Concebendo a liberdade: mulheres de cor, gênero e abolição da escravidão nas cidades de Havana e Rio de Janeiro | Camillia Cowling

A edição brasileira do livro “Concebendo a Liberdade: mulheres de cor, gênero e abolição da escravidão nas cidades de Havana e Rio de Janeiro” da historiadora inglesa Camillia Cowling, professora de história da América Latina da Universidade de Warwick, foi lançada em 2018 pela editora da Universidade Estadual de Campinas, São Paulo. O livro é uma tradução do original intitulado Conceiving Freedom: Women of Color, Gender, and the Abolition of Slavery in Havana and Rio de Janeiro, lançado em 2013 pela University of North Carolina Press e, desde 2010, partes da obra já vinham sendo divulgadas em publicações internacionais pela autora.

Cowling trouxe para o centro desta narrativa as histórias de vida (ou pelo menos parte das histórias) de duas mulheres libertas: Ramona Oliva e Josepha Gonçalves de Moraes. Elas transcorrem por toda a obra, desde a introdução, quando a autora nos transporta para os respectivos dias em que estas mulheres, a primeira em Havana, a segunda no Rio de Janeiro, entraram com pedido de custódia de seus filhos nas instâncias judiciais máximas de cada uma destas cidades: Ramona no Gobierno General em Havana em busca de libertar seus quatro filhos María Fabiana, Agustina, Luis e María de las Nieves, e Josepha no tribunal local de primeira instância e depois no Tribunal de Relação no Rio de Janeiro, um tribunal de apelação, em busca de liberta sua filha Maria. Ramona teve que enfrentar “um dia escaldante do verão caribenho de 1883” e Josepha, diferentemente da cubana, “provavelmente sentiu arrepios de frio […] enquanto caminhava pelas ruas da cidade [do Rio de Janeiro]”, em agosto de 1884, quando é inverno na cidade. (COWLING, 2018, p. 23) Leia Mais

Concebendo a liberdade / Camillia Cowling

O livro de Camillia Cowling publicado nos Estados Unidos, em 2013, e recentemente traduzido para o português já se constitui uma leitura obrigatória para historiadoras, historiadores e demais pessoas interessadas em conhecer aspectos da luta de pessoas escravizadas na Diáspora. Em Concebendo a liberdade a autora apresentou uma pesquisa comparativa entre Havana (Cuba) e Rio de Janeiro (Brasil) na qual “mulheres de cor” apareciam na linha de frente da luta por liberdade legal para elas próprias e suas crianças nas décadas de 1870 e 1880.

Ao prefaciar a obra Sidney Chalhoub foi muito feliz ao lembrar a acolhida que o livro de Rebeca Scott a Emancipação Escrava em Cuba teve no Brasil, ainda na década de 1980, evidenciando o interesse do público brasileiro em saber mais sobre este processo em Cuba, colônia Espanhola que assim como o Brasil e Porto Rico foi um dos últimos redutos da escravidão nas Américas.

Mais de três décadas desde a tradução do livro de Scott, a pesquisa de Cowling chegou ao Brasil em um momento que embora já possamos contar com vários estudos de referência para o conhecimento a respeito da escravidão e da liberdade muitos lacunas ainda estão por serem preenchidas, a exemplo, das especificidades da experiência das mulheres – escravizadas, libertas e “livres cor”.

Felizmente, o alerta das feministas negras, especialmente a partir da década de 1980 de que as mulheres negras tinham um jeito específico de estar no mundo ganhou novo impulso nos últimos anos, notadamente, devido ao processo que resultou na Primeira Marcha Nacional de Mulheres Negras, ocorrida no Brasil, em 2015, cujos desdobramentos já podem ser percebidos na sociedade brasileira e tem inspirado pesquisadoras e pesquisadores no desafio de reconstituir esse passado.

Inserida no campo da história social e utilizando uma escala de tempo pequena para descortinar a agência feminina negra, Cowling esteve atenta também para questões mais amplas do período investigado como às conexões atlânticas entre Cuba e Brasil no contexto da “segunda escravidão”. Isso permite que a leitora e o leitor possam notar que embora tivessem optado por um processo de abolição gradual da escravidão ambos vivenciaram processos paralelos e distintos um do outro.

A obra foi dividida em três partes e subdividido em 8 capítulos. Neste texto destaco alguns aspectos, dentre vários outros, que chamaram minha atenção de maneira especial. Primeiramente, saliento que Cowling conseguiu remontar o itinerário de duas libertas tornado visíveis as marcas deixadas por elas tanto em Havana como no Rio de Janeiro, de modo que personagens tradicionalmente invisibilizadas pela documentação e, até mesmo, pela historiografia tiveram seu ponto de vista descortinado nas páginas de seu livro.

Os fragmentos da experiência de Romana Oliva e Josepha Gonçalves de Moraes remontados pela autora é a demonstração de um esforço investigativo de fôlego e bem sucedido. As questões levantadas e o exercício de imaginação histórica da pesquisadora tornaram possíveis que a partir do ponto de vista dessas mulheres possamos saber como pensavam várias outras de seu tempo e compreender os sentidos de suas escolhas, bem como daquelas feitas por seus familiares, escrivães, curadores e integrantes do movimento abolicionista.

A liberta Romana que comprara a própria liberdade um ano antes de migrar para Havana, em 1883, encaminhou uma petição dirigida ao governo-geral de Cuba reivindicando a liberdade de suas 4 crianças, María Fabiana, Agustina, Luis e María de las Nieves que estavam em poder de seu ex-senhor, Manuel Oliva. Quase um ano depois, foi a vez da liberta Josepha dar início a uma ação de liberdade na cidade do Rio de Janeiro com o objetivo de retirar sua filha, Maria, ingênua, com apenas 10 anos, do domínio de seus ex-senhores José Gonçalves de Pinho e sua esposa, Maria Amélia da Silva Pinho.

Assim como outras tantas pessoas, Romana e Josepha eram migrantes que a despeito das dificuldades das cidades, usaram a seu favor as possibilidades que as mesmas ofereciam na busca pela liberdade, além disso, como ressaltou a autora as chances de uma pessoa escravizada conseguir a liberdade morando nas áreas urbanas eram maiores do que aquelas que moravam nas áreas rurais.

De acordo com Cowling as duas libertas se apegaram as brechas da lei e fizeram omesmo tipo de alegação para contestar a legitimidade do domínio senhorial. EnquantoRomana declarou que sua filha era vítima de negligência e abuso sexual, Josepha alegou que suas crianças não estavam recebendo educação. Foi com base nessas denúncias que os senhores foram acusados de maus tratos, o que implicava na perda do domínio sobre as mencionadas crianças, conforme a legislação de Cuba e do Brasil respectivamente determinava.

No livro de Cowling, a leitora e o leitor interessado no tema pode verificar que as perguntas feitas a documentos como petições, ações judiciais, correspondências, jornais, obras literárias, imagens e legislação explicitam que as mulheres escravizadas, libertas e “livres de cor” sempre estiveram no centro da luta por liberdade legal. Isso porque as noções de gênero foram determinantes para o modo como elas vivenciaram a escravidão e consequentemente influenciaram em suas escolhas na luta pela conquista da manumissão. Além disso, especialmente nas décadas de 1870 e 1880, elas que sempre estiveram na linha de frente das disputas judiciais foram colocadas ainda mais no centro do processo da abolição gradual da escravidão.

As Romanas e as Josephas foram muitas nas duas cidades portuárias investigadas pela autora e com o objetivo de conseguir a própria liberdade e de suas crianças, elas se apegaram a argumentos legais tomando como base a legislação, como a Lei Moret de 1870 e a Lei do Patronato de 1880, em Cuba; e a Lei do Ventre Livre de 1871, no Brasil, mas também se apegaram a argumentos extralegais baseados em valores culturais como o“sagrado” direito a maternidade, apelando para piedade e a caridade das autoridadespara os quais levaram suas demandas de liberdade para serem julgadas.

Para Cowling, sobretudo, a retórica da maternidade era tão forte que era utilizada tanto por mulheres ao reivindicarem a liberdade de suas filhas e filhos como nos casos em que eram os filhos que buscavam libertar suas mães, e mesmo, nos casos em que os pais apareceram junto com as mães tentando libertar suas crianças, a opção era por colocar a maternidade no centro.

Não poderia deixar de trazer para este texto aquele que a meu ver é um dos pontos mais fortes da obra. Trata-se da opção da autora de enfrentar o tema da violência sexual contra “mulheres de cor”, aspecto da vida de muitas dessas personagens, ainda pouco explorado pela historiografia brasileira, seja devido ao sub-registro dessa violência na documentação disponível que era escrita em sua maioria por homens da elite e autoridades muitos dos quais também proprietários de cativas, seja devido à própria tradição de priorizar outros aspectos da experiência das pessoas.

Para a autora a tradição de violar o corpo de “mulheres de cor” era naturalizada entre os senhores e os homens da lei tanto que os primeiros não viam qualquer impedimento à prática de estuprá-las. Por isso mesmo, a falta de proteção extrapolava a condição de cativas e nem mesmo a liberdade legal era garantia de proteção ou reparação contra aqueles que as forçassem a ter relações sexuais com eles ou com outros (muitas escravizadas eram forçadas a prostituição por suas proprietárias e proprietários).

No entanto, se por um lado, ao se depararem com denúncias de violência sexual as autoridades geralmente posicionavam-se a favor dos agressores, inclusive responsabilizando as próprias “mulheres de cor”, prática que tinha a ver com a imagem que esses homens de maneira geral faziam desse grupo social considerado por eles como lascívias e corruptoras das famílias da elite. Por outro, ao procurar à justiça para denunciar a violência sexual elas explicitavam sua própria compreensão sobre si mesmas. Ao fazer isso Romana e várias outras estavam dizendo que acreditavam ter conquistado para si e para suas filhas o direito de poder dizer não para um homem com quem não quisessem fazer sexo.

Cheguei ao epílogo da obra convencida por Cowling de que embora Romana e Josepha tenham vivido em lugares diferentes e nem se quer se conhecessem, caso tivessem tido a oportunidade de se encontrar naqueles anos cruciais de suas vidas, elas teriam muito que conversar. Inevitavelmente suspeito ainda que várias mulheres negras do século XXI que tiverem acesso as minúcias do itinerário das personagens trazidas no trabalho terão a sensação de que também poderiam participar da conversa.

Por fim, acredito que as questões levantadas ao longo da obra sob vários aspectos servirão de inspiração para historiadoras e historiadores empenhados na reconstituição tanto quanto possível da vida de mulheres escravizadas, libertas e “livres de cor”, bem como de seus familiares e das pessoas com as quais elas se aliaram na construção de outros tantos processos coletivos de luta por liberdade legal.

Karine Teixeira Damasceno – Pós-Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em História Social da Cultura (PUC-Rio), Bolsista da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES).


COWLING, Camillia. Concebendo a liberdade: mulheres de cor, gênero e a abolição da escravidão nas cidades de Havana e Rio de Janeiro. Tradução: Patrícia Ramos Geremias e Clemente Penna. Campinas: UNICAMP, 2018. 440p.. Resenha de: DAMASCENO Karine Teixeira. “Mulheres de cor” no centro da luta por liberdade legal em Havana e no Rio de Janeiro. Canoa do Tempo, Manaus, v.11, n.2, p.294-297, out./dez., 2019. Acessar publicação original.

Arqueologia de Gênero nas cidades de Pelotas – RS – Brasil e Habana Vieja – Habana – Cuba / século XIX – FREDEL (RAP)

FREDEL, Karla Maria. Arqueologia de Gênero nas cidades de Pelotas – RS – Brasil e Habana Vieja – Habana – Cuba / século XIX. Erechim, RS: Habilis Press, 2015, 214 p. Resenha de: SANCHIZ, Juan Manuel Cano. Revista Arqueologia Pública, Campinas, São Paulo, v. 10, n.3, out. 2016, p. 114-119.

Arqueologia de Gênero nas cidades de Pelotas – RS – Brasil e Habana Vieja – Habana – Cuba / século XIX es la publicación de la Tesis Doctoral homónima de Karla Mª Fredel, defendida en el Instituto de Filosofia e Ciências Humanas de la Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP), en octubre de 2012. La tesis se desarrolló bajo la orientación del profesor Dr. Pedro Paulo A. Funari (Laboratório de Arqueologia Pública, NEPAM/UNICAMP) y la co-orientación de los profesores Dra. Lourdes Domínguez (Oficina del Historiador de La Habana; Academia de la Historia de Cuba) y Dr. Lúcio Menezes Ferreira (Laboratório Multidisciplinar de Pesquisa Arqueológica, UFPel). Todos ellos han contribuido a esta nueva obra con sendos prólogo (Domínguez), prefacio (Funari) y presentación (Ferreira).

Este libro contribuye al desarrollo de la incipiente Arqueología de Género a través de un análisis comparativo de dos muestras de estudio pertenecientes a contextos diferentes, aunque conectados por el consumo común de loza doméstica de tipo colonial: la residencia Francisco Antunes Maciel, en la ciudad de Pelotas (Río Grande del Sur, Brasil), y la denominada casa Prat Puig, en Habana Vieja (provincia de La Habana, Cuba). La autora se propone, además, reflexionar sobre dos aspectos diferentes de la sociedad decimonónica pelotense y habanera: el género y la clase, abordados desde los binomios femenino-masculino y señor-esclavo.

Desarrollar simultáneamente dos estudios de caso, en países con realidades emparentadas (sociedades aristócratas, patriarcales y esclavistas) pero diferentes (colonias portuguesa y española), y con un doble foco, implica una notable dificultad y la necesidad de redoblar esfuerzos, o de desdoblarse como investigador. Desde este punto de vista, el trabajo de Fredel, valiente y poco común, merece ser destacado. Sobre todo porque no se limita a interpretar los casos de estudio dentro de sus respectivos contextos nacionales, sino que los conecta con el exterior para reflexionar sobre la formación de las sociedades modernas en la órbita del mundo capitalista.

El marco de dichas reflexiones es la Arqueología de Género, que busca ofrecer narrativas diferentes sobre la historia de las mujeres y las mujeres en la Historia a partir, principalmente, de la cultura material asociada al mundo femenino. En palabras de Fredel, su trabajo persigue “o resgate da voz feminina, pouco presente das narrativas históricas” (FREDEL, 2015: 49) por diversos motivos (culturales, políticos, religiosos), incluso porque, según ideas de Michelle Perrot (2007), nuestro propio lenguaje contribuye, con sus plurales masculinos, a silenciar la voz de las mujeres en las fuentes escritas.

Por otro lado, Fredel halla sus bases teóricas en la Arqueología postprocesual; es decir, contextual. Ello implica atender a la importancia del contexto en un doble plano. De un lado, el contexto pasado en el que acontecieron los problemas estudiados. De otro, el contexto presente del investigador, que ciertamente condiciona la representación del pasado a partir de nuestras preguntas y de nuestra particular y subjetiva manera de percibir la realidad. En este libro encontramos a una mujer del presente (Karla Fredel) que  reflexiona sobre la vida de otras mujeres del pasado (anónimas). Según mi propia percepción, el contexto de Fredel (nuestro hoy en el estado de São Paulo) se caracteriza, en relación con el tema abordado, por una presencia creciente del feminismo activista en el ambiente universitario (mayor o menor en función de qué facultades) y por la consolidación de palabras como paridad, equidad o género en el vocabulario político. Pero Fredel se sirve de una metodología arqueológica impecable para producir una lectura no intencionada del pasado, una lectura que, desde la subjetividad que caracteriza a las Humanidades, puede considerarse imparcial. En otras palabras, los resultados de Fredel son valiosos para el avance del conocimiento porque se basan en un proceso de investigación riguroso y académico que, lejos de caer en la propaganda, reivindica con argumentos consistentes el papel femenino en la Historia. En este sentido, Fredel matiza que el hecho de que el espacio característico de la mujer en los contextos estudiados fuese el hogar no implica una devaluación de sus funciones. La mujer desempeñó entonces una serie de tareas muy importantes para el equilibrio y buena marcha familiar (en diferentes ámbitos), si bien es cierto que ello aconteció generalmente en una sociedad de marcado carácter machista y paternalista.

Todas estas ideas son planteadas desde un enfoque fundamentalmente cultural. Siguiendo a autoras como Andréa Gonçalves (2006) o Michelle Perrot (2007), Fredel entiende que la categoría género releva a un segundo plano la cuestión biológica, caracterizando las diferencias entre sexos como una construcción cultural. En efecto, este no es un libro de Antropología Física, sino de Arqueología. Con todo, en nuestra opinión el cuerpo humano también participa en la modelación del comportamiento y los hábitos. El objeto compresa, por ejemplo, pertenece al ámbito de la cultura material femenina debido a una necesidad fisiológica exclusiva de las mujeres dentro de un determinado rango de edad, aunque su uso se limite a ciertos contextos. Estamos de acuerdo en que buena parte de las diferencias existentes entre hombres y mujeres pueden explicarse desde los sistemas culturales y sociales en los que estos se insertan, pero el sexo (macho/hembra, en un sentido darwinista) también determina.

En otro orden de cosas, este libro refleja una realidad creciente en el campo de la Arqueología: la progresiva compartimentación de la disciplina en diferentes especialidades temáticas y cronológicas. La Arqueología de Género puede entenderse como un enfoque temático de aplicación diacrónica. Con todo, Fredel se centra en un periodo concreto (el siglo XIX) para analizar cómo un objeto determinado (la loza doméstica) puede reflejar ciertas mudanzas sociales de escala global.

Más específicamente, los problemas estudiados por Fredel, magistralmente contextualizados, se enmarcan en un periodo de cambio definido por la formación de la sociedad capitalista y del mercado global. El libro es interesante por mostrar cómo el consumo de los mismos materiales de importación pudo generar rasgos comunes en espacios diferentes y distantes. Esto se manifiesta, de manera evidente, en los gustos, rastreables en las formas y esquemas decorativos de las piezas compradas, pero también en cuestiones más complejas, como las relaciones sociales. A pesar de lo dicho, y como advierte la autora, los contextos de cada ambiente de consumo, y las diferencias existentes entre los propios consumidores, añaden también algunas especificidades.

Entre estas últimas, cabe destacar el particular proceso de industrialización brasileño, sobre el que este libro incide tangencialmente. Siguiendo ideas de Nelson Sodré (1998), Fredel defiende que en Brasil no existía un esquema de industrialización capaz de absorber la transición del trabajo servil al asalariado, lo que produjo un brusco hiato de dramáticas consecuencias para la población. En tales circunstancias, la comercialización de la producción agropecuaria (más específicamente, del charque) en Río Grande del Sur favoreció una serie de contactos con el exterior sobre la base de la exportación-importación. Fueron los productores y comerciantes de charque quienes, enriquecidos por las exportaciones y convertidos en elite pelotense, comenzaron a importar artículos de lujo europeos y norteamericanos (entre ellos la loza doméstica estudiada por la autora, pero también vestidos, muebles y hasta materiales constructivos) como elemento de distinción.

En una sociedad que se va haciendo más cosmopolita, los rasgos exógenos (presentes en los objetos de consumo, en la decoración arquitectónica e incluso en la educación de la propia prole) son leídos en clave de estatus y se vuelven hegemónicos en el ámbito comercial.

Fredel defiende que la penetración de estos productos fue más rápida que los valores que justificaban su uso, lo cual abre la puerta a un horizonte de interpretación que, más allá de la utilidad práctica de los objetos, conecta con su valor simbólico. Por otro lado, la dispersión global de la loza doméstica, que en el siglo XIX tuvo uno de sus principales centros de producción en Inglaterra, manifiesta la formación del sistema de producción y consumo de masa. O sea, la aparición de la sociedad de consumo.

La autora recuerda, basándose en Charles Orser (2000), que una parte muy importante de los artefactos vinculados a contextos arqueológicos de los siglos XIX y XX (y XXI) son resultado de un proceso de fabricación industrial. Es decir, objetos que a menudo son distribuidos y consumidos por personas diferentes a las que los producen. El artefacto puede configurarse así como un vínculo o elemento de conexión entre el receptor y el emisor de la cultura material, a veces ligados a sistemas socio-culturales muy diferentes e incluso separados espacialmente por miles de kilómetros. A este respecto, uno de los resultados más reveladores del trabajo de Fredel es que sus dos estudios de caso presentan las mismas tipologías a pesar de estar separados físicamente por casi 7000 km en línea recta.

No obstante, Fredel logró identificar dos marcas de fabricantes brasileños entre un total de cinco reconocidas (el resto, tres, inglesas). El dato es sesgado, pero no deja de llamar la atención que en el caso brasileño la producción nacional también tuvo un peso importante en los ajuares domésticos decimonónicos. La cuestión no es baladí, pues nos obliga a revisar algunas hipótesis y a matizar la posible dependencia del exterior y su repercusión (¿o es consecuencia?) en una industrialización débil y tardía. Por otro lado, no debe olvidarse que los productores brasileños optaron por reproducir las formas europeas, marginando así la tradición local o pre-colonial, apenas presente en las aisladas comunidades indígenas.

Desde el punto de vista metodológico, Fredel divide los materiales estudiados (previamente catalogados por los respectivos equipos arqueológicos que intervinieron en las viviendas seleccionadas como estudios de caso) entre objetos usados por hombres y mujeres, de un lado, y por señores y criados, del otro. La autora defiende que los artefactos de cocina se vinculan a la mujer, mientras que los de consumo de alimentos y bebidas son comunes a ambos sexos. Las diferencias más marcadas están en la esfera de la higiene personal. Se echa en falta, en este capítulo, una argumentación más desarrollada que justifique este sistema de clasificación por sexos, que a veces resulta poco consistente porque no se explican cuáles son los criterios adoptados. Faltan, además, los contextos arqueológicos específicos de las piezas estudiadas (¿en qué estancia fue encontrado cada artefacto y a qué estructuras y objetos estaba asociado?), que pierden así parte de su valor como fuente de información.

De hecho, esta publicación adolece, de manera general, de una mayor integración de la cultura material en el discurso. Los estudios arqueológicos de Fredel, tanto de las piezas de loza recuperadas en Pelotas y Habana Vieja como de las casas donde estas fueron encontradas, tienen una débil presencia en el libro, reduciéndose a una serie de anexos que ocupan las últimas páginas. Hay así un cierto desfase entre la propuesta de investigación y los resultados presentados, que, aun siendo de gran interés, derivan fundamentalmente de las reflexiones de la autora sobre el tema a partir de un estudio exhaustivo de la bibliografía disponible. Es decir, las conclusiones de Fredel se alejan un tanto de sus estudios de caso, que plantean varios interrogantes que no son resueltos en este volumen. Leído esto en positivo, este libro abre nuevas líneas de investigación y trabajo.

Existe, por otro lado, un desequilibrio en el tratamiento de los problemas tratados (tensiones femenino-masculino y señor-esclavo), con una clara priorización del primero (género) sobre el segundo (estatus). No se contempla, por ejemplo, la cultura material asociada a la mujer esclava, ni se aportan datos sustanciales sobre la vida cotidiana del servicio femenino. La mujer que protagoniza el libro de Fredel es burguesa.

Otro aspecto que podría servir para completar esta obra es la incorporación de referencias a paralelos que ayuden a comprender hasta qué punto lo sucedido en Pelotas y Habana Vieja sigue un determinado patrón (¿copia o modelo?) o constituye alguna singularidad. Debe ser advertido, en conexión con el párrafo anterior, que los dos estudios de caso presentados en este libro se refieren a casas destacadas en sus respectivos ámbitos urbanos. Es decir, viviendas que fueron ocupadas por unidades domésticas pertenecientes a las elites pelotense y habanera. Por tanto, es presumible que algunas de las conclusiones sobre diferencias de género alcanzadas a partir del estudio de la cultura material no tengan validez para otros estratos sociales.

Finalmente, se detectan otros problemas menores que, en caso de una eventual reimpresión o reedición, podrían corregirse, como los errores gramaticales y ortográficos presentes en las citas literales en español.

Más allá de estas pequeñas objeciones, que tal vez podrían mejorar un libro que ya es bueno, esta monografía supone una excelente puesta al día de las corrientes teóricas y la bibliografía sobre el tema Arqueología de Género. Este volumen tiene un fuerte sesgo teórico, y es cierto que se echa de menos una mayor contribución de la evidencia física de los casos de estudio. Pero ello puede justificarse, en buena medida, por el carácter innovador del trabajo planteado por Fredel, que tanto en Brasil como en Cuba puede considerarse pionero. Era necesario, así, el peso que la autora otorga al estudio crítico del estado de la cuestión, siendo de destacar que consigue definir un marco epistemológico propio para la Arqueología de Género a partir de una mirada amplia y global a la teoría arqueológica y a su desarrollo.

Al mismo tiempo, este libro cumple su objetivo de favorecer una mejor comprensión de los procesos de formación de la sociedad contemporánea y del papel de la mujer en la misma. Puede considerarse, por tanto, una obra de lectura recomendada para todos los interesados en el estudio del pasado reciente desde la Arqueología Histórica (o desde la Arqueología de la Industrialización, que no solo se preocupa por la producción de bienes, sino también por su distribución y consumo), especialmente para quienes deseen saber más sobre la organización de las unidades domésticas decimonónicas en Brasil y Cuba, la caracterización de sus espacios físicos y su asimilación del nuevo orden mundial traído por la industrialización capitalista.

Referências

FREDEL, Karla Maria. Arqueologia de Gênero nas cidades de Pelotas – RS – Brasil e Habana Vieja – Habana – Cuba / século XIX. Erechim: Habilis Press, 2015.  GONÇALVES, Andréa Lisly. História e Gênero. São Paulo: Autêntica Editora, 2006.  ORSER Jr., Charles. Introducción a la Arqueología Histórica. Buenos Aires: Instituto Nacional de Antropología y Pensamiento Latinoamericano (INAPL), 2000.  PERROT, Michelle. Minha história das mulheres. São Paulo: Editora Contexto, 2007.  SODRÉ, Nelson Werneck. Panorama do Segundo Império. Río de Janeiro: Editora Graphia, 1998.

Juan Manuel Cano SanchizFacultad de Ciencias y Letras de la UNESP en Assis (SP, Brasil), proyecto Memória Ferroviária. Becario de Post-Doctorado FAPESP: grant 2014/12473-3, São Paulo Research Foundation. Las opiniones, hipótesis y conclusiones o recomendaciones expresadas en este material son responsabilidad del autor y no necesariamente reflejan la visión de la FAPESP. E-mail: laciudadcritica@gmail.com

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Havana and the Atlantic in the Sixteenth Century (Envisioning Cuba) | Alejandro La Fuente

LA FUENTE, Alejandro. Havana and the Atlantic in the Sixteenth Century (Envisioning Cuba). Chapel Hill: The University of North Carolina Press, 2008. Resenha de: SANTOS, Ynaê Lopes. Revista Brasileira do Caribe, São Luís, v.10, n.19, jul./dez., 2009. Arquivo indisponível na publicação original. [IF]