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Cementerios para educar | Ricard Huerta
Son los cementerios desde hace siglos espacios inseparables de cualquier realidad urbana, peculiares extensiones para el recuerdo y la memoria que, sin embargo, no han sido lo suficientemente atractivos para ser abordados por los pedagogos y los profesores de Didáctica, quizás por ser los lugares vinculados a la muerte, destinados a enterrar los cadáveres o a ser depositadas sus cenizas. Por eso es conveniente esta monografía de Ricard Huerta, catedrático de Didáctica de la Expresión Plástica en la Universitat de València, quien ya ha transitado por estos campos, puesto que en su formación de docentes ha implicado a su alumnado en proyectos donde se ha analizado la muerte desde una perspectiva cultural y educativa, y también ha desarrollado investigaciones en las que ha podido comprobar la eficacia educativa de los cementerios como espacio de reflexión estética; todo ello desde una amplitud de miras que incluye el papel que ocupan los camposantos en nuestro imaginario colectivo. Leia Mais
Historical and Archaeological Aspects of Egyptian Funerary Culture – WILLENS (Topoi)
WILLENS, H. Historical and Archaeological Aspects of Egyptian Funerary Culture. Religious Ideas and Ritual Practice in Middle kingdom Elite Cemeteries. Culture & History of the Ancient Near East, 73, Leiden, Boston: E. J. Brill, 2014. Resenha de: GAMA-ROLLAND, Cintia Alfieri. Deir el-Bersha e a “democratização”: Uma nova maneira de compreender os Textos dos caixões e o sistema nomárquico. Topoi v.17 n.32 Rio de Janeiro Jan./June 2016.
Esse livro, publicado em 2014, na série Culture & History of the Ancient Near East, volume 73, pelo tradicional editor de livros de egiptologia E. J. Brill é o mais recente dentre os escritos por Harco Willems. O autor é professor e pesquisador na Universidade Católica de Leuven – Lovaina – na Bélgica. O livro é uma tradução, com atualizações de certos conceitos, da edição francesa chamada Les Textes des sarcophages et la démocratie: éléments d’une histoire culturelle du Moyen Empire Égyptien, de 2008.
O autor é um especialista inconteste no que concerne ao Médio Império (XI e XII dinastias, c. 2065-1781 a.C.) e aos Textos dos caixões, tema que estuda desde seu doutorado. Atualmente, ele chefia as escavações do sítio de Deir el-Bersha, local onde estão as tumbas em hipogeu dos nomarcas, dentre eles a do celebre Djehutihotep – 17L20/1 (antigo número 2) -, grande chefe (nomarca) do nomo da lebre, que serviu durante os reinados de Amenemhat II, Senusret II e Senusret III.
O livro em francês e, consequentemente, sua tradução são provenientes de uma série de quatro conferências dadas pelo autor na École Pratique des Hautes Études, em maio de 2006, a convite de Christiane Zivie-Coche. O fato de esse livro ser a publicação de quatro conferências lhe confere um aspecto narrativo e analítico bastante claro, sendo uma síntese dos trabalhos empreendidos pelo autor até o presente.
O primeiro capítulo trata da cultura nomarcal, abordando de uma maneira explicativa os aspectos políticos, administrativos, sociais e religiosos dessa categoria social que tem seu momento forte na história egípcia durante o Médio Império. Esse capítulo, mais voltado para o sistema político e administrativo, trata também da origem da organização do estado egípcio em nomos, durante o Antigo Império (c. 2670-2195 a.C.), e a continuação desse sistema e seus meios administrativos regionais durante o Primeiro Período Intermediário (c. 2195-2065 a.C.) e Médio Império. Por meio do estudo da cultura nomarcal o autor apresenta toda a organização do estado egípcio fazendo paralelos entre a política, a administração e a história egípcia.
Ainda nessa parte é analisado o que representa o título de nomarca para os egípcios antigos, suas funções e atributos, em comparação com as interpretações dadas pela egiptologia. É tratado também da tradução desse termo originalmente grego e, se é correto usarmos o termo nomarca ou não.
Por sinal, a discussão acerca do termo nomarca é um dos pontos altos desse capítulo, pois se as primeiras partes contextualizam o âmbito de ação dessa categoria social, é durante a análise do termo que há uma revisão bibliográfica dos estudos mais recentes sobre o tema e a apresentação de um vasto conjunto de fontes epigráficas em que o termo egípcio ḥr.y.w-tp ʿȝ n spȝ.t ou ḥr.y.w-tp ʿȝ é mencionado.
O primeiro capítulo estabelece, assim, as bases tanto informativas quanto críticas sobre a política egípcia antiga, tendo como foco uma categoria social precisa e a maneira como essa se inseria na sociedade egípcia como um todo. Se essa primeira parte é mais voltada para as fontes epigráficas, a segunda apresenta os principais sítios e trabalhos arqueológicos referentes ao Médio Império. Mesmo se centrado no trabalho empreendido pelo autor em Deir el-Bersha, Harco Willems passa em revista o histórico das escavações realizadas em sítios ligados ao poder nomarcal.
O sítio de Deir el-Bersha, localizado no Médio Egito, é conhecido por ter funcionado como pedreira, e, sobretudo, por ter sido, durante o Médio Império, a sede do cemitério dos nomarcas do XV nomo do Alto Egito, mas ele também contém sepulturas que vão do Antigo Império até o Período Greco-Romano (332 a.C-395 d.C.). Trata-se assim de um dos grandes locais para o estudo do poder nomárquico. O projeto da Universidade Católica de Leuven, The Dayr el-Barsha Project, começou em 2002 e as escavações continuam até hoje. Os diversos artigos oriundos das campanhas de escavações são publicados anualmente em revistas especializadas e trabalhos de pesquisa de maior fôlego são realizados sob a forma de teses, como a defendida em novembro de 2015 por Athena Van der Perre sobre a pedreira de calcário de Deir el-Bersha usada na época amarniana (1350-1333 a.C.). Ao tratar dessa localidade, o autor aproveita para fazer uma revisão dos trabalhos anteriores aos de sua equipe, comparando o que foi feito por outros e suas respectivas conclusões com a pesquisa empreendida atualmente. Essa revisão dos estudos tanto de Deir el-Bersha quanto de outras cidades do Médio Império nos fornece uma imagem bastante completa do período estudado, bem como das abordagens arqueológicas de cada época.
Na parte final do segundo capítulo, após descrever as descobertas de 2006, o autor trata de uma questão muito em voga nos estudos atuais sobre a religião egípcia, a paisagem ritual. Com seu trabalho, o autor mostra como os cemitérios nomarcais se desenvolveram tornando-se grandes paisagens processionais para o culto do governador local. É explicado que as rotas de acesso do cemitério deviam servir como vias processionais para uma cerimônia em que a linhagem dos governadores era cultuada. Sendo que o eixo principal do mesmo liga as tumbas dos nomarcas a capelas cultuais. Para endossar essa hipótese o autor apresenta mapas do cemitério e analisa tanto o alinhamento da via principal quanto o das tumbas e a decoração delas. Tudo isso comparando Deir el-Bersha a outros sítios da mesma época, como Qaw el-Kebir, Qubbat el-Hawa e Deir el-Bahari.
Em seguida, para melhor compreender o que a paisagem arqueológica deixa evidente, Harco Willems faz uso da epigrafia, estudando os textos autobiográficos. Ele nota também que o sistema de culto dos governadores de Deir el-Bersha não é idêntico ao de Balat e de Elefantina, mas que em linhas gerais a procissão e, consequentemente, o culto aos governadores se ordenam entre dois polos formados pelas capelas de culto dos governadores e suas tumbas.
Por fim, é evidenciado que o culto aos governadores é uma prática religiosa com certa especificidade, em que homens com poderes políticos ou pertencentes às altas esferas da sociedade ocupavam um lugar particular no pensamento religioso da população, sem serem divindades, mas como um chefe morto venerado.
O terceiro, mais longo e completo dos capítulos, dividido em seis subpartes, é aquele que trata da “democratização” dos textos funerários. Com o intuito de estabelecer o histórico desse tema, antes de desconstruí-lo, o autor inicia sua análise apresentando os fatores e autores que desenvolveram ou fazem uso da teoria da “democratização” ou “demotização”. Nessa primeira parte, o autor faz um belo exercício teórico inserindo os criadores da teoria da “democratização” em seus contextos históricos e políticos, mostrando, assim, em que medida pontos de vista pessoais bem como o momento histórico vivido por cada autor influenciou na sua forma de abordar a religião egípcia antiga e suas transformações.
Em seguida, para iniciar a desconstrução da teoria da “democratização”, o autor trata das transformações passadas pelo equipamento funerário durante o Primeiro Período Intermediário e Médio Império, para depois tratar dos Textos dos caixões pelo viés da demografia. A análise demográfica é constituída por quatro elementos: o estabelecimento da população egípcia durante o Médio Império, a quantificação dos caixões decorados de el-Bersha, de Beni Hasan e de Assiut. Já nesse momento, ao cruzar os dados referentes ao número de habitantes do Egito no Médio Império com o de caixões decorados, o autor evidencia o fato de que possuir esquifes e, ainda mais, aqueles decorados, era algo extremamente elitista, longe do pregado pelos adeptos da “democratização”. Nas palavras do próprio autor: “Having access to Coffin Texts was about as exceptional to the Middle Kingdom Egyptian as it would be today to possess a Rolls Royce”.1
Após constatar o uso restrito dos ataúdes decorados e consequentemente dos Textos dos caixões, o autor procede a um estudo geográfico da distribuição dos caixões decorados e dos textos inscritos neles, chegando à conclusão de que o ponto de partida dessa tradição funerária das elites (a inscrição de textos funerários nas paredes de seus caixões) teria sido o scriptorium de el-Ashmunein, local de onde difundiram-se os textos funerários não apenas para Tebas e Deir el-Bersha, mas também para as regiões nomarcais mais afastadas do Médio Egito. Com isso, o autor começa a estabelecer o epicentro de sua teoria, isto é, que o uso dos Textos dos caixões está intimamente ligado à cultura nomarcal e de forma alguma às esferas da população sem relação com os governadores ou poder locais, fazendo com que esse tipo de texto funerário caia em desuso com a decadência do poder dos nomarcas.
Na última parte desse capítulo, para fortalecer sua teria, Harco Willems associa os Textos dos caixões às cartas aos mortos, estudando especificamente os spell 30-41, 131-146, 149 e 312. Mostrando, assim, que uma nova visão do pós-vida proveniente das camadas dirigentes, mas não faraônicas, ganha espaço no domínio funerário. Uma visão do além que reproduz o mundo dos vivos e diversos aspectos da vida quotidiana da elite. Assim, os Textos dos caixões, além de não serem uma difusão de privilégios reais ao povo, são uma criação da elite para a elite.
Além dos três capítulos, o livro tem anexos de muito interesse, como uma lista atualizada dos caixões decorados do Médio Império, a maioria deles inédita, e um epílogo que conta com informações referentes às novas descobertas egiptológicas associadas à pesquisa do autor.
Trata-se de um livro extremamente inovador por diversas razões. Primeiramente, ele permite restituir a organização político-administrativa do Egito de suas origens até o Médio Império, passando por períodos complexos como o Primeiro Período Intermediário. Nele são também apresentados os resultados das escavações de Deir el-Bersha com a sua nova paisagem ritual, mostrando que o cemitério é mais vasto do que se pensava e que se organizava como um local de culto do poder nomárquico.
Mas o fator essencial e o maior de todos os avanços oferecidos por essa obra é o fato de questionar uma teoria aceita desde o início do século XX pela egiptologia, conhecida como “democratização” ou “demotização” das práticas funerárias. Esse questionamento bastante convincente se dá por meio do estudo aprofundado dos Textos dos caixões, posicionando-os em seus contextos histórico, político, administrativo e cultural do Primeiro Período Intermediário e Médio Império, e pela comparação com outras fontes epigráficas, como as cartas aos mortos e autobiografias da mesma época. Harco Willems consegue, assim, mostrar de maneira persuasiva que os Textos dos caixões não eram tão comuns como se imaginou e que sua difusão foi extremamente restrita, não sendo o reflexo de uma religião funerária praticada por todas as categorias sociais egípcias, mas apenas pela alta elite do Médio Império, os nomarcas.
Por meio do questionamento da teoria da difusão da religião funerária dos reis a toda sociedade, dos Textos das pirâmides até o Livro dos mortos (a chamada “democratização”), o autor traz uma análise das correntes de pensamento da egiptologia. Deixando evidente as influências da sociedade contemporânea sobre os egiptólogos, Willems mostra que por vezes o contexto de vida de certos autores e suas opiniões políticas acabam por influenciar suas análises do passado egípcio. Com isso, ele abre uma via inovadora de estudos que concernem ao Médio Império, tornando-se uma leitura essencial para aqueles que desejam estudar tanto a religião funerária egípcia antiga quanto os desenvolvimentos subsequentes aos Textos dos caixões. Além do mais, esse texto, de uma clareza e método irrepreensíveis, é um exemplo de como desenvolver uma pesquisa aliando diversas fontes e diversas abordagens sem a alienação de um estudo puramente religioso, político ou social.
Cintia Alfieri Gama-Rolland – Doutora em Religião e Sistemas de Pensamento pela École Pratique des Hautes Études – Paris, França. E-mail: gamacintia@hotmail.com.
À flor da pedra. Formas tumulares e processos sociais nos cemitérios brasileiros – MOTTA (CP)
MOTTA, Antônio. À flor da pedra. Formas tumulares e processos sociais nos cemitérios brasileiros. Recife, Fundação Joaquim Nabuco, 2009. Resenha de: SÁEZ, Oscar Calavia. À flor da pedra. Formas tumulares e processos sociais nos cemitérios brasileiros. Cadernos Pagu, Campinas, n. 37, Jul./Dez. 2011.
Gosto também dos cemitérios porque são cidades monstruosas, enormemente povoadas. Pensem em quantos mortos não cabem nesse reduzido espaço, em todas as gerações de parisienses alocados ali para sempre, trogloditas estabelecidos definitivamente, encerrados nos seus pequenos panteões, nos seus pequenos buracos cobertos com uma laje ou assinalados com uma cruz, enquanto os vivos ocupam tanto espaço e fazem tanto ruído, os imbecis (Maupassant, 1891).
Guy de Maupassant refletia assim num relato de 1891, Les tombales, de tema entre o erótico e o humorístico, antes de dedicar mais dois longos parágrafos à arte que podia se encontrar nos cemitérios de Paris, “tão interessantes quanto os museus”. A ideia lhe interessava. Num relato anterior – La morte, de 1887 – já tinha expressado, quase com as mesmas palavras, essa densidade, ao mesmo tempo demográfica e semântica, dos cemitérios, que não oferecia dúvidas na sua época, cem anos antes que uma nova moda sepulcral, a dos cemitérios-gramados, os tornasse menos loquazes, embora não menos significativos.
No entanto – falo por experiência própria –, pesquisar um cemitério costuma ser visto como uma ideia pitoresca ou extravagante, muito mais do que pesquisar um mercado ou um boteco, mesmo que seja precisamente no cemitério onde as declarações e as reticências sejam mais expressivas. É isso que confere valor ao livro de Antonio Motta, ao mesmo tempo em que define as suas fraquezas.
À flor da Pedra é um livro primorosamente editado e agradavelmente escrito, que pinça na literatura e na arte ocidentais – com referências em nota a outras tradições – panoramas da relação entre o sujeito, a morte, a memória e os modos de dar sustento a ela nesses conjuntos monumentais que são os cemitérios. Detém-se especialmente na criação dos cemitérios como espaços de memória independentes da Igreja, aptos para dar cabida ao privatismo decimonónico; mostra como se desenvolveu neles o jazigo familiar, que dava eternidade à família burguesa, e como, mais tarde, esse doce lar tumular deixou passo a uma sepultura mais personalista, centrada nos casais ou nos indivíduos. Relata como as façanhas do trabalho, do comércio e da filantropia encontraram seu espaço de glória nas comemorações estatuárias, e tudo isso tratando dos cemitérios brasileiros, embora com referências constantes a outras necrópoles famosas, especialmente francesas e italianas. O livro oferece um interessante catálogo (que nunca poderia ser exaustivo) de sepulcros brasileiros especialmente expressivos, recolhendo a tradição de um velho estudo de Clarival do Prado Valadares, que atendia a esse setor habitualmente esquecido da arte nacional, e também desencava alguns interessantes debates públicos sobre as polêmicas higienistas, a democratização do direito a uma sepultura pessoal e as mutáveis condições de classe dos cemitérios.
Tudo isso outorga interesse a esse livro, que, no mínimo, esclarece que para saber algo sobre o Brasil – ou sobre qualquer outro lugar – não se deveria deixar de consultar os seus mortos.
A fraqueza do livro se encontra também muito perto desse mérito. Afinal, os cemitérios falam muito, de modo que para não se perder na sua conversa, sempre um tanto convencional, seria conveniente centrar-se em algum dos seus ditos, ou buscar um outro lado do discurso. Sem dúvida os cemitérios falam, como diz o livro, do indivíduo, dando uma das melhores expressões possíveis a uma cosmologia individualista que no século XIX foi substituindo à da Igreja – ou que, para ser exato, foi se impondo à mesma Igreja. Mas vale a pena lembrar que toda essa exaltação decimonónica do morto individual pouco mais fez do que estendê-la à camada superior do Terceiro Estado, já que o monumento funeral consagrado à gloria mundana do defunto já ocupava antes os interiores dos templos, em benefício da nobreza e do alto clero. O enterramento em terrenos exclusivamente dedicados a esse fim foi, sim, um feito da secularização e de um primeiro higienismo, mas de outra parte apenas restabeleceu uma tradição clássica que o cristianismo – uma das raras religiões que chegaram a aglutinar templo e sepultura – tinha interrompido. Não é nenhuma surpresa que a exaltação burguesa da família, com sua ênfase patriarcal, tenha um palco no cemitério, nem que a nuclearização dos lares e o encolhimento consequente das residências dos vivos tenham se manifestado igualmente nas últimas moradias. Afinal, o cemitério faz muito por se parecer à cidade: é desenhado de acordo com as mesmas ideologias e as mesmas teorias urbanísticas. Com a diferença de que os mortos ocupam menos espaço e são muito menos irrequietos que os vivos, e assim se sujeitam melhor ao planejamento. São dispostos, quase sem resistência, de acordo com o modelo. Justo por isso, descobrir no cemitério os modelos sociais em vigor tem algo de tautologia. E, pela mesma razão, o mais interessante que pode se encontrar nos cemitérios é aquilo que aparentemente se desvia do modelo. À flor da pedra trata dessas divergências em alguns momentos, por exemplo, quando trata do erotismo: seja qual for o grau da repressão ou da tolerância de uma sociedade, um cemitério é um dos últimos lugares em que se esperam manifestações desse tipo. E, contra essa expectativa, elas não são raras. Dois exemplos encontrados no cemitério de S. João Batista, no Rio de Janeiro, servem ao autor para sugeri-lo. Em ambos trata-se de uma relação entre esposos; mas há também essas imagens de mulher fatal, ou anjo feminino, ou belle dame sans merci, que proliferam nos cemitérios, sobre as quais não se diz nada para além de constatar sua presença intrigante. Elas tinham passagem franca na literatura da época; mas como chegaram a ser incluídas com tanta frequência num contexto habitualmente mais devoto como o dos cemitérios? Decerto, haveria outras variedades desse erotismo: efebos ou crianças apenas púberes, de mármore ou bronze, saltitando sobre os túmulos sem mais roupas que as da alegoria. Bastaria lembrar as estátuas jacentes dos Valois nos túmulos de Saint-Denis para lembrar que a contaminação mútua de erotismo e morte vem de longe, e que, curiosamente, só os cemitérios preservam algo dessa relação que o Ocidente erradicou de todo o resto dos fastos funerais.
Ou será que o erotismo surge como uma última manifestação de rebeldia? Falta no livro – se é que não falta nos cemitérios brasileiros – essa dimensão do túmulo como manifestação de heterodoxia, tão frequente pelo mundo afora.
Merece destaque no livro um detalhe a respeito da representação plástica do luto. Uma digressão prévia: é curioso observar como os estudos antropológicos sobre rituais funerais, sabendo que sua competência se exerce principalmente sobre as expressões formais de dor, assumem que haverá sempre uma outra dor, dimensão pungente e íntima, que o frio idioma da ciência não conseguirá expressar. E, no entanto, olhando com cuidado para algum desses mesmos monumentos do luto retratados em À flor da pedra, é difícil não pensar no íntimo alívio, para dizer pouco, que muitos terão experimentado ao encerrar suas relações sob pesadas inscrições de desolação; não são só as expressões obrigatórias dos sentimentos que variam, os sentimentos em si pouco têm de previsível, e é interessante observar o critério de seleção que a eles se aplica nos cemitérios. No livro ilustra-se uma exceção: a imagem de bronze de um homem com seu filho olhando melancolicamente um pão sobre uma mesa, junto à qual se vê uma cadeira vazia. Esse caso raro faz destacar por contraste uma distribuição de gênero muito diferente: são quase sem exceção estátuas femininas as que se ocupam de chorar permanentemente nos túmulos. Retratos de esposas ou filhas, ou mulheres genéricas (ou alegorias femininas da Humanidade ou a Pátria), choram no túmulo do esposo, do pai ou do Grande Homem. Quando uma mulher é a protagonista da sepultura, são crianças as que se ocupam de chorá-la. Mulher chora sempre, homem nunca, mesmo quando nada garante que ele tenha morrido antes – muitas vezes os túmulos eram encomendados com muita antecedência. Curiosamente, como o livro indica, acontece o contrário num daqueles expoentes do erotismo funeral, em que o homem nu que se inclina sobre uma mulher jacente comemora, ao que parece, um esposo que faleceu antes que a sua viúva, quem ideou o conjunto.
Definitivamente, o silêncio do túmulo é só aparente: na verdade ele fala tanto que diz o que quer e até o que não quer. À flor da pedra recolhe muito do primeiro; do segundo, um pouco menos do que caberia esperar.
Oscar Calavia Sáez – Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social. Universidade Federal de Santa Catarina, E-mail: occs@uol.com.br.
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