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Alegoria do património | Françoise Choay
As argumentações desenvolvidas por Françoise Choay em Alegoria do património se ancoram, reiteradamente, em demonstrações etimológicas cujo pressuposto fundamental é assinalar as transfigurações das relações estabelecidas entre os seres humanos e as suas edificações ocorridas nos últimos séculos no Ocidente e em países como o Japão e a China. Deste modo, à designação “patrimônio”, cujo abarcamento restringia-se originalmente às propriedades hereditárias, foram acrescentadas categorias mais abrangentes, tal como o complemento “histórico” (CHOAY, 2014, p. 11). Enquanto o monumento é uma obra espontânea, seja auxiliar da rememoração ou da magnificência das localidades, o monumento histórico é produto de uma distinção artificial (CHOAY, 2014, p. 17-25). A destruição de um monumento pode se dar por diversos fatores, humanos ou naturais, mas ao monumento histórico é pressuposta uma irrestrita proteção (CHOAY, 2014, p. 25-26).
O acondicionamento destas construções como projeto nacional provém de um lugar específico e de um tempo também específico: o Ocidente oitocentista (CHOAY, 2014, p. 25-26). Pontualmente, o delineamento de um tal empreendimento é evidente em França ainda no século XVIII, marcado pela circunstância revolucionária, mesmo que propalado somente no XIX (CHOAY, 2014, p. 26-27). Por detrás destas constatações está a introdução do monumento histórico ao repertório linguístico francês, cuja autoria poderia ser atribuída precipitadamente a Guizot, porém trata-se de uma realização de Millin (CHOAY, 2014, p. 26-27). Neste sentido, é notória a relevância das ações de Françoise Choay pertinentes ao exame pormenorizado do referido léxico, visto que conduzem a oportunas reflexões acerca do delineamento da conservação patrimonial e de seus princípios. Leia Mais
O patrimônio em questão: antologia para um combate – CHOAY (Topoi)
CHOAY, Françoise. O patrimônio em questão: antologia para um combate. Belo Horizonte: Fino Traço, 2011. Resenha de: LANARI, Raul Amaro de Oliveira. Um combate em dois fronts. Topoi v.15 n.28 Rio de Janeiro Jan./June 2014.
Lançado no Brasil no ano de 2011, o livro O patrimônio em questão: antologia para um combate, da pesquisadora francesa Françoise Choay, integra um campo de investigação já consolidado nas áreas da história, antropologia e arquitetura/urbanismo: o patrimônio cultural. Autora de A alegoria do patrimônio (1992), Choay possui uma visão crítica do processo de expansão da “cultura do patrimônio” nos tempos da cultura de massas, o que pode ser percebido pelo título de seu novo livro. Seu combate pode ser resumido como a luta contra o esvaziamento da função memorial dos monumentos no contexto urbano e, assim, trata-se de uma discussão que interessa aos estudiosos da história das cidades, bem como da história das políticas públicas na área da cultura.
Choay não se encontra sozinha neste combate. A “questão urbana” é objeto de estudo de uma série de estudiosos franceses, desde Henri Lefebvre (1920-1991), autor de O direito à cidade (1968), até Henri- Pierre Jeudy, autor de Espelho das cidades (2005). Da publicação do célebre livro de Choay em 1992 aos dias atuais observaram-se diversos esforços para o aprofundamento das temáticas abordadas pela autora. No caso brasileiro, é necessário citar os estudos de José Reginaldo Santos Gonçalves, Antônio Gilberto Ramos Nogueira, Ulpiano Bezerra Toledo de Meneses, Márcia Regina Chuva, Silvana Rubino, Maria Cecília Londres Fonseca, Rogério Proença Leite e Myriam Sepúlveda dos Santos. Percebe-se, portanto, que a contribuição atual de Choay encontra ampla receptividade na comunidade acadêmica brasileira e mundial.
Seria de se esperar, dada a importância da autora no debate sobre o patrimônio e as cidades, que seu novo livro trouxesse novidades analíticas, pontos de aprofundamento de suas hipóteses. Não é isso o que se percebe após a leitura do mesmo. O patrimônio em questão: antologia para um combate sintetiza ideias já consagradas, possui generalizações, por vezes apresenta uma visão esquemática do processo histórico que procura identificar. O livro é dividido em três partes: um Prefácio, uma Introdução e uma Antologia de Textos. Dedicaremos as próximas páginas à análise dessas seções.
A autora inicia a obra com um pequeno prefácio, no qual explica as condições de sua elaboração – disciplinas ministradas na universidade para futuros arquitetos e urbanistas e cursos destinados a profissionais interessados pela história ou gestão do patrimônio. Apresenta seu combate contra as confusões terminológicas que apagaram a profundidade da preservação do patrimônio, retirando dele a função de evocar a memória viva, e propõe uma tomada de consciência. Trata-se de um livro destinado a um público duplo, formado por acadêmicos e pesquisadores, mas também pelo “público não especializado e não informado dos cidadãos” (p. 10). Para atingir seu fim, Choay admite que realizou algumas generalizações para condensar conteúdos já explorados em A alegoria do patrimônio. Percebe-se então que o caráter generalizante e por vezes pouco denso da exposição decorre de uma escolha de Choay, que sinaliza uma tentativa de alargamento do debate público sobre o patrimônio e as cidades. Talvez a inovação maior da obra, portanto, seja seu caráter de um “combate bifronte” e não o aprofundamento da reflexão teórica.
A introdução do livro parte da análise genealógica do conceito de patrimônio. Choay recupera inicialmente a distinção entre monumentos e monumentos históricos, raízes lexicais do conceito difundido mundialmente nos dias atuais. Os primeiros são construídos com clara intenção de evocar a lembrança e ligam-se à memória viva. Já os segundos são elaborações de determinado saber sobre a realidade, escolhas efetuadas entre um vasto conjunto de monumentos de acordo com os valores históricos, artísticos, políticos, dentre outros. Para Choay, os monumentos têm longa existência, com presença marcante nas sociedades humanas desde tempos muito remotos, enquanto os monumentos históricos são característicos da sociedade europeia pelo menos desde a Alta Idade Média. A despeito da importância dada a ambos, a autora ressalta que a ação destruidora esteve presente e foi até predominante na maioria dos períodos históricos, principalmente no continente europeu. Sacudida por revoluções culturais, a Europa gestou o culto moderno dos monumentos, a partir da Renascença e da Revolução Industrial, em diferentes graus de amplitude, de acordo com as regiões.
A autora argumenta que a evolução do monumento ao monumento histórico ocorreu de forma lenta entre os séculos XV e XIX e mais rapidamente na virada do século XIX para o XX, com consequências importantes. Três revoluções culturais europeias teriam impulsionado estas mudanças. A primeira, na Renascença, caracterizou-se pelo afrouxamento do teocentrismo medieval. O ser humano deixou de ser considerado mera criatura e a ele passou a ser atribuída uma capacidade criadora, o que levou ao interesse nas manifestações da atividade humana em diferentes épocas. Novos tipos profissionais urbanos como o arquiteto e o artista plástico se destacaram por desempenharem atividades relacionadas ao apuro técnico, ao deleite estético e à história dos homens. Arte e técnica andavam juntas e garantiam a legitimidade de um novo saber, histórico. As obras da Antiguidade, em muitos casos utilizadas como fontes para a confirmação ou negação dos textos antigos, foram as primeiras a receber a atenção desses novos homens de artes e saberes – os eruditos antiquários. As cidades italianas foram precursoras dessa primeira revolução cultural no século XV, que se estendeu aos reinos vizinhos a partir do século seguinte. Segundo a autora, “os antiquários e suas Antiguidades” caracterizaram uma nova forma de se relacionar com o passado humano por intermédio do ambiente construído (p. 16-17).
O desenvolvimento desse culto às Antiguidades pela ação dos antiquários seguiu uma linha evolutiva irregular até o começo do século XIX. Porém, o saber erudito desses novos homens de letras foi responsável por uma “tomada de consciência da unidade europeia” (p. 18). Três teriam sido os momentos dessa evolução. Até o século XVII predominou a ação dos antiquários na catalogação dos monumentos e na defesa de métodos para sua reconstrução e inserção nas cidades antigas. No século XVIII os estudos passaram a apresentar vasta documentação iconográfica. Entretanto, esse saber mais livresco, calcado na leitura dos textos clássicos e que já se fazia presente no período anterior, não logrou preservar as Antiguidades. No final do século XVIII e no início do XIX, as mutações nos saberes existentes, com a ascensão das ciências naturais, as obras dos antiquários, historiadores da arte ou antropólogos se tornaram mais pretensamente científicas, o que influenciou a valorização da relação entre texto e imagem.
Entre fins do século XIX e início do XX, a segunda revolução cultural europeia, a Revolução Industrial, introduziu o maquinismo na cultura ocidental, com o paulatino predomínio da técnica e da ciência. Foi essa a época do surgimento dos monumentos históricos, amparado por políticas oficiais de proteção que desenvolveram procedimentos diversos de conservação e restauro. Como no Renascimento, essa segunda revolução teve grandes impactos nas relações sociais, divididos, pela autora, em quatro grupos: 1. os campos do saber, com a ascensão da história e sua unificação em torno de diversas subdisciplinas; 2. a sensibilidade estética, com o romantismo e atribuição de uma importância praticamente transcendente, religiosa à obra de arte; 3. a revolução das técnicas, com a fotografia, a imprensa e os estudos físico-químicos; 4. o êxodo rural, a desordem dos modos de vida tradicionais e, principalmente, a inauguração de uma nova relação com o tempo. A velocidade da sociedade da máquina levou a mudanças bruscas nas cidades, o que deu margem a uma nova nostalgia característica do século XIX, o século da história. Essa nostalgia arrebatou as elites nacionais mais abastadas (p. 21-22).
O desenvolvimento desse sentimento nostálgico também teve forte impulso dos nacionalismos que vicejaram na Europa no último quartel do século XIX até pelo menos o final da Segunda Guerra Mundial. O leque espacial e temporal dos monumentos – agora históricos e nacionais – foi ampliado e ultrapassou as construções da Antiguidade e do Medievo para adentrar no ambiente construído pré-industrial. A prática preservacionista chegou a alguns países da Ásia e das Américas, como o Brasil, onde as primeiras políticas de preservação do patrimônio foram implementadas na década de 1930. Foram elaborados complexos aparatos teóricos e jurídicos para a proteção dos monumentos e a aferição de seus valores. Algumas diferenças eram marcantes e caracterizaram escolas de pensamento que influenciam até hoje os pontos de vista nacionais sobre as políticas de preservação. Enquanto na França houve ênfase maior na construção de categorias jurídicas por parte do Estado, dentre as quais a do “tombamento” foi a mais importante, nos países de língua inglesa a preservação ficou a cargo de associações particulares de estudiosos e colecionadores. O modelo francês previa uma reconstituição dos edifícios significativos e isolados em um estado de completude ideal. O modelo inglês afastava-se dessas proposições, valorizando a ruína e conferindo a ela um caráter quase sagrado. A escola italiana, por sua vez, pensou as técnicas de restauro e ensaiou uma proposta de reutilização dos edifícios antigos. A tradição alemã, da qual fez parte Alöis Riegl, foi a primeira responsável por uma análise fundada nos valores contraditórios dos quais todo monumento é portador (p. 22-26).
O último ciclo de mudanças que teria contribuído para a atual valoração do patrimônio é situado após a Segunda Guerra Mundial, no contexto de internacionalização da cultura ocidental e da organização dos organismos multilaterais, como a ONU, a Unesco, a OMC e outros. Introduziu também as inovações tecnológicas da computação e dos ambientes virtuais, das próteses urbanas enxertadas a partir de concepções de cultura globalizantes. Essa terceira revolução cultural não foi apenas europeia, se caracterizou por seu aspecto mundial. Foi o período no qual surgiu a noção de “Patrimônio Cultural da Humanidade”, responsável por uma profunda modificação na relação da sociedade com seus monumentos, históricos ou não. A existência de uma suposta cultura mundial, apoiada pelos grandes grupos de comunicações e pelas estratégias de marketing cultural, trouxe em seu bojo a planificação dessa mesma cultura, a perda de suas especificidades e dos valores que definiram a existência dos monumentos e monumentos históricos em sua evolução no tempo. A autora constata que as diferenças entre estes dois últimos são cada vez mais apagadas por essa nova concepção globalizante de cultura, e que ambos se mostram cada vez mais esvaziados de valor simbólico e participantes de ações de estilização urbana. Os edifícios e os processos de restauro, por sua vez, são cada vez mais frutos dos softwares, e o arquiteto limitou sua atividade à boa operação desses programas.
A autora não ignora a mercantilização desse patrimônio, que serve bem a estratégias políticas e empresariais de “responsabilidade social”. Tratado como um produto cultural, o patrimônio passa a ser um pastiche, ou uma casca sem conteúdo (p. 34-38). O esvaziamento simbólico do patrimônio foi acompanhado por um boom de consumo dos bens culturais. Cultura passou a ser sinônimo de entretenimento, e as políticas de preservação se aproximaram das de turismo, muitas vezes confundidas com elas. Assistiu-se a um processo de reconstrução de monumentos com a retirada das populações originais e a adequação a padrões cada vez mais homogêneos de visitação por pessoas de alto poder aquisitivo. Choay termina sua Introdução com duras críticas ao panorama descrito, e conclama não somente os estudiosos, mas sobretudo os cidadãos, à tomada de consciência do apagamento daquilo que caracteriza a vida humana no espaço, a diferença e a ação do próprio homem. Ela refuta as soluções padronizadas em assuntos de preservação do patrimônio edificado e recupera exemplos franceses, italianos e colombianos para mostrar que ainda é possível revitalizar sítios ouvindo a comunidade e pensando estratégias inusitadas para vencer o formalismo reinante na prática patrimonial. Ao mesmo tempo, exalta o Homo sapiens sapiens em detrimento do Homo protheticus, artificial, mecanizado e estanque.
A segunda parte do livro é constituída por 21 seleções de textos significativos para ilustrar a evolução apresentada pela autora em sua introdução. Os textos são precedidos de comentários explicativos, nos quais a obra do autor é contextualizada no tempo e no espaço em que foi produzida. Os autores selecionados são: Abade Suger, Poggio Bracciolini, Pio II Piccolomini, Baldassare Castiglione, Raffaello Sanzio, Leão X, Jacob Spon, Bernard de Montfaucon, Aubin-Louis Millin, Félix de Vicq D’azyr, Quatremère de Quincy, Victor Hugo, John Ruskin, Eugène Violet-Le-Duc, Karl Marx, Alöis Riegl, Gustavo Giovanoni, André Malraux, além de excertos da Carta de Atenas (1931), da Carta de Veneza (1964) e do documento resultante da Convenção pela Proteção do Patrimônio Mundial, organizada pela Unesco em 1975. Os textos são provenientes, em sua totalidade, da Europa, e a autora justifica a escolha pelo fato de se tratar de uma obra nascida dentro das salas de aula europeias, por mais que a problemática seja mundial. Na maioria dos textos as seleções privilegiam pontos considerados positivos. Os comentários críticos da autora se aprofundam na medida em que os textos vão se tornando contemporâneos. Dentre todos, os mais incisivos são os destinados às proposições de André Malraux, primeiro-ministro da Cultura francês e principal defensor da noção de “patrimônio cultural”, e às propostas da Convenção para a Proteção do Patrimônio Mundial, de 1975.
Choay explica que prefere combater por algo a combater contra algo. Seu combate é pela capacidade criadora, pela defesa da humanidade fundada na diferença, pela desmercantilização do patrimônio e a reapropriação dos bens imóveis legados pelo passado a partir de usos contemporâneos. Ela advoga a participação das comunidades locais, associações civis de moradores, em substituição ao modelo estatista de preservação dos monumentos, argumentando que somente os primeiros podem buscar soluções não artificiais, enraizadas espacial e temporalmente.
O historiador dedicado a trabalhos técnicos ou acadêmicos na área do patrimônio pode terminar o livro se perguntando sobre a ausência do patrimônio imaterial nas análises de Françoise Choay, o que não seria desmedido. Pelo menos desde o início do século XXI, uma noção mais antropológica passou a ser considerada, ainda que sua aplicabilidade seja restrita em diversos países, sendo o Brasil um desses exemplos. Porém, como já frisado no início do texto, as diferenças entre os olhares de historiadores e arquitetos são partes constitutivas do campo de pesquisa e trabalho aqui abordado. As provocações aguerridas de Françoise Choay em O patrimônio em questão: antologia para um combate fornecem armas poderosas a uma crítica consistente do processo de intervenção arbitrária ocorrido nas grandes cidades, inclusive as brasileiras, supostas “revitalizações” de espaços que na verdade não passam de uma mercantilização do patrimônio, uma estilização cultural urbana com a finalidade de entreter. Isso não seria aplicável também à proteção do patrimônio imaterial? Não padecemos hoje de um fascínio pelo retro, pelo vintage esvaziado de valor memorial e cheio de valor de troca? A cultura não vem sendo constantemente tratada por governos como mera organização de eventos? Nesse sentido, o livro de Françoise Choay é muito enriquecedor e pertinente. Ele cumpre com o propósito de atender a dois públicos distintos, de especialistas e leigos, incentivando ambos a pensar além da obra.
Agradecimentos
Esta resenha foi produzida como atividade da disciplina “Produção e circulação do conhecimento histórico nos periódicos científicos”, ministrada pela professora Regina Horta Duarte no Programa de Pós-Graduação em História da UFMG durante o primeiro semestre de 2013. Agradeço à professora e aos colegas pelas discussões que deram origem ao texto final.
Raul Amaro de Oliveira Lanari – Doutorando em história pela Universidade Federal de Minas Gerais, professor de história do Centro Universitário de Belo Horizonte. Belo Horizonte, MG, Brasil. E-mail: ralanari@gmail.com.
Pour une anthropologie de l’espace | Françoise Choay
Françoise Choay é bem conhecida do público brasileiro, por vários de seus livros e artigos já traduzidos para o português, como A regra e o modelo, ou a Alegoria do Patrimônio. Este livro, recém-publicado na França, não é exatamente uma obra nova, mas a coletânea de trabalhos esparsos e de difícil acesso, coligidos para a coleção La Couleur des Idées, da editora Seuil. Embora escritos ou publicados entre 1985 e 2005, seus textos apresentam uma incômoda atualidade.
A própria autora, em seu prefácio, chama a atenção para a heterogeneidade dos temas tratados, mas adverte, o que a leitura confirma, que seus textos possuem uma “dupla unidade de objeto e de tempo” (p. 7). Uma unidade de temas, pois para ela edifícios singulares e arquitetura, cidades e urbanismo, monumentos e conservação patrimonial, projetos icônicos e projeto político, são formas e práticas múltiplas de uma mesma e única atividade, “cujo desdobramento no espaço natural permite às sociedades humanas edificar o seu meio próprio” (pp. 7-8). E uma unidade temporal, não necessariamente de suas balizas cronológicas, que vão do século XV de Alberti ao século XXI do patrimônio mundial, mas do período no qual estão inseridos os textos escolhidos, que a autora afirma estar marcado por uma revolução eletro-telemática, ou informacional, de enorme impacto sobre a cidade, o urbanismo e o patrimônio.
O livro está dividido em quatro partes: História e Crítica, O Urbano, Patrimônio e Antropologia; ainda que sejamos advertidos que esta classificação é em parte arbitrária, e estes temas se entrecruzem constantemente. Justamente a antropologia, que dá título ao volume, dá uma unidade conceitual a estes textos aparentemente heterogêneos. A autora insiste nesta “função antropo-genética da espacialização” que, segundo ela, está totalmente ausente do debate sobre a arquitetura e o urbanismo, mesmo nos órgãos de administração ou na “praça pública”, unânimes em “celebrar o caráter lúdico e mediático de todas as ‘artes do espaço’, devotados “ao deus da moda e das finanças” (p. 10). Ou seja, Choay procura destacar o caráter não-natural da arquitetura e da produção de cidades, nos quais a política e a ação do homem são constitutivas, muito mais do que uma técnica pretensamente científica e neutra.
Sua primeira crítica é endereçada, então, a Le Corbusier, num texto que o coloca em perspectiva. Seu interesse não é tanto a obra de Le Corbusier, como um determinado aporte moderno sobre a arquitetura e a cidade, representada pelo arquiteto suíço. Tampouco são as carências técnicas de suas obras construídas, embora não deixe de apontá-las; mas demonstrar o que denomina “a dimensão retórica do funcionalismo corbusiano” (p. 16). Justamente porque esta dimensão retórica é o aspecto mais importante da obra do arquiteto, responsável pelo que Choay considera a sua incompreensão da condição antropológica da urbanização; ou mais claramente, a ausência de uma dimensão verdadeiramente urbana de seus projetos de metrópoles (p. 21). A dimensão polemista de seus textos, mais abundantes que sua obra construída, e sua recepção altamente midiática, seriam responsáveis pelo alcance de seu trabalho no pensamento urbanístico, a despeito de sua incompreensão da real dimensão da técnica na cidade, ao contrário dos esquecidos Ildefonso Cerdà, que Choay não se cansa de recuperar, e Gustavo Giovannoni, ou de Camillo Sitte, acusado pelo mesmo Jeanneret de passadista.
Apoiado numa ideologia progressista, Le Corbusier presume, assim, a universalidade das necessidades do homem, por isso a possibilidade de se construir as suas famosas “máquinas de morar” e “máquinas de habitar”; mais do que isso, “trata-se de conceber, para o homem universal, protótipos reprodutíveis de cidades e não mais apenas edifícios isolados” (p. 25). Trata-se de uma modernidade universalizante e “desumana”, destinada a um “homem teórico”, portanto inexistente (p. 36). Mas o arquiteto suíço não é o único representante desta ideologia progressista, composta de “imperativos categóricos, de paralogismos, de amálgamas terminológicos, de referências a saberes não dominados, de metáforas falaciosas”, cujos autores se instauram como “detentores e enunciadores da verdade arquitetônica e urbanística”; dos quais o mais talentoso, e midiático, é hoje Rem Koolhas (p. 115).
Falta-nos, para Choay, um discurso crítico e autocrítico, ou um “discurso epistemológico” sobre a cidade e a arquitetura, que ela encontra, por exemplo, em Alberti, daí a unidade de objeto de seu texto apesar da enorme distância temporal. Por isso a sua insistência no caráter não prescritivo do De Re Aedificatoria, cuja finalidade não é descrever os meios que permitam “realizar uma série de projetos concretos, nem de propor uma coleção de edifícios ideal-típicos, mas de fazer compreender a significação do ato construtivo” (p. 379). Tanto em Le Corbusier como em Alberti, a autora insiste em seu caráter retórico, que não significa obviamente apenas “discurso”, numa acepção de senso comum, mas de uma preceptiva do ato de construir, uma teoria da arquitetura e do urbanismo (p. 379). A diferença é que Alberti reconhece a dimensão antropológica da construção de cidades e da vida urbana.
Apesar de acusada, como Sitte e Giovannonni, de passadista, por sua defesa da cidade já construída e do patrimônio arquitetônico, que ela toma o cuidado de distinguir do patrimônio histórico, mais ligado aos “abusos de uma indústria mundializada e mundializante do patrimônio” (p. 319), e que não tem, necessariamente, um “estatuto antropológico” (p. 266), Choay chama a atenção para o que considera um grande anacronismo atual: denominar os espaços urbanos nos quais habitamos hoje pelo conceito arcaico de “cidade” (“Ville”: un archaïsme lexical, pp. 148-153). Deveríamos, assim, admitir o desaparecimento da cidade tradicional e interrogar-nos sobre “a natureza da urbanização e sobre a não-cidade que parece ter se tornado o destino das sociedades ocidentais avançadas” (p. 167); o que denomina, baseada em Melvin Webber, de era pós-urbana, título de um dos artigos citados deste autor (p. 200).
Para não deixar dúvidas quanto ao caráter não-passadista de sua obra, chega a sugerir até mesmo algumas demolições vistas como necessárias: da Biblioteca Nacional (ou ironicamente a Très Grand Bibliothèque), por seu “programa anacrônico, concepção anti-funcional, implantação absurda, e custo de funcionamento insano”, a Ópera da Bastilha e o Ministério das Finanças, por sua “desestruturação sem apelo do tecido circundante” e inutilidade (p. 304). Claro que, assim como Alberti, seu texto não é prescritivo, nem um manual de construção de cidades. Suas sugestões polêmicas e impossíveis, nestes casos citados, são muito mais um destaque sobre a forma como determinadas intervenções urbanas não levam em conta um conhecimento antropológico da cidade e do patrimônio e uma profunda incompreensão da significação do ato construtivo, que ela identifica na obra de Alberti. Um debate premente para o qual, infelizmente, possui poucos interlocutores.
Amilcar Torrão Filho – Pontifícia Universidade Católica de São Paulo.
CHOAY, Françoise. Pour une anthropologie de l’espace. Paris: Seuil, 2006. Resenha de: TORRÃO FILHO, Amilcar. Uma antropologia do espaço. Urbana. Campinas, v.2, n.1, 2007. Acessar publicação original [DR]