Foucault e a crítica da verdade – CANDIOTTO (RFA)

CANDIOTTO, Cesar. Foucault e a crítica da verdade. Belo Horizonte: Autêntica; Curitiba: Champagnat, 2010. Resenha de: STAPAZZOLI JUNIOR, Fred Mendes. Revista de Filosofia Aurora, Curitiba, v.23, n.33, p.567-570, jul./dez, 2011.

E tentou nos advertir o autor, Cesar Candiotto, nas páginas finais de seu Foucault e a crítica da verdade:

[…] o trabalho intelectual de Michel Foucault é indissociável de suas práticas, de seus engajamentos nas lutas locais, de sua crítica às tecnologias institucionais postas em funcionamento no mundo ocidental, de sua aversão às morais de estado-civil e assim por diante. A esse respeito, o presente trabalho prescindiu da biografia do filósofo, embora se saiba que suas práticas nutriam suas formulações teóricas e vice-versa. Seja ressaltado, contudo, que a única coerência que ele reivindica para si próprio é a coerência de sua vida. Jamais Foucault procurou se identificar com as lutas das quais participou, dos movimentos que apoiou, pois temia ser localizado pelas identificações do poder (CANDIOTTO, 2010, p.167, grifo nosso).

Há mais explícita grafia de um bíos nessas linhas que se leem? Tal qual o poder nesse autor – uma ficção, uma abstração entre no mínimo dois que resistem, passível de apreensão em seus efeitos germinais –, eis uma versão da biografia, e neste momento não nos preocupamos com o sentido que talvez o beletrista empreste a esse último termo. Do contrário, parece-nos que o trabalho de Candiotto não prescinde dessa relação inextricável entre vida e obra que aos leitores de Foucault tomam relevo em todo instante de retorno ao texto desse pensador – pelo menos aqueles que se suspendem do “lugar comum” (CANDIOTTO, 2010, p.15).

Na leitura de cada linha dessa versão da crítica da verdade, algo da ordem do inapreensível se extrai. É como um corpo que desaparece e na sua ausência resiste e permanece vivo; um traço presente, uma marca; um registro indelével. É como o fim do romance. Quem já o viveu algum dia conhece a espécie de vão combate que travamos naquele momento em que se tenta apagar tudo e de uma só vez. Que tentativa inócua! É como se aquilo que não é mais, entretanto sendo vivo, transbordasse. Há um resto que escorre de toda versão, de toda ficção, de toda fantasia que nos aproxima e nos declara, ao mesmo tempo, separados desde sempre – separados como o temor do filósofo francês em relação às localizações precisas e identificações.

No empreendimento teórico de Candiotto, Foucault e a crítica da verdade, da primeira letra ao seu ponto último, outra coisa não fazemos, nós leitores, senão juntar, como o próprio autor o fez, as sobras do que restou desse algo a que chamamos Foucault: traços, marcas, registros que se extravasam das linhas que se escreveram. Pelo menos a nós isto é o que fica. A nós esse é o “perigo principal” eleito, que, em cascata, ameaça e exige um posicionamento (CANDIOTTO, 2010, p.168). A nós isso se desenha nessas impressões de leitura.

Foucault, de suas perspectivas de análise – sempre nuançadas e revistas ao longo de sua trajetória intelectual –, posicionou-se em face dos perigos que, diga-se de passagem, tomam a forma do iminente xeque-mate. Fatal, por certo. Candiotto, de sua parte, também pinçou um perigo e não muito longe dos escritos sobre o qual se debruça, como em um “elogio à diferença”, também trafega sobre o fio da navalha. E não poderia ser diferente.

Como depreendemos já de saída, ao aparelhar-se do impensado, arrisca-se o autor da obra em um gesto e, a partir de uma torção do olhar, traça as linhas de sua aposta: “[…] analisar a possibilidade de uma história crítica da verdade articulada em torno da constituição do sujeito, como fio condutor da investigação de Michel Foucault” (CANDIOTTO, 2010, p.20, grifo do autor).

Atentemos ao destaque: uma história. Sim, uma história que corre quase que em suspenso nessa História legitimada por práticas discursivas e não discursivas. E por que não pensarmos em uma história que Candiotto, a partir de cortes, disjunções e aproximações daquilo que restou, entrevê algo que afirma ter prescindido, mas que brota sob o olhar do leitor? Isso foi por ele criado, por certo, muito embora na mesma medida em que nos aproximemos desse entre em igual proporção nos escape. Há uma diferença aí registrada, coisa que pode ser aproximada ao deslocamento e à torção do olhar. Daí o resultado: a ficção de Candiotto, que, atento, “ficcionou” o indiscernível entre verdade, ação e vida, bem ao gosto de Foucault, recriando-o – justamente aquilo que transborda, que sobra; a marca indelével de sua obra, uma história crítica da verdade.

Não sem desespero, diante de todo o horror de sentir o chão desabar sob os nossos pés, outras ficções imaginárias (e imaginárias porque seguras e totalizadoras) são excluídas dessa versão – uma, dentre tantas outras. Mas nem por isso e ao mesmo tempo podemos, maravilhados, deixar de assistir ao espetáculo trágico dessa leitura em que algo cai e dali mesmo emerge. Por um lado, essas grandes verdades forjadas na e pela História – isso que fantasticamente nos agarramos ou, dito noutros termos, fixam identidades, fixam modos de ser e de agir – caem; por outro, das ruínas, alguma possibilidade. Candiotto a entreviu e a registrou em sua obra. Dentre os excertos que cita, um possível e excelso fim da tragédia, dentre os quais talvez cheguemos, da lavra de Michel Foucault:

dou-me conta que não escrevi nada além de ficções. Não quero dizer, porém, que isso esteja fora da verdade. Parece-me que é possível fazer trabalhar a ficção na verdade, induzir efeitos de verdade com um discurso de ficção, e fazer de algum modo que o discurso de verdade suscite, fabrique algo que não existe ainda, portanto, que ele “ficcione”. “Ficcionamos” a história a partir de uma realidade política que a torna verdadeira, “ficcionamos” uma política que não existe ainda a partir de uma verdade histórica (FOUCAULT, 1994 apud CANDIOTTO, 2010, p.165, grifo nosso).

Se falamos em tragédia, já que muito além da obra é uma vida que se coloca em jogo, entre a miséria e o sublime, entre a vida e a morte, talvez um refúgio: a partir de Foucault podemos pensar que referidas ficções constituam um combate no qual entramos, sem retorno nem saída, restando-nos apenas a coragem de nos lançarmos sobre algo que ainda não existe, mas que possa ter efeito de verdade, caso tenhamos apreendido a confusão entre o escrito e o vivido.

Essa é a relação indissociável que não se cala, de ponta a ponta, na aposta efetuada por Candiotto. Essa impressão de leitura também obrigou-nos a eleger um perigo: não apagar as marcas que o próprio exercício filosófico inscreve nessas biografias e vice-versa.

Fred Mendes Stapazzoli Junior – Mestre em Filosofia pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUCPR), Florianópolis, SC – Brasil. E-mail: stapazzoli@gmail.com

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Desejo e prazer na Idade Moderna – MONZANI (RFA)

MONZANI, Luiz Roberto. Desejo e prazer na Idade Moderna. 2. ed. Curitiba: Champagnat, 2011. Resenha de: VIEIRA, Fabiano de Mello. Revista de Filosofia Aurora, Curitiba, v.23, n.32, p.223-230, jan./jun, 2011.

Em Desejo e prazer na Idade Moderna, publicado primeiramente pela Editora da Unicamp e que recebeu agora da Editora Champagnat sua segunda edição, Luiz Roberto Monzani aponta os resultados parciais de uma pesquisa de fôlego realizada em seu estágio de livre docência em meados dos anos 1990. Motivado pela experiência em ler Sade de forma mais específica, Monzani encontra nos textos do Marquês a expressão mais nua e crua de algumas premissas que nortearam a Idade Moderna no que diz respeito à concepção de natureza humana. Com o cuidado em deixar seu campo teórico bem delimitado, o autor faz um recorte preciso nas teorias modernas, que, assim como Sade, apontam uma natureza humana passional, contrária à concepção clássica. Nessa trajetória, Monzani dialoga principalmente com Malebranche, Hobbes e Condillac, mostrando os movimentos realizados por cada um destes na elaboração de uma lógica própria das paixões.

O trabalho de Monzani é minucioso, valorizando sua forma muito particular de escrita e deixando claro, a cada linha, que, se a ideia de escrever sobre as paixões da modernidade do ponto de vista de uma seleção criteriosa de autores é uma tarefa um tanto quanto árdua, ele não a faz de outra maneira senão por meio de uma brilhante contextualização que se inicia na análise da chamada “querela do luxo”, o primeiro capítulo de um total de quatro.

O autor justifica a escolha feita para o começo da discussão da seguinte maneira:

de fato, o exame da chamada querela do luxo mostra-se exemplar para tentar compreender o conjunto das transformações conceituais operadas entre os fins do século XVII e o século XVIII, pelo menos na sua generalidade, já que expressa, às vezes direta, às vezes indiretamente, a lenta mutação e constituição das novas concepções (sobre o desejo e o prazer) (p. 21).

Partindo daí, Monzani mostra que os textos de Voltaire escritos a partir de 1736 geraram muita polêmica ao apontar uma apologia aos tempos modernos, em que o luxo é produto dos avanços científicos e tecnológicos, e principal responsável pelo desenvolvimento do comércio nas sociedades. Ou seja, haveria, portanto, uma “vantagem” dos tempos modernos diante dos antigos e o luxo seria um dos responsáveis por tal consequência.

Quando o luxo começa a fazer parte do cotidiano das pessoas, iniciam-se, de forma mais maciça, os ataques a ele. A primeira a atacar foi a Igreja, tomando como exemplo Fénelon (arcebispo de Cambray, exemplo de ordem rígida e norma do bem comum). Para Fénelon, “o luxo é um dos maiores males e o soberano tem a obrigação de reprimi-lo, assim como de deter a inconstância das modas” (p. 29). A razão deve predominar e o luxo adquire status de desvio, patologia. Monzani dá ainda algum destaque para La Bruyère e Bayle, que a partir de suas críticas contrárias à Fénelon – mas cada qual com sua maneira muito particular de abordagem – incrementaram a discussão. O primeiro, aproximando-se mais de Fénelon, exalta algumas virtudes, como coragem e honra, e as coloca em oposição às exigências de uma vida luxuosa, enquanto Bayle critica o saudosismo das posições anteriores e coloca a renúncia ao luxo no campo de uma necessidade das sociedades desfavorecidas da época. Ou seja, para Bayle, a ordem moral não teria tanta força diante da necessidade.

Todo esse percurso na história do luxo ao longo do tempo se justifica no final do capítulo, com a explanação sobre a “Fábula das Abelhas” de Mandeville, que narra a história de uma colmeia (como espelho da sociedade humana) marcada pela desonestidade e pelo egoísmo, mas que vive em plena prosperidade. A abordagem feita por Mandeville denuncia a essência naturalmente egoísta do homem, porém, necessária para o desenvolvimento de uma sociedade próspera e feliz. Necessária, pois obedece a um critério utilitarista que visa à produção de benefícios individuais e consequentemente coletivos. O fato é que, após alguns desdobramentos teóricos, a questão do luxo para nosso autor resume-se da seguinte forma:

o problema do luxo faz o primeiro rompimento com a cadeia tradicional: necessidade – desejo – satisfação e remete a outra: desejo – necessidade indeterminada – elaboração imaginária – concretização do objeto – satisfação fugaz – desejo (p. 69).

É sobre o desejo que Monzani trata no segundo capítulo. Ele parte do desejo que tem como par de oposição a aversão e que se junta com outros dois pares: amor/ódio e prazer/desprazer, formando assim a lógica que perdura desde a antiguidade e que é assim apresentada por Santo Tomás. O amor a um bem supremo (summum bonum) guiará todas as paixões do homem. Para Santo Tomás, por exemplo, Deus representa esse bem e, assim, segue-se a lógica nas palavras de Monzani:

o objeto apreendido é, em primeiro1ugar, amado (ou odiado) e, em virtude desse ato passional primordial primário, passa a ser desejado (ou não) e sua posse levará à delectação (ou não) (p. 76).

Thomas Hobbes é o primeiro a fazer uma importante inversão dessa montagem, no século XVII, porém, é fato que a atenção hobbesiana mostrou-se mais inclinada ao “produto” advindo da natureza do homem do que ela propriamente. Para Hobbes, as experiências são vivenciadas enquanto movimento em um primeiro momento e atendem também à exigência de um movimento – o vital – até chegarem ao coração e alcançarem o estatuto de paixões. Nesse retorno são qualificadas como “boas” ou “ruins”, provocando prazer ou aversão, respectivamente. Essa qualificação se dá em relação à sua participação junto ao movimento vital. Ou seja, há uma tendência a ser “bom”, o movimento que vai em direção à autopreservação – primeira lei natural do homem. A necessidade de se autopreservar leva o homem ao egoísmo em seu grau máximo e, dessa forma, aproxima-se da ideia lançada por Mandeville e sua “Fábula das abelhas”.

Contudo, essa idéia, segundo Monzani, fez com que alguns autores, como Gadave, Malherbe e Magri, reconhecessem o par prazer/ dor como fenômeno primeiro na lógica das paixões, porém, não é essa a ideia que nosso autor expõe. Sua leitura a respeito da lógica passional em Hobbes supõe o desejo como item primeiro da tríade, atuando em parceria com o conatus – movimento vital. Ou seja, o que vem primeiro é o conatus, que de certa forma é desejo de conservação de si.

Assim diz Monzani:

não há nenhum dualismo original em Hobbes, como se poderia ser levado a pensar: existe uma única tendência, que nos inclina a certas coisas, e nos leva a repudiar outras. É o mesmo desejo que se especifica em aproximação ou distanciamento, conforme o caso. Desejo de autoconservação (p. 93).

O prazer para Hobbes, segundo Monzani, seria “o efeito benéfico do movimento vital” (p. 97) e o amor se dá quando o objeto de desejo está presente. Como é possível perceber, os elementos da lógica passional continuam os mesmos e o que muda é a ordem em que se encontram.

Considerando o desejo em Hobbes como algo que mantém a sua essência inquieta, Monzani, em seu terceiro capítulo, aprofunda essa noção a partir do ponto de vista de alguns outros autores, dentre eles Malebranche e Locke.

Malebranche era um padre que, sobre influência direta de autores cristãos, como Santo Agostinho e São Tomás, conceituou a vontade como uma inclinação irresistível ao bem – à felicidade. “Aos olhos de Malebranche só há um motivo de amor: a felicidade, que nada mais é que o estado de prazer” (p. 149). A inquietude para esse autor encontra fundamento na característica finita do bem em satisfazer o desejo de felicidade, visto que o homem não tem Deus como a única causa dos prazeres. Ou seja, a busca contínua de felicidade elege objetos finitos como estatutos do bem enquanto tal, em uma sucessão também contínua. A conclusão é que nenhum objeto traz a felicidade completa e, pensando assim, Malebranche se mantém fiel à tradição agostiniana de que a inquietude nada mais é do que

o movimento incessante em direção a Deus que nos criou para ele, para amá-lo, que obedece à estrita definição de vontade entendida como movimento para o bem em geral e que nos ilumina, a cada repouso, no sentido de apontar para a insuficiência dos bens particulares, não invencíveis, reconduzindo essa própria vontade no ultrapassamento progressivo dessas mesmas coisas finitas (p. 155).

Malebranche ainda nos possibilita outra leitura da inquietude, agora em um plano horizontal, da experiência da consciência, mostrando que a característica indefinida do desejo é inerente à natureza humana. Segundo Monzani, essas duas leituras representam “a estrita consequência da dupla concepção de vontade que analisamos antes: como movimento em direção ao bem e como desejo de felicidade” (p. 158). Esse polo antropocêntrico da teoria malebranchista muito se assemelha à noção de desejo em Hobbes, porém, é preciso destacar uma diferença fundamental. Malebranche contesta o caráter originário do desejo, pois se é renovado incessantemente é porque existe algo anterior, impulsionando-o.

Ainda trabalhando o capítulo sobre a inquietude, Monzani acrescenta à discussão a teoria de Locke, que, a partir de uma laicização da teoria malebranchista, inaugura a tendência que prevaleceu no final do século XVII e boa parte do século XVIII. A partir da ideia de um uneasiness – termo que mais tarde encontrou em “inquietude” sua melhor tradução – diz que o homem busca a felicidade, porém, uma felicidade palpável, resultante de um estado de deleite/prazer. Ele chama de bem aquilo que proporciona o prazer ou diminui o desprazer, o contrário chama de mal. Todas as ações do homem buscam, então, eliminar o uneasiness e, consequentemente, produzir prazer que constitui a felicidade. Sendo assim, uneasiness pode ser definido como uma insatisfação que coloca em movimento.

Monzani, mesmo após uma verdadeira “dissecação” da uneasiness lockeana, em alguns momentos ainda não é capaz de torná-lo livre de comparações com a teoria malebranchista e a hobbesiana. Ora se aproxima da noção de inquietude de Malebranche, ora assemelha-se com a noção de desejo em Hobbes, mas tal complexidade não passou despercebida por Monzani. Assim ele diz:

de qualquer maneira, de Hobbes a Locke, via Malebranche, a análise enriqueceu-se e aprofundou-se. O mesmo fenômeno aparece dotado de significações inéditas. Mas isso foi conseguido à custa de ambiguidades, de deslizes conceituais e lexicais (p. 185).

O certo é que essa passagem por Locke possibilita o encontro com a teoria de Condillac, seu seguidor e responsável pela operação da última inversão na lógica das paixões e que é tratada no quarto capítulo do livro. Monzani observa que na obra chamada O tratado das sensações, de 1754, Condillac utiliza-se da metáfora da estátua de mármore como ficção metodológica para embasar sua hipótese de que nunca se conhece a natureza mais íntima das coisas, apenas aquilo que nos é sensível. Para ele, “há duas coisas a serem consideradas: o dado inicial, a percepção, e o conjunto das diferenciações progressivas, a que esse dado se submeterá até atingir seu grau pleno, que é o que se denomina o conhecimento” (p. 193). Dessa forma, pensar uma estátua de mármore como apenas uma estrutura receptiva, livre de qualquer conhecimento prévio, possibilita o entendimento do caminho proposto por Condillac na constituição de um sujeito.

Monzani aponta que Condillac examina individualmente cada um dos sentidos, fazendo uma espécie de montagem (desmontagem) da máquina sensível, de modo a entendê-la posteriormente na relação entre os diversos sentidos. As sensações trariam então contentamento ou descontentamento a partir de experiências de prazer ou desprazer, respectivamente. Para Condillac, o prazer, bem como a dor (desprazer), pode ser corporal ou espiritual, sendo apenas os corporais sensíveis, enquanto os espirituais acontecem em um nível intelectual. As experiências de prazer e desprazer vividas pelo sujeito provocam o movimento de aproximação do que lhe causou prazer ou afastamento daquilo que lhe causou desprazer, iniciando assim o ciclo formado pela seguinte ordem estabelecida: “prazer/dor – inquietude – necessidade – desejo – satisfação” (p. 246). Condillac resume a nova ordem da seguinte maneira

mudemos a cena, e suponhamos que a estátua tenha obstáculos a ultrapassar para obter a posse daquilo que deseja. Agora as necessidades subsistem por muito tempo antes de serem satisfeitas. O mal-estar, fraco em sua origem, torna-se insensivelmente mais vivo; ele se transforma em inquietude, por vezes termina em dor. Enquanto a inquietude é leve, o desejo tem pouca força, a estátua sente-se pouco pressionada a gozar: uma sensação viva pode distraí-la e suspender sua dor. Mas com a inquietude o desejo aumenta; chega um momento em que ele age com tanta violência, que só se encontra remédio no gozo: ele se transforma em paixão (CONDILLAC 1947-1950 apud MONZANI, 2011, p.241)

A diferença entre Locke e Condillac, nesse ponto, está na distinção que Condillac faz entre inquietude e desejo, caracterizando o primeiro como algo que “despertaria” o desejo a partir de sentimentos desagradáveis intensos, enquanto em Locke a inquietude pode ser entendida como derivada do próprio desejo. Essa nova lógica sugerida por Condillac – em que se encontra a primazia do prazer – rompe com o ciclo da necessidade e possibilita o aparecimento do supérfluo. Nesse ponto, é possível perceber a intenção de Monzani ao justificar a importância de trabalhar minuciosamente no primeiro capítulo o conceito de luxo e suas variações ao longo da história. A inversão total da escala que se inicia com a primazia do amor perante as outras paixões coloca ainda o desejo nessa posição, em Hobbes, até alcançar a ordem estabelecida por Condillac, em que o prazer inicia a cadeia.

Na conclusão, Monzani reforça a ideia de que se trata de uma pesquisa em andamento e, portanto, o que se tem são resultados de um percurso que, ao chegar nesse ponto, se desdobra ainda em algumas outras possibilidades, dentre elas duas em especial. A primeira trata- -se de uma possível articulação entre a ideia de estátua em Condillac e a de sujeito em Rousseau como tendo um mesmo ponto de partida; e a segunda na inclusão da discussão sobre o “sexo” – resultante dessa revalorização do princípio do prazer – no discurso filosófico.

Por fim, pode-se dizer que a obra Desejo e prazer na Idade Moderna, de Luiz Roberto Monzani, possui elementos que a caracteriza como um criterioso exemplar de história da filosofia, cheio de contextualizações, e uma excelente amarração entre os diversos autores escolhidos, porém, não se limita a isso, pois o rigor com que trata os conceitos “cirurgicamente” delimitados demonstra também a veia epistemológica do autor.

Fabiano de Mello Vieira – Mestrando em Filosofia pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUCPR), Curitiba, PR – Brasil. E-mail: fabiano@bottomello.com.br

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