A casaca do Arlequim: Belo Horizonte – uma capital eclética do século XIX | Heliana Angotti-Salgueiro

ANGOTTI SALGEUIRO Heliana A casaca do Arlequim
ANTOTTI H A casaca do Arlequim A casaca do ArlequimHeliana Angotti-Salgueiro | Foto: TV Unesp 2019

Heliana Angotti-Salgueiro | Foto: TV Unesp 2019O livro A casaca do Arlequim: Belo Horizonte – uma capital eclética do século XIX foi publicado primeiro em francês há muitos anos [1], e agora sai em português – ele é o resultado da reelaboração de uma tese de doutoramento apresentada em 1992 na École des Hautes Etudes en Sciences Sociales por Heliana Angotti-Salgueiro – trata-se de um livro que tem uma história, e uma história importante.

1. Parto do título, pois na minha opinião é um título belíssimo – quão bela é a “Casaca do Arlequim”! – eis um título particularmente apropriado, capaz de despertar curiosidade, tanto em francês, como em português, e sobretudo atualmente, uma vez que todos nós precisamos de cores e mesmo de alegria (ou pelo menos de serenidade) nesse momento. Faz alusão ao fato de que a veste do Arlequim é composta de pedaços de tecido costurados, podendo se referir à fragmentação da cidade. A expressão é de Paul Planat (como explicou Heliana na sua “Apresentação” à edição brasileira do livro), remetendo-a a um texto deste arquiteto francês em volume sobre habitações privadas de 1890 [2] – mas esse título também pode nos remeter à inevitável multiplicidade de perspectivas dos diferentes atores que intervêm no processo constitutivo de uma nova cidade, que neste caso é a nova capital (Belo Horizonte) de um estado brasileiro (Minas Gerais). Leia Mais

A casaca do Arlequim | Heliana Angotti-Salgueiro

É uma honra e um prazer ter sido convidado para falar hoje por ocasião da publicação da edição brasileira do grande livro de Heliana Angotti-Salgueiro, A casaca do Arlequim. É difícil acreditar que já se passaram quase vinte e quatro anos desde que o livro de Heliana foi publicado na sua versão francesa (1). Vinte e quatro anos é o tempo de uma geração. É obviamente um desafio formidável para uma obra histórica, que tem necessariamente a marca das teorias, obras e debates da época em que foi escrita, reaparecer em um contexto completamente diferente. No longo prefácio que escreveu para a edição brasileira do seu livro, Heliana Angotti-Salgueiro recorda com maestria e profundidade o contexto em que o livro A casaca do Arlequim foi elaborado. Este contexto é antes de tudo o de uma instituição, a École des Hautes Études en Sciences Sociales, onde brilhantes e diversas personalidades – de Hubert Damisch a Louis Marin e de Marcel Roncayolo a Bernard Lepetit – se cruzavam. Leia Mais

Campo de Poder dos grandes projetos urbanos da Região Metropolitana de Belo Horizonte | Daniel M. de Freitas


Resenhista

Leonardo Gonçalves Ferreira


Referências desta resenha

FREITAS, Daniel M. de. Campo de Poder dos grandes projetos urbanos da Região Metropolitana de Belo Horizonte. São Paulo: Annablume, 2017.  Resenha de: FERREIRA, Leonardo Gonçalves. Uma análise bourdiana sobre os grandes projetos urbanos da Região Metropolitana de Belo Horizonte. Revista Eletrônica do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte. Belo Horizonte, v.7, p.358-362, 2020. Disponível apenas pelo link original.

Participatory Institutions in Democratic Brazil – AVRITZER (NE-C)

AVRITZER, Leonardo. Participatory Institutions in Democratic Brazil Baltimore: The Johns Hopkins University Press, 2009. Resenha de: ROMÃO, Wagner de Melo. Entre a Sociedade Civil e a Sociedade Política. Novos Estudos CEBRAP, São Paulo, n.87, Jul, 2010.

Participatory institutions in democratic Brazil é a obra mais importante de Leonardo Avritzer desde a publicação de Democracy and the public space in Latin America1. O autor rediscute e amplia a análise sobre experiências de orçamento participativo (OP) nas cidades de Porto Alegre, Belo Horizonte e São Paulo e também apresenta estudos sobre mais duas “instituições participativas” — os conselhos de saúde e os processos de formulação dos planos diretores urbanísticos nestas cidades, e também em Salvador.

Avritzer reelabora o que tem sido seu principal desafio teórico desde os anos de 1990: as aproximações entre sociedade civil e sociedade política, e a incorporação de práticas originárias da sociedade civil pelas instituições políticas, em novos “desenhos institucionais” participativos com poder de deliberação sobre políticas públicas. O autor propõe-se a desenvolver uma “teoria das instituições participativas” (p. 4) e reconhece que “os partidos políticos e a sociedade política permanecem pouco teorizados na maior parte da literatura sobre participação, por causa do caráter elitista da literatura ou das concepções anti-sistêmicas da teoria dos movimentos sociais”2. Isto seria uma lacuna na literatura, sobretudo no contexto brasileiro, “em que o Partido dos Trabalhadores (PT) mostrou o caminho ao introduzir arranjos participativos, a conexão entre partidos políticos e sociedade civil na implementação de modelos de participação vem a ser uma variável-chave — mas que não é esclarecida pela teoria” (p. 7). Assim, a principal diferença deste livro para seus trabalhos anteriores é a incorporação da dimensão político-partidária à análise.

Avritzer busca formular sua teoria sobre as instituições participativas relacionando-a com três elementos principais: a sociedade civil, a sociedade política e o desenho institucional3. Inicialmente, o autor retoma a tese já presente em seus trabalhos anteriores: as mudanças na sociedade civil brasileira — explicadas, sobretudo, pelo avanço do associativismo em grandes cidades como Porto Alegre, São Paulo e Belo Horizonte a partir de meados dos anos de 1970 — teriam atuado fortemente para a democratização do país, em uma perspectiva autonomista ante o Estado autoritário, distinta de uma cultura política anterior, centrada na aproximação clientelista e subalterna ao aparelho estatal. Entretanto, o autor identifica algumas peculiaridades locais. Em Belo Horizonte e, principalmente, em Porto Alegre, indica maior autonomia em face do Estado e dos partidos políticos, na comparação com São Paulo e Salvador. Além disso, os movimentos sociais de Belo Horizonte e Porto Alegre seriam mais “generalistas” no que diz respeito ao acesso a bens públicos, enquanto os de São Paulo e Salvador teriam objetivos mais localizados — em torno da saúde e educação, em São Paulo, e do movimento cultural, em Salvador. Tais diferenças seriam fatores de maior ou menor sucesso na incorporação das “instituições participativas” ao sistema político formal.

Em seguida, o autor direciona suas observações às mudanças ocorridas na sociedade política brasileira e latino-americana nos anos de 1980 e 1990. É então que começa a ser incorporada à análise a dimensão partidária, pouco explorada nos textos anteriores em virtude da avaliação sobre a centralidade da sociedade civil nos processos de democratização no Brasil e na América Latina, e também pela visão de que o Estado seria refratário aos impulsos democratizantes advindos da esfera societária. Neste livro, ao contrário, Avritzer enfatiza o modo como a sociedade política, os partidos políticos de esquerda e, especificamente, o Partido dos Trabalhadores teriam atuado para a formalização do que chama de “instituições participativas”, incorporando demandas sobre participação presentes em suas origens “externas” às instituições políticas formais:

A sociedade política, no interior das instituições participativas, relaciona concepções de participação originárias dos atores da sociedade civil. Nesse sentido, reforça concepções gerais de participação que estão na raiz da formação dos partidos políticos de massas e de esquerda. […] O PT, no Brasil, desempenha exatamente este papel de relacionar ideias de participação presentes em suas origens com atores da sociedade civil que demandam participação. Na maior parte dos casos de participação analisados neste livro, a iniciativa foi tomada por atores da sociedade política (p. 10).

Esta nova demarcação teórica, dada pela incorporação dos partidos políticos à análise, dá-se de modo bastante específico:

Afirmo que a distinção entre partidos de massa e partidos eleitorais ainda é válida. Além disso, argumento que o lado identitário da formação do partido continua a ser relevante no debate sobre partidos políticos de massa. Demonstro que um partido de massas com ligações externas ao sistema político é o veículo ideal para trazer demandas participativas ao Estado (p. 13).

Assim, o modo pelo qual Avritzer incorpora a sociedade política na análise se dá pelo viés da sociedade civil, uma vez que o PT é visto como um partido de origem nela e portador de suas demandas participativas. As mudanças na sociedade política — em suma, o aparecimento do PT — são derivadas das mudanças ocorridas na sociedade civil: o PT, herdeiro direto do associativismo revigorado nos anos de 1970 e 1980, teria atuado como cabeça de ponte da participação popular no sistema político, facilitando a inserção de práticas democratizantes da sociedade civil no Estado.

Dessa forma, assim como no caso da sociedade civil, a caracterização do PT elaborada por Avritzer se dá na chave da autonomia: “o projeto político do PT nasce das demandas por autonomia em relação ao Estado feitas pelo novo sindicalismo e pela Igreja Católica” (p. 47). No caso do “novo sindicalismo”, tratar-se-ia de autonomia diante da tutela do controle do Estado sobre as organizações sindicais. No caso da Igreja Católica, Avritzer indica que “autonomia significou a habilidade dos atores sociais de demandar bens públicos — terra, serviços sociais, saúde, ou melhorias urbanas, como pavimentação ou saneamento — independentemente do Estado” (p. 47)4. Ao “novo sindicalismo” e à Igreja Católica, o autor agrega o que chama de new left, parcela da esquerda que critica os comunistas, sem que se demore em investigar suas características e o modo como teria se agregado às duas outras “forças de coalizão”.

Além disso, também como um componente identitário do PT, figuram a crítica ao clientelismo e a adoção da democracia participativa. Estes fatores teriam contribuído para que o PT tivesse inovado institucionalmente ao introduzir formas de participação no orçamento, na saúde e na política urbana.

É a partir desta caracterização do papel do PT na sustentação das “instituições participativas” que o autor introduz o que parece ser o principal — embora modesto — ganho analítico de Participatory institutions in democratic Brazil. Avritzer argumenta que, para que sejam investigadas as causas dos sucessos e dos fracassos das políticas participativas das diversas administrações petistas, devem ser conhecidas as seções locais do PT, sobretudo, quanto à relação entre identidade e estratégia no nível local. E avalia que o PT, como todo partido político de esquerda e de massas de perfil social-democrata, teria passado pelo dilema de manter sua identidade sociopolítica, construída sobre o princípio da autonomia dos movimentos sociais dos quais seria originário, e ao mesmo tempo tornar-se competitivo no sistema político — a dimensão estratégica. As variações desses dois pólos (identidade e estratégia) deveriam ser consideradas no âmbito local (municipal e/ou estadual). Deste conjunto de fatores originou-se maior ou menor “vontade política” da seção local do PT e de seus governos municipais para com as “instituições participativas” (p. 50ss).

Cabe no momento indicar o terceiro elemento analítico utilizado por Avritzer no livro. Ele propõe um olhar sobre as “mudanças no desenho institucional” (pp. 62-80), apresentando um “modelo dinâmico e interativo de desenho participativo”:

O modelo dinâmico e interativo também compreende que o sucesso do desenho participativo não é causado pelo desenho em si; antes, cada sucesso é o resultado não antecipado de interações entre atores da sociedade política e da sociedade civil que levam ao desmantelamento das velhas regras e fixam as novas (p. 64).

Este é fundamento do movimento teórico pelo qual o autor incorpora a sociedade política como um ator propositivo de instituições participativas, e não apenas resistente a elas. A partir da premissa do “desenho institucional e interativo”, são apresentadas três possibilidades de instituições participativas — o orçamento participativo, os conselhos de saúde e os processos de aprovação dos planos diretores municipais. Com base nelas, o autor constrói tipos ideais de desenho institucional, respectivamente os chamados bottom-up designs (desenhos “de baixo para cima”), os power-sharing designs (desenhos de compartilhamento de poder) e os ratification designs (desenhos de ratificação). Esses modelos terão maior ou menor possibilidade de sucesso de acordo com o modo em que se dá o encontro entre sociedade civil e sociedade política no contexto local. Assim, por meio da análise sobre como se comporta cada design em cada uma das quatro cidades estudadas, o autor pretende construir quadros comparativos que o levem a uma “teoria das instituições participativas”.

O livro denota um relativo deslocamento nas teses anteriores de Avritzer, sobretudo quanto ao orçamento participativo. De fato, era insustentável a pouca importância teórica dada ao contexto político-partidário das localidades, sobretudo aquele relativo aos posicionamentos do PT local e mesmo às disputas no interior do partido. Embora o tema não estivesse totalmente ausente em seus textos anteriores, o autor não havia ainda tratado do papel central dos governos — e dos partidos que os sustentam — na proposição e no controle dos processos de orçamento participativo. Ou seja, não havia ainda estabelecido como preocupação teórica a natureza das relações entre os partidos políticos e a sociedade civil que ajudam a explicar a configuração das instâncias participativas, considerando a propensão do PT local a estimular e fortalecer as instituições participativas. Avritzer pouco se debruçara sobre o problema dos padrões de comportamento e composição local dos partidos que ajudam a explicar as variações de “vontade política” nas várias experiências de orçamento participativo nos governos petistas ou não-petistas.

Este passo analítico teve que ser dado principalmente pelo relativo fracasso da experiência do OP de São Paulo. Anteriormente saudado como “potencializador da dinâmica participativa na cidade”5— a postura adotada pelo autor com relação a esse caso se torna mais crítica neste livro. Assim, a incorporação de São Paulo ao seu rol de cidades estudadas (em textos anteriores ele se respaldava nas experiências “positivas” de Porto Alegre e Belo Horizonte6) — traz a necessidade de explicar por que, em uma cidade com movimentos sociais tradicionalmente vigorosos, a experiência de OP não teria sido satisfatória na capital paulista.

Os oito anos de malufismo (1992-2000) entre a primeira e a segunda administração petista em São Paulo são indicados como perniciosos para a estruturação de instituições participativas na cidade. Isto teria se dado não só em relação ao OP, mas também aos conselhos de saúde e à elaboração de seu plano diretor urbanístico. Entretanto, o que é central como opção analítica é a verificação das divisões internas no PT paulistano sobre as prioridades dadas à participação popular, já presentes no governo de Luiza Erundina e acentuadas no governo de Marta Suplicy.

É fundamental ao argumento de Avritzer indicar o PT como um partido pró-participação. Os casos em que isso não se configura são ora explicados pelas fissuras internas ao partido — entre setores mais ou menos afeitos às instituições participativas —, ora indicados como “concessões” ao sistema político formal para que o partido não “perca votos”, como na justificativa pela “opção” do governo de Marta Suplicy em não privilegiar o OP como política de gestão, pela necessidade eleitoral que o teria levado a realizar acordos com a direita malufista na Câmara de Vereadores (p. 113).

Para Avritzer, quando há harmonia intrapartidária nas seções locais do PT, as chances de que o OP vingue são maiores. Este argumento vale tanto para o caso negativo — São Paulo —, em que não teria havido acordo no interior do partido sobre a dimensão a ser dada às políticas participativas, como para o caso positivo — Porto Alegre —, em que teria havido um “pacto” entre as principais facções para que as disputas internas não atrapalhassem o projeto político maior na cidade:

Em Porto Alegre, Olívio Dutra tomou posse com o apoio de todos os grupos internos ao PT, liderando um pacto segundo o qual cada facção local do PT iria indicar o prefeito nas eleições subsequentes. Tarso Genro seguiu Dutra, e Pont seguiu Genro, mostrando como este pacto no âmbito das lideranças produziu uma durável hegemonia do PT na cidade (p. 58).

Afirmações de tal natureza indicam os limites da análise de Avritzer e demonstram as insuficiências da compreensão apresentada pelo autor quanto aos padrões internos da competição político-partidária. É sabido que as disputas entre as forças políticas internas do PT de Porto Alegre — e gaúcho de maneira geral — nos anos de 1990 talvez tenham sido ainda mais conflagradas do que as do PT paulistano. Segundo Filomena7, de 1993 a 1999, estabeleceu-se uma aliança entre as tendências Articulação de Esquerda e Democracia Socialista (DS), adversárias do PT Amplo (grupo liderado por Tarso Genro). Tanto é que, ao contrário do que aponta Avritzer, em 1996 houve prévias entre Raul Pont (DS) e José Fortunati (PT Amplo) para a escolha do candidato a prefeito, vencidas pelo primeiro. Fortunati, então, torna-se vice de Pont. Já em 2000, mesmo com a vigência da possibilidade da reeleição, as novas prévias envolvem Pont, Fortunati e Genro, que as venceu. Estas situações e os muitos casos de desfiliações de figuras locais proeminentes — como o próprio Fortunati e, antes dele, Antonio Hohlfeldt, que fora o primeiro vereador do partido em Porto Alegre, eleito em 19828— indicam que o ambiente interno do PT gaúcho pouco diferia do habitual em outras seções do partido. Ou seja, as disputas por indicações a cargos majoritários deram-se em geral na base do voto e da quantidade de delegados que cada candidato ou facção conseguia arregimentar. Tal aritmética, da mesma forma, era a base para a nomeação de mais ou menos correligionários aos cargos no governo ou no partido9. O prestigiado OP porto-alegrense, sem dúvida, tornou-se também um anexo a esta disputa, pois se tornou um espaço político estratégico de fortalecimento dos grupos internos10.

É também interessante verificar como Avritzer trata de um caso negativo de orçamento participativo, o de São Paulo na gestão de Marta Suplicy (PT). Para o autor, a explicação para o fracasso se deve aos seguintes fatores, combinados: 1) o núcleo de assessores mais próximos de Suplicy seria cético em relação à participação, e teria deixado o comando do OP aos setores esquerdistas do PT na capital paulista, com pouco poder político no interior do partido e da gestão; 2) a opção de governabilidade executada pelo governo fora a incorporação de setores conservadores e malufistas à maioria governista, sobretudo por meio das nomeações de subprefeitos. Isto teria dificultado o OP em subprefeituras dominadas por membros de partidos não comprometidos com a participação.

Embora certamente tais fatores possam explicar parcialmente a pouca relevância do OP na elaboração do orçamento e na priorização de políticas públicas na cidade de São Paulo, não explicam o fato de o OP de São Paulo ter apresentado, nos quatro anos em que esteve em vigor, um crescente aumento na participação, que variou crescentemente de 34 mil a 82 mil pessoas, entre 2001 e 2004 (p. 101).

Em outros trabalhos, relativos aos casos de Porto Alegre e Belo Horizonte, Avritzer vinculou a participação à credibilidade do processo perante a população. Em suma, as regras do orçamento participativo seriam efetivas e as deliberações quanto à priorização de obras e serviços seriam cumpridas pelos governos11. No caso de Porto Alegre, o autor liga a baixa participação em algumas regiões com “menor tradição associativa” a dúvidas sobre a capacidade do processo em promover a execução de obras públicas. Sugere, então, que a existência anterior de práticas de participação da sociedade civil predetermina a efetividade do orçamento participativo. No caso de Belo Horizonte, os altos e baixos níveis de participação que se apresentam ano após ano são ligados também a dúvidas dos participantes quanto à efetividade e à continuidade do orçamento participativo. Em seu estudo sobre esta cidade, o autor relaciona tais dúvidas com a incerteza sobre se o candidato do PT ganharia as eleições em 1996 e se, depois, o prefeito do PSB daria a mesma prioridade ao OP12. Todas essas elucubrações, de fraca consistência empírica, servem ao autor para o reforço de suas premissas sobre a capacidade da população em participar de “modo racional”.

Em São Paulo, mesmo considerando que o OP “sempre levantou fortes dúvidas sobre o quão deliberativas seriam suas decisões” (p. 100), os números oficiais utilizados pelo autor demonstram que houve sempre um acréscimo dos níveis de participação, mesmo considerando que o OP paulistano teria privilegiado os setores mais organizados da população13 (p. 102), em tese, os mais esclarecidos sobre eventuais manipulações da prefeitura e/ou sua incapacidade em entregar as obras prometidas.

Tais inconsistências analíticas sobre a participação no OP e a limitação em se considerar os partidos políticos e governos apenas com relação à “vontade política” para se implementar ou não propostas participativas fazem com que o livro pouco avance na análise sobre o que realmente pauta a dinâmica política das experiências de OP e, de resto, das “instituições participativas”. A incorporação da sociedade política em sua argumentação é restringida por seu arcabouço teórico anterior, vinculado ao protagonismo da sociedade civil na proposição de processos participativos. Esta visão permanece em Participatory institutions in democratic Brazil, impedindo-o de avançar significativamente na incorporação à análise das dinâmicas próprias da sociedade política.

Artigos e livros publicados ao longo desta década14 têm contribuído para que se forme a seguinte tese: as “instituições participativas” são freqüentadas principalmente por agentes (indivíduos e grupos) situados nas franjas da “sociedade política”, em torno (ou mesmo no interior) dos partidos políticos. Esta visão é reforçada à medida que se sobe na escala de proximidade com a sociedade política, ou seja, no caso das experiências de orçamento participativo, de maneira crescente desde as reuniões de bairro até os “conselhos do orçamento participativo”, que deliberam sobre a proposta orçamentária a ser apresentada à Câmara de Vereadores e têm maior capacidade institucional de interagir com o poder municipal. A proximidade com as esferas estatais invariavelmente é utilizada pelos conselheiros para um melhor posicionamento pessoal (ou de grupo) no interior da dinâmica político-partidária-eleitoral de cada bairro e da cidade.

Diante disso, é preciso que o referencial analítico sobre os processos participativos induzidos pelos poderes públicos seja remodelado. Deve-se caracterizar, afinal, quem acorre aos conselhos e, mais do que qualificar e mensurar a relação dos conselheiros com organizações da sociedade civil, verificar qual o nível de relação destes com a sociedade política, tanto nas instituições (governos, partidos), como nos processos típicos das disputas realizadas na sociedade política, sobretudo as campanhas eleitorais. Afinal, quem é a “sociedade civil” que participa dessas experiências? E em que medida seus “representantes” podem ser considerados como tal, uma vez que, numa visão mais acurada, mantêm vínculos tão fortes com a sociedade política?

Este veio de análise não poderia ser trilhado por Avritzer, pois põe à prova suas teses originais sobre uma “sociedade civil” que demandaria espaços de participação e atuaria neles de maneira autônoma pela democratização do Estado. O argumento do livro, de que “o elemento analítico relevante é como sociedade civil e sociedade política interagem” (p. 165), mantém intacto o espírito de seus textos desde A moralidade da democracia15. É notável como, em Participatory institutions in democratic Brazil— embora avance na observação do contexto local das relações internas dos governos e partidos —, sociedade civil e sociedade política permanecem como elementos estanques. Pouco se diz sobre o quanto a dimensão substantiva da sociedade civil — tal como conceituada por Avritzer —, em vez de se afirmar, pode ser diminuída nos orçamentos participativos e nas outras instituições políticas.

Notas

1 Princeton/Oxford: Princeton University Press, 2002. [Links] 2 Todas as passagens do livro citadas foram traduzidas pelo autor.
3 Provavelmente, esta incorporação da sociedade política como um componente analítico no mesmo nível da sociedade civil tenha se devido, de um lado, a outros trabalhos sobre o OP que enfatizaram a centralidade das iniciativas partidárias para o sucesso (ou fracasso) de inúmeras experiências. De outro lado, Avritzer passa a reconhecer a multiplicidade de situações relativas à “vontade política” com relação ao OP no interior mesmo do Partido dos Trabalhadores e outros partidos de esquerda.
4 É interessante perceber como o autor, assim, vincula diretamente os movimentos sociais que demandam políticas públicas de todas as ordens à ação estrita da Igreja Católica.
5 AVRITZER, Leonardo, RECAMÁN, Marisol e Venturi, Gustavo. “O associativismo na cidade de São Paulo”. In: AVRITZER, L. (org.). A participação em São Paulo. São Paulo: Editora da Unesp, 2004, pp. 11-57. [Links] 6 AVRITZER. “O orçamento participativo: as experiências de Porto Alegre e Belo Horizonte”. In: DAGNINO, Evelina (org.).Sociedade civil e espaços públicos no Brasil. São Paulo: Paz e Terra, 2002, pp. 17-45; [Links] Ibidem, “O orçamento participativo e a teoria democrática: um balanço crítico”. In: AVRITZER e NAVARRO, Z. (orgs.). A inovação democrática no Brasil: o orçamento participativo. São Paulo: Cortez, 2003, pp. 13-60. [Links] 7 FILOMENA, César L. O agonismo nas relações sociais do partido, dos espaços públicos da sociedade civil e do sistema administrativo estatal: a experiência da Administração Popular em Porto Alegre. Porto Alegre: dissertação de mestrado, Programa de Pós-graduação em Ciências Sociais da PUC-RS, 2006. [Links] 8 Antonio Hohlfeldt retira-se do PT em 1993, filiando-se ao PSDB, e José Fortunati, em 2001, filiando-se ao PDT. Ambos continuaram como figuras de proa na política no Rio Grande do Sul, sendo que Hohlfeldt foi vice-governador do estado (no governo de Germano Rigotto — PMDB) e José Fortunati é, atualmente, o prefeito de Porto Alegre (beneficiado pela renúncia de José Fogaça — PMDB).
9 O que não quer dizer que tenha sido o único critério para nomeações.
[10] BAIERLE, Sergio. “OP ao termidor?”. In: VERLE, João e BRUNET, Luciano (orgs.). Construindo um mundo novo: avaliação da experiência do orçamento participativo em Porto Alegre — Brasil. Porto Alegre: Guayí, 2002, p. 132-64. [Links] Cf. Filomena, op. cit.
11 Cf. AVRITZER, Democracy and the public space in Latin America, op. cit.; “O orçamento participativo: as experiências de Porto Alegre e Belo Horizonte”, op. cit.; “O orçamento participativo e a teoria democrática: um balanço crítico”, op. cit.
12 AVRITZER, Democracy and the public space in Latin America, op. cit., pp. 152-3.
13 Segundo survey utilizado como referência por Avritzer, em 2003, 69% dos participantes do OP de São Paulo pertenceriam a associações voluntárias.
14 NAVARRO, Zander. “Orçamento participativo de Porto Alegre (1989-2002): um conciso comentário crítico”. In: AVRITZER e NAVARRO op. cit., pp. 89-128; [Links] Wampler, Brian. “Instituições, associações e interesses no orçamento participativo de São Paulo”. In: AVRITZER (org.). A participação em São Paulo, op. cit., pp. 371-407; [Links] GURZA LAVALLE, Adrian, Houtzager, Peter e Achrya, Arnab. “Lugares e atores da democracia: arranjos institucionais participativos e sociedade civil em São Paulo”. In: COELHO, Vera Schattan e NOBRE, Marcos (orgs.). Participação e deliberação: teoria democrática e experiências institucionais no Brasil contemporâneo. São Paulo: Editora 34, 2004, pp. 343-67; [Links] Baiocchi, Gianpaolo. Militants and citizens: the politics of participatory democracy in Porto Alegre. Stanford-CA: Stanford University Press, 2005; [Links] COELHO, Vera Schattan e FAVARETO, Arilson. “Dilemas da participação e desenvolvimento territorial”. In: Democracia, sociedade civil e participação. Chapecó: Argos, 2007, pp. 97-126; [Links] WAMPLER, Brian. Participatory budgeting in Brazil: contestation, cooperation, and accountability. University Park, PA: The Pennsylvania State University Press, 2007. [Links] 15 AVRITZER. A moralidade da democracia: ensaios em teoria habermasiana e teoria democrática. São Paulo/Belo Horizonte: Perspectiva/Editora da UFMG, 1996. [Links]

Wagner de Melo Romão – Doutorando no Programa de Pós-graduação em Sociologia da Universidade de São Paulo.

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BH: horizontes históricos – DUTRA (VH)

DUTRA, Eliana Regina de Freitas (Org). BH: horizontes históricos. Belo Horizonte: C/ Arte, 1996. Resenha de: DUARTE, Regina Horta. Varia História, Belo Horizonte, v.13, n.18, p. 507-508, nov., 1997.

De que é feita uma cidade? A resposta a tal indagação pode ter um número vasto de abordagens, como nos mostra a obra B.H — horizontes históricos. Na verdade, qualquer um teria dificuldades de pensa-la ou defini-la sem realizar associações imediatas como todas as sensações e impressões mescladas as imagens de cidades em que viveu, conheceu de passagem ou através de fotos, textos literários, poesias ou imagens cinematográficas.

Mas é justamente a dificuldade de precisar a cidade o segredo para pensá-la. Pois uma cidade e feita de vida e experiencias, inscritas em suas pedras, ruas, nas luzes que brilham a noite, nos rostos das pessoas que passam, nos locais onde se encontram ou se resguardam. Ela não é uma totalidade fechada a ser desvendada nem um espaço de relações passive! de ser aprisionado em um sistema organizado. Esta e sua beleza, este é seu fascínio.

A perspectiva da comemoração do centenário de Belo Horizonte tem, certamente, nos estimulado a refletir sobre seus problemas e esperanças. Mas o aniversario traz também a noção de tempo decorrido. Surge, aqui, a questão de se pensar a história desta capital: os sonhos que a mobilizaram, os homens que a ocuparam e nela construíram suas vidas, as múltiplas cidades que a formam. Pois se horizonte é um substantivo no singular, sua unidade e uma mera abstração de nosso olhar sobre o céu. 0 horizonte e de infinitos, formação de incontáveis e indistintos pontos e trajetos. Belo Horizonte: termo que unifica, afetivamente, toda a pulsação e a explosividade de uma série de práticas dos homens que a habitaram em momentos diversos, na mem6ria que imprimiram pelos seus quatro cantos, na presença de seus vivos ou nos sinais que estes tentam deixar aos seus sucessores.

BH — horizontes históricos, organizado pela professora Eliana de Freitas Dutra, do Departamento de Histeria da UFMG e publicado pela Editora C/Arte, apresenta-se como um momento propiciador de indagarmos essa multiplicidade de Belo Horizonte. A cidade vista nas relações de seus homens e mulheres, nos projetos em que foi delineada, nas práticas que a tentaram definir e em que se construíram suas identidades, em suas praças e parques, ruas e bondes, casas e cinemas, cafés e bares, estatuas e placas comemorativas, Igrejas e imagens.

Formado por seis ensaios sobre a cidade — todos eles produzidos ou orientados no Âmbito do Departamento de História da UFMG — a obra possui uma rica diversidade temática, convidando o leitor a viajar por Belo Horizonte por caminhos muitas vezes impensados. A partir de uma alta qualidade acadêmica, os autores obtiveram o resultado de uma leitura extremamente agradável, com um tratamento preciso e, simultaneamente, simples das questões envolvidas nas reflexões históricas propostas.

Dirigido a um público amplo, BH — horizontes históricos possibilitara a seus leitores, com alta qualidade e extrema singeleza, a reflexão em torno de fascinantes aspectos da vida de nossa cidade. E, ao ressaltar a complexidade de nossa histeria, acaba por abrir-nos promissoras perspectivas de tudo o que pode ser construído no âmbito ilimitado da capacidade criativa de seus cidadãos.

Regina Horta Duarte – Professora do Departamento de História FAFICH- UFMG.

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[DR]

 

“Engenheiro Aarão Reis: O Progresso como Missão” – SALGUEIRO (VH)

SALGUEIRO, Angotti Heliana. “Engenheiro Aarão Reis: O Progresso como Missão”. Belo Horizonte, Fundação João Pinheiro. Centro de Estudos Históricos Culturais, 1997. Resenha de: DUTRA, Eliana Regina de Freitas. Varia História, Belo Horizonte, v.13, n.18, p. 500-507, nov., 1997.

No momento em que a cidade de Belo Horizonte comemora o seu primeiro centenário, reveste-se de significativa relevância a iniciativa da Fundação João Pinheiro, com o concurso da historiadora Heliana Angotti Salgueiro, de preparar uma biografia de Aarão Reis, engenheiro chefe dos trabalhos da Comissão Construtora da da capital.

A tarefa de construção de uma biografia, ainda hoje, é um impreendimento delicado, que afugenta muitos historiadores temerosos de serem identificados à antiga história tradicional, em parte herdeira do paradigma do indivíduo iluminista, com o seu clássico acento sobre as ações dos atores, preferencialmente aqueles que se fazem visíveis no mundo das grandes decisões políticas.. Pruridos à parte, é certo, porém, que a biografia enquanto gênero historiográfico tem retornado aos poucos a ocupar um discreto, mas significativo, lugar dentre os recentes escritos históricos Tal fato tem sido, em parte, atribuido aos desdobramentos, no campo do conhecimento histórico, do advento da pós-modernidade com a prerrogativa da passagem do “sujeito” ao “indivíduo”. Na linha do estabelecimento de uma relação entre pós-modernidade e biografia tem sido alinhados, como pontos para a reflexão dos historiadores, questões tais como a perda do sentido da história e o enfraquecimento ou mesmo o fim dos grandes discursos legitimadores do sujeito ,conquanto inerentes à chamada crise da modernidade.

Por seu turno, os sociólogos, como é o caso de, Bourdieu, manifestam seus cuidados teóricos preocupados em bem distinguir o indivíduo concreto — a personalidade individual e biológica capaz de atuar em diferentes campos, — do indivíduo construido, ou agente eficiente em um dado campo do social, precavidos em não se deixarem capturar pela “ilusão biográfica”. A recomendação nesse caso é de que a compreensão de uma “trajetória” — de eventos biográficos — seja condicionada à construção preliminar dos estados sucessivos do “campo” onde ela se desenrolou, portanto o conjunto das relações objetivas que uniram o agente considerado ao conjunto de outros agentes implicados no mesmo campo e afrontados ao mesmo espaço de possíveis. Só assim se evitaria conceber que uma vida individual é uma “História” e a narrativa desta História, no que também concordam os historiadores.

Noutra ponta do debate historiográfico, e sem negligenciar a refelexão teórico-metodológico em torno da biografia, Heliana Angotti Salgueiro se impõem a tarefa de biografar Aarão Reis optando por fazer uma “biografia intelectual”, dentro de um novo campo da história social, qual seja, o da “micro-história”. Por esse caminho ela reconcilia a ação social com as escolhas e o poder de decisão do indivíduo, cruzando num jogo de escalas, o espaço das ações individuais com o espaço dos sistemas coletivos, portanto a micro com a macro-história. Deste cruzamento, a noção histórica de indivíduo aparece resignificada, pois não mais fragmentada e desterritoralizada, ou mesmo não mais anulada, por uma inexorável determinação, uma vez que o “individual” é complementar ao “social”.

Baseada em um cuidadoso, e minucioso, trabalho de pesquisa de fontes, sobretudo primárias, no qual se destacam um precioso levantamento iconográfico; a seleção de vários, e diversificados, escritos de Aarão Reis; bem como das obra dos autores que deixaram sobre ele uma marca intelectual mais decisiva; e utilizando-se de fartas referências bibliográficas, calcadas em historiadores franceses, Heliana Angotti Salgueiro realiza um trabalho sério e competente.

Pela trajetória intelectual e política de Aarão Reis , seu ponto de partida, somos levados de encontro a uma trilha do pensamento social brasileiro da segunda metade do século XIX e da primeira metade deste, e à fronteira da formação técnica, das referências culturais e dos campo de atuação, e efetiva intervenção, dos engenheiros na sociedade e na administração pública no Brasil dos oitocentos. Também, seguindo as pegadas de Aarão Reis, é possível vislubrar os projetos de reforma social postulados ou em curso, naqueles anos, seja no campo da instrução pública, do planejamento urbano ou mesmo da difusão do progresso científico e tecnológico, bem como às suas respectivas filiações ideológicas, e representações utópicas e imaginárias.

A autora definiu um plano para a obra pelo qual essa se divide em duas partes. Na Parte I , designada “Traços”: Formação e trajetória de Aarão Reis — Pensamento e ação de um engenheiro da Politécnica no Brasil do século XIX”, ela desenha o perfil do homem , do intelectual, do engenheiro. A formação politécnica; a militância republicana, na juventude; sua participação na diretoria do Club de Engenharia; sua atividade no jornalismo, inclusive na imprensa abolicionista; seu trabalho como professor — inicialmente no ensino secundário e posteriormente na Escola politécnica do Rio de Janeiro — e como tradutor de autores franceses do porte de Littré, Condorcet, Laboulaye, entre outros, que estarão nas bases do ideário que marcará seu engajamento em grandes obras públicas; a publicação de tratados científicos, panfletos, opúsculos, através dos quais ele opta por difundir , no dizer da autora,” os princípios de economia social que dominavam sua geração”.

Há que se destacar nesse ponto da obra, alguns momentos importantes na análise empreendida. Por um lado a estratégia metodológica adotada onde a idéia de “esboço” surge em complementaridade à de “traços” impedindo que o leitor apreenda uma imagem estática e linear da vida e obra do biografado. O pensamento e a ação de Aarão Reis, não obstante sua coerência — garantida pela adesão ao “cientismo”, onde a razão e a ciência devem orientar a tomada de decisões políticas e o engajamento na construção de um “Brasil moderno” — aparecem em movimento, abertos à mudanças de influências e sujeitos à deslocamentos. Assim é que podemos acompanhar a multiplicidade de suas idéias, o ecletismo de sua biblioteca e sua relação, em diferentes níveis de temporalidades, com os autores que lê: “parte de Condocert, passa por Saint- Simon e pelo positivismo heterodoxo da ala littreísta, para finalmente abraçar os estereótipos comtianos mais conservadores na sua obra de maturidade”.

Por outro, ao se deter em alguns dos principais escritos de Aarão Reis — entre eles “A Instrução Superior no Império” e “Economia Política e Finanças” — com vistas a estabelecer as relações entre eles e sua ação, suas possíveis contradições, a repercusão dos pensadores que ele leu e “convocou”, sua relação com a memória cultural do século XIX, sua afinidade com o pensamento dos engenheiros reformistas de sua geração, sua articulação com os problemas vividos pelo Brasil, e, sobretudo com a futura concepção de Belo Horizonte, a autora traz à luz um panorama rico sobre o itenerário intelectual de Aarão Reis. O que vemos é um homem culto, com uma erudição marcada, embora não limitada, aos filósofos e engenheiros franceses, com os quais se sintoniza e compartilha a crença em uma filosofia e ciência positivas e com seus valores, e instrumentos , voltados para a instrução pública, o progresso e a modernização do país, guardando sempre, em nome de uma ciência social tecnocrática, uma proposital distância dos partidos políticos, porém, cultivando a crença na autoridade do Estado .

É de se lamentar, no entanto que a atuação do Club de Engenharia, o papel da Escola Politénica do Rio de Janeiro e mesmo a história da constituição da engenharia enquanto um campo de saber técnico e especializado no Brasil não tenham merecido por parte da autora a atenção devida .Aliás surpreende a sua afirmação de que “No processo de modernização urbana, os engenheiros, dentre os quais Aarão Reis, cuja polivalência de pensamento e de ação no desenvolvimento do país não foi ainda levada em conta de forma aprofundada”. Uma simples consulta à obras, entre várias outras, como as Maria Alice Rezende de Carvalho, ”Quatro vezes Cidade”; Jaime Larry Benchimol, “Pereira Passos — Um Haussmman Tropical; Mário Barata, “Escola Politécnica do Largo São Francisco — Berço da Engenharia Brasileira”; Maria Inês Turazzi, “A Euforia do Progresso e a Imposição da Ordem: a engenharia, a industria e a organização do trabalho na virada do século XIX”; Oswaldo Porto Rocha, “A era das demolições: cidade do Rio de Janeiro — 18701920; José Murilo de Carvalho, A Escola de Minas de Ouro Preto: O peso da glória; bastariam para descaracterizar a afirmação acima e reafirmar a existência, de longa data no país, de um conhecimento já estabelecido sobre o tema. Um diálogo com essa literatura certamente teria fornecido novos e ricos elementos para a biografia intelectual de Aarão Reis e para a sua trajetória dentro do campo de atuação possível dos engenheiros do seu tempo e no espaço das iniciativas de modernização e progresso.

Na Parte II, intitulada “Temáticas, Glosas, Referência , são selecionadas, nos escritos de Aarão Reis, temáticas expressivas e emblemáticas, tais como a instrução pública e a reforma do ensino, os ideais humanitários de liberdade e fraternidade, o desenvolvimento tecnológicco, o planejamneto do espaço e do território e a administração das cidades; capazes de inscrever o pensamento e a ação de Aarão Reis, bem como de engenheiros e administradores seus contemporâneos, como uma dimensão particular, e não externa, ou fora do lugar, do fluxo do pensamento ocidental sobre a modernidade. A opção pelo procedimento analítico que privilegia, na biografia intelectual, a noção de apropiação/circulação cultural permite a autora exorcizar a tese das “idéias fora do lugar”, revelando um fundo comum de questões e problemáticas que se cruzam. e circulam, num âmbito internacional de referências, numa corrente cultural geral, e que serão traduzidas em diferentes regimes de historicidade “em face de situações vividas ou condições de sua aplicação”.

No “primeiro segmento “Da instrução pública e do nacionalismo” somos levados de encontro à marcas do romantismo e do naturalismo , na obra de Aarão Reis, no âmbito do seu discurso pedagógico e patriótico que clama pela educação profissional, se desdobra no discurso de regeneração e transformação e intervenção no espaço urbano-arquitetural, e nas iniciativas de representar a pátria no espaço da cidade. A toponímia das ruas e praças de Belo Horizonte, seriam, nesse caso, manifestações exemplares da utilização do espaço, pelo poder, para educar. Ë pena que a autora não tenha se detido um pouco mais nesse ponto explorando a questão da educação popular/ educação e instrução ,e sua relação com o projeto e o ideário republicanos no Brasil, sinalizadas e esboçadas, na primeira parte, à luz do engajamento de Reis com a causa da educação e a transformação do país. A intencionalidade pedagógica presente em boa parte do material iconográfico distribuido ao logo da obra, se trabalhado nesta parte certamente teria permitido comparações e aprofundamentos.

Na sequência , “Do bem comum e social: a Liberdade e a Fraternidade”, encontramos Reis , em outra faceta, às voltas com a questão abolicionista , com iniciativas mutualistas, e com o desafio de conciliar sua condição de pensador, afinado com as idéias humanistas, com a de administrador público, o que lhe impôem, entre outras, a “melindrosa” tarefa de realizar as desapropiações no arraial e lidar com os habitantes desalojados.

Na seção “Da história da técnica: eletricidade e mobilidade” o panorama dos textos escritos por Reis é, como bem diz a autora , uma “crônica dos avanços do século e da sua repercusão no país”, tomadas como ícones do triunfo da civilização e da medida da solidariedade entre os homens. A eletricidade e as estradas de ferro enquanto expressão do progresso científico/tecnológico/material, legitimam a atuação pública de um engenheiro, como Aarão Reis, e conferem visibilidade — através dos seus artigos, relatórios, e outras publicações- à sua erudição técnica internacional, as quais ele não dissocia, dada sua perspectiva ideológica, do debate histórico e político do período Os textos aqui escolhidos nos introduzem a um só tempo à alguns ângulos da história da técnica no Brasil do século XIX, às opiniões de Reis sobre a implantação dessas tecnologias e o seu impacto social e cultural , bem como ao estágio das políticas públicas no país.

Ainda na parte II, no segmento “Do funcionário republicano em face das vicissitudes da política e da administração das obras públicas”, uma outra dimensão da biografia intectual de Reis, é explorada: aquela das delicadas relações emtre o intelectual, o agente responsável, e os tortuosos caminhos do poder e da administração pública. Um republicano convicto com Reis, “porta-voz de uma engenharia nascente”, como afirma a autora, imbuído da missão de levar o progresso ao país e de modernizar as cidades, vai vivenciar a dura realidade dos desencontros ente o que é ditado pela razão técnica e o que é imposto pelo poder político na gestão urbana.. Nos relatórios e nas correspondências se destacam as recomendações técnicas ignoradas pelos governantes e as queixas e desabafos do engenheiro. O descontentamento entre o ritmo demandado pelos funcionários científicos e e o que imposto pelo poder público, por um lado, levam Reis a propor uma alianças entre o Estado e a iniciativa privada para a realização de obras públicas, o que faz tendo como referência o debate entre individualismo e socialismo, ou seja, sem se afastar dos seus referentes de doutrina.

Reiteremos, nessa parte, as mesmas observações feitas anteriormente à I Parte, acerca do papel do engenheiro, uma vez que a autora reafirma que se “pesquisou pouco” sobre a história do funcionalismo científico e admnistrativo no Brasil .

Por fim o ultimo segmento “Da leitura do território ao planejamento urbano: o caso de Belo Horizonte” contempla as intervenções diretas sobre o território e a cidade, que vira a ser Belo Horizonte. A temática escolhida dá à obra um fechamento lógico e coerente: o pensamento e a ação de Aarão Reis, com seus matizes, seus pontos de apoio, suas configurações e sua expressão material, parecem convergir em uníssono para a construção da nova capital.

O Relátório da Comissão d’Estudo das Localidades Indicadas para a Nova Capital, a Planta Geral , os projetos dos prédios públicos, a Exposição de Aarão Reis, na Revista Geral dos Trabalhos, são alguns, entre vários outros, documentos bem retrabalhados pela autora rumo à compreensão do discurso urbanístico, do modelo de cidade e da utopia do espaço, que nortearam a planificação urbano-territorial de Belo Horizonte. Esses pontos têm sido objeto de análise exaustiva e minuciosa por parte de historiadores, sociólogos e urbanistas empenhados igualmente na sua decifração no caso belorizontino. Mantidas as diferenças de enfoques entre eles, é possível encontrar na análise de Heliana Angotti e em alguns desses trabalhos, várias preocupações analíticas comuns. Surpreende, no entanto que a autora não faça nenhuma menção à sua existência, o que pode significar um desconhecimento de farta bibliografia, ou pouca disposicão para a troca de idéias. Quanto aos possíveis antagonismos interpretativos e de método, que poderiam advir da utilização dessa numerosa literatura, ressente-se pela perda da riqueza do contraditório e do diálogo com a diferença.

Para exemplificar, no que diz respeito à analise interna da Comissão d’Estudos — que registre-se, não é desconhecida nos anais da história do urbanismo no Brasil — como forma de penetrar o discurso de Reis, o texto perde em não contrastar e até mesmo aprofundar algumas convergências com o texto de Maria Esther Saturnino Reis, “A cidade paradigma e a república: O nascimento do espaço Belo Horizonte em fins do século XIX”, que adota um procedimento arqueológico na análise do texto da commissão de d’Estudos. Sobretudo quando ambas percebem a importância do recurso aos saberes físicos e biológicos, a fundação de um conhecimento ecológico, a preocupação com a salubridade e a higiene, a centralidade e a inscrição dessas condições na Economia Política da época.

Também quando a autora se detém no exame da Planta da cidade e nas leituras e modelos de Aarão Reis na montagem da sua cidade ideal, é impossivel não se ressentir da referência, e da convocação, dos trabalhos de Paulo Henrique Ozório Coelho, “La Creation de Belo Horizonte: Jeu et enjeu politiques”, Letícia Julião, “Belo Horizonte: Itinerários da Cidade Moderna”, de Luiz Mauro Dos Passos, “A Metrópole Cinquentenária. Fundamentos do saber arquitetônico e imaginário social da cidade de Belo Horizonte —1897-1947, para ficar apenas em alguns poucos, que se debruçam em minúcias sobre a mesma Planta Geral. A concepção de Aarão Reis sobre a cidade e o território; a presença do Estado na regulação da ocupação e do crescimento; a pluralidade das referências e das disposições, modernas e arcaicas, na elaboração do plano urbano da nova Capital; a relação entre o desenho da planta e a topografia local; o suposto caráter rígido do projeto de Reis, são pontos que mais afastam do que aproximam os autores da interpretação de Heliana Angotti, comportando leituras em sua maioria divergentes, incorporando elementos não menos importantes para o entendimento das estratégias e objetivos de Reis, capazes de propiciar rica interlocução e ampliar o escopo da análise histórica.

A autora conclui a biografia intelectual de Aarão Reis reafirmando o conteúdo ideológico progressista de Aarão Reis, centrando na idéia de metamorfose a expressão da sua utopia. A fé littreana de Reis, a qual segundo ela ligava “o progresso da ciência à evolução dos costumes, daí o combate à miséria, vista como obstáculo aos progressos morais e ao bem-estar social da humanidade”, é o pressuposto que sustenta a sua tese de que a concepção de Belo Horizonte, do Reis engenheiro, não é um projeto político ou social, mas parte de uma “missão”, que ele considera sua. Quer concordemos ou não com essa conclusão, chegamos ao final dessa biografia com uma compreensão mais alargada do cenário intelectual e político do final do século XIX no qual transitavam e atuavam homens da estatura de um Aarão Reis, cujo perfil de homem público é esboçado com responsabilidade na presente obra.

Para terminarmos esta resenha um comentário final sobre a edição da Fundação João Pinheiro a qual, muito embora primorosa, como de hábito — quanto ao acabamento da obra, a qualidade do papel , da impressão e das reproduções fotográficas — pecou pelo excesso , ou seja , pelo rebuscamento visual e pela saturação gráfica, as quais dispersam a atenção do leitor, pertubando a leitura das notas e desvalorizando a significativa linguagem das “imagens” tão bem utilizada pela autora.. Uma maior sobriedade estaria em melhor acordo com a natureza do texto e, por que não dizer, com o perfil do biografado.

Eliana Regina de Freitas Dutra – Professora do Departamento de História da UFMG.

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UFMG: Projeto Intelectual e Político – DIAS (VH)

DIAS, Fernando Correia. UFMG: Projeto Intelectual e Político. Belo Horizonte: Editora UFMG, 1997. Resenha de: REIS, José Carlos. Varia História, Belo Horizonte, v.13, n.18, p. 495-500, nov., 1997.

Belo Horizonte faz 100 anos e a UFMG, uma de suas instituições mais importantes, faz 70 anos. A festa dos 70 anos da UFMG integra o conjunto das comemorações do centenário de Belo Horizonte. Nesse ambiente de festa e alegria, o departamento de História da UFMG tomou a iniciativa de criar o projeto integrado de pesquisa UFMG: Memória & História, sob a coordenação das Professoras Maria Efigênia Lage de Resende e Lucília de Almeida Neves Delgado e envolvendo uma ampla equipe de pesquisadores das diversas unidades da UFMG. As pesquisas visam a elaboração de ensaios e estudos sobre as origens e a trajetória da UFMG, o arrolamento de fontes bibliográficas e documentais e a produção de fontes orais, escritas e audiovisuais. O projeto tem o apoio financeiro da FAPEMIG, CNPq, FUNDEP, UFMG e FAFICH. O resultado das pesquisas será apresentado em uma série de 5 volumes. E o primeiro volume acaba de ser oferecido ao público belo-horizonte, mineiro e brasileiro. Trata-se do livro do Professor Fernando Correia Dias UFMG: Projeto Intelectual e Político. Quem o apresenta é o atual Reitor, o Professor Tomaz Aroldo da Mota Santos. A editora da UFMG se esmerou na produção gráfica e artística do livro: uma bela capa que é como a “foto de uma lembrança” do prédio da Faculdade Livre de Direito, o papel de boa qualidade, a impressão bem definida, o texto corretamente tratado e revisado.

O Professor Dias, 71, mineiro de Três Pontas, autor do livro, teve toda a sua formação feita na UFMG: Bacharel em Direito (1951), Bacharel em Sociologia e Política (1957), Doutor em Ciências Sociais (1969). De 1962 a 1969, ele foi professor da FACE e da FAFICH; de 1969 a 1984, foi professor da Universidade Nacional de Brasília. O Professor Dias possui uma obra numerosa, dedicada à sociologia da cultura e à história da cultura. Em suas principais obras, ele tematizou os “caracteres originais” de Minas, a cultura mineira, o barroco, a Inconfidência, a literatura, a educação.

Nesse seu novo livro, o Professor Dias deseja “estudar a mentalidade das elites políticas e intelectuais de Minas nos anos 20, uma quadra de inovação e alvoroço, para compreender o contexto político e intelectual da emergência de projetos coletivos de maior alcance, como a preservação da arte barroca e a construção da primeira universidade do Estado”. E ele atingiu o seu objetivo, cumpriu a sua missão. Ele nos oferece um relato das origens da UFMG, que não pretende ser completo, mas que é uma bem realizada análise da conjuntura política e cultural de Minas na segunda metade da década de 1920, repleta de datas, nomes e episódios. Ele menciona ao final do volume uma vasta e consistente bibliografia. As fontes para o seu livro, ele as encontrou na Biblioteca Central/UFMG, no Arquivo Público Mineiro, na seção Mineiriana da Biblioteca Estadual Prof. “Luis de Bessa”. Ele se apoiou também nos jornais de 20/30.

Eis, portanto, o projeto UFMG: Memória & História e, dentro dele, o livro e o seu autor. Sobre o livro, seria necessário e interessante reter algumas de suas análises e informaçöes. Em 1927, criou-se a UMG. Aurélio Pires, um dos seus maiores defensores e fundadores, divide a “história da idéia da universidade mineira” em três fases: 1789-1925: iniciativa; 1925/27: início da realização; 1927: criação definitiva. Vamos nos apoiar nessa periodização para organizar os dados que nos oferece em seu livro o Professor Dias. A periodização é uma estratégia especificamente historiadora para organizar o vivido, oferecendo dele alguma inteligibilidade. Aurélio Pires considera que a “inteligibilidade da UMG” poderia ser percebida nessas três fases, e o Professor Dias parece concordar, pois a estrutura implícita do seu livro leva em consideração essa periodização.

De 1789 a 1925: iniciativa. A UMG foi sobretudo um “sonho dourado” dos Inconfidentes. Em sua origem, ela já era um “projeto político e intelectual”. Os Inconfidentes eram intelectuais com um projeto político, que marcou profundamente a memória mineira e nacional. A fundação da UMG veio realizar uma espera que não pode ser realizada pelos seus sonhadores do passado. Ela será o resgate de uma dívida com o passado, a realização do sonho dos ilustres antepassados mineiros, os Inconfidentes. A universidade apareceu tardiamente no Brasil; elas apareceram somente no século XX. Durante todo o século XIX foram vários os projetos apresentados e arquivados por inércia e indiferença. Por que? Os governantes, afirma Dias, preferiam manter escolas isoladas tendo em vista a profissionalização das novas gerações. Predominava uma mentalidade pragmática, “naturalista”. A universidade seria um retrocesso, um lugar de retórica e pedantismo literário. Para o Professor Dias, foi a “orientação pragmática” que impediu o surgimento antecipado da universidade brasileira. O positivismo que predominou no final do século XIX reforçou esta atitude ao considerar a universidade elitizante e promotora do saber ornamental. A consequência disso era uma cultura dominada pelo autodidatismo e pela bibliografia estrangeira. A tradição cultural mineira se dividia em duas vertentes: a da “razão humanista” e a da “razão pragmática”. A primeira era orientada pela herança católica e greco-latina; a segunda, pela utilidade prática da informação técnica. As duas vertentes predominaram alternadamente e coexistiram e ambas foram prejudiciais à idéia da universidade.

O ensino superior era feito em escolas isoladas. A primeira escola superior fundada no Brasil foi a de Farmácia, em 1839, em Ouro Preto. A segunda, também em Ouro Preto, foi a Escola de Minas, em 1875. Criou-se uma Escola Livre de Direito também em Ouro Preto, em 1892. Mas, com a fundação de Belo Horizonte, a cultura mineira se deslocou de Ouro Preto para a nova capital. Várias escolas superiores isoladas foram criadas em Belo Horizonte: em 1907, a Escola de Odontologia; em 1911/ 12, a Escola de Medicina; em 1911, a Escola de Engenharia. Antes, em 1898, a Escola Livre de Direito de Ouro Preto transferiu-se para Belo Horizonte. A nova capital passou a ter uma importante rede de escolas superiores isoladas. Eram estabelecimentos livres, particulares e autônomos. Belo Horizonte se consolidou como centro político-administrativo e intelectual de Minas. De Ouro Preto, vieram funcionários, profissionais liberais, professores e, inclusive, costumes e rituais. O autor discorre longa e detalhadamente sobre cada uma das escolas de Ouro Preto e de Belo Horizonte. Ele apresenta listas de nomes dos professores e biografias de alguns deles.

Essas são, portanto, as condições iniciais da UMG: subjetivas, o sonho sagrado dos Inconfidentes, uma sensação de menoridade e inferioridade em relação aos países estrangeiros e vizinhos e ao Rio de Janeiro; objetivas: quatro escolas superiores isoladas, que existiam bem e concretamente, que poderiam ser o núcleo inicial da sonhada universidade. Outros fatores vão se associar a esses: a efervescência política e intelectual dos anos 1920, o projeto político do Presidente do Estado Antônio Carlos Andrada, a aspiração da comunidade mineira e belohorizontina.

1925-1927: início da realização. Um reparo em relação a esse corte temporal: ele parece muito curto! Se é verdade que o movimento pró-Universidade se acentuou na segunda metade da década de 20, ele deve ter começado um pouco antes, pelo menos no início da década. Talvez se obtenha uma maior “inteligibilidade do processo” se se estendesse essas datas para 1920/1927. O Professor Dias afirma que o ambiente político e intelectual da década de 20 era marcado por três fatores que aceleraram a fundação da UMG:

1º) a formação dos intelectuais. Nos anos 20, as escolas isoladas começaram a dar os seus primeiros frutos. Os estudantes de Direito se destacavam na política e no setor literário. A maior parte dos jovens intelectuais modernistas passaram pela escola de Direito. A geração modernista mineira possui uma unidade coletiva real, é um grupo social homogêneo. Ela está interessada em resgatar o regionalismo cultural mineiro, quer retomar a tradição intelectual mineira desde o século XVIII. Há interesse na preservação da arte barroca, da cultura mineira. Os novos têm uma formação Iluminista, assim como os seus antepassados do século XVIII. Eles convivem com os tradicionais, egressos do Caraça e dos Seminários de Mariana e Diamantina, de herança católica e greco-latina.

2º) as condições e consequências da urbanização. Belo Horizonte continuava a ser uma tranquila cidade político-administrativa. Ela simbolizava a unidade mineira e recebia os mineiros vindos de todo o Estado. A sua vida urbana se acelerou. Ela centralizava a vida cultural. A imprensa era mais contínua e estável. A oligarquia política perremista não era tão fechada — ela ouve e acolhe intelectuais e políticos oriundos de outras camadas sociais. O Estado não era controlado exclusivamente por uma oligarquia, mas por “elites autoritário-modernizantes”, cuja expressão maior era o próprio Presidente Antônio Carlos. O Professor Dias tem uma opinião, talvez, muito favorável de Antônio Carlos, que uma citação que faz de Norma de Góes Monteiro ajuda a relativizar: é uma “velha raposa”, autoritário, mas modernizante, com tintas de liberal. O autor parece ter-se deixado seduzir por Antônio Carlos.

3º) o pensamento social vigente: foi um momento de forte expressão do regionalismo cultural e político em Minas. Falou-se em “civilização mineira”, em “mineiridade”, que só hoje se rediscute e se busca restringir, limitar. Minas teria uma “visão de mundo” peculiar, da qual o barroco mineiro seria a maior expressão. Havia, em Minas, nos anos 20, um clima de renovação política e intelectual.

Esses três fatores somados teriam levado à realização do sonho dos Inconfidentes: à fundação da UMG. A elite política andava de mãos dadas com a elite intelectual. Dessa convergência nasceu a UMG.

1927: criação definitiva. Os modernistas não foram os mentores e nem os fundadores da UMG. Mas, situados em postos estratégicos no campo intelectual, eles deram decidido apoio à iniciativa de criá-la e implementá-la. Pedro Nava, por exemplo, foi um modernista que a defendeu e consagrou. O jornal “Diário de Minas”, que era órgão oficial do PRM e onde trabalhavam os jovens intelectuais, como Carlos Drumond de Andrade, revela a união das elites em torno da fundação da UMG. Os modernistas, enfim, não a fundaram, mas lutaram também por ela. Eles estarão mais ligados à outra iniciativa cultural importante dos anos 20: a preservação do patrimônio artístico e cultural de Minas, no que tiveram o apoio dos modernistas paulistas.

A fundação da UMG fazia parte do projeto político de Antônio Carlos. Ele tinha um verdadeiro programa de reforma da educação. Aliás, nos anos 20, o tema educacional tornou-se plataforma política. Várias propostas de reforma da educação foram apresentadas. Fernando Azevedo se destacou nessa discussão em São Paulo; em Minas, destacaram-se Francisco Campos e Francisco Mendes Pimentel. Foi esse último que se ocupou do problema da universidade, dos textos legais e do projeto. A UMG teria como objetivo: estimular a cultura científica, a produção nacional de conhecimento científico, promover o progresso e o bem-estar da população, a formação profissional, a fidelidade à cultura mineira e nacional, a responsabilidade e compromisso social. A instituição deveria servir à região mineira e ao Brasil. Ela teria autonomia didática e administrativa. A Universidade não seria um agregado de escolas, mas uma “confederação”. Ela deveria integrar as quatro escolas que a constituíam, bem como os professores e alunos. O espírito da Universidade seria o da convergência da “razão pragmática” e da “razão humanística” em uma “razão científica”, que não separa, mas reúne as duas primeiras. Alguns dos seus fundadores eram ao mesmo tempo técnicos e humanistas: juristas e naturalistas, físicos e filósofos, engenheiros e historiadores, farmacólogos e latinistas… Propõe-se um espírito comum, de solidariedade entre as suas quatro unidades e os corpos docente e discente.

Portanto, a UMG nasceu como resultado da convergência de conjunturas favoráveis: o projeto de um homem político forte, a cidade nova e centralizadora da vida político-administrativa e cultural, o anseio antigo das elites políticas e intelectuais e de outras camadas da população. A sua criação obteve o apoio entusiástico de toda a população. A imprensa, os estudantes, os políticos, os profissionais liberais, todos aplaudiram a iniciativa do Presidente do Estado. Fundada, a luta passou a ser pela construção de uma “cidade universitária”, uma sede espacial bem delimitada, um campus. A crise financeira do Estado adiou o projeto.

O Presidente escolheu para ser o seu primeiro Reitor um homem de sua confiança e que lutou pela UMG: Francisco Mendes Pimentel (18691957). Ele foi aluno, professor e diretor da Escola de Direito. Pimentel tomou a sua indicação como uma “missão”. Mas, durou pouco! O Professor Dias descreve de modo dramático o conflito que opôs o Reitor, o Conselho Universitário e os estudantes em torno da questão da “aprovação anual sem exames finais!”. Pimentel sofreu duramente a violência estudantil. Houve gritos, ameaças, pedradas, ovos atirados, tiros, mortos, feridos, humilhados, polícia e processos na justiça. Pimentel abandonou a universidade, decepcionado e ressentido. O autor sugere que esta fase seria a da criação definitiva. Mas, depois desse episódio, a UMG esteve ameaçada: ela pareceu passar de um “sonho dourado” a um “pesadelo infernal”. O Presidente do Estado pensou em desistir da idéia, pois estava frustrado. Mas, não o fez. A vida universitária ficou carregada de desconfiança e ressentimentos. No entanto, o tempo passou, a ferida sarou. E nos anos 40/50, a universidade se consolidou: incorporou a FAFICH e a Escola de Arquitetura e Belas Artes. Em 1949, ela foi federalizada.

Hoje, a UFMG é um dos centros de pesquisa e de formação de quadros e cidadãos, um centro de produção de conhecimentos científicos, sociais e filósoficos e de educação dos mais férteis do Brasil e em padrões excelentes. A universidade sofreu com as reviravoltas políticas: 30,37,64. Ela teve de lutar por sua existência e pela sua autonomia contra as ditaduras. Ela sempre foi uma referência democrática, um centro de resistência aos ventos mais turbulentos da história brasileira. Os fundadores e dirigentes da UMG e da UFMG lutaram com dedicação e competência pela sua fundação e continuidade. Se eles se inspiraram nos antepassados mineiros do século XVIII, eles nos inspiram, hoje, na defesa da Universidade contra aqueles que, muitos saídos dela, querem passar para a história como seus “coveiros”.

O livro do Professor Dias é encerrado com alguns interessantes apêndices: belas fotos dos primeiros prédios da UMG e de Belo Horizonte dos anos 20/40; as biografias dos cientistas mineiros dos séculos XVIII e XIX, feitas por Aurélio Pires; o discurso de Pedro Nava louvando a criação da UMG; o documento da fundação com as assinaturas dos fundadores; um documento em que a nova universidade responde às questões da ABE sobre a sua idéia de universidade; documentos dramáticos que revelam a luta dos Reitores da UMG e UFMG pela sua autonomia, destacando-se os de Aluísio Pimenta em 64.

Concluída a leitura do livro do Professor Dias, tem-se a certeza de que a pesquisa promovida pelo departamento de História para comemorar os 70 anos da UFMG, que está planejada para 5 volumes, começou muito bem em seu primeiro volume. Os próximos 4 volumes terão no livro do Professor Dias um bom preâmbulo, uma boa referência. O projeto UFMG: Memória & História foi bem iniciado; agora, aguardemos os próximos resultados desse importante trabalho.

José Carlos Reis – Departamento de História/UFMG.

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Clube da Esquina: a geração dos sonhos. Os Sonhos não Envelhecem – BORGUES (VH)

BORGES, Márcio. Clube da Esquina: a geração dos sonhos. Os Sonhos não Envelhecem. Histórias do Clube da Esquina. Geração Editorial. Resenha de: NEVES, Lucilia de Almeida.   Varia História, Belo Horizonte, v.13, n.18, p. 491-494, nov., 1997.

“Escrevo para cumprir um impulso, esvaziar meus escaninhos e contar para mim mesmo com os olhos do tempo e da distância uma história que de qualquer forma já está contada nas músicas que compus”. Estas são as palavras com que Márcio Borges, primeiro parceiro de Milton Nascimento, crava nas páginas iniciais de seu recente livro o mais profundo e humano sentido de permanência das lembranças e dos sonhos.

Escrevendo um texto que pode ser classificado tanto como romance de uma geração, ou como livro de memórias o autor, através de um estilo saboroso, arrebatador, simples mas verticalizado, produz literatura histórica de primeira qualidade. Os casos contados por Borges apresentam-se como visita às reminiscências de um tempo histórico privilegiado no qual os jovens cronstruíam utopias. Trata-se de um mergulho no tempo que se foi. Mergulho pautado pelas emoções e vivências do presente. De um presente que se consubistancia como ponto de partida para a viagem do recordar.

A memória é caracterizada por potencialidades múltiplas, dentre as quais se destacam as seguintes: possiblidade de reascender utopias de um tempo anterior, reconstrução da atmosfera de outra época, revivicação de emoções políticas, individuais e sociais. Borges, ao rejuvenescer os sonhos passados, realiza na escrita de suas memórias as potencilidades inerentes ao ato de rememorar. O faz com sabor especial, com uma força particular, que transforma a memória em História.

As memórias individuais de Márcio Borges, traduzidas em palavras que conformam um texto de saborosa viagem ao recente passado mineiro e brasileiro, transmudam-se em elementos que contribuem para uma melhor compreensão da história contemporânea de Belo Horizonte e do Brasil. Isso porque, suas lembranças particulares, são, simultaneamente, revelações de memórias coletivas. Dessa forma, o relato individual do autor tem como ponto de partida diferentes quadros sociais, ou seja, a vida cotidiana da comunidade belohorizontina nos anos sessenta e a inserção nesse cotidiano de jovens de classe média, tomados por um forte impulso gregário e por um marcante desejo de “mudar o mundo”. Portanto, como afirma Fernando Brant em sua apresentação do livro, o autor:

“Com olhos de cinema, literatura e música viu e vê a vida. Máquina humana de decifrar o mundo com palavras, sons e imagens, ela aparece agora contando cacos de um tempo querido, os anos sessenta e setenta”.

O livro, cujo pano de fundo temporal é a efervescente década de sessenta e os silenciosos primeiros anos da década de setenta retrata, com emoção de artista, o cenário de um tempo histórico privilegiado no qual o mundo foi revirado pelo avesso. Nas páginas do livro, como em um documentário cinematográfico podem ser visualizados, através do texto e de fotografias, a derrubada de João Goulart, o movimento da juventude em 1968, o surgimento e consolidação do grupo de jovens músicos mineiros, que formaram o Clube da Esquina, o recrudescimento do autoritarismo no início dos anos setenta e o nascimento da década de oitenta, arejada pelas primeiras e sequentes brisas da abertura política.

O principal sujeito da história contada por Borges é um grupo de jovens mineiros que, naqueles anos, movido por uma forte esperança trasnsformadora, contribuiu para o plantio de sementes de mudanças no Brasil e em todo ocidente. Jovens integrantes de uma geração marcada pela vontade de visualizar alternativas para o futuro do país e do planeta terra, e de buscar a construção dessas alternativas no presente. Dessa forma, o texto apresenta-se como especial observatório de uma geração que não teve medo de viver e de romper barreiras. De uma juventude, que fez da arte porta voz de sonhos e que revelou através da música o retrato de um Brasil, àquela época amordaçado, mas não rendido às mãos fortes do autoritarismo político.

Os personagens que viveram a aventura daquele tempo de acreditar em sonhos eram rapazes da então pacata Belo Horizonte. Uma cidade de avenidas largas e arborizadas que conformaram o cenário no qual a vida se descortinava plena para um grupo de adolescentes que residia em sua parte central, no edifício Levy. Um prédio plantado em plena Avenida Amazonas, nas proximidades da Praça Sete, coração da capital mineira. Adolescentes que cresceram presenciando as transformações que levaram o Brasil democrático do início dos anos sessenta, na época do populismo e do governo Jango, a se transformar em um país dominado pelo arbítrio do regime militar.

Estudantes que desabrocharam para a vida num tempo de coerção e censura. Jovens em cujas veias corria uma musicalidade de forte inspiração poética, que deu origem, em Minas Gerais, a um espontâneo e original movimento cultural que ficou conhecido como O Clube da Esquina.

Ao relembrar as origens desse movimento, Márcio Borges traz à cena uma juventude caracterizada por um forte espírito solidário e por um criativo desejo de conhecimento revelados em conversas infindáveis sobre arte, música, cinema e política nos colégios, universidades, bares, bairros e esquinas da cidade de Belo Horizonte.

Uma Belo Horizonte que ainda não tinha ares de metrópole, mas que era iluminda por uma efervescente vida cultural, que desabrochava nos teatros e cineclubes e se ramificava pelos bairros da cidade. Foi exatamente em um bairro da capital mineira, Santa Tereza, para o qual se mudara a família Borges, que surgiu, na década de setenta, o Clube da Esquina. Borges assim descreve o então corriiqueiro encontro de jovens que vieram a animar um dos mais ricos movimentos musicais do Brasil contemporâneo:

“… o nome Clube não designava senão uma pobre esquina, um pedaço de calçada e um simples meio fio, onde os adolescentes da rua (e só raramente os rapazes de minha idade) costumavam vadiar, tocar violão, ficar de bobeira, no cruzamento das ruas Divinópolis e Paraisópolis. O Club da esquina.”

O texto além de narrar aspectos do cotidiano, como o acima descrito, é marcado por uma nostalgia que, paradoxalmente, ao relembrar o passado, descortina o futuro. Futuro este que se revelou diferente para cada um dos rapazes que integraram aquele movimento musical. Mas um futuro no qual, pelos nós de um passado comum, todos se mantiveram definitivamente atados uns aos outros.

As lembranças do que passou, marcadas por indiscritível saudade e por um sentimento unívoco de que cada tempo é único e significativo em sua peculiariedade, são assim definidas pelo próprio autor:

“ Ressurjo agora para contar aquelas cenas longíquas que hoje brilham em meus olhos através das lentes que naturalmente adquirimos com a idade madura e a vista cansada: as da compaixão e da saudade. Portanto, e finalmente, este relato é de minha parte só uma invocação, uma celebração, uma ode ao tempo que passou voando e apenas ocorreu uma vez na vida de cada um de nós”.

Na ode ao tempo tecida por Borges estão presentes os Beatles com suas músicas que revolucionaram os hábitos da juventude e a musicalidade do mundo contemporâneo. Nela está descrito, com especial sensibilidade, o costume então corriqueiro de ir ao cinema e discutir filmes à exaustão. Além disso, são revelados, pelas palavras que compõem a trama do texto, a força das experiências coletivas, as resistências pacifistas da juventude, os movimentos de cultura alternativa e a inacreditável magia dos tempos em que no Brasil ainda havia ensino público secundário de qualidade, representado, no caso, pelo Colégio Estadual Central de Belo Horizonte.

Nas páginas do livro, por outro lado, estão registrados os anos de autoritarismo político e acontecimentos peculiares àquela época, como o da morte de jovens que cultivavam o sonho da igualdade. Estão traduzidos também: o dilema da juventude que buscava resistir à ausência de liberdade, a ânsia de transformação que contaminava estudantes, artistas e outros expressivos segmentos da sociedade brasileira de então e, principalmente, o passar do tempo que transformou todas essas experiências e projetos coletivos em História.

Márcio Borges, amigo e cúmplice de Milton Nascimento, ao relembrar a trajetória do compositor e do grupo de artistas que em torno dele se agregava, contempla o leitor com descrições minuciosas sobre a inspiração criativa e vital que gerou em Belo Horizonte e em Minas Gerais uma musicalidade nova, diferente de tudo o que se fazia na música popular brasileira da época. Música e versos inesquecíveis, marcados por uma profundidade impar, por uma densidade que entranha.

Também registra, sem qualquer tom de mágoa, a já tradicional diáspora de artistas e intelectuais mineiros que, como se cumprindo o ritual de uma sina secular, precisam desapegar-se de sua terra e correr outros “Brasis” para alcançarem projeção. Contudo, ao falar do “desterro” dos mineiros, registra a persistência de alguns — como ele próprio — que resistiram ao impulso de partir e mantiveram-se presos ao chão de ferro das Minas Gerais, tendo mesmo assim alçado vôos sobre outras plagas.

De Três Pontas para Belo Horizonte; de Minas para as gravadoras do Rio de Janeiro e São Paulo; do Brasil para o mundo, as histórias do Clube da Esquina contam sobre um país pluralista, múltiplo, sofrido, marcado pelas desigualdades e pela vontade de sua juventude de construir um novo futuro. Contam também sobre músicas de forte religiosidade, de montanhas, de trens, de aldeias, de fogo, de amigos, de sete chaves, de saudade, de artistas, de paisagens, do velho Curral D’el Rei, da América do Sul. Contam, principalmente, sobre a travessia de Milton Nascimento, dos irmãos Borges, de Tavinho Moura, de Toninho Horta, de Ronaldo Bastos, de Fernando Brant e de toda uma geração, que era jovem nos anos sessenta, para uma fase da vida na qual os sonhos não envelheceram… transformaram-se.

Lucilia de Almeida Neves – Professora do Curso de História da PUC Minas e do Mestrado em História da UFMG.

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A Torre Kubitschek: trajetória de um projeto em 30 anos de Brasil – PIMENTEL (VH)

PIMENTEL, Thais Velloso Cougo. A Torre Kubitschek: trajetória de um projeto em 30 anos de Brasil. Belo Horizonte: Imprensa Oficial, 1993. Resenha de: LANNA, Ana Lúcia Duarte. Varia História, Belo Horizonte, v.10, n.13, p. 176-177, jun., 1994.

O presente livro foi, onginalmente, apresentado como dissertação de Mestrado em H1stóría Social na UNICAMP, e ganhou o XII Prêmio Diogo de Vasconcelos (da Secretaria de Estado da Cultura de Minas Gerais), o que possibilitou a sua publicação. Partindo da história de um conjunto habitacional, o Conjunto Juscelino Kubitschek (CJK), Situado no centro da capital mineira, a autora buscou compreender o “processo que transformou o ‘tempo das Ilusões’ em tempo da desconfiança e os sentimentos que se movem em torno desses prédios, na cidade que os abriga e nas pessoas que os hab1tam”. (pág 20)

Idealizado por Juscelino Kubitschek, quando governador do Estado, e projetado por Niemeyer, o conjunto habitacional foi estudado pela autora, que acompanhou através dele a trajetória de 30 anos de Brasil. O trabalho, organizado em 4 capítulos, revela o CJK como “síntese de uma realidade contraditória, entre a idéia, nascida num momento fecundo da história do país e de seu povo, e a sua própria história enquanto obra, experiência real vivida por pessoas de outro tempo” (pág 138)

No primeiro capítulo, a análise reca1 sobre a arquitetura enquanto representação da civilização, símbolo de poder, ícone da modernização e do progresso. Os monumentos arquitetônicos, a partir do século XIX, devem ser compreendidos enquanto expressão do poder triunfante da burguesia. A arquitetura moderna, inserida neste processo, é vista como parte das vanguardas do século XX. Sua proposta associa técnica, velocidade e uma inovadora relação entre moradia individual e coletiva que a obriga a pensar sobre o espaço urbano. Projeta para o futuro e defende a liberdade de criação e experimentação de novas idéias, independente do sentido político de sua aplicação.

A obra de Niemeyer, visto como arquiteto do poder, será, de acordo com a autora, capaz de cumprir esta função simbólica de representar um certo 1deal de progresso que, projetando o futuro, questiona ao mesmo tempo a tradição. Belo Horizonte, enquanto uma cidade que deveria ser ao mesmo tempo moderna e tradicional, reúne uma quantidade significativa de obras de Niemeyer, aí edificadas sob o patrocínio do Estado, o que segundo a autora “espelha a forma como os grupos socia1s dominantes comandaram as reformas urbanas e administrativas necessárias à confirmação de sua hegemonia”. (pág. 39)

No segundo capítulo, Thais Pimentel realiza um apanhado da ideologia naclonal-desenvolvlmentista. Destaca conteúdo simbólico dos anos 50 corno “anos dourados”, o papel do ISEB, o crescimento das cidades e a Crescente atuação do Estado criador de uma Ideologia que prega a prosperidade, a 0rdem e a soberania. A pratica autoritária do Estado no comando da economia e sociedade brasileira pode ser percebida na forma como se dec1d1u a construção do CJK. Tanto o conjunto residencial quanto Brasília têm a forma material do desenvolvimentlsrno e podem ser vistos como símbolo e síntese desta época, imagem e semelhança do projeto de dominação da fração burguesa dominante, para quem a busca da harmonia social ora tão cara. O CJK é apresentado como um “balão de ensaio” revelando a tragédia e a glória dos anos 50.

No capítulo 3, o leitor poderá acompanhar a história da construção do CJK. Os empresários envolvidos, a participação e atuação do Estado e dos condôminos, em geral da classe média. A decisão de real1zar o CJK e as críticas e resistências ao projeto são apresentadas como indicadoras da prát1ca populista de poder onde o consenso é obtido a posteriori. As dificuldades enfrentadas na realização do empreendimento, a descrença e desmoralização que passaram a envolver o projeto ocasionadas sobretudo pelos sucessivos atrasos e elevação dos custos são então abordados. O Estado promotor do desenvolvimento bancaria o proJeto até 1964.

Mas esta trajetória tortuosa, a demora da execução e as características mesmas da cap1tal mineira vão fazer deste um lugar de suspeição. A sua proposta Inovadora de um morar colet1vo, voltada para o futuro, quando consolidada, encontra um país que rejeita o coletivismo. A aglomeração de pessoas v1sta como perigosa, em especial nos anos 70 quando os apartamentos ficaram prontos, reforça o medo que o local provoca Trabalhando com dicotomias como o interior do prédio – organizado e limpo, face a um exterior – Sujo e com Impressão de uma confusão permanente, ou moradores satisfeitos frente a uma população assustada e apreensiva, a autora vai mostrando o v1ver no CJK e o v1ver em uma cidade em expansão. Analisa ainda as transformações que o projeto trazia sobre o morar e como elas foram sendo alteradas ao longo dos anos e usos que os prédios tiveram As fachadas de v1dro fazem deste um panóptico ao avesso onde a cidade controla o interior.

A leitura do livro é int1gante pois a partir da análise de um monumento a autora consegue traçar a história de um país. O texto é de leitura fluente e agradável e interliga análises macro e micro, revelando na concretude como a cidade, através do granito e concreto, expressa os valores soc1a1s dominantes. Mostra ainda como a atuação de múltiplos atores interfere, altera e red1rec1ona os monumentos construídos em ruínas virtuais. A Torre Kubitschek é cicatriz v1sível na modernidade.

Ana Lúcia Duarte Lanna – Professora da FAU-USP e doutora em História Social pela USP.

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