Celtas e Germanos: olhares interdisciplinares / Brathair / 2013

Seguindo a tradição da revista Brathair de unir pesquisadores de várias áreas tratando de temáticas sobre os celtas e germanos, a edição de 2013.1 é consagrada aos olhares interdisciplinares, relacionados a esses povos. Neste sentido, os trabalhos dessa edição, percorrem os caminhos da História, Literatura, Filologia e Filosofia.

Pode-se dizer que a temática central é a relação entre História e Literatura, na medida em que entre os documentos analisados pelos autores temos o tratado médico, Capsula eburnea, obras hagiografias, biografia, textos literários e os escritos filosóficos de Heidegger e sua apropriação pelo nazismo.

Chiara Benati, da Università degli Studi di Genova, Itália, analisa o tratado médico Capsula eburnea (séculos IV / V), cuja versão original grega os medievais atribuíam ao médico Hipócrates, valendo-se do dispositivo retórico típico – um verdadeiro topos nas obras escritas e mesmo nos conteúdos orais disseminados na Idade Média – a que designamos por auctoritas. Trata-se de uma lógica segundo a qual a predicação de autoria a um clássico, padre da igreja, santo, filósofo / teólogo, autor inspirado de um Evangelho ou personagem bíblica, por exemplo, garantia ao conteúdo credibilidade e potencial de ampla difusão entre as camadas letradas e mesmo no lastro da cultura oral.

Nestes termos, o artigo de Benati denota rigor filológico ao traçar o estema das versões alto e centro-medievais alemãs do pequeno tratado médico, evidenciando-se as conexões e as interações culturais entre o Sul da Europa e as regiões alemãs. Desta forma, o texto revela o mérito de exemplificar, para os pesquisadores brasileiros – entre eles os historiadores – como proceder, de modo rigoroso e conceitualmente lastreado, ao trabalho filológico como instrumento de análise, crítica e reconstituição historiográfica e literária.

Analisando as relações entre História, Economia e Historiografia, tendo por base textos de pensadores cristãos como Ildelfonso, Isidoro de Sevilha e Aurélio Prudêncio, Mário Jorge da Motta Bastos (UFF / Translatio Studii) se propõe repensar, analisando e problematizando, um artigo do clássico medievalista francês Georges Duby. Trata-se de breve artigo publicado, em 1958, na prestigiosa Revue des Annales, sob o título de La Féodalité? Une mentalité médiévale, cujo intuito era rediscutir a noção de feudalidade (féodalité). Esta revisão historiográfica deu-se por ocasião da comemoração do clássico Qu’est-ce que la féodalité (1944) do historiador belga François-Louis Ganshof.

Com este objetivo, o autor realiza uma apropriada e necessária definição do campo semântico do feudalismo como complexo mais amplo de relações sociais de produção, dominação, resistência e elaboração de formas de pensar e representar o mundo. Desta noção abrangente e sistêmica, o autor destaca e particulariza, para fazer justiça ao pensamento de Duby, a ideia de feudalidade como traço de mentalidade, conjunto de representações de mundo conscientes ou irracionais, uma forma de sensibilidade coletiva. A originalidade do enfoque proposto no artigo reside no fato de que o autor demonstra, sofisticadamente e com o imprescindível recurso às fontes primárias, como o batismo engendrou, como legitimação ideológica, a fides enquanto instrumento contratual entre Deus e os integrantes do grêmio da Igreja. Os últimos, redimidos do pecado da insubordinação a Deus e libertos do domínio demoníaco, celebram com Deus um pacto em que se tornam mancipium Christi. Esta lógica produz, reproduz e é, por sua vez, reproduzida e ampliada pelos vínculos de feudovassalagem e de dominação senhorial.

Ronaldo Amaral (UFMT) tece relações entre História, Santidade e Religiosidade, em um texto adequadamente didático e, como tal, oportuno para a difusão e exemplificação do trabalho historiográfico com fontes hagiográficas. Partindo da Vita Fructuosi (século VII), o autor pretende problematizar o papel do imaginário e do contexto mental e ideológico na gesta da hagiografia como gênero retórico destinado a propagar um modelo de homem e de história. O trabalho prima pelo ineditismo da fonte e por conseguir ultrapassar a tendência à história interna ou filológica do corpus textual. O recorte, conquanto evidente para os historiadores de ofício, mostra-se inovador quando considerada a Vita Fructuosi, vez que não se cinge a discussões sobre a autoria ou gênese do documento. Evita-se, assim, recair em uma falsa questão historiográfica.

Márcia Manir Miguel Feitosa (UFMA / Mnemosyne) analisa textos literários que possuem um fundo celta. A partir do romance Crônica do Imperador Clarimundo, obra portuguesa de João de Barros, composta no século XVI, relaciona o romance com obras da Matéria da Bretanha, em especial A Demanda do Santo Graal, que teve uma importante circulação no reino luso.

Dentre as analogias entre a Crônica e a Demanda salientadas por Feitosa podemos destacar as qualidades do herói, semelhantes a do rei Artur, e sua espada, que guarda analogias com Excalibur. Além disso, Clarimundo, de acordo com o artigo, também possui analogias com outro herói da Demanda, Lancelot, por se voltar aos valores do cavaleiro cortês (a proteção das damas e a realização de façanhas heroicas).

Já o artigo, de redação inglesa, escrito por Ismael Iván Teomiro García (UNEDEspanha) prima pela erudição filológica e linguística, filiando-se, em sua linha de estudos, a uma concepção de gramática generativa, muito cara à teoria de Algirdas Julius Greimas, semiólogo lituano paradigmático para os estudos da linguagem. O autor evidencia alguns aspectos peculiares da sintaxe do atual irlandês, que evolui do antigo gaelic e adquire estatuto de língua nacional oficial em 1922, com a independência da Irlanda do Sul em relação ao Reino Unido. Neste esforço, faz-se oportuna a tradução de fonemas e sua sintaxe para o inglês, idioma do texto, uma vez que o mesmo foi o instrumento cultural de assimilação e imposição de suserania por parte da Inglaterra às populações gaélicas da Irlanda, hoje figurando como uma das línguas oficiais da República da Irlanda e sua verdadeira língua franca.

Analisando a relação entre História e Política, Dominique Vieira Coelho dos Santos e Anderson Souza (FURB) analisam uma biografia anglo-saxã dedicada ao rei Alfredo, a Vita Ælfredi Regis Angul Saxonum, escrita por Asser. Neste relato, o monge galês procura valorizar as características do rei Alfred como bom guerreiro e letrado. De acordo com o artigo, pode-se fazer uma analogia entre o Renascimento Carolíngio e o Renascimento Anglo-Saxão ocorrido no período de Alfred, que assim como Carlos Magno estimulou no seu governo a circulação de obras clássicas. O artigo é bem construído e discute o uso da narrativa para a valorização do rei e sua ligação com valores positivos como a guerra e a cultura.

Também tratando das relações entre História e Política na relação do uso da Filosofia pelo poder, temos o artigo de Moisés Romanazzi Tôrres (UFSJ), que problematiza, mobilizando um amplo espectro de conceitos e noções fundamentais da ontologia de Martin Heidegger (1889-1976), um aspecto de relevância para a compreensão não apenas do complexo pensamento do autor alemão, como de sua participação política e comprometimento ideológico com o Nazismo.

O ensaio, conquanto breve, é bastante denso e evidencia domínio do autor sobre os temas fundamentais desta ontologia histórica e pós-metafísica, ainda pouco problematizada pelos historiadores. Tratando-se de uma proposta de fundamentação da historicidade da condição humana e sua aderência à dimensão inescapável da temporalidade, a filosofia de Heidegger oferece contribuição inegável para uma Teoria da História.

Como tradução, Gesner las Casas Brito Filho apresenta-nos O sermão do Lobo aos ingleses (c. 1010-1016). A homilia – gênero retórico renovado na Idade Média Central, sobretudo por parte dos dominicanos, franciscanos e beneditinos, com fulcro no sermo rusticus ou sermo humilis herdado da Patrística – é uma das composições mais conhecidas de Wulfstan de York. O mesmo se intitulava Lupus (lobo, em latim) em seus textos, pois Wulfstan, traduzido do inglês antigo, significa pedra-lobo (wulf-stan).

O Sermo Lupi ad Anglos é um dos únicos documentos que descreve as invasões nórdicas à Inglaterra anglo-saxônica. No período de sua escrita, vivia-se nova fase da ofensiva nórdica, que redundaria em um processo de tomada política do reino inglês. Processo que culminará – entre batalhas, acordos, fugas do rei Æthereld para o continente e outros conflitos – com a coroação do rei dinamarquês Cnut, o grande, como rei da Inglaterra em 1016. Por conseguinte, trata-se de uma fonte para a História das práticas de poder e suas tensões, latentes e patentes, no norte da Europa, durante o início da Idade Média Central, tão mais importante e adequada para a presente edição de Brathair quanto ainda rara e inexplorada pela Medievalística brasileira.

Nas resenhas, Álvaro Alfredo Bragança Júnior (UFRJ) analisa o livro de Ruy Oliveira de Andrade, Imagem e Reflexo, que estuda a cultura, religiosidade e política no reino visigodo de Toledo na Alta Idade Média. João Lupi (UFSC) detalha a importância do Kalevala, edição portuguesa de um conjunto de poemas da Finlândia, compilada no século XIX, por Elias Lönnrot, mas cujo fundo mítico tem influência do período medieval, em especial de aspectos da cultura viking. Lupi destaca também os elementos do poema, sua importância para a cultura da Finlândia, seus aspectos míticos, a relação destes com outras culturas e as características da tradução da obra, daí a importância em estudá-la nos dias atuais.

Por fim, cumpre ressaltar que, à pluralidade de temas, fontes primárias e enfoques analíticos aqui presentes, esta edição de Brathair procurou somar um incentivo à reflexão acerca das fecundas possibilidades de interface entre História, Filosofia e Teoria Literária para a exegese não apenas dos documentos coligidos, mas, principalmente, para nos conceder uma visão mais ampla e sistêmica a respeito da cultura letrada medieval, seja latina ou vernácula. As análises que aqui ofertamos aos leitores, colegas ou diletantes que nos honram com sua leitura, procuram evidenciar a interação entre escrita e oralidade na gesta do cotidiano e das práticas de poder, bélicas ou simbólicas, dos homens e mulheres da Idade Média.

Marcus Baccega – Professor Doutor (UFMA). Pós-Doutorado Université Paris I, 2013. E-mail: marcusbaccega@uol.com.br

Adriana Zierer – Professora Doutora (UEMA). Pós-Doutorado École des Hautes Études en Sciences Sociales, 2013-2014. E-mail: medievalzierer@terra.com.br


ZIERER, Adriana; BACCEGA, Marcus. Editorial. Brathair, São Luís, v.13, n.1, 2013. Acessar publicação original [DR]

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