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O Brasil na Guerra Fria Cultural: o pós-guerra em releitura | Elizabeth Cancelli
O Brasil na Guerra Fria Cultural: o pós-guerra em releitura, da historiadora do Departamento de História da Universidade de São Paulo, Elizabeth Cancelli, é realização de uma década de sólida pesquisa de documentos inéditos em arquivos do Brasil e dos Estados Unidos. Esforço que já resultou, entre trabalhos publicados no país e no exterior, no livro O Brasil e os outros: o poder das ideias (CANCELLI, 2012).
Neste novo lançamento, a autora aprofunda um tópico de investigação persistente na sua obra recente. Mais amiúde, as finalidades e o percurso de construção, durante a Guerra Fria, de três lugares-comuns da historiografia sobre o Brasil República, que são, além disso, também temas duradouros de nossa tradição de pensamento político: primeiramente, o exotismo brasileiro no interior da modernidade ocidental, tema através do qual vem sendo preenchidas de conteúdos as noções de “falta”, de “atraso” e de “subdesenvolvimento” nacional; em segundo, a defesa, para sanar essa condição de “minoridade” internacional do Brasil, de um ideal de missão intelectual cuja tarefa seja a adequação do país e do brasileiro a padrões hegemônicos de vida social e econômica; em terceiro, o destaque, nessas propostas de alinhamento, à acelerada transformação do Homem, equilibrada através da estabilidade da vida política e das esferas de poder. Leia Mais
O Brasil na Guerra Fria Cultural – CANCELLI (H-Unesp)
Quadrinhos e Guerra Fria/falauniversidade.com.br
CANCELLI, Elizabeth. O Brasil na Guerra Fria Cultural: o pós-guerra em releitura. São Paulo: Intermeios, 2018. 182p. Resenha de: CATTAI, Júlio Barnez Pignata; CHAVES, Wanderson da Silva; Brasil de exotismo, minoridade e alinhamento: por uma contra-proposta historiográfica. História v.39 Assis/Franca, 2020.
O Brasil na Guerra Fria Cultural: o pós-guerra em releitura, da historiadora do Departamento de História da Universidade de São Paulo, Elizabeth Cancelli, é realização de uma década de sólida pesquisa de documentos inéditos em arquivos do Brasil e dos Estados Unidos. Esforço que já resultou, entre trabalhos publicados no país e no exterior, no livro O Brasil e os outros: o poder das ideias (CANCELLI, 2012).
Neste novo lançamento, a autora aprofunda um tópico de investigação persistente na sua obra recente. Mais amiúde, as finalidades e o percurso de construção, durante a Guerra Fria, de três lugares-comuns da historiografia sobre o Brasil República, que são, além disso, também temas duradouros de nossa tradição de pensamento político: primeiramente, o exotismo brasileiro no interior da modernidade ocidental, tema através do qual vem sendo preenchidas de conteúdos as noções de “falta”, de “atraso” e de “subdesenvolvimento” nacional; em segundo, a defesa, para sanar essa condição de “minoridade” internacional do Brasil, de um ideal de missão intelectual cuja tarefa seja a adequação do país e do brasileiro a padrões hegemônicos de vida social e econômica; em terceiro, o destaque, nessas propostas de alinhamento, à acelerada transformação do Homem, equilibrada através da estabilidade da vida política e das esferas de poder.
Segundo Elizabeth Cancelli, o advento da Guerra Fria trouxe consigo um novo e sofisticado sistema de agendamento da vida pública, alimentando e sendo alimentado por estes três lugares-comuns, base de um eloquente sentimento de privação civilizatória. A formação desse sistema, em suas características de inovação e propostas de mudança, vistas em O Brasil na Guerra Fria Cultural, especialmente através do seu desenvolvimento na frente norte-americana, seria um tema negado e ausente da historiografia brasileira, para Cancelli, porque o debate temático se estrutura, de certa forma, de ponta-a-cabeça. As memórias individuais formam a principal base do arquivo material de época e a aposta teórica, na fluidez entre História e memória, operam conjuntamente uma típica inversão do processo analítico: a História protege a memória de revelar-se além de seus sintomas e, com esse suporte, que traz atributos de legitimidade, temos a propriedade de certas memórias recordadas sendo transformadas em “verdade”. Ela diz, especialmente na “Introdução” e nas “Considerações Finais” do livro, que são casos exemplares dessa inversão a Era Vargas e a ditadura instaurada com o golpe de 1964: o primeiro período é recordado na literatura privilegiando o projeto nacional de Getúlio, obliterando-se, no elogio a esse projeto, a violência que era a premissa do seu regime de modernização totalitário; em relação à ditadura de 1964, é justamente na violência que se funda, de forma quase exclusiva, a reflexão intelectual, de modo que a vida institucional do regime, do qual floresceu nossa “Nova República”, acaba soterrada em sua diversidade de problemáticas por aquilo que Cancelli chama de “a exaltação da memória espetáculo”. Para a historiadora, trata-se da tendência de a escrita da história sobre o período, encapsulada por uma rememoração “ressentida” de imagens de horror, tortura e desaparecimento, prender-se a uma dimensão sentimental e normativa de fala, transmissão e investigação, produzindo limites de compreensão, assim como de superação de problemas. Naturalmente, há no “ressentir” uma fragilidade de elaboração psíquica e política que resulta, à título de realização da justiça, na exortação e nomeação de certos heróis e vilões. O trabalho historiográfico deve, inclusive para fazer justiça à memória própria ao ressentimento, investir contra seus mecanismos de obliteração.
Para a autora, as idiossincrasias do eu testemunhal tendem a aprisionar a História no interior de dogmas e de fantasias pessoais – conforme a análise, inspirada em Jacques Derrida, de Elisabeth Roudinesco (2006), em A análise e o Arquivo – quanto maior for a escassez documental. A solução, portanto, viria da formação de um arquivo que indique, a contrapelo, no interior de instituições e projetos, justamente as formas e avatares de constituição desse sujeito, narrador da História. As fontes desse arquivo de pesquisa foram formadas, grosso modo, do material do Escritório de Assuntos Culturais do Departamento de Estado Norte-Americano, do National Achives and Records Administration (NARA); da documentação do Congresso pela Liberdade da Cultura (CCF) e do Instituto Latino Americano de Relações Internacionais (ILARI), duas frentes da Agência Central de Inteligência (CIA), arquivada na Biblioteca da Universidade de Chicago; dos documentos dos programas de patrocínio da Fundação Ford às Ciências Sociais, do Rockefeller Archive Center (RAC); e dos fundos relativos ao Instituto de Pesquisa e Estudos Sociais (IPES), think tank que se tornou fundamental para o golpe de 1964 e para o projeto do seu regime, guardadas no Arquivo Nacional. O Brasil na Guerra Fria Cultural beneficiou-se tanto da busca por novo material nesses arquivos quanto da opção por uma noção ampliada de fonte, na qual buscou-se abordar toda a produção bibliográfica temática também como documento. Assim, Cancelli mergulhou, no que concerne à produção intelectual, na releitura de trabalhos fundamentais do pensamento social, considerando, via desconstrução, os argumentos, lugar e posição de onde falam cientistas políticos como Samuel Huntington e Zbgniew Brzezinski, o pensador protestante Reinhold Niebuhr, os cientistas sociais Fernando Henrique Cardoso, Guilherme O’Donnell e Seymour Martin Lipset, dentre outros autores decisivos.
Atravessam o livro duas premissas de trabalho: é transnacional a dimensão de produção da história do Brasil e trata-se, a Guerra Fria, de um confronto entre distintos princípios ideológicos e de modelos de mudança. Estas premissas são tratadas mais detidamente nos capítulos 1 e 2, respectivamente, “A Guerra Fria Cultural no Brasil, a CIA e uma agenda antitotalitária” e “O ILARI, o Congresso pela Liberdade da Cultura e a construção de uma agenda para as Ciências Sociais”. Ali, a historiadora aborda a consolidação, sob a liderança norte-americana, de um consenso entre seus aliados sobre como o sucesso de pressões militares, diplomáticas e econômicas da Guerra Fria deveria ser obtido, antes e sempre, na arena das ideias do combate por “corações e mentes”. Isso orientou, na colaboração entre políticas oficiais de Estado e de organizações norte-americanas, para a sustentação de agendas de longa duração, centradas na formação e arregimentação de elites políticas, técnicas e intelectuais, das quais foram exemplares, justamente, o CCF e o ILARI. Eram realizados nestes órgãos, de forma modelar, investimentos, geralmente secretos, na promoção das ideias de desenvolvimento, modernização, democracia, liberdade e justiça social do “centro liberal”, a tendência política que se tornara um importante proponente da ofensiva que se convencionou chamar de cultural cold war.
Para esses proponentes, como o historiador da Universidade de Harvard, Arthur M. Schlesinger Jr, intelectual importante na administração de John F. Kennedy, países como o Brasil vivenciariam, no desenvolvimento econômico, industrial e urbano, uma via única rumo à consolidação gradual e pacífica da democracia. CCF e ILARI, neste sentido, eram parte de uma estratégia global na qual buscara se instituir, em lugares como o Brasil, uma agenda de trabalho focado na estruturação das Ciências Sociais como tecnologias de reforma social. Assim, através de uma ampla programação de pesquisas empíricas, as Ciências Sociais pretendiam projetar a criação de alternativas às teorias marxistas, apostando na formação de modernas “classes sociais” e na aceitação, em nome da estabilidade, das premissas de um Estado de Bem-Estar Social. O debate de questões raciais e, no Brasil, do “lugar do negro na sociedade de classes”, viria a ser, por exemplo, profundamente influenciado pela preocupação dessas políticas com o potencial explosivo do racismo para a administração das democracias modernas.
Grupos “conservadores”, como o representado pelo cientista político de Harvard, Samuel Huntington, também apostavam nessa intervenção política global e de apoio às Ciências Sociais, mas sustentando, diferentemente do “centro liberal”, que a modernização preconizada por eles geraria instabilidade política e pressão sobre as instituições, na medida em que produziria maior complexidade social e, por isso, pressão sobre a partilha do poder e da participação no governo. As propostas da orientação “conservadora”, tratadas principalmente nos capítulos 3 e 4, respectivamente, “O golpe de 1964 e sua construção antitotalitária: âncoras teóricas e redes intelectuais” e “Modernização, democracia e totalitarismo: teses de transição democrática”, estavam alicerçadas, para Cancelli, no preceito de que toda mudança, especialmente em nações consideradas “sem tradição democrática”, como o Brasil, corriam o risco de enveredarem pelo totalitarismo sempre que houvesse ameaça de ruptura institucional.
Segundo a historiadora, o golpe de 1964 e seu regime partiram de uma premissa “antitotalitária”, da qual o “centro liberal” também partilhava, que significava um acordo sobre o perigo da politização das “massas”, representada especialmente pelo “totalitarismo não derrotado”, o comunismo, e na contraposição que este, como qualquer proposta totalitária, representaria para as proposições ocidentais de democracia liberal, cristianismo, direitos humanos e justiça social. Mas, para pensadores como Huntington, o caminho para a democratização seria, em países como o Brasil, no máximo, elíptico, pois dependeria de um regime de “transição” que alternaria, necessariamente, para gerar estabilidade e acomodação de forças sociais emergentes, momentos de “compressão” e de “descompressão” política.
O “antitotalitarismo” ofereceria um guarda-chuva de estratégias de mudança, em particular, para o mundo pós-colonial africano e asiático e para os países “subdesenvolvidos” da América Latina, contornando, assim, quaisquer propostas de ruptura da ordem, combatidas como sendo “totalitárias”. Se as “teorias de modernização”, na frente antitotalitária, preconizavam o desenvolvimento econômico, na elevação das condições materiais de vida, como requisito de formação das instituições da democracia, tal como na proposição da Aliança para o Progresso, de que houvesse, ainda que anticomunista, a formação de uma liderança latino-americana progressista e moderada para a pacificação de conflitos sociais, nesta mesma frente, as teorias de “desenvolvimento político” preconizavam quase o inverso: o “fortalecimento das instituições” como princípio indutor de um ambiente “democrático” e de desenvolvimento econômico. A historiadora, na linha do que transmitira René A. Dreifuss (1987), demonstra como o IPES, além do trabalho conspiratório contra a administração de João Goulart, atuava, articulado às premissas antitotalitárias, como verdadeira agência de inteligência da ditadura. O IPES dava orientação a uma proposta de modernização que se constituía em diálogo com premissas huntingtonianas de segurança e estabilidade, isto é, a mudança, para eles, deveria se dar contra o desequilíbrio entre governo e governados, para que quaisquer transformações assumissem, via contínua aglutinação de forças políticas, uma sedimentação institucional que produzisse formas próprias de “transição”.
Samuel Huntington veio diversas vezes ao Brasil para o aconselhamento de lideranças fundamentais do regime, como Ernesto Geisel e Golbery do Couto e Silva, e divulgava suas proposições do “desenvolvimento político” junto a um novíssimo campo disciplinar de Ciência Política no país que a Fundação Ford vinha patrocinando. O cientista político de Harvard trazia, assim, ao debate acadêmico e à aplicação, pelas políticas de Estado, a importância de instrumentos de “compressão” e “descompressão”, que logo viriam a ter um uso específico na aplicação dos Atos Institucionais (AIs) da ditadura. A promulgação da Emenda Constitucional n.º 1, de 1969, que devolvera “a ordem legal ao domínio da Constituição”, marcaria o fim da estratégia de “compressão” pretendida com os AIs, para dar início a um debate sobre a tomada de medidas de “descompressão”. Ou seja, acerca de propostas de “abertura” na qual a assimilação de novos atores políticos, que a própria modernização da sociedade criara ou pusera em movimento, se desse no cálculo do equilíbrio entre as liberdades e as restrições a elas, tendo-se em vista, por princípio, a segurança e a estabilidade. Cancelli revela, nessa análise, que a leitura que capturou o discurso historiográfico, da disputa entre “duros” e “moderados” como sendo estruturante do governo realizado pela ditadura, trata-se, antes, de uma tipologia oriunda do trabalho de Huntington, com a qual pretendera-se criar, ora uma justificativa para a “compressão”, ora para a “descompressão”, fazendo emergir ou submergir grupos e projetos de poder, de acordo com a análise do que, em cada momento, configurava melhor a governabilidade e o que, dentro e fora do regime, representava o risco de rompimento da ordem.
O livro, em um diálogo da historiadora com uma nova produção de especialistas norte-americanos e europeus, vai de encontro às visões, não exclusivas de teorias das relações internacionais, nas quais se naturaliza a existência de práticas de “soft power” e de “hard power”, isto é, de separação entre o exercício do poder político-militar do ideológico e cultural, pois, segundo Elizabeth Cancelli, essa distinção, falha factualmente, é contraproducente analiticamente em relação ao fenômeno da “Guerra Fria Cultural” e de suas estratégias de persuasão, penetração política e dominação, objeto de suas pesquisas. O livro, se convida à um aprofundamento analítico além do sintoma, obriga o leitor e a leitora a considerar, por isso mesmo, como a nova configuração política dos anos 1970 pode ter sido orientada, no Brasil, na sua guinada para uma defesa dos direitos humanos e retorno à legalidade do Estado de Direito, menos por uma esquerda, que buscava reinventar-se frente ao esmagamento da luta armada, e mais por uma proposta dos EUA para a Guerra Fria, com a qual se pretendeu novas formas de engajamento político, em propostas de modernização que vinham renovar e substituir uma perspectiva tecnocrática e “amoral” de desenvolvimento das sociedades que tanto naufragara no Vietnã quanto quase implodira a própria sociedade norte-americana.
O Brasil na Guerra Fria Cultural encaminha ainda duas questões sobre a transmissão e os usos da história do Brasil, sublinhando, nas justificativas colocadas à guisa de legitimidade dos discursos políticos: a) a persistente submissão dos meios aos fins, em propostas que, em nome de desenvolvimento e melhoria das condições sociais, soterram ou rebaixam a expansão das liberdades e da esfera pública; e b) a sustentação, nas agendas de “transição ”, de certa inaptidão democrática do país, indefinidamente colocado como incapaz de realizar-se senão como uma demanda feita ao futuro.
Para Elizabeth Cancelli, trata-se de uma captura pela máxima tocquevilleana, na qual se perguntava: “poderia a América do Sul (e o Brasil, por suposto) suportar a democracia?” Como O Brasil na Guerra Fria Cultural o demonstra, esta dúvida, uma velha novidade, é hoje nosso principal projeto de país.
REFERÊNCIAS
CANCELLI, Elizabeth. O Brasil e os outros: o poder das ideias. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2012. [ Links ]
DREIFUSS, René Armand. 1964: a conquista do Estado: ação política, poder e golpe de classe. 5a. ed. Petrópolis: Vozes, 1987. [ Links ]
ROUDINESCO, Elisabeth. Análise e o arquivo. Trad. André Telles. Rio de Janeiro: Zahar, 2006. [ Links ]
Blacks Against Empire: The History and Politics of the Black Panther Party – BLOOM; MARTIN JR (Topoi)
BLOOM, Joshua; MARTIN JÚNIOR, Waldo E. Blacks Against Empire: The History and Politics of the Black Panther Party. Berkeley e Los Angeles. University of California Press, 2013. 540p. Resenha de: CHAVES, Wanderson da Silva. O Partido dos Panteras Negras. Topoi v.16 n.30 Rio de Janeiro Jan./June 2015.
Poucos aspectos da história norte-americana do pós-guerra são tão opacos quanto a história do Partido dos Panteras Negras. Sua vertiginosa trajetória de ascensão e queda, entre 1967 e 1971 – e encerramento definitivo das atividades, em 1982, de forma praticamente anônima – vem sendo disputada e fixada por duas narrativas principais, publicamente ainda em disputa, mas que, entretanto, discursivamente tendem a se encontrar. A sustentada pelo Federal Bureau of Investigation (FBI), mais conhecida por ser a adotada na cobertura jornalística nos EUA desde então, associa ao Partido um programa racista, fascista, sectário e separatista, que justificaria, em razão de ameaças à segurança nacional, a campanha de época pela destruição dos Panteras. A outra narrativa, calcada na fortuna crítica dos chamados “estudos afro-americanos”, e sustentada principalmente pela militância e organizações do nacionalismo negro, vincula o Partido a um projeto de busca da unidade e do orgulho racial, característicos da negritude. O mérito de Blacks Against Empire reside justamente na desconstrução destes dois lugares-comuns. Reconstrói-se, ao longo do livro, a lógica de atuação do Partido a partir de suas principais tensões e ambiguidades: embora decisivas para o programa partidário, essas particularidades eram categoricamente ignoradas no trabalho de memória, e na historiografia.
O trabalho de Joshua Bloom, sociólogo da UCLA, e Waldo E. Martin Jr., historiador da Universidade da Califórnia em Berkeley, e autor experiente – com publicações sobre escravidão, racismo, direitos civis e movimentos sociais – foi árduo. O livro começou a ser escrito em 2000, e no seu curso, mobilizou cerca de 50 pesquisadores e colaboradores diretos, reunindo mais de 12 mil páginas de documentos raros e inéditos, hoje, integrados aos acervos da Biblioteca de Estudos Étnicos e à Bancroft Library, de Berkeley. Quatorze teses acadêmicas foram desenvolvidas sob a cobertura desse projeto, que estendeu sua pesquisa a arquivos nacionais e internacionais, privados e governamentais, e retomou, por meio de entrevistas, e um sério esforço de certificação documental, a massa de testemunhos, memórias e autobiografias que ainda são a principal fonte bibliográfica sobre o Partido e para boa parte das organizações civis dos EUA dos anos 1960 e 1970.
O resultado desse empreendimento: uma boa narrativa factual, comparada ao desastre historiográfico das duas tendências da literatura temática, e que coloca imediatamente questões inquietantes; particularmente, a de que os Panteras Negras, não apenas retoricamente, mas em agenda e estratégias, buscaram ser radical e efetivamente antirracistas.
Comparado às organizações do Movimento dos Direitos Civis dos anos 1960, o Partido parece ter ido fundo e longe: tornaram-se uma organização nacional com forte presença nos grandes centros urbanos, e agindo, principalmente, fora do Deep South e da sua rede de organizações religiosas, estudantis e profissionais negras. O projeto de Martin Luther King Jr., para os anos 1960, de que sindicatos, igrejas e o mainstream liberal colaborassem nas reformas econômicas, sociais e políticas destinadas à definitiva dessegregação – a integração de todos à projetada beloved community – obteve pouco suporte fora das suas bases tradicionais, a classe média negra, e simpatizantes progressistas do Norte. Os colaboradores que não responderam à conclamação de King, todavia, não fizeram falta ao arco de alianças construído pelos Panteras. Profundo conhecedor da organização, o FBI sabia que seu projeto de desmantelamento do Partido passava principalmente por ações de dissuasão aplicadas aos aliados: os órgãos da chamada Nova Esquerda, particularmente os envolvidos na luta contra a Guerra do Vietnã; os “negros moderados”, rescaldo do Movimento dos Direitos Civis; governos de Estados comunistas ou não alinhados; e lideranças, associações e igrejas baseadas nas periferias das cidades, não apenas nos bairros negros. A estratégia: diplomaticamente, romper o suporte internacional; e com medidas policiais secretas, minar as pontes entre os diversos segmentos de classe da comunidade negra, bem como as conexões “inter-raciais”, que eram o grande patrimônio político do Partido.
Os Panteras Negras não eram secessionistas, nem partidários da negritude como projeto, embora a reivindicação à herança de Malcolm X – que era uma meta partidária importante, particularmente o chamado à luta por “todos os meios necessários” contra o Estado e a polícia – tenha sido central para a sua atuação. Com relação a programas, nada de decisivo opôs o Partido à proposta de integração, que caracterizava a agenda pública de King. Curiosamente, ela seguia no sentido do seu aprofundamento, ao destacar mudanças estruturais para destruir – e não apenas reformar – dinâmicas raciais, como condição para tornar os direitos civis realmente efetivos. A diferença em relação a King, sempre afirmada com muita ênfase, era tática: contra a resistência não violenta, advogava-se a autodefesa armada, e, ainda que nunca de forma consensual e programática, também o enfrentamento armado ao Estado como parte da sua atribuída vocação de partido revolucionário. O FBI explorou publicamente essa escolha tática como uma aberta declaração de guerra. E com uma massiva campanha de infiltração, sabotagem e extermínio, na qual buscou vincular o Partido a falsas ações, defrontou os Panteras Negras intermitentemente aos dilemas estratégicos e éticos da instrumentalização política da violência.
A resposta dos autores à historiografia – que concede grande relevância às leituras policiais, ao heroísmo dos testemunhos, e aos atuais Movimentos Negros, que se pretendem herdeiros políticos do Partido – foi estritamente documental. Nela, há um esforço em distinguir as ações secretas de Estado das realizadas pelos Panteras, e em separar a agenda e atuação do Partido daquela das organizações raciais negras, posto que essa diferença tornou-se mais que retórica – tornou-se programática. E compreende-se bem ao longo do livro o porquê.
Fundado em 1966, o Partido dos Panteras Negras era, inicialmente, uma milícia armada, formada integralmente por homens, que atuava na região de Oakland, Califórnia. Suas principais atividades eram o monitoramento da polícia, via obstrução e denúncia da violência dos órgãos de segurança, e a intimidação – física e através de boicotes e mobilizações públicas – de denunciados de racismo e infração aos direitos civis. Os marcos dessa atuação eram inusitadamente legais. Segundo leis estaduais da época, o porte e o transporte de armas carregadas, em locais públicos ou veículos, eram permitidos se o armamento estivesse devidamente exposto, e fora de posição de tiro. Acompanhar ações policiais também era permitido, desde que mantida distância. Huey Newton e Bobby Seale, estudantes de direito, e membros fundadores do Partido, fizeram essa descoberta legal, e nela apoiaram a aplicação da autodefesa armada para além da situação – a invasão de residências sem mandado judicial – que primeiro havia mobilizado seus esforços.
Até 1967, o Partido era mais uma unidade, dentre várias outras, espalhadas pelos EUA, surgidas simultaneamente nessa época, que se autointitulavam Panteras Negras. Todas elas atendiam a um chamamento comum. Usando o animal símbolo do Lowndes County Freedom Organization (LCFO), organização política que o Students Non-Violent Coordinating Committee (SNCC) pretendia transformar em partido no Alabama, os Panteras de Oakland eram mais um grupo que buscava dar forma política ao slogan “Black Power”, de Stokely Carmichael, líder do SNCC. Então, pouco conhecido fora do norte da Califórnia, o grupo de Newton, Seale e do jornalista de Ramparts, Eldridge Cleaver, por volta de outubro de 1968, já havia rapidamente unificado em torno da sua liderança todos os grupos de Panteras, aproximado e emparedado vários setores da esquerda norte-americana, estabelecido uma publicação oficial com tiragem de massa, reunido um orçamento anual milionário, angariado suporte internacional, e dominado o debate pela definição dos sentidos do Poder Negro. Essa ascensão, que se alicerçou na atração dos jovens mobilizados nos confrontos raciais na era dos assassinatos de Malcolm X (1965) e King (1968), foi alcançada com dramáticas e bem-sucedidas ações públicas, e após duras disputas interorganizacionais e partidárias.
Em razão de suas opções táticas, Newton, Seale e Eldridge Cleaver consideravam o Partido o único capaz de exercer algum esforço de politização sobre a massa de jovens negros que escolheu a violência. E graças ao perfil da sua liderança, os únicos que poderiam atrair identificação imediata. De fato, um histórico de pobreza, bom treinamento militar prévio, passagens por prisões, eventuais aproximações ao Nation of Islam (NOI) e um sério esforço de formação intelectual os assemelhava a parte considerável da militância que ingressou nas cerca de 80 sucursais que os Panteras chegaram a ter no país. Inicialmente, o Partido espelhou a retórica racialista e nacionalista que emergiu nos confrontos e protestos, mas das suas proclamações, na qual se declarava vanguarda partidária do “exército de libertação negro”, dificilmente se poderia obter uma agenda nacionalista. Discursivamente difusa, e muito dependente da eficácia performativa das ações e da sua poderosa iconografia, suas metas nem sempre óbvias eram a liberação do racismo, o combate à polícia, a autogestão comunitária e a união tática dos negros como estágio preliminar e preparatório da luta “anticolonial” contra o Estado norte-americano a ser lançada.
Os Panteras eram a mais literalmente “fanonista” dentre as organizações de base negra dos EUA, vinculação que foi pouco destacada pelos próprios autores. Isto significava uma aposta no programa de luta armada exposto em Os condenados da terra (1961), em que se apelava à violência como força liberadora pessoal e militar do domínio colonial. Esse potencial de transgressão, pensado para se dirigir contra o “exército doméstico de ocupação” que seria a polícia, era dirigido também contra o que era considerado, pelo Partido, o grande “maniqueísmo colonial” a ser revertido – a raça. Embora a liderança dos Panteras Negras tivesse bom domínio da literatura marxista e dos textos políticos de Che, Mao e Lênin que fizeram carreira naquela época, era Fanon a principal ferramenta do Partido no rechaço às organizações cujo programa fosse “antibranco” ou que pretendessem disciplinar sua atuação. Por uma ou por ambas as razões, o SNCC, o Congress for Racial Equality (CORE), o braço político do NOI, o Revolutionary Action Movement (RAM) e o Partido Comunista dos Estados Unidos foram asperamente repelidos.
Após o estabelecimento de restrições legais ao uso de armas, em 1969, os Panteras se orientam para a montagem, nas suas sucursais, de clínicas médicas, refeitórios, cursos de formação política e escolas primárias, entre outras iniciativas cujo fim declarado era estabelecer a gratuidade, socialização, criação e a autogestão de serviços públicos dentro das comunidades negras. Sustentada por grande suporte e participação voluntária, a iniciativa afetou o War on Poverty, grande programa federal de reforma urbana, terceirizado para empresas, fundações, igrejas e organizações negras. Publicamente, a política social de governo era ferida, na comparação, por sua atribuída timidez, inoperância e racismo. A essa reorientação, na qual o Partido transferiu para sua liderança “civil” a condução da maioria das ações, coincidiu curiosamente uma brutal ofensiva policial, na qual se prendeu ou executou os principais quadros dos Panteras Negras, sucessivamente, cidade a cidade.
Esse momento também coincidia com a construção de uma sólida aliança do Partido com os movimentos contra a Guerra do Vietnã, da qual os dois segmentos se consideraram beneficiados. Orientando-se parcialmente pelas mudanças no discurso público dos Panteras, os grupos predominantemente estudantis, envolvidos nos protestos, foram acrescentando uma retórica anti-imperialista, e depois, crescentemente antifascista e anticapitalista, a seu próprio discurso antiguerra, inicialmente ligado ao pacifismo dos objetores de consciência. Essa conexão temática veio acompanhada de grande produtividade organizacional. Com apoio do Partido, são criadas, em comunidades de população hispânica, asiática, indígena e de “brancos pobres”, organizações similares às dos Panteras. Apoiados principalmente nestes novos grupos, e com suporte de aliados que incluíam igrejas, ativistas gays e feministas e grupos antirracistas, os Panteras Negras criaram o Comitê Nacional de Combate ao Fascismo, sem restrições de filiação. A emergência do que se designou, por esse comitê, de “Coalizão Arco-Íris”, funcionou como uma correia de transmissão circular: cada grupo assumia sua pauta particular no esforço conjunto de oposição à Guerra no Vietnã, no coletivo de lutas liberatórias globais e domésticas, e na resistência à ofensiva policial.
O FBI mudou sua estratégia de combate aos Panteras em 1971. Naquele momento, embora não contasse com boa parte de seus quadros políticos, já presos, mortos ou exilados, o Partido atingiu seu auge de expansão, filiação e influência. Em um dos pontos altos do livro, Bloom e Martin Jr. descrevem como o Federal Bureau of Investigation, respondendo à guinada do governo Nixon, desarticulou a rede de apoiadores dos Panteras Negras e iniciou o seu declínio. Do isolamento que se produziu, seguiu-se a exposição de diferenças políticas e temáticas, contradições retóricas e tensões internas e com aliados que rapidamente tornaram o Partido politicamente insignificante.
Diplomaticamente, o compromisso de Nixon com a gradual retirada das tropas do Vietnã, o restabelecimento de relações com China e Argélia e a conclusão da maioria das lutas de libertação nacional na África desmobilizou as organizações estudantis antiguerra e inibiu o apoio internacional aos Panteras. Dava-se fim à pauta “anti-imperial” comum. Com a universalização das cotas raciais como política de Estado, bem como a ampla reforma universitária, que tornou os chamados “estudos afro-americanos” item curricular obrigatório, normalmente com dotação orçamentária e suporte departamental próprios, o governo Republicano capturou a atenção e conquistou a confiança da maioria dos aliados dos Panteras nas universidades e entre as classes médias. Alianças e acomodações políticas são estabelecidas com estes setores: após terem sido expelidos ou hostilizados pelo Partido, a velha guarda do Movimento dos Direitos Civis e as jovens organizações negras assumem, já dentro do governo, a implantação dessas medidas que se tornariam, mais que a retomada das políticas sociais de Lyndon B. Johnson, o início da gestação do multiculturalismo como proposta de ordem.
O faccionalismo também destruiu os Panteras. A liderança do Partido, quando desafiada a iniciar a prometida luta armada pela facção – depois conhecida por – Black Liberation Army, optou por tentar preservar aliados politicamente moderados, especialmente entre seus principais patrocinadores. Huey Newton, que então se deslocava para o centro da máquina democrata na Califórnia, e para a gestão de programas de assistência comunitária em nada diferentes daqueles que já vinham sendo realizados nas várias instâncias de governo, desmilitarizou a imagem da organização, abandonou a retórica revolucionária, promoveu expurgos e estabeleceu uma rígida estrutura burocrática de mando. Além disso, estreitou laços com pequenas máfias do submundo de Oakland, dinâmica de despolitização que acabou por afastar, sobretudo, aos aliados e rede de contatos entre a Nova Esquerda. Feministas e gays externos às comunidades negras já haviam retirado seu apoio antes disso, em razão do persistente sexismo que supostamente se definia como traço da atuação dos Panteras.
Desbaratados por sucessivos raids policiais, mais duradouros que sua real relevância, as cisões civis ou armadas do Partido perderam rapidamente, após 1973, a consistência programática que caracterizara sua existência anterior, como pretendida organização de massa. Assim, embevecidos e guiados apenas pelo heroísmo, os membros remanescentes, reduzidos ao terrorismo ou ao gangsterismo, deixaram de existir formalmente como grupo.
Embora tantas referências icônicas dos Panteras, desde a saudação de punhos erguidos à sua particular articulação dos imperativos do Black is beautiful – mais orgulhosa exposição de signos corporais que pesquisa de africanismos – povoem a moda, a cultura pop e o panteão de referências de inúmeros grupos políticos, ninguém seria capaz de reivindicar o espólio deles. Falando principalmente dos Estados Unidos, os autores argumentam que se deve recusar ver qualquer continuidade exatamente onde ela é mais mencionada e reivindicada: entre os advogados da chamada thug life, presentes nas expressões dominantes do rap contemporâneo; e entre os ativistas das políticas raciais de Estado. Os argumentos de Bloom e Martin Jr. me convencem de que estes já seriam outra história, pois suas agendas e métodos eram não apenas diferentes: por defenderem, do centro do espectro político, sobretudo propostas de reforma e reordenamento da ordem racial, suas posições seriam adversárias à posição antirracista, às lutas antiestatais e às táticas de recrutamento e politização do lúmpen criminal que os Panteras praticaram.
Com cuidadoso uso de documentação e crítica aos testemunhos, Blacks Against Empire ajuda a esclarecer o complexo trabalho de memória – que também é esquecimento e encobrimento – que atualmente sustenta (pode-se dizer, também no Brasil) a gestação de políticas ditas antirracistas. Embora não seja evidente, a definição do perfil da ordem democrática como ligado, não à Questão Política (liberdades), mas à resolução da Questão Social (compensação, reparação), envolve, de variadas formas, a história de malogro e sucesso de pessoas como os Panteras.
Wanderson da Silva Chaves – Doutor em História Social pela Universidade de São Paulo (USP), pesquisador do Grupo de Estudos sobre Guerra Fria (USP). São Paulo, SP, Brasil. E-mail: wanderson_schaves@yahoo.com.br