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Patrimônio e Relações Internacionais / Locus – Revista de História / 2020
As relações internacionais ligadas à preservação do patrimônio mudarão em um mundo pós pandemia?
Como é de costume em épocas de crise, a COVID-19 evidenciou a
necessidade da existência da cultura para o aliviar o estresse de pessoas e
comunidades. Em um momento no qual bilhões de pessoas estão
fisicamente separadas umas das outras, a cultura nos une.
(Ottone 2020)
Em momentos de crise, pessoas precisam de cultura. É com esse chamamento que Ernesto Ottone, Diretor Assistente Geral para a Cultura da UNESCO ilustra o cenário em que vivemos no primeiro semestre de 2020. É esta a dimensão que os atores vinculados ao patrimônio mundial começam a tomar conhecimento. Atualmente, estamos enfrentando uma crise global diferente de qualquer outra que vimos neste século. Milhares de pessoas perderam a vida para o COVID-19 e muitas outras foram infectadas. Bilhões de pessoas agora tem estado confinadas em suas casas em todo o mundo. O impacto do COVID-19 provavelmente será sentido muito tempo após o término desta crise sanitária.
A UNESCO está incentivando os locais do Patrimônio Mundial e plataformas da UNESCO, como as Jornadas Europeias do Patrimônio Mundial, a oferecerem meios para as pessoas explorarem o Patrimônio Mundial em suas casas. Numa época em que bilhões de pessoas estão fisicamente separadas uma da outra, a cultura nos une, mantendo-nos conectados e diminuindo a distância entre nós. Então, diante dessa mudança na visão global, como ficarão os agora já “antigos” temas do patrimônio? Como não sair impactado dessa nova ordem mundial?
Em publicação recente, Guilherme d’Oliveira Martins convoca a atualidade do tema do patrimônio cultural e de seu valor econômico, afirmando a urgência em desenvolver a ligação entre o patrimônio comum, os valores humanos universais e o equilíbrio entre as diferenças (2020, 32). Num contexto de isolamento social imposto pela pandemia COVID-19 colocado à escala internacional urge questionar o lugar do patrimônio na sociedade. De acordo com o mesmo autor, “quando falamos de patrimônio cultural, há a tentação de pensar que falamos de coisas do passado, irremediavelmente perdidas num canto recôndito da memória coletiva” (Martins 2020, 33). Daí que anteveja que “a necessidade de promover a diversidade cultural, o diálogo entre culturas e a coesão social, (…) bem como, salientar o papel do patrimônio nas relações internacionais, desde a prevenção de conflitos à reconciliação pós-conflito ou a recuperação do patrimônio destruído” (Martins 2020, 33-34). Foi motivado por esta nova realidade que nasceu a ideia deste Dossiê. Provavelmente, as relações internacionais nunca mais serão as mesmas após essa pandemia e, por extensão, o patrimônio e sua gestão também não serão como antes.
A título de exemplo, recorde-se que os maiores museus do mundo disponibilizaram recursos digitais sobre as suas coleções que até então tinham o seu acesso condicionado. Nunca como antes a visita virtual teve tanto impacto, perante a impossibilidade colocada pela ausência de acesso físico causado pelo isolamento social. Diante de um cenário interconectado pela veiculação de informação (não raras vezes, na chave da inverdade), essa temática se apresenta como um dos domínios a ser debatido, pois tem atuado na compreensão de elementos variados, funcionando como embaixadores de novas demandas mundiais. O tema é não só atual, como de discussão urgente.
O imediatismo dos media e das redes sociais tem trazido novo olhar sobre o patrimônio em escala internacional. O registro e a notícia de catástrofes, recentemente reportadas como a dos incêndios do Museu Nacional do Rio de Janeiro ou da Catedral de Notre-Dame de Paris, ou das enchentes de Veneza, bem como as ações iconoclastas desenvolvidas em Bamiyan ou Mossul, só para referir alguns exemplos, tinham dado um novo lugar ao Patrimônio à escala das relações internacionais. Dois fatores se somam às assertivas elencadas acima. O primeiro diz respeito à incorporação crescente do patrimônio cultural em outras áreas do discurso internacional. O patrimônio cultural passou a ter maior visibilidade e participação relevante, muito por força da ação das redes sociais e dos media, havendo como consequência um avanço na presença de organismos de valorização nas mesas de negociação das políticas internacionais como jamais visto antes. O segundo se refere ao crescente poder econômico e político que países detentores de agendas preservacionistas desfrutam no cenário internacional.
À medida que o novo século se desnuda, a radiografia dessas relações de poder revela novos atores, espaços e representações. O patrimônio cultural tem se tornado um ator cada vez mais importante dos diálogos multilaterais e, como tal, faz parte do alargamento das ações no âmbito das relações internacionais. Daí derivam outros objetos de estudo, ainda pouco incorporados pela temática: as marcas de um soft power cada vez mais multilateralizado; as dinâmicas de hierarquização dos temas e critérios consagrados pelos órgãos de assessoria da UNESCO; a presença cada vez maior de temas que abordem as “africanidades”, “asianidades”, “latinidades” e os “orientalismos” (tão pouco explorados por nossos pesquisadores, dada a hegemonia da visão europeísta / estadunidense); dentre outros. Em consonância, sítios arqueológicos, museus, espaços culturais, organismos internacionais de preservação, Estados nacionais, atores da paradiplomacia, expressões de tradição, vivência e modos de se fazer, a dicotomia entre inflação e destruição de patrimônios, dentre outros elementos tornaram-se protagonistas dessas representações mentais sobre o patrimônio que tem se transformado constantemente. Apreender os mecanismos de compreensão dessa expansão temática favoreceria a montagem de novas valorações do patrimônio, nacional e internacionalmente. Acrescentamos a este cenário o mundo digital que, superando os constrangimentos de um isolamento social forçado à escala global se assume como o único veículo de visita e transmissão de conhecimento dos recursos patrimoniais.
Como se percebe, todas as temáticas elencadas faziam sentido em um mundo sem restrição social, isolamento compulsório e combate a um vírus letal. Os temas elencados neste dossiê, seguiram uma realidade anterior à pandemia. As preocupações, necessidades e objetos respondiam a um mundo complexo, mas conhecido. As regras do jogo eram todas acordadas. Agora, diante desse novo alinhamento, tudo muda, inclusive as relações internacionais e suas preocupações. Por este motivo, acreditamos que este Dossiê poderá colaborar para unirmos os dois mundos: o das preocupações pregressas e das novas necessidades. Não fazemos futurologia quanto ao universo da preservação dos patrimônios no mundo, mas sinaliza-se uma considerável modificação nas políticas públicas, no financiamento e na projeção de novas regras para um jogo que ainda não se saber jogar. Por este motivo, os textos selecionados para este Dossiê discutem realidades que provavelmente deverão também ser impactadas por esta mudança brusca nos caminhos recentes do mundo globalizado.
O texto de Amélia Polónia e Cátia Miriam Costa, Preservar patrimônios e partilhar memórias em cidades-porto latino-americanas. Um projeto em ação: CoopMar – Cooperação Transoceânica, Políticas Públicas e Comunidade Sociocultural Ibero-Americana analisa o projeto de uma rede de investigação e desenvolvimento financiada pelo CYTED (Programa Ibero-americano de Ciência e Tecnologia para o Desenvolvimento) que promove formas ativas de diplomacia científica, visando potenciar sinergias existentes entre vários parceiros em torno de uma agenda de “mar e sociedade para o desenvolvimento”. CoopMar dá prioridade à circulação de conhecimento entre diferentes atores (universidades, museus, fundações, empresas, instituições públicas e sociedade em geral) e visa contribuir para uma sociedade do conhecimento, transnacional e transdisciplinar. Assume a troca cooperativa de valores e visões como um valor intangível que funciona como capital social capaz de beneficiar cidades portuárias da região Ibero-latino-americana.
Frédéric Lerich discute em Regional Assets, Industrial Growth, Global Reach: The Case Study of the Film Industry in the San Francisco Bay Area, uma dimensão pouco conhecida do público. De acordo com Lerich, dentro da indústria cinematográfica dos EUA, Hollywood é uma (grande) árvore que esconde a floresta. De fato, além desse cluster poderoso e dominante, existem outras formas – embora menores – de indústria cinematográfica, particularmente em Nova York e São Francisco. O artigo enfoca o último e argumenta que o desenvolvimento da indústria cinematográfica na área da baía de São Francisco depende de ativos regionais específicos: (1) uma cultura alternativa, (2) uma cultura tecnológica e (3) uma experiência urbana única. O artigo se baseia na ideia de que São Francisco é um local acolhedor para filmar e produzir filmes e que, como corolário, hoje em dia acolhe um cluster industrial dinâmico e com vários locais. Destaca diferentes estratégias que visam promover o desenvolvimento de ativos regionais relacionados à indústria cinematográfica e questiona suas capacidades de recuperação destacando seus impactos na influência global de São Francisco.
Jaime Nuño González constrói uma narrativa envolvente ao analisar em Patrimonio Cultural y globalización: Trayectoria, proyectos y estrategias de la Fundación Santa María la Real (Aguilar de Campoo, Castilla y León. España), as dinâmicas de preservação em torno das ruínas de um mosteiro medieval situado na pequena localidade de Aguilar de Campoo (Palencia, Castilla y León. Espanha). Em 1977 uma associação foi formada com o objetivo de recuperar o monumento e transformá-lo no centro da dinamização cultural de uma região em crescente processo de despovoamento. A Fundação Santa María la Real, herdeira dessa associação, diversificou os setores em que atua, ampliando suas intervenções em toda a Espanha. Neste texto, González apresenta os projetos de gestão, comunicação e preservação da fundação, apontando os caminhos pelos quais essas ruínas se tornaram um dos mais proeminentes exemplos de preservação patrimonial ibérico.
Gilberto Marcos Antônio Rodrigues discute os impactos do Patrimônio cultural como inserção internacional de cidades. Em Política Externa de Cidades: Estratégia Internacional Modelada e Patrimônio Cultural aborda uma questão central: no caso de patrimônios culturais, sejam eles materiais ou imateriais, que não dispõem de valorização ou proteção nacional, como pode a cidade aproveitá-lo como vetor de uma ação internacional? No âmbito da dimensão cultural das relações internacionais de cidades, o patrimônio cultural é um vetor pouco explorado em sua potencialidade e capacidade de promover a inserção internacional local no Brasil. O objetivo do artigo é analisar como o patrimônio cultural pode ser transformado em recurso ativo para uma Estratégia Internacional Modelada (EIM) visando alavancar e apoiar a política externa de cidades médias ou pequenas no Brasil.
Em diálogo com o texto de Rodrigues, Gustavo de Jesus Nóbrega, perscruta o universo da paradiplomacia e apresenta os resultados parciais de pesquisa ligada ao projeto interdisciplinar “Os diversos usos dos espaços institucionais na preservação do Patrimônio Cultural”, na qual analisa o uso e a apropriação da Universidade de Coimbra (UC) e da própria cidade em questão por diversos agentes, a partir da apresentação da instituição de ensino como um Patrimônio Cultural da Humanidade e seus bens edificados como verdadeiros acervos de um museu a céu aberto. A hipótese levantada por Nóbrega em A Universidade de Coimbra e as diversas apropriações da chancela internacional de Patrimônio da Humanidade atribuída pela UNESCO, é que a nomeação pela UNESCO, em 2013, alavancou a iniciativa de utilizar a marca “Coimbra”, como um soft power que objetiva reestabelecer a notoriedade da cidade e da Universidade como espaços de ponta em nível mundial.
O artigo de Bruno Miranda Zétola, Troféus de guerra e relações diplomáticas examina as singularidades do troféu de guerra como patrimônio cultural e sua relevância para as relações diplomáticas. A partir de três estudos de caso, aponta-se para possíveis paradigmas do uso desse tipo de patrimônio como recurso de política externa. Troféus de guerra são uma categoria muito especifica de patrimônio, visto tratar-se de artefatos militares obtidos no campo de batalha e cujo valor cultural é aferido após sua apreensão. Prática recorrente desde a Antiguidade clássica, a obtenção e exibição de troféus de guerra nunca foi considerada ilícito internacional. Suas implicações para as relações internacionais, entretanto, podem ser significativas, consoante a valorização do artefato tornado troféu pelas narrativas historiográficas das sociedades que o perdem ou que o conquistam.
O Louvre, renomado museu e patrimônio francês, agora responde a um pedido do governo para aperfeiçoar sua interação e influência internacionais. A internacionalização do Louvre é, portanto, entendida não como a reputação do Louvre em nível internacional, mas como o uso dessa herança em estratégias políticas internacionais. O texto de Marie-Alix-Mólinier-Andlauer, Political Issues of the Louvre’s Internationalisation enfoca a internacionalização do Louvre desde os anos 2000. O Estado francês, através de sucessivos governos, vem mobilizando o Louvre, como intermediário em acordos internacionais. Este museu e instituição cultural tornou-se participante direto das relações internacionais francesas, o que motivou Andlauer a analisar as questões e controvérsias que cercam a estreita relação entre o Louvre e o Estado francês. Concluí este trabalho, uma análise do discurso da mídia francesa sobre a mobilização do Louvre pelo Estado o que revela tensões e controvérsias em torno da internacionalização de um dos museus mais famosos do mundo.
Se por um lado museus guardam estátuas (independentemente da discussão se devem ou não manter sob sua tutela peças controvertidas de origens, muitas vezes, duvidosas), por outro, em certas ocasiões, são palco de destruição e vandalismo. A onda de destruição de museus e estátuas locais realizados pelo DAESH (Estado Islâmico) na Síria e no Iraque não deve ser considerada simples ato de vandalismo ou ação iconoclasta com base em sua interpretação radical e distorcida do Islã. Tais atos ocultam um discurso complexo que deve ser compreendido no debate atual sobre a redefinição do patrimônio, particularmente de estátuas, questionada por representar um passado colonial ou autocrático que não é mais considerado digno de ser preservado e lembrado. Em Las estatuas también mueren. Patrimonio, museos y memorias en el punto de mira de DAESH, Jorge Elices Ocón apresenta o estado da arte deste debate focalizando a diferença notável entre as ações iconoclastas mencionadas no texto e as do DAESH. Para os terroristas, não há possibilidade de ressignificação das estátuas. Como vaticina Ocón, “não é um discurso de justiça, mas de ódio, e não busca apenas a morte de estátuas, mas a de pessoas e culturas”.
Para além da destruição, do tráfico ilícito de bens culturais e da revisão histórica de símbolos outrora extorquidos, um dos temas de maior visibilidade dentro das relações internacionais é o das solicitações de restituição de patrimônios espoliados. Colabora nesta temática o texto de Karine Lima da Costa que analisa a questão da restituição ou repatriação dos bens culturais, especialmente os artefatos da África subsaariana, a partir da publicação do Relatório Savoy-Sarr, concluído em 2018. Em, A restituição do patrimônio cultural através das relações entre a África e a Europa Costa aborda o caso dos bronzes do Benin, retirados da África no século XIX, e atualmente distribuídos em diferentes instituições museológicas, sobretudo na França e na Inglaterra. A repatriação e / ou restituição também diz respeito à uma mudança de atitude em relação ao tratamento e entendimento dos bens culturais, que deve considerar algo que, às vezes, parece ser esquecido nesse processo: o seu sentido coletivo. Por este motivo, são as novas formas de se relacionar com o patrimônio cultural que a problemática da repatriação convoca, pois ao falarmos de restituição estamos falando, também, de diplomacia. Essas formas não devem se limitar apenas ao retorno permanente, mas ao empréstimo, ao intercâmbio cultural, à circulação das obras – algo que já faz parte do cotidiano de muitas instituições museológicas, mas que são limitados por falta de acordos e cooperação entre os agentes envolvidos.
Em diálogo aberto com o texto de Costa, Manuel Burón Díaz, apresenta o caminho percorrido pelo patrimônio da Nova Zelândia, analisando o estudo da construção, intercâmbio, exibição, reclamação e restituição do patrimônio, por meio de uma leitura crítica do próprio estatuto de devolução. Para o autor, o patrimônio, os materiais que o compõem, assim como os significados que lhes damos, não são estáticos; variam com o tempo e, na sua mudança, desenham no mapa interessantes trajetórias. Neste texto, Díaz aborda como as recentes demandas da restituição patrimonial supõem um desdobramento mais atuante na alargada série de significados que atribuímos a certos materiais culturais, sublinhando como, na atualidade, a repatriação de certos objetos tem se convertido em uma importante ferramenta de relações internacionais. Cabezas y pájaros: La construcción y restitución del patrimonio en Nueva Zelanda é, portanto, uma busca por clarificar a ideia de que o patrimônio tem sido um instrumento fundamental para as relações diplomáticas, pois ao simbolizar diferentes desejos e atender a diferentes necessidades, regula os contatos entre culturas ou nações. Mas isso, adverte o autor, não deve fazer o observador cair no mais estéril relativismo nem no mais imóvel essencialismo cultural.
Em, Soft Power Mineiro: O edital Circula Minas (2015-2018) como medida de preservação e difusão nacional e internacional da cultura e do patrimônio de Minas Gerais, Vanessa Gomes de Castro e Thiago Rodrigues Tavares discutem o programa de internacionalização da cultura do estado de Minas Gerais, por meio do Programa Circula Minas. Os autores analisam os resultados e implicações do intercâmbio cultural patrocinado pela Secretaria de estado da Cultura de Minas Gerais, sobretudo, em relação ao patrimônio cultural, apresentando seus argumentos a partir de uma leitura crítica do conceito de soft power. Para os autores o Edital Circula Minas, ao receber e apoiar financeiramente projetos na área da cultura, possibilitou a participação da sociedade civil na salvaguarda dos bens culturais, mas, políticas culturais não podem ser apenas prerrogativa exclusiva do Estado e seus representantes, devendo envolver a participação da sociedade civil nas diversas etapas do processo de preservação, fato legitimado pelos dispositivos jurídicos internacionais.
O texto As timbila de Moçambique no concerto das nações, de Sara S. Morais discute aspectos do processo de patrimonialização das “timbila chopes” de Moçambique que culminou com seu reconhecimento como Patrimônio Oral e Imaterial da Humanidade em 2005, pelo Programa das Obras-Primas da UNESCO. Inspirada em análises sobre processos de objetificação e redução semântica implicados no reconhecimento oficial de expressões como patrimônio cultural, a autora abordo elementos da trajetória histórica e social das timbila para compreender seu lugar no imaginário nacional e sua escolha como o primeiro bem cultural imaterial em Moçambique consagrado em arenas internacionais. Enfatiza diversos elementos que localizam esse país africano no âmbito das suas relações internacionais; discutindo algumas das dinâmicas perpetuadas pelo colonialismo, traçando reflexões sobre a relação de Moçambique com a UNESCO, à luz da história política do país e de sua recepção em relação a certos critérios e entendimentos desse organismo internacional no que tange ao patrimônio imaterial. Destaca, por fim as interpretações dadas pelo Estado moçambicano aos ideais de participação social da UNESCO e mostra como o dossiê produzido pelo governo moçambicano utilizou o critério de autenticidade para justificar a escolha das timbila.
Encerra o Dossiê, o texto provocativo de Marcos Olender que aborda nova leitura sobre um dos documentos mais conhecidos da preservação do patrimônio. Para responder às indagações do presente e compreender as dinâmicas na construção do imaginário dos patrimônios mundiais, Olender retroage à icônica Carta de Atenas de 1931, produzindo uma leitura verticalizada dos bastidores do primeiro documento internacional referente à proteção do patrimônio histórico e artístico em âmbito institucional internacional. O texto “O abismo da história é grande o suficiente para todos”. Os primórdios da Carta de Atenas de 1931 e a afirmação da noção de patrimônio da humanidade aborda o processo histórico que constrói a conjuntura da elaboração do citado documento, iniciado no contexto da Primeira Grande Guerra e pela implantação de instituições que começaram a estruturação de uma política internacional de proteção ao patrimônio, na qual é destacada a preocupação pela conceituação de um patrimônio da humanidade.
As inquietações apresentadas pelos autores ajudaram na elaboração da entrevista transcrita neste volume. A premissa básica foi discutir: como a leitura de um observador do presente dá conta de compreender as mudanças que se aceleram no universo da preservação dos patrimônios em um mundo oscilante entre a perpetuação e efemeridade? Este foi o mote da entrevista com o historiador britânico, Peter Burke, interlocutor que buscou consolidar respostas concisas, “diante do tempo das indefinições”. Frente a um cenário interconectado e em função do caráter de “novidade temática”, como enxergar a crescente preocupação sobre a preservação do patrimônio em tempos que pendulam entre o esquecimento generalizado e a super produção de memórias? O patrimônio (sobretudo, o chancelado como mundial) tem força para ser combustível de mudança social e política? E diante da pandemia de COVID-19 e as sequentes restrições ao nível da acessibilidade, como fugir da “despatrimonialização” desses lugares? Estaremos já a caminhar para um tempo do “pós-patrimônio”? Responder a esses questionamentos não foi tarefa fácil, mas as respostas elencadas por Burke, podem nos auxiliar a compreender um pouco mais o cenário em que vivemos, independentemente da concordância ou discordância de seus posicionamentos.
Mesmo diante do imponderável, continuaremos trabalhando para que a temática ganhe cada vez mais destaque e que as mudanças que se projetam sejam assimiladas pelos temas correlatos à preservação do patrimônio cultural e seus aspectos internacionais. Conseguir responder ao questionamento central desse dossiê, se as relações internacionais ligadas à preservação do patrimônio mudarão em um mundo pós pandemia? nos parece precipitado. No entanto, a cada dia que passa projeta-se um cenário no qual o planeta e, por tabela, o próprio patrimônio mundial refletirão as mudanças ocorridas nas agendas dos governos, na preferência dos estudiosos e na dinâmica global de um mundo afetado em grande escala.
As palavras de Oliveira Martins, para quem: “o valor do patrimônio cultural, material e imaterial exige a aceitação da verdade dos acontecimentos, positivos e negativos, para que possamos ganhar em experiência, pelo ‘trabalho de memória’” (2020, 28), nos motiva a continuar preservando. Neste mundo, marcado por uma pandemia sem igual, cabe questionar os acontecimentos, buscar compreendê-los, criar deles memória patrimonial e, por meio da experiência obtida, abrir novos caminhos para a compreensão sobre nós mesmos. Certos estamos que tais caminhos jamais serão como antes, mas que o novo aprendizado venha carregado de significados para que saibamos dosar a preservação entre o novo e o ancestral. Que o patrimônio (elemento que transita entre a memória e a história) encontre nas agendas internacionais espaço de protagonismo, mediando as demandas existentes entre o local e o global, sem sobreposições ou prejuízos de nenhuma natureza. E não podemos deixar de lembrar, as palavras visionárias de Carlos Alberto Ferreira de Almeida (1998), publicadas em tempos tão diferentes daqueles em que vivemos, que “Patrimônio é tudo o que tem qualidade para a vida cultural e física do homem e tem notório significado na existência e na afirmação das diferentes comunidades” às mais diversas escalas. Se assim o é, também concordamos com este autor quando tão antecipadamente escreveu que
o Patrimônio não pode ser olhado apenas como uma reserva e, menos ainda, como uma recordação ou nostalgia do passado mas, antes, como algo que tem de fazer parte do nosso presente. O Patrimônio, para o ser, tem de estar presente e vivo, de algum modo (Almeida 1998).
O Dossiê que agora se dá ao prelo bem o reflete e demonstra. O patrimônio tem hoje um novo lugar: é um ator efetivo nas relações internacionais às mais diversas escalas. Alcançou este status porque não é mais uma reserva do passado. Está no presente e tem valores prospectivos.
Referências
ALMEIDA, Carlos Alberto Ferreira de. Patrimônio. O seu entendimento e a sua gestão. Porto: Edições Etnos, 1998.
MARTINS, Guilherme d’Oliveira. Patrimônio cultural: realidade viva. Lisboa: Fundação Francisco Manuel dos Santos, 2020.
OTTONE, Ernesto. 2020. “Em momentos de crise, as pessoas precisam de cultura”. https: / / pt.unesco.org / news / em-momentos-crise-pessoas-precisam-cultura
Rodrigo Christofoletti – Professor de Patrimônio Cultural no curso de graduação e Pós-graduação em História da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF). Líder do grupo de pesquisa Patrimônio e Relações Internacionais (CNPq). Conselheiro do COMPPAC – Conselho Municipal de Preservação do Patrimônio Histórico de Juiz de Fora. Colaborador do Centro de Investigação Transdisciplinar “Cultura, Espaço e Memória” (CITCEM) – Faculdade de Letras da Universidade do Porto. Doutor em História, Política e Bens Culturais pela Fundação Getúlio Vargas (FGV-CPDOC). Atua na interface entre História e Relações Internacionais com foco no patrimônio cultural. E-mail: r.christofoletti@uol.com.br https: / / orcid.org / 0000-0002-6346-6890
Maria Leonor Botelho – Professora Auxiliar do Departamento de Ciências e Técnicas do Patrimônio da Faculdade de Letras da Universidade do Porto e Diretora do Curso de Mestrado em História da Arte, Patrimônio e Cultura Visual. É investigadora do Centro de Investigação Transdisciplinar “Cultura, Espaço e Memória” (CITCEM / FLUP). Com a Prof. Lúcia Rosas e o Prof. Mário Barroca, coordena a Enciclopédia do Românico em Portugal (2018-2021), no âmbito do protocolo de colaboração celebrado entre a FLUP e a Fundación Santa María la Real del Patrimônio Histórico, un Proyecto desde Castilla y Leon. Os seus interesses de investigação são a gestão do patrimônio, o patrimônio mundial, o digital heritage, a história urbana e a historiografia da arquitetura da época românica. E-mail: mlbotelho@letras.up.pt http: / / orcid.org / 0000-0002-2981-0694
CHRISTOFOLETTI, Rodrigo; BOTELHO, Maria Leonor. Apresentação. Locus – Revista de História. Juiz de Fora, v.26, n.2, 2020. Acessar publicação original [DR]
Imagens, história e ciência / Domínios da Imagem / 2016
As reflexões acerca do uso de imagem na escrita e no ensino de História ganharam corpo nos últimos anos no Brasil. As representações iconográficas e audiovisuais não apenas ilustram o trabalho do historiador, mas também são objetos de análise em suas narrativas. Nas ciências, a fronteira entre a fidedignidade do que é representado e as concepções artísticas são tênues. A representação de uma planta feita por um naturalista oitocentista ou as imagens captadas por telescópios orbitais no século XXI exemplificam bem a questão, pois em ambos os casos elas são ao mesmo tempo representação e arte, pois o ato de vulgarizar ou divulgar o conhecimento científico congrega tanto o ato da investigação racional quanto certa liberdade artística. Nesse sentido, a proposta desse dossiê é reunir trabalhos que reflitam, explorem ou tomem como objeto a relação entre os usos da imagem na História da Ciência.
Este dossiê apresenta três frentes associadas: história, imagem e ciência. Delas decorrem outras ramificações que transversalmente abordam o eixo temático básico do presente. Abordagens plurais colaboraram para o alargamento da proposta temática, pois contemplou historiadores do político, da arte, da ciência, da literatura, bem como arquitetos, artistas plásticos, antropólogos e biólogos, o que dá multiplicidade e multidisciplinaridade a esta proposta.
Transitando pelo pluriverso da História das Ciências dois artigos abordam questões até hoje pouco aprofundadas na área. Em As primeiras imagens ocidentais da anatomia do útero humano, Vera Cecilia Machline discute um tema caro aos historiadores da Ciência. Afirma que coube à escola liderada por Aristóteles (384-322 a.E.C.) não só os primeiros estudos anatômicos de animais realizados no Ocidente, mas também as primeiras representações visuais a respeito. De acordo com a historiadora, há muito perdidas, sabe-se da existência dessas imagens mercê referências a ’Ανατοµαί (i.e., Esquemas anatômicos) em obras aristotélicas analisando sob diferentes ângulos a multiplicidade do reino animal. Compensando essa irreparável perda, desde o Renascimento ensaiou-se reconstituições de tais ’Ανατοµαί, com base nas descrições verbais nessas obras. Isto se aplica até ao útero de certos animais, incluindo o do ente humano, descrito no início do Livro II da História dos animais. Diante disso, será enfocado a reconstituição algo anacrônica de D’Arcy W. Thompson (1860-1948), bem como a ilustração do útero num manuscrito de c. 850, possivelmente inspirada na descrição presente no tratado ginecológico composto por Sorano de Éfeso (fl. 98-c. 129).
A ampliação do uso da imagem pelas descrições científicas e, especialmente, em sua vulgarização para um público amplo por meio da imprensa periódica é objeto do texto Representações, vulgarização e imagética científicas na imprensa da Corte fluminense do século XIX, do historiador Cesar Agenor Fernandes da Silva, que tenta compreender as nuances e os contornos da vulgarização científica e seu papel no projeto civilizatório para o Brasil veiculado pela imprensa periódica. A questão discutida nesse artigo gira exatamente em torno da difusão dos saberes científicos e as imagens associadas a essa veiculação por meio das publicações periódicas do Rio de Janeiro nas primeiras décadas do século XIX. Um dos pontos centrais é justamente descrever como o conhecimento técnico-científico e, sobretudo, o uso público da razão tiveram papel fundamental no projeto de civilização dos homens de letras que viviam no Brasil. Além disso, coloca-se em perspectiva a possibilidade de se pensar possíveis impactos nas representações sobre o mundo pelos brasileiros que tinham contato com essas publicações.
Na interface entre a criação imagético/psíquica e a percepção filosófica, o texto de Elly Rozo Ferrari retoma essa discussão sobre outro prisma. Em Deslocamentos das narrativas viajantes: as fotografias de Mário de Andrade no processo de construção de conceitos da exposição Id: retratos contemporâneos, a artista plástica apresenta o ato fotográfico moderno nas fotografias de Mário de Andrade, pertencentes ao Arquivo do IEB-USP, como gerador de propostas conceituais a fim de discutir a imagem na contemporaneidade em relação à construção de identidades atualizadas neste processo de curadoria. Nesse sentido, analisa a intervenção na concepção fotográfica a partir das narrativas visuais apresentadas sem a intervenção legendada de textos e, a partir dessas relações, discute as representações presentes nesses retratos fotográficos contemporâneos que remetam à estereotipia, à banalização dos registros que, segundo autora, inundam ferozmente os espaços escolares e de cultura.
O espectro desse dossiê é necessariamente amplo, o que possibilita textos de gramaturas bastante diferentes. Em uma seara pouco discutida no âmbito da história da ciência, e mesmo da história política, o texto de Rodrigo Christofoletti apresenta a percepção sui generis do movimento integralista brasileiro sobre Ciência. Em A Enciclopédia do Integralismo frente à Educação, Estética e Poética: ciências da mente e do corpo, o historiador afirma que a tríade essencial do integralismo (Deus, Pátria, Família) teve um corolário bastante divulgado pelo movimento: uma sui generis concepção de ciência, que englobava experiências ligadas à Educação, à Estética e à Poética. Buscava-se com este tripé publicizar a crença integralista de que “o terreno fértil do protagonismo só seria fertilizado por meio do conhecimento, da beleza e da palavra em todos os seus sentidos!”. A ideia de que o binômio ciência/educação sempre foi um dos pilares da civilização era levada à risca pelo movimento integralista. Tal premissa alertava para o fato de que “o acúmulo de conhecimento não se bastava em si, e que era necessário uma educação que rompesse as fronteiras do intelecto, tornando-se o conceito do binômio ciência/educação algo polissêmico”. Este texto analisará as concepções negativas de ciência propaladas pelo integralismo no seu mais importante compêndio a Enciclopédia do Integralismo, publicado de 1957 a 1961.
Outra abordagem trabalhada neste dossiê é construída por textos que transitam pela fronteira entre arquitetura e suas representações imagéticas. O texto Experimentações gráfico-espaciais na confluência dos estudos do Imaginário e das representações da Arquitetura, da dupla Artur S. Rozestraten e Paula Brazão Gerencer, investiga, sob uma perspectiva crítica e experimental, instrumentos metodológicos e fundamentos conceituais advindos do campo de estudos do Imaginário quanto às suas possibilidades de interação com temas e modos de operar próprios do universo das representações da Arquitetura. Além da fundamentação conceitual em Gilbert Durand (1921-2012) e no universo iconográfico do ‘Recueil et Parallèle des édifices de tout genre, ancien et modernes’ de Jean-Nicolas-Louis Durand (1760-1834), o texto toma como base experiências construtivas, ensaios como inter-relações visuais entre imagens, estimuladas pelo Atlas Mnemosyne de Aby Warburg (1866-1929). Tais estudos têm a intenção de sondar novas potencialidades das articulações entre imagens, no plano e no espaço, como ferramenta de investigação e construção de conhecimento.
Em contraste com o texto de Machline que abriu o dossiê, o artigo apresentado pela antropóloga Priscila Enrique de Oliveira aborda as políticas públicas de saúde do Sistema de Proteção ao índio. Ideias, escopetas e bacilos: políticas de saúde do SPI e os diálogos com as populações indígenas do Brasil discute primeiramente como as políticas de saúde do SPI (Serviço de Proteção ao Índio, 1910-1967) foram pensadas, articuladas, colocadas em prática a partir de suas ligações com as políticas e ideais nacionais de civilização e progresso, bem como os pressupostos científicos vigentes no período. Analisa como as sociedades indígenas receberam e responderam a estas ações, enfocando particularmente as diferentes narrativas e lógicas culturais que perpassavam o contato, os diálogos e mediações frente à inserção das ideias de saneamento, higienização, medicalização e cura.
As análises expressas neste dossiê pretendem contribuir para o aprofundamento e a visibilidade de concepções e posicionamentos comprometidos com a ética científica e o respeito à diversidade intelectual. Esperamos que, em tempos de fragilidades éticas, como o que vivemos atualmente, os fundamentos que unem história, imagem e ciência possam ajudar a construir uma sociedade mais sábia de si mesma, e por isso, mais apta a enfrentar mudanças e crises.
Cesar Agenor Fernandes da Silva
Rodrigo Christofoletti
CHRISTOFOLETTI, Rodrigo; SILVA, Cesar Agenor Fernandes da. Apresentação. Domínios da Imagem, Londrina, v. 10, n. 19, jul/dez, 2016. Acessar publicação original [DR]