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Dimensão simbólica das intervenções urbanas / Urbana / 2014
A cidade excede a representação que cada pessoa faz dela. Ela se
oferece e se retrai segundo a meneira como é apreendida. […] No ritmo de
nosso assombro, de nosso entusiasmo ou de nossa desaprovação,
construímos de forma imaginária uma diade dentro da cidade, que
temos a oportunidade de ver ou de morar nela.
Henri-Pierre Jeudy
Ao reunir reflexões sobre a representação simbólica da cidade, o sociólogo e filósofo Henry-Pierre Jeudy (2005, p.81) nos deixa pistas instigantes para analisar dois aspectos mais ou menos contraditórios, relativos à construção das cidades, simbólica ou materialmente: trata-se, de um lado, dos esforços constantes empreendidos em configurações e representações precisas ou intencionais da cidade e, por outro, da proliferação de imagens quase que inteiramente independentes dessa intencionalidade, configurada a partir de apreensões distintas e efetivamente plurais.
Parece haver uma dinâmica igualmente contraditória a orientar as leituras desse espaço ao longo de sua trajetória: aparentemente, quanto maiores os esforços em prol de uma modernização urbana ou de representações modernas da cidade, mais constantes são as reações em direção oposta, em prol de valores ou estéticas tradicionais, como se “uma certa nostalgia”, afirma Jeudy, nos fizesse acreditar que a cidade não corresponde mais a seu signo por ser vinculada excessivamente aos símbolos de sua monumentalidade exibida.
Ao tematizar as dimensões simbólicas das intervenções urbanas, este dossiê da Revista Urbana permite acompanhar claramente, em cada uma das leituras, múltiplos modos de funcionamento dessas contradições e dinâmicas que tensionam intencionalidades e percepções, rupturas e permanências. No conjunto das leituras, sobressai a noção de modernização – com seu apelo sensível às transformações entendidas como positivas, progressistas de certo modo – invariavelmente acompanhada de contradições, questionamentos ou mesmo a configuração de imagens a princípio contrárias às da cidade do progresso: idealizações do passado, reações às mudanças, segregação dos espaços, ou mesmo a dessocialização dos corpos e a indiferenciação, como analisa Haroche a partir de Simmel (PECHMAN, 2014, 143-160). Como um espelho invertido, como que “esfacelam” as representações positivas da cidade e a própria cidade, dela sempre dependente.
Trata-se de uma chave de leitura ou ainda um fio condutor talvez capaz de ajudar no entendimento de cada contribuição publicada neste Dossiê, com seus diferentes aportes temporais e espaciais, mas sempre tematizando dimensões simbólicas neles perceptíveis. Mercedes González Bracco, analisa praticamente um século de planejamento urbano em Buenos Aires, Argentina, preocupada com a construção da capital como metrópole e atenta a diversas “ideias de cidade” em pauta nesse percurso. É interessante a sugestão de uma renovação constante e afinada com o progresso ao lado de uma atitude que a autora denomina “nostálgica” e pouco afinada com o progresso, embora sem de fato questioná-lo. Pode-se dizer que essa percepção nostálgica é similar ao que Renada Rendelucci Allucci acaba por perceber ao pesquisar um espaço diametralmente oposto à metrópole argentina: a Capela das Mercês, em São Luiz do Paraitinga, interior paulista – um elemento que mobiliza sentimentos identitários e tradicionais sobretudo diante da iminência da perda.
Outras leituras inscritas no Dossiê tematizam mais especificamente alguns instrumentos ativos na configuração de certas representações e dimensões simbólicas da cidade, como Viviane Araújo, ao estudar minuciosamente o papel da fotografia, sobretudo de Marc Ferrez, nos processos de intervenção urbana no Rio de Janeiro no início do século XX. Melissa Ramos da Silva Oliveira, ao analisar a rua Treze de Maio, no centro comercial da cidade de Campinas, interior de São Paulo, utiliza várias ferramentas para problematizar as representações desse espaço – como referencial de memória, como centro de consumo e como imagem de “centralidade” – coletadas diretamente a partir de seus usuários. Nos dois casos, é possível acompanhar diferentes mecanismos atuantes nas representações simbólicas tanto do passado quando do futuro imaginado para esses espaços.
Em cada uma dessas pesquisas, nota-se a constante tensão inscrita nas intervenções e em suas representações, mas talvez o estudo de Ismael Cerqueira Vieira, investigador do Centro de Investigação Transdisciplinar “Cultura, Espaço e Memória” (Universidade do Porto), descreva de modo mais detido as situações em que a dualidade “atraso versus moderno” figure com uma inegável concretude. Ao tratar da expansão urbana e a disseminação da tuberculose em Portugal, o autor acompanha não apenas as consequências para práticas de gestão dos espaços – a questão das habitações insalubres – mas também os desdobramentos das mudanças na percepção da natureza infeciosa e social da tuberculose. Pode-se dizer que essas mudanças alteram, inclusive, as concepções de cidade em pauta desde o final do XIX.
Além da temática da “cidade simbólica”, este número da Urbana traz também a público uma série de artigos que aprofundam a discussão acerca das diferentes concepções e apreensões que norteiam as intervenções na cidade, ao menos desde o século XIX, tematizando aspectos relativos ao aforamento urbano em Natal, no Rio Grande do Norte (Gabriela Fernandes Siqueira), à presença das ferrovias em Uberlândia (Flávia Gabriella Franco Mariano), as intervenções em riachos urbanos em Maceió (Carlina Barros, Caroline Santos, Roberta Maia, Sibéria Carvalho), a questão da moradia popular em Sidrolância (Nataniél Dal Moro), as representações do progresso na revista Semana Ilustrada, no Rio de Janeiro (Renan Rivaben Pereira), as representações também do Rio a partir dos subúrbios (Elizabeth Dezouzart Cardoso), as intervenções na praça pública em João Pessoa, Paraíba (Maria da Conceição Pereira Paulino) e, por fim, reforçando as tensões que se tornaram a ênfase deste número da revista, uma análise das representações de civilidade na leitura dos cortiços em São Paulo no final do século XIX. Os editores só podem desejar uma instigante leitura.
Referências
JEUDY, Henri-Pierre. Espelho das cidades. Trad. Rejane Janowitzer. Rio de Janeiro: Casa da Palavra, 2005.
HAROCHE, Claudine. A vida mental nas grandes cidades contemporâneas diante da aceleração e do ilimitado. In: PECHMAN, Robert Moses (org.). A pretexto de Simmel: cultura e subjetividade na metrópole contemporânea. Rio de Janeiro: Letra Capital, 2014.
Josianne Francia Cerasoli
CERASOLI, Josianne Francia. Apresentação. Urbana. Campinas, v.6, n.2, jul / dez, 2014. Acessar publicação original [DR]
Cidade, imagem, história e interdisciplinaridade / Urbana / 2007
A alegria de trazer a público este segundo número da revista Urbana se alimenta, especialmente, da satisfação em poder reunir um conjunto expressivo de estudos que abordam a cidade, bem como da percepção do significativo diálogo que se esboça entre esses textos. Elaborados em primeira versão para os debates da edição de julho de 2007 do Simpósio Nacional da Associação Nacional de História – ANPUH, ocorrido na cidade de São Leopoldo, os artigos desta segunda Urbana são conduzidos pelo fio da interdisciplinaridade – aspecto, aliás, que acompanha o CIEC desde seus inícios, e também este periódico.
Inspirados pelos debates na ANPUH-2007, partimos de uma seleção de textos apresentados em dois Simpósios Temáticos do evento para compor o dossiê Cidade, Imagem, História e Interdisciplinaridade. Na composição, ambos os Simpósios Temáticos, “Cidade, História e Interdisciplinaridade” (coordenado por mim e por Marisa Varanda Teixeira Carpintero) e “Cultura Visual, Imagem e História” (coordenado por Iara Lis Schiavinatto e Charles Monteiro), interagem continuamente, sem que se revele ao leitor, numa primeira tomada, quais autores estiveram presentes em um ou outro debate. [1]
A seleção que fizemos resulta em passagens por variados espaços – como não podia deixar de ser, quando as temáticas se entrecruzam justamente na cidade e na história. Somos levados com os autores por diversos espaços, alguns revisitados em tempos e miradas diferentes: por Guaratuba, Campinas, Porto Alegre e interior sul-riograndense, João Pessoa, Rio de Janeiro, São Paulo e mais, ora conduzidos pelas margens, ora levados aos centros, aos parques, ao lazer, aos dilemas, às figurações, às tensões, às ilusões… Por vezes são os gestos do urbanista e do capitão-mór que norteiam essas passagens, noutras vezes as tomadas do jornalista, do fotógrafo e do cineasta, ou ainda os ângulos do especialista e do governante, ou as penas do chargista e do literato, narrativas daqueles que vivenciam e pensam, em lugares diversos, os espaços do urbano. Passagens, aliás, apreendidas por meio de narrativas que avançam para além da suposta fugacidade ou ineficiência das ações – e transformações – no urbano, para além de uma imaginada coesão da cidade possivelmente convertida em dispersão. Pode-se dizer que, de modos distintos, os estudos aqui reunidos acolhem o “descontrole” e a imprevisibilidade da cidade e se movem em direção a outros espaços, despidos de ilusões de ordem, envoltos pelo desejo de desvelar algo mais, de avançar mais alguns passos na compreensão desse fenômeno complexo e instigante que é a cidade.
As passagens nesses estudos, portanto, não se reduzem à(s) espacialidade(s). Abarcam a multiplicidade que perpassa a cidade, entendida como fenômeno histórico ou na condição de objeto de conhecimento. A dimensão inegavelmente complexa e múltipla do urbano é visível ao longo dos textos, não apenas quando a abordagem conceitual ou documental, sobretudo da cultura visual, implica na compreensão de seus diversos suportes materiais, suas fontes visuais e iconográficas, suas linguagens, seus lugares de enunciação, circuitos e fluxos. O múltiplo e o complexo se fazem presentes também quando os estudos se desdobram sobre a heterogeneidade das formas e sujeitos na / da cidade, a variedade de seus atores e autores, a pluralidade dos discursos e leituras que a percebem, a diversidade de diagnósticos e perspectivas que a avaliam, em sua mobilidade e transformação constante. A visualidade e a dimensão narrativa, que dialogam entre esses textos, configuram um processo continuado de produção de sentidos sociais, apreendidos neste dossiê.
Entendemos que abordar historicamente a cidade considerando-se essa complexidade nos coloca, sobretudo, o desafio de se constituir uma visão antes interdisciplinar do que multidisciplinar do urbano. Mais que dispor lado a lado disciplinas e seus campos de reflexão, esse desafio implica considerar ainda os contatos e entrelaçamentos nos quais é possível vislumbrar os diálogos indispensáveis à apreensão da cidade. Trata-se, na verdade, de uma opção que se construiu ao longo do trabalho editorial, desde as primeiras formulações para o projeto deste periódico, e esperamos que o leitor possa percebê-la no percurso destes textos.
Os editores da Urbana – Revista Eletrônica do Centro Interdisciplinar de Estudos da Cidade-CIEC / Unicamp – são amplamente gratos aos autores, que prontamente enviaram e aprimoraram seus textos, aguardando pacientemente por esta edição que, por “injustificáveis justificativas”, demorou mais que se previa para vir a público. Hoje na condição de editora deste número, agradeço ainda ao imprescindível apoio dos colegas do CIEC, virtualmente presentes desde os momentos de seleção dos textos, bem como nas revisões e afins. Esperamos, por fim, que o resultado de todos esses encontros possa ampliar e renovar os debates que iniciamos noutros tempos.
Nota
1 Para conhecer cada proposta em sua versão original e sua relação com cada um dos dois simpósios temáticos, o leitor pode aproveitar-se da “virtualidade” desta leitura e navegar pelos arquivos da ANPUH-2007: http: / / snh2007.anpuh.org / site / saoleopoldo
Josianne Francia Cerasoli – Membro do conselho editorial da Urbana, responsável por este número. E-mail: josiannefc@gmail.com
CERASOLI, Josianne Francia. Apresentação. Urbana. Campinas, v.2, n.1, 2007. Acessar publicação original [DR]