Graduação em História da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) do Doutor Mário Ribeiro dos Santos. Em 2018, com apoio do Fundo Pernambucano de Incentivo à Cultura (FUNCULTURA) foi publicado em formato de livro pela Editora da UFPE.

Ao realizar sua pesquisa voltada as festas das agremiações carnavalescas nas ruas de Recife durante sua dissertação, o autor identificou como o Estado atuava organizando tais festividades sobretudo ao instituir medidas normatizantes e punições. Entretanto, o mesmo não acontecia quando se observava as festividades juninas no mesmo período. Além dessa observação, dois outros detalhes ajudaram na construção do problema do livro. O primeiro foi a sua coordenação no projeto “Nos Arraiais da Memória: as quadrilhas juninas escrevem diferentes histórias” que foi financiada pela Fundação de Cultura da cidade de Recife e que tinha como premissa o registro das expressões culturais da quadrilha junina vivenciado na cidade, ao se utilizar da história oral e de documentação do Diário Oficial do Município (1970- 1980). A busca seria para encontrar registros e memórias que expressassem as relações sociais daquele período, e é neste momento que o autor descobre um contraste que coloca em pauta o silencio intelectual acerca da temática. O segundo detalhe foi um comercial veiculado pela Globo Nordeste em junho de 2013 que representavam os festejos de São João em diversos estados nordestinos. Leia Mais

Nem mãe preta, nem negra fulô: histórias de trabalhadoras domésticas em Recife e Salvador – SILVA (RBH)

SILVA, Maciel Henrique. Nem mãe preta, nem negra fulô: histórias de trabalhadoras domésticas em Recife e Salvador. Jundiaí, SP: Paco Editorial, 2016. 416p. Resenha de: SAMPAIO, Gabriela dos Reis. Revista Brasileira de História. São Paulo, v.37, n.75, mai./ago. 2017.

Quando falamos do trabalho doméstico no Brasil, devemos ter em mente uma instituição sólida, antiga, perene em nossa sociedade. Trabalho pesado, tradicionalmente exercido por mulheres pobres, muitas vezes negras, sujeito a regras incertas e subjetivas que, na intimidade das casas de família, podem proteger da insegurança das ruas e, ao mesmo tempo, oprimir de maneira brutal as trabalhadoras.1 Conviver com a possibilidade onipresente de humilhação, violência e abuso sexual é o cotidiano de milhares de trabalhadoras que vivem nesse universo complexo, escorregadio, avesso à regulamentação. Essa instituição, ainda tão presente no Brasil do século XXI, tem história; uma importante parte dela, situada entre as últimas décadas da escravidão legal no país e a primeira do século XX, é contada pelo historiador Maciel Silva.

Com cuidado e sensibilidade, o autor narra experiências de trabalhadas domésticas em duas grandes capitais brasileiras, Salvador e Recife, com base em pesquisa densa e rigor interpretativo. O autor trata do período compreendido entre as décadas de 1870, quando libertas, escravas e mulheres livres pobres eram recrutadas para as tarefas de “portas a dentro”, como se dizia então, e 1910, escolhido como marco em função da consolidação de diversas reformas urbanas no país, e consequente mudança nos hábitos, ritmos de vida e na dinâmica do trabalho doméstico. Originalmente apresentado como tese de doutorado em História Social na Universidade Federal da Bahia (UFBA), o livro é um estudo importantíssimo para o tema.

Ao marcar o início do seu estudo na década de 1870, o autor vincula a situação das trabalhadoras domésticas à organização do trabalho que viria com o fim da escravidão, inevitável com a promulgação da lei de 28 de setembro de 1871, a chamada Lei do Ventre Livre. Sem dúvida, como afirma Silva, aquela lei alterou a percepção sobre o trabalho doméstico livre, uma vez que traria, com os contratos, mudanças nas regras de trabalho, nos horários, na moradia das domésticas – não mais necessariamente fixa na casa dos patrões -, nas expectativas, aliás, de ambas as partes. O contexto dos anos 1870 seria, então, um marco para pensar a formação da classe, já que o autor analisa trabalhadoras livres e libertas em ação como domésticas bem antes do marco oficial do fim da escravidão.

Impossível separar as origens do trabalho doméstico do ambiente da escravidão em sociedades onde essa forma de exploração do trabalho grassou por tantos séculos; para Silva, entretanto, se a escravidão marca o trabalho doméstico, e muitas das lutas das trabalhadoras domésticas livres e libertas foram forjadas nas lutas por autonomia dentro da escravidão, ela não define a classe das domésticas, isso é, não se encontra a classe na escrava doméstica. Isso porque Maciel Silva busca – e aqui tratamos de uma parte central de seu livro – explicar a “formação da classe das trabalhadoras domésticas no Brasil”, classe que, para o autor, só teria se formado na experiência da liberdade, ainda que precária, daquelas trabalhadoras. Inspirado em uma leitura perspicaz de E. P. Thompson, Silva enfatiza bem mais a formação aqui, isto é, prefere pensar em processo histórico, conflitos e heterogeneidade para lidar com o conceito de classe, recorrendo à experiência dos sujeitos mais do que à fixidez de uma categoria preestabelecida.

Escravas, portanto, não fariam parte da classe vislumbrada pelo autor. Silva pretende, com essa premissa, fugir dos estereótipos tanto da “mãe-preta”, a generosa escrava que cuidava dos meninos brancos, quanto da “Negra Fulô”, a mucama bela e sedutora, que tantas vezes, na literatura e nas análises de intelectuais, apareceram na caracterização da trabalhadora doméstica, inviabilizando sua análise enquanto protagonistas de suas próprias histórias. Os estereótipos já explicariam e reduziriam suas vidas à condição de passividade, vítimas de um sistema inescapável. Assim, o esforço do autor se dá no sentido de definir as trabalhadoras domésticas como uma classe marcada por lutas contra a exploração, por direitos, e também em tratar dos conflitos no interior da classe.

Se definir essa classe sem incluir as trabalhadoras escravas que viviam dentro das casas resolve o problema de lidar com as diversas especificidades legais das trabalhadoras naquela condição, nem por isso o autor se livra de outro problema teórico: lidar com uma “classe de domésticas” dentro da classe trabalhadora. Esta não parece ser uma preocupação de Maciel Silva, que não entra no debate sobre ofícios e classe, evitando enfrentar a questão. Sua opção para comprovar a tese da formação da classe das trabalhadoras domésticas é partir para a análise, ao invés da discussão teórica sobre classe; para isso, traz uma pesquisa monumental e uma interpretação sofisticada de fontes, revelando as trabalhadoras em movimento. Constrói, dessa maneira, uma história humana, em que mulheres livres e libertas lutam, atuam com solidariedade contra os patrões em alguns momentos e com disputas entre si em outros, sofrem estupros e outras violências, enfrentam acusações de furto, recorrem à fofoca, se ajudam, e também competem entre si. Lidam com noções de honra, fidelidade, gratidão, proteção, bondade, zelo e liberdade, entre outras, específicas daquela sociedade, e, ao fazê-lo, agem como classe, da mesma forma como seus patrões e patroas também o fazem.

Embora a classe seja a noção central a partir da qual o autor quer pensar a experiência das trabalhadoras domésticas, gênero e raça estão contempladas em sua análise. Sem buscar uma solução fácil, Silva busca os momentos em que o gênero se sobrepõe à classe ou mesmo à raça, mostrando que a realidade é bem mais complexa do que as categorias que usamos para tentar entendê-la. Se é verdade que as trabalhadoras eram majoritariamente negras, também havia não negras entre elas. Em alguns momentos, a pobreza e o fato de serem mulheres marcava mais a posição das domésticas do que a própria raça. Novamente, com riqueza de fontes, cuidado analítico e grande capacidade narrativa, vão surgindo Marias, Creuzas, Donatas, Theodoras e tantas outras meninas e mulheres, com suas histórias e maneiras de lidar com os problemas, resistir, viver.

Merece destaque especial o capítulo em que o autor utiliza romances, memórias, contos e outros textos ficcionais como fontes para a história social. Com base na invenção de literatos baianos e pernambucanos sobre quem eram as domésticas, Silva recupera, com maestria na escrita, muito das sensibilidades da época estudada. Em textos que revelam muito mais a visão de mundo dos senhores do que qualquer realidade sobre as trabalhadoras, o historiador captou medos, angústias, violência e sutilezas das relações paternalistas entre criadas e patrões, marcada por conflitos. Porém, é no capítulo em que analisa os processos criminais que esses conflitos aparecem com todas as cores da violência do mundo real. Em acusações de furtos, agressões físicas, ataques à honra, Maciel Silva vai descortinando aos leitores a experiência de defloramentos e estupros, violência física e verbal, humilhações e precariedade que marcaram a vida das trabalhadoras, permeadas também por solidariedades, redes de apoio na vizinhança, fofocas e outras formas de aproximação – e, às vezes, competição – entre elas. Ao longo do texto, o talento de escritor aparece e enriquece a interpretação do historiador. O resultado é um universo doloroso e complexo que surge, tirando da invisibilidade tantas mulheres que viveram essas histórias.

Um grande esforço de comparação entre as duas grandes capitais caracteriza os capítulos iniciais do livro; a falta de documentação equivalente nas duas cidades, porém, faz Salvador aparecer bem mais que o Recife. Para completar o estudo, Silva faz uma análise cuidadosa da legislação desse universo de trabalho e dos contratos que passam a regulá-lo. Acompanha também trajetórias de jovens saídas da Santa Casa de Misericórdia da Bahia para trabalhar como domésticas em casas de tradicionais famílias baianas – uma rica documentação que nos últimos anos vem sendo utilizada com mais atenção por historiadores. Se na primeira parte do livro o esforço maior é o de situar o leitor nos contextos específicos de Salvador e Recife e nas imagens construídas na literatura sobre as domésticas e seu universo, nessa segunda parte o autor se preocupa em resgatar a experiência das trabalhadoras.

Ao reconstruir trajetórias cheias de conflitos intensos, como nos casos das expostas da Santa Casa e suas experiências infelizes nas casas dos patrões, Silva defende o argumento de que a instabilidade e violência do universo da escravidão e as solidariedades estabelecidas entre as trabalhadores colocaram em xeque, em diversas situações, o paternalismo vigente, construindo possibilidades de vida para as trabalhadoras, ainda que em condições desiguais e precárias. Sem cair em heroísmos ou simplificações binárias, o autor interpreta as relações de poder daquele mundo, mostrando sua complexidade e as dificuldades em regulamentar um trabalho que é tão pautado pela subjetividade das relações que se estabelecem na intimidade das casas.

Um tema tão atual e importante remete, necessariamente, à luta das trabalhadoras domésticas nas últimas décadas da nossa história por cidadania, direitos, respeito, dignidade no trabalho e na vida. São temas recuperados pelo autor no desfecho do livro, embora se afaste de qualquer tentativa de linearidade na interpretação da luta daquelas trabalhadoras. Em tempos sombrios como os que enfrentamos, em que os direitos dos trabalhadores são tão duramente ameaçados, o livro de Maciel Silva é ainda mais necessário, recolocando problemas fundamentais na nossa sociedade que se pretende moderna e é tão barbaramente marcada por valores arcaicos e desumanos. Este livro nos faz pensar na força do trabalho doméstico no Brasil, nesse modo de mandar, de incluir em casa sem incluir de fato, de tratar “bem” sem tratar como igual, de marcar o lugar de classe e a situação de privilégio de um e a de dependência e humilhação de outros. Tantas incongruências e contradições, o ir e vir da constituição da classe, são revelados com primor neste livro imprescindível.

Referências

GRAHAM, Sandra Lauderdale. Proteção e obediência: criadas e seus patrões no Rio de Janeiro, 1860-1910. São Paulo: Companhia das Letras, 1992. [ Links ]

Notas

1 Refiro-me aqui ao binômio proteção e obediência, conforme o trabalho doméstico foi caracterizado em um livro já clássico sobre o assunto, da historiadora Sandra Graham. As criadas, sendo trabalhadoras obedientes, receberiam proteção de seus senhores, vivendo na intimidade dos lares, longe dos perigos e da imprevisibilidade das ruas. A autora mostra, porém, que esses significados convencionais eram ambíguos: a casa podia ser o lugar da injustiça para os criados, assim como a rua poderia significar liberdade, longe do controle e vigilância dos patrões. Ver GRAHAM, 1992, p.16.

Gabriela dos Reis Sampaio – Universidade Federal da Bahia (UFBA). Salvador, Bahia, Brasil. E-mail: grsampaio@hotmail.com.

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Nordestino: uma invenção do falo – uma história do gênero masculino | Durval Muniz de Albuquerque Júnior

Sander Castelo – Universidade Federal do Ceará.


ALBUQUERQUE Jr., Durval Muniz de. Nordestino: uma invenção do falo – uma história do gênero masculino (Nordeste – 1920/1940). Maceió: Edições Catavento, 2003. Resenha de: CASTELO, Sander. Revista Trajetos, Fortaleza, v.2, n.4, 2003. Disponível apenas no link original. [IF].

Liberdade: rotinas e rupturas do escravismo. Recife, 1822-1850 – CARVALHO (RBH)

CARVALHO, Marcus J. M. de. Liberdade: rotinas e rupturas do escravismo. Recife, 1822-1850. Recife, Editora Universitária da UFPE, 1998, 353 p. Resenha de: RICCI, Magda. Revista Brasileira de História, São Paulo: v.20 n.39, 2000.

De repente um gemido. Certamente era de dor, certamente era fruto de uma execrada instituição que infelizmente governava o Brasil de 1831. Gritos escravos permeados pelo som do açoite. Eles constituíam a prova de que o castigo e a submissão grassavam o mundo Imperial, explicitando uma certa continuidade da exploração colonial. Restava aos negros crioulos e, especialmente aos africanos, a saída pela rebeldia pré-política. Restava-lhes o suicídio e a fuga para quilombos. Estas interpretações foram, durante muito tempo, temas prediletos dos pesquisadores da escravidão no Brasil. O outro lado desta história estava por ser pesquisado: a liberdade e seus muitos significados.

Aqueles gemidos acima referidos foram ouvidos no Recife de 1831 por Charles Darwin. Eles serviram de epígrafe ao livro de Marcus Carvalho, Liberdade: rotinas e rupturas do escravismo. Recife, 1822-1850. Distanciando-se das interpretações mais corriqueiras, o ousado estudo de Carvalho, interpreta-os de uma outra forma, demonstrando uma clara afinidade com aquilo que de mais interessante vem sendo produzido pela atual historiografia sobre escravidão no Brasil.

A liberdade é um tema difícil, tanto quanto maravilhoso. Para estudá-la, de imediato, surgem alguns entraves. Primeiramente, o problema do foco central de análise. Até recentemente, estudos sobre liberdade no século XIX só faziam sentido dentro do mundo da escravidão e da relação bipolar entre senhores e escravos. Por este raciocínio, estudar a escravidão significava analisar um eterno conflito dentro de um sistema ou modo de produção a ser definido minuciosamente. No entanto, hoje esta abordagem pode, no mínimo, gerar “polêmica”1. No lugar das certezas do escravismo (ou escravismos) surgiram múltiplas abordagens da escravidão e da liberdade.

Desde a época ao redor do centenário da abolição, em 1988, nossos livros sobre os tempos do cativeiro têm trazido a público alguns inusitados escravos. Eles vêm saindo do universo quase auto-suficiente do trabalho nas fazendas de cana e café. Vêm entrando em outros espaços, criando complexas e fascinantes situações a seus senhores e a nós, historiadores e leitores do século XX. Ganharam as ruas das cidades2, invadindo as cabeças e fazendo ressurgir, sobre outros olhares, a prática dos abolicionistas e/ou imigrantistas da segunda metade do século XIX3. Deixando seus donos pasmos, foram à justiça, atrás de justiça e uma dada noção de cidadania. Por outro lado, fizeram eclodir rebeliões dentro e fora das senzalas. Aqui, porém, seus quilombos revigoraram-se sob outra perspectiva, que não a do isolamento. Quase sempre, estes fugitivos mantinham relações comerciais e culturais com o mundo senhorial4.

Certamente os nossos escravos mudaram muito nos livros de história dos últimos dez anos. No entanto, mesmo assim, continuaram escravos. Por mais que alguns estudiosos denunciem a benevolência e o paternalismo historiográfico dos pesquisadores dos anos oitenta para com a escravidão dos séculos XVIII e XIX no Brasil, creio que, na maioria absoluta dos trabalhos, a dimensão do sofrimento e da dor escrava nunca foi esquecida5. Se a liberdade era uma bandeira poderosa, a escravidão era seu contraponto. O mundo do escravo transitava entre o sonho da liberdade e o cotidiano da luta dentro da escravidão. É neste ponto que o livro de Marcus Carvalho pode ser exemplarmente ressaltado.

Seguindo o rico percurso traçado por trabalhos pioneiros como os de João José Reis, Leila Algranti ou Sidney Chalhoub6 e, ao mesmo tempo, centrado em uma documentação das mais valiosas, o autor dá um passo adiante, revelando indícios de interessantes rumos historiográficos que se anunciam. Carvalho busca a liberdade dentro de um contexto de rupturas e rotinas da escravidão, ou como inapropriadamente insiste em chamar, do escravismo. Para o autor, a liberdade escrava situava-se, muitas vezes, longe do universo do trabalho nas fazendas. Por outro lado, o autor realçou enormente a dimensão do esforço cotidiano de luta, da árdua rotina constitutiva da vida de homens e mulheres expostos e surrados em praça pública e traficados quase como um material inerte.

É preciso lembrar que nos anos oitenta e início dos noventa a historiografia da escravidão no Brasil, ou parte significativa dela, buscava um escravo com ações autonômicas7. Era a partir deste campo de análise que, quase todos, recriavam uma vivência escrava rumo à liberdade que assumia ares de explícita, porém complexa, luta de classes. Os quilombolas analisados por Flávio Gomes, por exemplo, deixaram de ser fugitivos de um sistema escravista para tornarem-se combatentes de um outro tipo de liberdade. Surgiram dali homens com histórias de vida próprias e memórias de lutas coletivas. Como bem notou Silvia Lara, a influência thompsoniana neste tipo de estudo tornou-se evidente. Ela unia a história da escravidão àquela referente aos estudos sobre as relações e processo de trabalho livre no Brasil8. Para esta historiografia, os escravos e quilombolas eram indivíduos com personalidade e problemas pessoais, mas também faziam-se classe em diferentes contextos, especialmente quando imbuídos de um espírito de luta herdado e partilhado por experiências vindas de um presente ou de um passado em comum.

Por seu turno, o estudo de Carvalho, seguindo uma atual tendência, percebe a ação escrava dentro de relações que são sociais, étnicas e culturais. Sem abandonar a “economia moral” thompsoniana, as lutas pela liberdade ganharam outros ares, ampliando-se dentro de um universo em que muitos escravos desejavam ser ou tornar-se livres, vivendo sobre si e tendo quem os servissem. Ser livre era, em suma, ter propriedades, fossem elas um terreno ou um escravo. A liberdade estava contida, portanto, seja nas rebeliões e fugas escravas, seja na solidariedade de classe e/ou étnico-religiosa, que extrapolava, em muito, as fronteiras da relação senhor-escravo. Estava na cabeça de escravos, tanto quanto na dos homens livres ricos e pobres. Situava-se na cidade do Recife, mas também em seus muitos engenhos e roças. Nas casas dos ricos proprietários e em suas senzalas, bem como na casa do Conselho de Governo Provincial e nas inúmeras disputas partidárias em prol da emancipação brasileira durante as décadas de 1820 até 1850.

Em suma, o que de mais interessante apresenta o estudo de Carvalho é uma simbiose muito apropriada entre o universo da política imperial para os anos de 1822-1850 e o valioso contexto de lutas escravas e não escravas pela liberdade nos arredores de Recife. Juntando estudos que tradicionalmente caminhavam em paralelo, Carvalho percebeu a importância de associar temáticas dentro e fora dos debates historiográficos da escravidão. Se Pernambuco era a terra das Revoluções de 1817, de 1824 ou de outras como a Praieira, este local também tinha uma complexa tradição de revoltas escravas. Por outro lado, era o espaço da rotina escravista, da dor e do sofrimento de africanos e crioulos.

Entender este locus é uma tarefa árdua, que, quando bem empreendida, surte um resultado profícuo. Talvez Carvalho pudesse ir um pouco adiante, relacionando mais densamente alguns tempos históricos que se entrecruzavam no Recife da primeira metade do século XIX. É importante notar, por exemplo, que o calendário religioso, assim como o parlamentar e o da colheita e plantação da cana-de-açúcar estavam imbricados em um mundo repleto de credos e razões absolutas, que se contrapunha às novas liberdades constitucionais recém alcançadas. Certamente no Recife de frei Caneca e de outros tantos clérigos havia uma junção muito generosa entre a Igreja e o Estado, surgindo daí outras formas de se compreender os significados múltiplos da liberdade escrava e não escrava dentro deste universo.

Ressalva à parte, o livro de Carvalho deve ser lido pelo que se propõe efetuar. São três partes que o compõe: uma primeira dedicada à explicação espacial e social da cidade do Recife, de seus moradores e de suas tradições de luta. Uma segunda que estuda o tráfico e sua lógica de comércio e alianças sociais e políticas dentro do Recife. E uma terceira que se centra nos caminhos da liberdade (política e social) nos melindrosos cenários rebeldes da primeira metade do século XIX. Como ressalta Carvalho, para bem se entender os “vários passos que podiam, ou não, ser dados em direção à ‘liberdade'”, é preciso buscar outras “possibilidades humanas na história da escravidão”. É preciso estudar “outras tantas situações intermediárias” dentro do restritivo campo tradicionalmente traçado por senhores e escravos.

Robert Slenes, em recente estudo, chamou a atenção para estudos que valorizassem as relações entre senhores e subalternos, contrariando a tradicional dicotomia entre senhores e escravos. Sidney Chalhoub, por sua vez, desvencilha-se dos escravos, debruçando-se sobre a análise de um Rio de Janeiro pluri-étnico e culturalmente febril. João José Reis percebe em um movimento, como a cemiterada de Salvador, algo mais do que homens e mulheres ultrapassados e escravocratas, lutando contra a modernidade. Em A morte é um festa, desvenda um precioso viver no século XIX, que caminha muito próximo da diversidade cultural que ele possuia9.

Neste mesmo sentido segue o estudo de Carvalho que aqui apresento e recomendo. Estuda o escravismo, ou melhor, a escravidão, sem que as relações de trabalho tornem-se hegemônicas e quase auto-evidentes na explicação histórica. Analisa a liberdade, sem ficar restrito à dicotomia senhores versus escravos. Por fim, estuda a cidade do Recife, sem fazer regionalismos, ou uma história local e desinteressante ao público em geral.

A cidade do Recife descrita por Carvalho é específica e única, com ruas, bairros e pessoas muito próprias. No entanto, ela pode ser a síntese de tantas outras cidades e pessoas. Longe da Corte, estava, entretanto, tão próxima ao centro em muitas ocasiões. Todavia, em vários instantes, os moradores do Recife e de Pernambuco pleiteavam tomar o lugar dos cariocas. A cada levante social, a cada escravo que disputava espaço para bem viver o seu dia a dia, a cada traficante que contabilizava lucros e perdas sociais e políticas, a cidade do Recife e seus moradores livres e escravos se uniam a tantos outros habitantes de locais como Belém, Salvador ou São Paulo. Todos olhavam para a Corte, vendo imagens e semelhanças, tanto quanto diferenças e conflitos. Em resumo, o livro de Carvalho especifica muito bem o que seria o Brasil de então. Sem o exagero ufanista e nacionalista, tratava-se de um Brasil por se fazer. Um país ainda escravocrata em muitos sentidos, mas também cheio de liberdades. Um Brasil de leis novas, mas repleto de rotinas tradicionais como as do trabalho e as do tráfico. Um local de longas tradições religiosas e culturais, mas de rupturas sociais e políticas tão bruscas, quanto temerárias e deslumbrantes.

Notas

1 Para alguns autores como Suely Robles Reis de Queiróz o atual debate historiográfico sobre a escravidão no Brasil seguiu um percurso, no mínimo, equivocado, e assim, ainda hoje, seria “uma questão que continua polêmica”. Ver: QUEIROZ, Suely Robles Reis de. “Escravidão negra em debate”. In FREITAS, Marcos Cezar de (org.). Historiografia brasileira em perspectiva. São Paulo, Cantexto/USF, 1998, p. 117. Para uma contraposição a esta autora, ver, especialmente: MACHADO, Maria Helena P. T. “História e historiografia da escravidão e da abolição em São Paulo”. In Antonio Celso Ferreira et. al. (orgs.). Encontros com a história: percursos históricos e historiográficos de São Paulo. São Paulo, UNESP, 1999, pp. 61-70.

2 Sobre escravidão urbana, ver, entre outros, os trabalhos de: ALGRANTI, Leila M. O feitor ausente: estudo sobre a escravidão urbana no Rio de Janeiro, 1808-1822. Petrópolis, Vozes, 1988.

3 Ver, especialmente: AZEVEDO, Célia M. M. Onda negra, medo branco: o negro no imaginário das elites – século XIX. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1987; MACHADO, Maria Helena P. T. O plano e o pânico. Os movimentos sociais na década da abolição. Rio de Janeiro/São Paulo: UFRJ/EDUSP, 1994.

4 MATTOS, Hebe Maria. Das cores do silêncio. Os significados da liberdade no sudoeste escravista – Brasil século XIX. Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1998; LAMOUNIER, Maria Lúcia. Da escravidão ao trabalho livre. A lei de locação de serviços de 1879. Campinas, Papirus, 1988; REIS, João José & SILVA, Eduardo. Negociação e conflito: a resistência escrava no Brasil. São Paulo, Cia das Letras, 1989; GOMES, Flávio dos Santos. Histórias de quilombolas. Mocambos e comunidades de senzalas no Rio de Janeiro – século XIX. Rio de Janeiro, Arquivo Nacional, 1995; REIS, João José & GOMES, Flávio dos Santos (orgs.). Liberdade por um fio. História dos quilombos no Brasil. São Paulo, Cia das Letras, 1996.

5 A crítica e a denúncia vieram, principalmente de Jacob Gorender. Ver: GORENDER, Jacob. A escravidão reabilitada. São Paulo, Ática, 1990.

6 REIS, João José. Rebelião escrava no Brasil: a história do levante dos Malês (1835). São Paulo, Brasiliense, 1986; ALGRANTI, Leila M. op. cit.; CHALHOUB, Sidney. Visões da liberdade: uma história das últimas décadas da escravidão na Corte. São Paulo, Cia das Letras, 1990.

7 Para uma boa análise deste debate historiográfico, ver: LARA, Silvia Hunold. “Conversas com a bibliografia”. In Campos da violência: escravos e senhores na capitania do Rio de Janeiro – 1750-1808. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1988, pp. 97-113.

8 LARA, Silvia Hunold. “Escravidão, cidadania e história do trabalho no Brasil”. Projeto história: revista do Departamento de pós-graduação da PUC-SP. São Paulo, EDUC, no 16, 1997, pp. 25-38.

9 SLENES, Robert. “Senhores e subalternos no Oeste Paulista”. In NOVAIS, Fernando & ALENCASTRO, Luiz Felipe de (orgs.). História da vida privada no Brasil. Império, a Corte e a modernidade nacional. São Paulo, vol. 02, Cia das Letras, 1997, pp. 233-290. CHALHOUB, Sidney. Cidade febril. Cortiços e epidemias na Corte Imperial. São Paulo, Cia das Letras, 1996 e REIS, João José. A morte é uma festa: ritos fúnebres e revolta popular no Brasil do século XIX. São Paulo, Cia das Letras, 1991.

Magda Ricci – Universidade Federal do Pará.

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