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Cidadania e Pobreza / Tempo / 2007
Ao apresentarmos a proposta do dossiê “Cidadania e Pobreza” para a revista Tempo nº 22, do Departamento de História da UFF, pretendíamos, àquela altura, montar uma revista que contribuísse para o tema do projeto do CEO (Centro de Estudos do Oitocentos) / PRONEX – CNPq-FAPERJ 2003, intitulado “Nação e cidadania no Império: novos horizontes” (coordenado academicamente por José Murilo de Carvalho e, executivamente, por Gladys Sabina Ribeiro). Os convites foram feitos a colegas que trabalhassem sobre o tema em diferentes latitudes do Brasil e que tivessem igual inserção geográfica variada no meio acadêmico e de pesquisa.
Assim, o dossiê proposto objetiva discutir as relações entre “cidadania e pobreza” em suas múltiplas dimensões e horizontes. Neste sentido, os textos dos autores que compõem este dossiê buscaram, a partir da análise de novas fontes e conceituações da relação do Estado ou de outras agências de poder – tais como os literatos, a justiça, as associações políticas e os movimentos sociais rurais e urbanos –, retratar e estabelecer uma visão específica sobre as estratégias de vida e de sobrevivência de indivíduos ou de grupos sociais que possamos designar como pobres, ou que fossem genericamente designados de povo, tal qual a linguagem do século XIX.
Foi deste modo que eles enfrentaram o desafio de escrever sobre aspectos que conjugassem cidadania e pobreza (os pobres, a plebe, in limine, o povo) a partir de suas pesquisas. Pretendeu-se, então, alargar os horizontes do que se entende por cidadania, ao incluir neste conceito formas de participação externas aos mecanismos previstos pela Constituição, tais como a atuação de intelectuais e a sua função na formação de uma determinada visão e percepções sobre os segmentos mais pobres, bem como os próprios atos desses indivíduos excluídos, que procuraram na lei e na justiça caminhos para garantir direitos que entendiam possuir.
Dentro destas perspectivas, estariam incluídas as revoltas, os protestos, os quebra-quebras e as experiências alternativas de inclusão e de participação nos espaços coletivos, tanto no âmbito social quanto em níveis políticos não formais. Assim, o artigo de Magda Ricci analisa, com rara sensibilidade, a construção da identidade da Amazônia em sua relação com a revolução social dos cabanos. Em um primeiro momento, a autora assume a tarefa de revisitar a historiografia sobre a Cabanagem, na intenção de discutir as leituras consagradas sobre esse movimento social. A partir daí, oferece ao leitor uma rápida e instigante biografia dos líderes para destacar a relação entre eles e a ampliação do foco de luta. Ao operar com o conceito de patriota, a autora ressalta a maneira pela qual a revolução construiu uma identidade comum entre povos de etnias e culturas diferentes. Tal identidade era calcada no ódio pelo branco e na luta por direitos e liberdades.
O artigo de Marcello Basile discute a chamada Revolução de 7 de Abril (Abdicação), entrecruzando-a não somente com as três facções que disputavam o poder – os liberais moderados, os liberais exaltados e os caramurus – como também e, “principalmente, com os vários movimentos de protesto e de revolta ocorridos na Corte entre 1831 e 1833”. O autor nos oferece uma interessante discussão sobre as medidas preventivas adotadas pelo governo para desencorajar as sedições. Ainda nessa conjuntura, analisa a revolta do teatro São Pedro de Alcântara, ponto habitual de reunião dos exaltados, local de agitação política e de pequenos tumultos. Ao apoiar-se num cuidadoso cruzamento de informações oriundas da imprensa, rastreando suas interpretações sobre o ocorrido, destaca o caráter político da ação, desnudando a composição social do movimento e indicando a participação inclusive de cativos.
Como contraponto aos movimentos políticos ensejados pela plebe na cidade, como no caso do Rio de Janeiro, ou que acabaram eclodindo com força na urbe ou aí manifestando a sua face mais violenta, como foi o caso da Cabanagem, do Grão-Pará, temos os que se deram ao redor especificamente da questão da terra e das suas demarcações, bem como a atuação da literatura na criação de uma imagem sobre o campo e sobre o homem do campo, no caso do Ceará, devastado pela seca.
Elione Silva Guimarães aborda a luta pela terra em Benfica, Juiz de Fora (Zona da Mata Mineira), e contempla a discussão do direito de propriedade e do quanto a lei valia ou não para todos. Reconstitui a história de Balbino de Mattos e a trajetória da sua família e dos Sobreira, revelando estratégias de vida, relações parentais e clientelares, cumplicidades e desafetos, reciprocidades e conflitos, que revelam conquistas ou derrotas à luz das demandas judiciais no jogo de poder pelo direito à terra. Ao fazer isto, desnuda as estratégias tanto de proprietários livres e ricos como de cativos e ex-cativos, assim como mostra o quanto a justiça era cara e como, na prática, havia uma dissociação entre direitos, leis e justiça. Revela também a ação dos operadores da lei, o funcionamento do júri, as apelações ao Supremo Tribunal Federal – já na Primeira República – e os acórdãos, com seus arrazoados. Mapeia as ações desses indivíduos e da Justiça e deixa-nos perceber a ficção jurídica da igualdade, quando está em jogo a propriedade. Nas palavras da própria autora,
(…) as questões apresentadas deixam entrever as diversas formas de violência empreendidas no exercício da dominação (física e simbólica); o peso das relações pessoais e de poder, as diferentes versões de cada um dos envolvidos; o “revelado” e o “silenciado” nas argumentações judiciais, as justiças e as injustiças nas relações sociais e legais.
Frederico de Castro Neves brinda-nos com uma exposição sobre a miséria na literatura através do olhar de José do Patrocínio. No seu texto, faz uma arguta análise de como homens da boa sociedade viam a seca e os retirantes, que se espalhavam pelas províncias do Ceará, Pernambuco, Paraíba e Bahia. Mostra que a preocupação do escritor em tela era menos com a fome e a miséria e mais com a vulnerabilidade social dos sertanejos, que viviam a degradação dos costumes tradicionais e dos valores morais, esteios da nacionalidade. Segundo Patrocínio, a desagregação dos valores dos retirantes se dava pelo choque cultural entre o mundo rural tradicional e o mundo urbano moderno, onde imperava a liberdade individual. Articulava, então, uma crítica ao Império e aos seus valores morais a partir de duas linhas de raciocínio: “1. os problemas gerados na estrutura social por um fenômeno climático de intensa gravidade; 2. o aviltamento moral próprio do processo de urbanização”. Nessa crítica que fazia ao Estado, exigia o cumprimento da Constituição, no que tangia ao socorro como um dever e a retomada de mecanismos tradicionais de proteção aos necessitados. Como outros escritores do seu tempo, Patrocínio fez da literatura uma missão. Como outros homens das letras, narrava e envolvia o público em estratégias realistas, pois julgava que o romance tinha a capacidade de convencimento do público e divulgava as idéias modernas do liberalismo, do positivismo e do evolucionismo.
Gladys Sabina Ribeiro – Professora Adjunta do Departamento de História da Universidade Federal Fluminense. E-mail: gladysr@uol.com.br
Márcia Motta – Professora Adjunta do Departamento de História da Universidade Federal Fluminense. E-mail: menendesmotta@ig.com.br
RIBEIRO, Gladys Sabina; MOTTA, Márcia. Apresentação. Tempo. Niterói, v.11, n.22, 2007. Acessar publicação original [DR]