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Salvador da Bahia: Interações entre América e África (séculos XVI-XIX) – RAGGI et. al. (VH)
RAGGI, Giuseppina; FIGUEIRÔA-REGO, João; STUMPF, Roberta. Salvador da Bahia: Interações entre América e África (séculos XVI-XIX). Salvador/Lisboa: EdUFBA/CHAM, 2017. 285 p. DOMINGUES, Cândido. Uma baía de histórias: novos olhares sobre Salvador e suas conexões atlânticas. Varia História. Belo Horizonte, v. 35, no. 68, Mai./ Ago. 2019.
A obra Salvador da Bahia: interações entre América e África (séculos XVI-XIX) fecha um ciclo de debates dos projetos de pesquisa intitulados Bahia 16-19 e Uma cidade, vários territórios e muitas culturas,1 financiados pela União Europeia e Capes/Brasil, respectivamente. No âmbito de cada um desses projetos de investigação, historiadores do Brasil, Portugal e França foram chamados a pensar o Império português a partir de uma perspectiva do Atlântico Sul, de modo a integrar África e América numa outra leitura da colonização lusitana. Salvador, capital do território colonial português na América por mais de 200 anos, foi escolhida como centro de interesse investigativo. Por cerca de dois anos a equipe apresentou seus resultados de pesquisa. Os projetos congregaram pesquisadores com investigações em estágios distintos de desenvolvimento, e no seu âmbito foram organizados workshops nas cidades de Salvador, Lisboa e Paris, favorecendo um debate mais ampliado e diverso, o que se reflete nos trabalhos publicados ao final do processo.
Composta por uma introdução e dez artigos, a coletânea é aberta com a observação dos editores sobre a predominância entre as contribuições que compõem o volume de “perspetivas que elegem, maioritariamente, como ponto de partida, geografias extraeuropeias” (Raggi; Figuerôa-Rego; Stumpf, 2017, p.7). Desse modo, a obra dá sequência à Coleção Atlântica, mais nova do gênero historiográfico publicada pela Editora da Universidade Federal da Bahia (EdUFBA), em parceria com o Centro de Humanidades da Universidade Nova de Lisboa (CHAM).2
Um ponto alto da obra é a multiplicidade de fontes que possibilita perceber diferentes relações entre a história da Cidade do Salvador (antiga Cidade da Bahia), as instituições portuguesas (Universidade de Coimbra ou a Junta da Administração do Tabaco, por exemplo) e sujeitos tão diversos quanto africanos escravizados ou libertos agentes do tráfico, clero, indígenas ou agentes da administração colonial. Em seu texto, Carlos Silva Jr. mostra a importância de fontes orais do atual Benin para entendermos as interações afro-europeias setecentistas. A ligação nominativa, de inspiração da microhistória italiana, mostra-se fundamental ao fazer historiográfico desde abordagens da vida socioeconômica de africanos no Atlântico até as análises das matrículas universitárias, da formação e atuação de bispos no Império. Por sua vez, o estudo de um regimento (ou seu projeto) ou de um tratado armorial mostrou-se de interesse para compreendermos diretrizes do Estado e mentalidades individuais. A estas fontes somam-se tantas outras mais tradicionais ao ofício, como testamento e inventário post-mortem, denúncias e processos inquisitoriais, registros notariais e de batismos, legislação colonial e imperial.
Os textos de Carlos da Silva Jr.3 e Luis Nicolau Pares destacam-se por aproximar os conceitos e métodos da História Social com ideias da História Econômica, de modo a pensar a história do tráfico atlântico de escravos conectado com demandas internacionais da economia e da política. A agência africana (a agency de inspiração Thompsoniana) é analisada a partir das possibilidades de africanos (abrindo caminhos para também pensarmos seus descendentes) agirem na engrenagem do capitalismo crescente e de modo integrado ao tráfico de escravos. Se no século XVIII a fundação de Porto Novo é, também, inspirada na busca de melhores preços e fuga de um mercado de alta concorrência (Silva Jr., 2017), no comércio ilegal oitocentista, africanos como Joaquim d’Almeida e Manoel Pinto são representativos de tantos outros que voltaram à África para organizar o comércio negreiro no litoral de modo a dinamizar o embarque e burlar a vigilância inglesa (Pares, 2017).
Ao analisar os “escravos-senhores”, Daniele Souza, também inspirada na História Social, considera o tráfico atlântico como promotor de fenômenos no escravismo brasileiro. Defende que a vigorosa oferta de escravos na Bahia e a possibilidade de fazer encomendas diretamente com marinheiros permitiu a escravos comprar um escravo a preço acessível. Assim como Pares, a autora assevera que a participação africana como “senhores” de escravos ou no comércio era uma exceção do sistema escravista, eram atores protagonistas de excepcionalidades. Como afirma Pares, “uma historiografia que privilegia os africanos enquanto sujeitos autônomos, com capacidade de ascensão social e ação política, não poderia negligenciar, apesar do incômodo moral que supõe” o estudo de situações dessa natureza (Pares, 2017, p.15).
Finalizando a primeira parte, João Figuerôa-Rego e Camila Amaral analisam ações do Estado para o comércio de duas mercadorias de extrema importância para o tráfico transatlântico de escravos: o tabaco e a aguardente (cachaça), respectivamente. Ambos nos chamam a atenção para o envolvimento de agentes do Governo do Império (magistrados e governadores, por exemplo) inseridos em grupos mercantis locais. Figuerôa-Rego mostra, ainda, tentativas da coroa para evitar tais aproximações dos administradores do tabaco na Bahia. A vasta rede político-mercantil das famílias César de Meneses e Lencastro está presente em ambos os textos, ainda que nas entrelinhas.4
A segunda parte da obra, Administração e agentes no espaço americano, tem como foco analisar dispositivos, projetos, instituições e formação clerical. É a parte da obra na qual Europa e América mais se aproximam. Aqui os autores analisam processos desenvolvidos na América, mas dependentes de aprovações ou julgamentos da metrópole. Ou ainda, a formação universitária europeia de agentes que atuariam no Brasil.
Com focos diferentes, Fabricio Lyrio e Maria Leônia C. de Resende discutem a administração dos indígenas envolvendo as igrejas secular e regular e o Estado colonial. Apesar de voltarem sua atenção para o século XVIII brasileiro, mostram que as origens dos problemas relacionados com os governos das comunidades autóctones arrastavam-se desde debates quinhentistas.
Resende destaca a importância de se analisar os discursos da ordenação indígena no mundo hispânico, de tradição mais longeva e inspiradora dos religiosos lusitanos. Lyrio realça a difusa legislação indigenista portuguesa, jamais unificada para o Estado do Brasil. A administração de questões como mão de obra, conflitos, catequese dos indígenas mudavam conforme a Capitania, afirma. Essa realidade levou ao provincial jesuíta (padre encarregado da administração da província), em 1745, a propor ao Rei um regimento que regulamentasse a colonização destes povos naquele Estado, que é, parcialmente, analisado pelo autor. Por sua vez, Leônia Resende mostra que apesar de aprovada a possibilidade canônica para ordenar sacerdotes indígenas, os entraves, muitas vezes pessoais, eram fortes. Aqueles que conseguiram foram ordenados apenas após a expulsão jesuíta e, ainda assim, sua atuação “se restringia à mera função de auxiliar na missionação e, por isso mesmo, não resultou propriamente na consolidação de uma carreira eclesiástica” (Resende, 2017, p.185). Ambos mostram, acima de tudo, a vulnerabilidade jurídica dos povos indígenas, muitas vezes sujeitos aos caprichos dos colonos, oriundos de todos os níveis sociais.
Um desafio da historiografia é perceber o quanto a norma aproxima-se da prática. Ediana Mendes investiga os currículos da Universidade de Coimbra e os registros de matrículas buscando entender a formação possível dos bispos que atuaram no Brasil e o quanto isso seria útil no governo diocesano. O Concílio de Trento é a ponte que aproxima este texto do artigo seguinte, de Jaime Gouveia. Ambos mostram que, a despeito da uma historiografia que contestou a aplicação das normas tridentinas no ultramar, a Coroa procurou cumpri-las tanto na formação dos bispos (Mendes, 2017, p.199) quanto na atuação de “estruturas de vigilância e disciplinamento” do clero (Gouveia, 2017, p.246). Este autor parte da premissa do luso-tropicalismo freyriano para mostrar que uma História Comparada do reino e das colônias indica uma “pandemia luxuriosa” clerical tanto em Portugal quanto no Brasil (Gouveia, 2017, p.245).
Distinto de todos os demais artigos, Miguel M. de Seixas discute “o impacto dos elementos ultramarinos na heráldica portuguesa dos séculos XVI e XVII” (Seixas, 2017, p.251). Se na Europa a Ciência Heráldica (ou Ciência do Brasão) viu-se distante das Universidades, no Brasil nota-se verdadeiro abismo. Encarada como “mera preciosidade de diletantes” e associada à nobreza, aqui e lá, essas características foram fundamentais para esse distanciamento ou, ainda, para considerá-la como uma ciência auxiliar da História (Seixas, 2011, p.27-28). O autor, no entanto, defende que o estudo dos tratados armoriais e das pedras d’armas mostram a consonância da política da coroa com suas conjunturas. Neste aspecto a primeira vez que o brasão da Cidade do Salvador aparece nos tratados portugueses reflete a importância da cidade na Restauração (1640), assim como ocorrera com Goa e Malaca no “século de ouro” da Ásia (Seixas, 2017, p.270).
Organizar uma coletânea é propor-se ao desafio da coesão. Ele pode ser alcançado de distintos modos e intensidades. Esta obra, portanto, não deixa de enfrentar seus percalços. Como ressaltei até aqui, seus textos estão afinados com uma pesquisa de relevo e um debate historiográfico atualizado, sem abandonar os clássicos. Isso por si só já seria um convite à leitura. Destacaria um aspecto a que a obra se propõe e atingiu muito bem seu objetivo: avançar no conhecimento da ação de indígenas e africanos na construção da sociedade colonial. Os artigos que tratam desses agentes históricos mostram que estes estavam bastante atentos ao que se passava na política, economia e religião, e buscaram inserir-se nas brechas que o poder dominante lhes “permitia”. Salvador e suas histórias por vezes não aparecem diretamente no texto, daí um conhecimento prévio de sua capitalidade, das instituições nela instaladas e sua jurisdição a todo o Estado do Brasil. Aos neófitos, recomenda-se atenção redobrada, um simples detalhe pode ligar Salvador aos mais vastos sertões assim como um brasão pode ligá-la diretamente ao rei.
Uma história lusoafroameríndia da Cidade da Bahia! A obra mostra uma Salvador integrada às preocupações e cultura da Era das Invasões Ultramarinas Europeias, mas não só. Amplia e reverbera a atuação dos milhares de povos da África construindo seu mundo, agindo no comércio em busca de sua liberdade. Mostra tantos outros povos ameríndios, em todo o Brasil a suscitar a Igreja Primaz da Bahia a buscar soluções para problema da colonização. E, por fim, realça a importância da Universidade para a construção de agentes políticos de qualquer sociedade.
1O livro que abre esta Coleção é: SOUZA, Evergton Sales; MARQUES, Guida; SILVA, Hugo R. (org.). Salvador da Bahia: retratos de uma cidade atlântica. Salvador/Lisboa: EDUFBA/CHAM, 2016. As seções ocorreram em Salvador (UFBA) e Lisboa (UNL/CHAM). Sobre o projeto BAHIA 16-19 «Salvador da Bahia: American, European, and African forging of a colonial capital city» (PIRSES-GA-2012-318988) ver http://www.cham.fcsh.unl.pt/ext/BAHIA/BAHIA_home.html, acesso em 19/10/2018.
2CHAM é uma unidade de investigação interuniversitária vinculada à Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa e à Universidade dos Açores, financiada pela Fundação para a Ciência e a Tecnologia.
3Para uma versão ampliada desse artigo cf. SILVA Jr., 2017a, p. 1-41.
4Para uma boa análise desta rede político-mercantil ver GOUVÊA; FRAZÃO; SANTOS, 2004, p. 96-137.
Referências
GOUVÊA, Maria de Fátima Silva; FRAZÃO, Gabriel Almeida; SANTOS, Marília Nogueira dos. Redes de poder e conhecimento na governação do Império Português,1688-1735. Topoi, vol. 5, n. 8, p. 96-137, 2004. [ Links ]
GOUVEIA, Jaime Ricardo. “Bahia de Todos os Santos e de quase todos os pecados”: O luso-tropicalismo e a história comparativa no espaço luso-americano (1640-1750), In: RAGGI, Giuseppina; FIGUEIRÔA-REGO, João; STUMPF, Roberta (Org.). Salvador da Bahia Interações entre América e África (séculos XVI-XIX). Salvador/Lisboa: EdUFBA/CHAM, 2017. p.223-250. [ Links ]
MENDES, Ediana Ferreira. A formação acadêmica dos prelados da América Portuguesa (séc. XVII e XVIII, Bahia, Olinda e Rio de Janeiro). In: RAGGI, Giuseppina; FIGUEIRÔA-REGO, João; STUMPF, Roberta (Org.). Salvador da Bahia Interações entre América e África (séculos XVI-XIX). Salvador/Lisboa: EdUFBA/CHAM, 2017. p.195-222. [ Links ]
PARÉS, Luis Nicolau. Entre Bahia e a Costa da Mina, libertos africanos no tráfico ilegal. In: RAGGI, Giuseppina; FIGUEIRÔA-REGO, João; STUMPF, Roberta (Org.). Salvador da Bahia Interações entre América e África (séculos XVI-XIX). Salvador/Lisboa: EdUFBA/CHAM, 2017. p.13-50. [ Links ]
RESENDE, Maria Leônia Chaves de. Curas de almas nativas: o clero indígena na América Portuguesa (século XVIII). In: RAGGI, Giuseppina; FIGUEIRÔA-REGO, João; STUMPF, Roberta (Org.). Salvador da Bahia Interações entre América e África (séculos XVI-XIX). Salvador/Lisboa: EdUFBA/CHAM, 2017. p.161-194. [ Links ]
SEIXAS, Miguel Metelo de. Heráldica, representação do poder e memória da nação: o armorial autárquico de Inácio de Vilhena Barbosa. Lisboa, Universidade Lusíada Editora, 2011. [ Links ]
SEIXAS, Miguel Metelo de. A representação do ultramar nos armoriais portugueses (séculos XVI-XVIII). In: RAGGI, Giuseppina; FIGUEIRÔA-REGO, João; STUMPF, Roberta (Org.). Salvador da Bahia Interações entre América e África (séculos XVI-XIX). Salvador/Lisboa: EdUFBA/CHAM, 2017. p.251-284. [ Links ]
SILVA Jr., Carlos da. Interações Atlânticas entre Salvador da Bahia e Porto Novo (Costa da Mina) no século XVIII. In: RAGGI, Giuseppina; FIGUEIRÔA-REGO, João; STUMPF, Roberta (Org.). Salvador da Bahia Interações entre América e África (séculos XVI-XIX). Salvador/Lisboa: EdUFBA/CHAM, 2017. p.73-98. [ Links ]
SILVA Jr., Carlos da. Interações atlânticas entre Salvador e Porto Novo (Costa da Mina) no século XVIII. Revista de História, n. 176, p. 1-41, 2017a. [ Links ]
Cândido Domingues – Centro de Humanidades Universidade Nova de Lisboa Avenida de Berna, 26-C, 1069-061, Lisboa, Portugal candido_eugenio@yahoo.com.br.
Macabéias da colônia: criptojudaísmo feminino na Bahia – ASSIS (PL)
Em 1497, os judeus portugueses foram convertidos à força e transformados em cristãos-novos. Apesar disto, uma considerável parcela destes, agora chamados, antigos judeus, continuou praticando e repassando os ensinamentos de seus antepassados às novas gerações, adotando comportamentos e práticas secretas. Porém, com a instauração do Tribunal do Santo Ofício, em Portugal, e a intensificação dos trabalhos inquisitoriais muitos deixaram o território português emigrando para as terras brasileiras. Assim sendo, durante a primeira visitação do Santo Ofício à América portuguesa entre 1591 e 1595 ganhou destaque o número de mulheres cristãs-novas acusadas de práticas judaicas. Isto sinaliza a intensa participação feminina na transmissão e propagação de um chamado judaísmo secreto. 2 Leia Mais
Domingos Sodré, um sacerdote africano: escravidão, liberdade e candomblé na Bahia do século XIX – REIS (RBH)
REIS, João José. Domingos Sodré, um sacerdote africano: escravidão, liberdade e candomblé na Bahia do século XIX. São Paulo: Companhia das Letras, 2008. 461 p. Resenha de: ALBUQUERQUE JÚNIOR, Durval Muniz de. Revista Brasileira de História. São Paulo, v. 29 no. 57, JUN. 2009.
João José Reis é merecidamente um figurão da historiografia brasileira. Seus livros, desde o pioneiro Rebelião escrava no Brasil, modificaram o estado da arte dos estudos sobre escravidão, sobre rebelião escrava e movimentos sociais, não só no país, mas internacionalmente. Esse pesquisador meticuloso e apaixonado, esse amante dos arquivos, das bibliotecas, dos documentos e dos livros acaba de lançar mais uma obra, um livro já saudado efusivamente em várias resenhas de especialistas no campo dos estudos sobre escravidão, no campo da chamada História Social: Domingos Sodré, um sacerdote africano. O livro se propõe a fazer um exercício de micro-história, pois toma como fio condutor da análise a vida de um africano liberto que viveu na Bahia do século XIX, e a partir da biografia desse ex-escravo que se tornou uma importante figura entre a população africana da cidade, desse sacerdote preso por ser acusado de práticas religiosas heréticas e diabólicas, o autor traça um amplo panorama das intrincadas relações sociais, das relações de poder, das atividades econômicas e culturais vivenciadas pelos libertos, por essa parte da população que, vivendo nas fímbrias do sistema escravista, sendo resultado dele, mas em muitos aspectos a ele se opondo, é pouco levada em conta quando se trata de contar a história da escravidão brasileira. A trajetória do liberto, do papai Domingos Sodré, que provavelmente nasceu em Onim ou Lagos, na atual Nigéria, por volta do ano de 1797, que morreu em 1887, com estimados noventa anos de idade, que deve ter desembarcado na Bahia, como escravo, entre os anos de 1815 e 1820, até por sua longevidade, por ter atravessado quase todo o século e por ter transitado entre as condições de escravo e de homem livre, permite pensá-lo como um sujeito encruzilhada, sujeito que foi se constituindo e se transformando à medida que transitava por distintos territórios sociais e culturais, que elaborou e vestiu distintas máscaras identitárias, que encarnou distintos lugares de sujeito, que entrou em conflito e teve de negociar com distintas forças e personagens sociais, que conviveu, fez parte e recorreu a distintas instituições sociais, tanto formais como informais, que fez parte tanto do mundo dos pretos, da cidade negra, quanto dos brancos, da cidade oficialmente dita branca e aristocrática. Através de sua vida, João Reis tentou acompanhar as pistas que levam àpresença e àprática do candomblé, na Bahia do século XIX, bem como dar conta da dura repressão que ele sofria, em dados momentos, por parte das autoridades policiais e judiciais, e como, ao mesmo tempo, essas práticas conseguiam resistir e sobreviver por terem, muitas vezes, o apoio de membros das elites e até mesmo das próprias autoridades que deviam combatê-las.
No que tange à contribuição deste livro para o estudo da escravidão, da liberdade e do candomblé, outros autores já se manifestaram e não sou eu o mais habilitado para avaliá-la, já que não sou especialista no tema, nem milito no campo da História Social. Os motivos que me levam a resenhar esta obra, a indicá-la, portanto, como leitura obrigatória para todos os historiadores, independentemente do tema com que se ocupem, do campo da disciplina em que militem, é que a considero uma obra exemplar do que seriam, hoje, as regras que presidem a operação historiográfica; considero-a uma obra exemplar na observância dos procedimentos que dariam estatuto científico ao nosso ofício, mas também a considero exemplar no que tange aos impasses, aos dilemas, aos debates acalorados que dividem, nestes dias que correm, a comunidade dos historiadores. Assim como aborda um sujeito encruzilhada, ela é, também, uma obra onde as encruzilhadas em que está colocado nosso ofício emergem com nitidez. Ela é uma obra exemplar do caráter narrativo da historiografia, do papel que a narrativa desempenha na elaboração e inscrição da história; é obra exemplar das artes e artimanhas que são requeridas de todo historiador, na hora que tem de transformar a pilha de documentos compulsados, as inúmeras pistas e rastros encontrados, num enredo que faça toda essa poalha, essa dispersão, fazer sentido; ela é exemplar do uso do que alguns preferem chamar de imaginação histórica, para não dizer o uso da ficção na escrita da história, ficção entendida não como o oposto da verdade ou da realidade, mas como a capacidade poética humana de dotar as coisas de sentido, de imaginar significados para todas as coisas, sentidos que são sempre, em última instância, uma invenção humana, já que as coisas não trazem em si mesmas um único significado, nem gritam ou dizem o que significam. As evidências nem falam, nem são evidentes; elas são levadas a dizer algo por quem as diz, elas são levadas a serem vistas por quem as põe em evidência.
Em várias passagens do livro, o caráter lacunar das fontes, a falta de documentos sobre a vida de Domingos Sodré e o silêncio dos arquivos sobre a vida dos de baixo obrigam João Reis a imaginar, a ficcionar, a tentar adivinhar como poderia ter sido, o que poderia ter acontecido com o papai Sodré e seus companheiros de condição na cidade da Bahia, em tal ano e em tal situação. Ele não se contém em imaginar que papai Domingos poderia ter estado em dado lugar, conhecido alguns de seus vizinhos, participado de dadas cerimônias, conhecido algumas autoridades, tivesse tomado algumas medidas, sabido de dados eventos e notícias, sempre fazendo questão de deixar claro, nesses momentos, como pesquisador sério e honesto que é, que se tratava de viagens ou visagens de sua própria lavra. Imaginação, ficção que na historiografia é limitada pelas próprias informações que se tem, pelo conhecimento que o historiador tem do período que estuda, por aquilo que sabe sobre o funcionamento da sociedade e da cultura que está estudando. Imagina-se o provável, ficciona-se o possível de ocorrer naquele tempo e lugar, com as pessoas que vivem em dada situação social e segundo dados códigos culturais. No entanto, sem essa capacidade de imaginar, sem a habilidade de criar, de inventar sentidos e significados para os restos do passado que chegam até o presente, a historiografia seria impossível. O próprio João Reis admite o parentesco existente entre o historiador e o adivinho. O historiador, às vezes, também tem que ser um papai, tem que jogar os coloridos búzios das significações que acha possível serem dadas a um evento, tem que exercer suas artes divinatórias, deixar a intuição trabalhar, estabelecer ligações entre os eventos que não estão explicitadas na documentação. Afinal, faz certo tempo que os historiadores sabem que os documentos não dizem tudo e que eles são capazes de provar as teses mais díspares, dependendo dos significados que a eles se atribuem, da leitura que deles se faz.
No epílogo do livro, João Reis vai fazer uma afirmação que é muito reveladora da própria consciência que o autor tem da importância da narrativa, da construção do texto para a versão da história que constrói. Estamos muito longe, aqui, de certa visão ingênua de que é possível estabelecer uma versão definitiva dos eventos e que essa seria a verdadeira versão do passado. O autor vai afirmar que se as informações que se tinha sobre um figurão popular como Domingos Sodré eram poucas e esparsas, o que se sabia sobre a vida de Maria Delfina da Conceição, que foi sua esposa por cerca de dezenove anos, era ainda menos expressivo. Essa mulher que acompanhou os passos, que dividiu a vida, a casa e possivelmente a crença com o papai, deixou pouquíssimos rastros de sua passagem pela história. Se soubéssemos mais sobre ela, diz Reis, o enredo dessa história poderia ser diferente. Nessa passagem, o autor admite, explicitamente, que a história que acabou de contar tinha um enredo: ela foi enredada, tramada, os eventos foram interligados por uma atividade narrativa, por uma arte de contar história. Ao contrário do que alguns historiadores ainda supõem, o enredo da história de Domingos não foi descoberto, encontrado pronto nos arquivos pelo historiador baiano. Ele não está no próprio passado, embora este seja uma referência para criá-lo, embora pequenos pedaços de enredos, pequenas tramas, também narrativas, também escritas tenham chegado até nosso pesquisador. O que Reis está afirmando é que o enredo foi feito no presente, por ele, com as informações que encontrou. Se ele afirma que o enredo poderia ser outro, não é que a história em si mesma pudesse ser outra. Sabemos que o passado não pode mais ser alterado pelo simples fato de que passou, mas o enredo poderia ser outro, pois, de posse de outras informações, de informações sobre a vida da companheira de Domingos, ele poderia escrever a história que escreveu de outro modo, o livro poderia ser diferente do que este que está publicado. A estratégia narrativa podia ser outra, outras as personagens, outras as ligações entre os eventos, outras as tramas, outras as explicações e significações.
O livro Domingos Sodré, um sacerdote africano é uma obra modelar no uso das artes, artimanhas e mandingas de nosso ofício, por isso deve ser bibliografia obrigatória nos cursos de metodologia da pesquisa histórica. Nele estão presentes todas as regras que presidem a operação historiográfica e que permitem que nosso ofício reivindique o estatuto científico: a narrativa mediante documentos; a pesquisa ampla e meticulosa de arquivo, onde o autor expõe nosso parentesco com os detetives; a crítica rigorosa das fontes; o concurso de uma ampla bibliografia na área de estudos a que pertence, incluindo desde obras clássicas, até obras mais recentes, trabalhos sequer publicados; um domínio fino da teoria e da metodologia faz com que ela sustente a análise, esteja presente na carpintaria, na estruturação do texto e de todos os passos da pesquisa, sem que precise aparecer atravancando o texto, em digressões que costumam ser xaroposas e pedantes. Essa leveza, essa fluência, essa beleza do texto, que já fez de Reis um autor premiado, é parte desta outra dimensão inseparável da operação historiográfica, aquilo que Certeau nomeou de escrita, a dimensão artística de nosso ofício, a dimensão ficcional que a narrativa histórica convoca. O bom livro de história, o clássico em nossa área não se faz apenas às custas do tema que se escolhe e da pesquisa documental que se faz, pois a história só existe quando escrita, é no texto que ela se realiza, bem ou mal. Afirmo, e talvez ele nem considere isso um elogio, que grande parte do sucesso dos livros de João Reis se deve à forma como são escritos, à sua habilidade narrativa, a despeito de serem todos fruto de exaustiva pesquisa e do estudo metódico e rigoroso de temas inovadores, muitos deles pouco tratados ainda.
João José Reis possui uma consciência da centralidade da narrativa em nosso ofício, como poucos. Seus livros explicitam as estratégias narrativas que escolheu. Domingos Sodré é um livro que, se fôssemos adotar as sugestões de Hayden White, diríamos vazado no enredo romanesco. É uma trama em que embora Domingos opere como uma metonímia de seu tempo, bem a gosto da micro-história italiana, que inspira teoricamente e metodologicamente o livro, ele é descentrado e disperso por uma dezena de outros personagens que vêm ocupar o seu lugar na trama sempre que as informações sobre ele escasseiam. João Reis deixa explícito que irá adotar na narrativa esse procedimento analógico. Como num romance, o livro de Reis não é um livro de teses, embora defenda algumas ideias, aliás faça algumas conclusões, mas estas não aparecem explicitadas, e sim implícitas, imanentes à trama que ele arma. Ele convoca a nós, leitores, a que cheguemos às conclusões antes que ele as exponha, a partir do enredo que ele elabora. Ele homenageia a inteligência dos leitores, jogando no tabuleiro os seus Fás para que a gente os decifre, para que leiamos a mensagem que quer nos fazer chegar. Em vários momentos da obra, a metonímia Domingos é substituída por outros personagens que atuam como se fossem metáforas do velho sacerdote, outros personagens ocupam o lugar desse sujeito e o dispersam, fazendo-o aparecer com diferentes rostos, em diferentes corpos, em diferentes situações, para em seguida, em outro movimento, tal como ocorre com o Menocchio de Carlo Ginzburg, em quem parece se inspirar, deixar de ser um ser singular, único, para ser um sujeito exemplar, um sujeito resumo de seu tempo, de sua sociedade e de sua cultura. Sua figura, que se dispersa num primeiro momento, no segundo momento unifica, homogeneíza, encarna a situação do liberto na Bahia, no século XIX. Em ambas as situações o caráter ficcional do procedimento é notório, para o mau humor do historiador italiano, que não cessa de fazer diatribes azedas contra a presença da ficção no ofício do historiador. Mas sem a ficção não haveria trama, não haveria enredo, não haveria compreensão, não haveria saber histórico. Tanto no momento em que outros libertos vêm agir, se comportar, falar, como Domingos, tanto no momento em que o autor supõe que se um liberto realizava tais práticas, o papai como um liberto que era também possivelmente fazia a mesma coisa, passava pela mesma situação, quanto no momento em que o sacerdote singular, excepcional, tão único que chegou a merecer biografia escrita por outro figurão da cidade, torna-se um representante de todos os libertos, que sua vida se torna similar à de todos de sua condição, que suas práticas de crença se tornam análogas às de outros praticantes desses rituais, é a imaginação, é a ficção, é a capacidade de dar sentido, de raciocinar por imagens, por figuras, de estabelecer configurações, por parte do historiador, que está agindo. É o historiador João Reis que está produzindo esse enredo, essa versão para o passado, a partir de seu olhar: um olhar formado pela disciplina histórica, pelas regras da disciplina, um olhar informado por dados pressupostos teóricos, um olhar informado por dadas posturas políticas, éticas e morais, e, por que não admiti-lo, um olhar constituído por dados códigos estéticos, por uma dada maneira de figurar o mundo, de vê-lo e de dizê-lo, um olhar tropológico, além de ideológico. A história é um saber de encruzilhada entre o fato e a ficção, entre o feito e o contado, entre a ação e a narração, entre o que se vê e o que se imagina, entre o rastro e o sonho, entre o resto e o desejo, entre o que se lembra e o que se esquece, entre o achado e o perdido, entre a fala e o silêncio, entre o signo e a significação, entre o material e o etéreo, entre os homens e todos os deuses.
Portanto, Domingos Sodré, um sacerdote africano é um bom exemplo de como a “história vista de baixo” é uma impossibilidade, já que ela, como todas aquelas escritas por historiadores, é fruto do olhar do historiador e não do personagem que nela é tratado. No livro de João Reis não lemos a história contada do ponto de vista de Domingos, até porque este está morto e quase nada pode nos dizer para além do pouco que ficou registrado, sempre por outras pessoas, pois, como é comum entre os de baixo, na época tratada por Reis, ele era iletrado, e até os documentos que registram sua presença são escritos e assinados por outros. A história é vista por Reis, não por Domingos, embora caiba ao historiador, esta é uma das mandingas do ofício, tentar adivinhar, imaginar, fabular, idear, intuir o que pensava e sentia o papai. Talvez, quem sabe, João Reis até gostaria de ser um cavalo em que viesse se encarnar o papai Domingos, o mandingueiro famoso, mas, nas artes divinatórias da história, quem frequenta essa encruzilhada costuma fazer seus próprios despachos, encomendar seus próprios feitos e contados. João Reis faz, como todas, uma “história vista de cima”, já que, pelo menos até hoje, em nossa sociedade, os historiadores costumam ocupar os estratos considerados superiores da sociedade. É ele quem olha para Domingos do alto de sua sabedoria, de sua posição social, de seu lugar institucional, de seu lugar de classe, de seu lugar de letrado e doutor, de seu lugar de branco, né meu rei! Sobre a vida do velho sacerdote joga sua rede discursiva, o aprisiona em dados sentidos que estão agora à disposição da comunidade de historiadores para que sejam discutidos, debatidos, repensados, refeitos, reabertos a novas interpretações, a novas invenções. Mas, por isso mesmo, o velho mandingueiro baiano virou de vez figurão, passou a fazer parte da história do país, da história desta ignomínia, desta chaga que não pode deixar de ser reaberta para que continue doendo na consciência dos homens que foram capazes e ainda são capazes de perpetrá-la: a escravidão. Só por isso a invocação e a evocação do preto velho, a sua reencarnação narrativa nas páginas deste livro magistral, escrito por um mestre do ofício de historiar, que pode botar banca como seu personagem negro fazia na cidade da Bahia, já é merecedora de elogios e de leitura atenta. E quando tal intenção política e tal postura ética dão origem a uma narrativa primorosa como o deste Domingos Sodré, deve ser motivo de recomendação, não apenas para todos os santos, não apenas para todos os iniciados nas artes e ofícios da historiografia, mas principalmente para os neófitos, os que ainda estão realizando os atos preparatórios para entrar na nossa seita, os que ainda não estão de cabeça feita, que precisam passar pelos rituais de introdução a este fascinante mundo do sacerdócio, por isso mal remunerado, em nome do passado. Aceitem o sorriso convidativo do autor em sua rede e se enredem no fascínio deste livro escrito com competência científica e sensibilidade artística.
Durval Muniz de Albuquerque Júnior – Centro de Ciências Humanas Letras e Artes, Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN). Pesquisador CNPq. Departamento de História – Campus Universitário, BR-101, Lagoa Nova. 59078-970 Natal – RN – Brasil. E-mail: durvalal@pesquisador.cnpq.br.