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Venticinque studi sui preplatonici – CASERTANO (RA)
CASERTANO, G. Venticinque studi sui preplatonici. Pistoia: Petite plaisance, 2019. Resenha de: SANTOS, José Gabriel Trindade. Revista Archai, Brasília, n.30, p 1-7, 2020.
A Obra em apreço é uma coletânea de estudos, publicados entre 1976 e 2015, dedicados aos pensadores habitualmente chamados “presocráticos”, aqui acompanhados pelos sofistas. Precedida de quatro ensaios que abordam temas e questões relativas à Antiguidade, a Obra inclui estudos sobre Escolas filosóficas e pensadores avulsos: Epiménides, Jónicos, Pitagóricos, Parménides, Heraclito, Empédocles, Demócrito e Górgias, terminando com um ensaio sobre “Hegel e os sofistas”.
Deve se advertir o Leitor de que não se encontra perante um trabalho escolástico, de introdução à filosofia grega, pensado para cobrir as problemáticas mais relevantes nas obras dos pensadores da tradição, mas como uma recolha de textos, importantes pela sua qualidade e pela relevância da problemática tratada. Como cada um deles documenta uma empresa original de pesquisa nas temáticas eleitas pelo A., todos guardam ainda hoje uma frescura que os preserva da desatualização. Mesmo os dedicados a Empédocles, anteriores ou contemporâneos da onda de publicações que registram as primeiras conclusões atingidas pelas tentativas de reconstrução do “papiro de Estrasburgo”(2004-2005), são aceitáveis, embora continuem a se referir aos Poeta-filósofo como autor de “dois poemas”.
Por outro lado, o rigor científico que os caracteriza, assinalável n a riqueza e atualidade das referências bibliográficas que incorporam, não mascara o envolvimento pessoal do A. na pesquisa, revelando não apenas uma prática docente atenta e responsável, mas uma visão genuinamente filosófica, animando o diálogo mantido que r com as fontes originais, quer com a bibliografia secundária.
Dois aspectos que cumpre salientar nestes ensaios são o equilíbrio e o bom-senso exigidos a um docente e investigador, quando se sente obrigado a tomar publicamente partido na avaliação de teses envolvidas em controvérsia. Anos passados sobre algumas das muitas polêmicas que nalgum momento dominaram os estudos de Filosofia Antiga em muitas Universidades, a sobriedade dos juízos oportunamente emitidos pelo A. sobre as questões em debate faz a inda hoje prova da sua clarividência. São disso excelente exemplo alguns ensaios, aqui trazidos à estampa, como “Tempo, movimento e morte nella filosofia degli Ionici”(1989), ou “ΠΙΣΤΟΣ ΛΟΓΟΣ ed AΠΑΤΗΛΟΣ ΚΟΣΜΟΣ ΕΠΕΩΝ in Parmenide di Elea”(1976), “Orfismo e pitagorismo in Empedocle”(2000) e “L’ambigua realtà del discorso nel Peri tou me ontos di Gorgia”(1995).
Este traço crítico avulta no debate sobre as interpretações de que tem sido objeto o Poema de Parménides, iniciado pelo primeiro dos estudos citados acima. Neste ponto, a posição do A. é exemplar, pela defesa que fez da necessidade de repensar a caracterização de Parménides como “o filósofo do ser”e levar na devida conta o extenso material coletado, relativo à Opinião (doxa). Resumindo a posição as sumida em Parmenide: il metodo, la scienza, l’esperienza (1978), os argumentos enumerados nas “Noterelle parmenidee”(1989) e espalhados por outros estudos insistem num conjunto de recomendações às quais só muito recentemente (depois de 2012) a Crítica começou sistematicamente a prestar atenção:
- é necessário liberar a nossa interpretação dos presocráticos, em particular de Parménides, das leituras a que são submetidos por Platão e de Aristóteles (este, pouco claro com Parménides e clamorosamente injusto par a com Melisso: ver “Aristotele critico di Parmenide”: 2009), e descontar o peso e a influência que exercem nas tradições doxográfica e historiográfica;
- é necessário analisar e esclarecer o protagonismo concedido à entidade designada como o “ser de Parménides”, objeto perseguido por dezenas de comentadores, “praticamente como se a segunda parte do Poema não existisse”;
- é necessário criticar e superar a liquidação, como ”erro”, “ilusão”, “mera opinião”, do questionamento crítico desenvolvido por Parménides nos fragmentos relativos aos eonta.
Outro texto em que a acurada leitura do A. se revela atual é, por exemplo, “Logos e nous in Democrito”(1980), no qual aponta a profunda coerência entre as teses físicas e as éticas, defendendo a interpretação de um pensador que não pode ser considerado “materialista”, nem “racionalista”– no sentido que atribuímos hoje a essas categorizações –, apesar de ter decisivamente contribuído para elas e como tal tenha sido entendido na tradição.
Não se pode, porém, deixar de prestar a maior atenção aos estudos que dedica aos dois maiores sofistas: Górgias e Protágoras. Em “Astrazione ed esperienza: Parmenide e Protagora”(1988) compara duas concepções sobre a doxa, profundamente interligadas pelo nexo entre sensações e juízos, porém, bem distintos nas estratégias que propõem para aceder à realidade.
A Górgias – que, como Parménides, se acha presente em diversos outros ensaios – são dedicados dois notáveis estudos. No primeiro, acima referido, toda a argumentação do sofista, no tr atado Do não-ser, é pacientemente escalpelizada e apontada à epistemologia eleática, contra a qual sustenta as suas três teses capitais: nada é; se alguma coisa é, não é compreensível pelo homem; se alguma coisa é compreensível, é incomunicável e inexplicável.
Mas é em “Verità, errore e inganno in Gorgia”(1999), que é mais profundamente estudada a estratégia argumentativa do sofista. Através da análise do Elogio de Helena, nos são fornecidos dados sobre a lógica dos argumentos por ele usados. Pois, é mediante a análise a que são submetidos os conceitos operatórios dos quais lança mão que se entende a ’verdade’, como ‘ornamento’ e prova do ‘decoro’ do discurso, e o ‘engano’ como em tudo diferente do ‘erro’. Pois, enquanto o primeiro constitui um caso de “boa persuasão”, porque tem o poder de mover a alma, o segundo é utilizado para “enganar a opinião”, induzida pela aceitação de um discurso falso. Finalmente, é pela harmonização da relação dialética entre a qualidade e os efeitos do discurso – incompreendida já por Aristóteles –, que pode se ter acesso ao kosmos do discurso gorgiano. Kosmos que é um erro, seguindo Parménides, interpretar pela tácita aceitação da identidade de ser e pensar, uma vez que, Górgias deixa bem claro que uma coisa é o objeto “fora de nós”, outra é “em nós”o objeto do discurso (Sobre o não-ser §84).
Bom exercício de autocrítica sobre a nossa percepção do fenômeno sofístico será enfim colhido pelo estudo atento do difícil ensaio “Hegel e i sofisti”(2000), que encerra a coletânea aqui apreciada. Pois, se algumas das concepções do filósofo alemão podem nos fazer sorrir, pelo fato de só se compreenderem na relação que mantêm com o todo da sua concepção da História da Filosofia, como poderá a nossa própria avaliação escapar a essa mesma crítica?
A terminar, dos estudos ainda não abordados aqui, gostaria de salientar dois. O primeiro, intitulado “Piacere e morte in Eraclito (“Una filosofia dell’ambiguità ”: 1983), ultrapassa claramente os contornos e exigências a que deve atender um estudo analítico sobre a filosofia do Efésio, pela sua estatura filosófica e qualidade poética.
Depois de ter relacionado, não menos de quarenta e sete fragmentos do pensador, envolvendo-os nas teias tecidas pelos comentadores que cita, o A. defende que – à semelhança dos outros termo atrás estudados – o filósofo usa o termo ‘morte’ em diversos sentidos:
[… ] intencionalmente obscuros, ambíguos, mas decerto não privados da sua coerência interna [… ] implantando uma lógica do contraste-identidade (e não uma da não-contradição, como Parménides) (281).É então, partir desse momento, que, seguindo os próprios passos do filósofo ao qual dedicou atenção, o A. inicia o seu percurso sobre os sentidos de ‘vida’, para terminar com uma reflexão “filosófica”sobre a morte.
O homem vive num mundo que não foi dado por si e que nenhum deus lhe ofereceu: já organizado nas suas estruturas físicas… constituído por fenômenos e ritmos [… ] como são, eram e serão eternamente [… ], também nas estruturas políticas e sociais.
Lançado nesse mundo, o homem pode viver a sua vida dormindo, ou vivo, no sentido forte, [… ] estruturando a sua vida a partir de regras de conduta éticas e políticas, pelas quais será um aristos [… ] que, ao afrontar a morte, embora thnetos, é como se fosse athanatos: pois, vi vendo a sua morte, é como se morresse a sua vida (281).
Destacado dos outros, vive, de modo a, com o seu phren e o seu noos, se elevar à compreensão do kosmos e do diakosmos em que vivem os outros, até atingir o logos, pelo qual se torna philosophos. Até, no mais alto do seu ser consciente, se tornar consciente da desaparição definitiva da sua consciência (281-282).
É então que, refletindo filosoficamente sobre a ambiguidade e contrariedade do real, que o senso-comum, tal como o conhecimento científico consideram simples, linear e não contraditório, chega a compreender que este mundo fugirá sempre em qualquer parte à captura pelo nosso pensamento, porque o significado e valor deste mundo residem numa lei eterna e universal, uma lei que não poderá jamais ser completamente compreendida e dominada, que é a lei da morte (283-284).
O segundo texto que quero destacar culmina a série de três estudos dedicados a Empédocles. Na sua análise da narrativa do poeta-filósofo de Agrigento (“Amore e morte in Empedocle”: 1999; e “Orfismo e Pitagorismo in Empedocle”: 2000), o A. debate-se com o problema motivado pela coexistência, em dois ou num único Poema, de duas cosmologias dificilmente compatíveis. Surpreendentemente, opta por superá-lo projetando o mito na lenda sobre a v ida do seu autor. Todavia, como a tensão que anima o texto se dissolve no comentário, opto por traduzi-lo, não integralmente, como merece, mas me limitando aos seus dois primeiros parágrafos.
Uma vez fui arbusto e mudo peixe no mar Era uma vez um homem que não tinha sempre sido um homem, mas árvore, pássaro, peixe, fera, deus. Era um deus que era também um homem, venerado, amado, bendito. As criaturas infelizes se aproximavam dele, carentes de uma palavra que soubesse lhes fazer sonhar num amanhã de paz e tranquilidade. Por ser esse homem que era também um deus e tinha sido garoto e garota, árvore, peixe, que tinha ainda sido um deus, uma árvore, um garoto, uma garota, um peixe, era capaz de ver aí onde dez e vinte gerações de homens não conseguiam ver, via no passado e via no futuro. Porque a sua mente, que era o seu corpo, que era todas as mentes e todos os corpos que tinham vivido, que viviam e teriam vivido, permanecia solidamente ancorada no seu seio, forte na sua mobilidade, ágil na sua firmeza.
Esse homem tinha vivido na Sicília, na loura cidade de Ácragas, que em Fevereiro era circundada pela neve e pelas amendoeiras em flor (e brancas eram as mechas que lhe cingiam a fronte), que em Junho era circundada pelo ouro das espigas maduras (e douradas eram a s vestes que lhe envolviam o corpo). Esse homem era um mago: sabia acalmar os ventos; era um físico: sabia como e de quais raízes são constituídas as coisas do mundo; era um filósofo: sabia o ser e o não-ser do pensamento; era um médico: sabia curar os mal es do corpo e os da alma. Uma vez, o seu nome era Empédocles (359).
Referências
CASERTANO, G. (2019). Venticinque studi sui preplatonici. Pistoia, Petite plaisance.
José Gabriel Trindade Santos – Universidade Federal do Ceará – Fortaleza – CE – Brasil. E-mail: jtrin41@gmail.com
Os Pré-Socráticos – CASERTANO (RA)
CASERTANO, G. Os Pré-Socráticos. Trad. de Maria da Graça Gomes de Pina. Col. “Sabedoria Antiga”. São Paulo: Loyola, 2011. Resenha de: PEIXOTO, Miriam C. D. Revista Archai, Brasília, n.7, p.145-149, jul., 2011.
Em um prefácio escrito para o livro de I.Pozzoni, I Milesi. Filosofia tra oriente e occidente, Giovanni Casertano propõe uma reflexão que seria, a nosso ver, um preâmbulo para o seu próprio livro obre os Pré-Socráticos:
Lembro-me que quando comecei a estudar os Pré- Socráticos alguém me disse: «Ah! Quer dizer que você se ocupa do nada.”A tirada era significativa de muitas coisas; mas, para o que aqui nos interessa, ela sintetizava um modo de ver os estudos de filosofia antiga bastante sintomático. Com efeito, como todos sabem, não possuímos nenhuma obra daqueles que são designados Pré-Socráticos. Até mesmo a denominação Pré-Socráticos foi posta em duvida, mostrando-se a inadequação seja de um ponto de vista histórico (alguns Pré-Socráticos são com efeito contemporâneos de Sócrates, e alguns também de Platão), seja de um ponto de vista teorético (não é possível falar dos Pré-Socráticos como de uma categoria filosófica porque, se assim fosse, ela cobriria aspectos e doutrinas muito diferentes entre els). Mas, se falar dos Pré-Socráticos significa falar do nada, este nada, como demonstram pelo menos os estudos dos últimos cinqüenta anos, revelou-se muito substancioso.
Quando lemos o seu livro, damo-nos conta, de fato, quão substanciosa permanece ainda a pesquisa sobre os primeiros filósofos e o quanto ainda há por ser dito sobre o que pensavam. Examinemos os delineamentos que constituem, a nosso ver, a singularidade da sua “leitura”dos Pré-Socráticos e são o seu cavalo de batalha nos confrontos com os testemunhos e fragmentos que são os porta-vozes das suas opiniões e doutrinas.
Os Pré-Socráticos nos apresenta, em forma de ensaio, um panorama da filosofia denominada Pré-Socrática compreendendo os problemas de ordem metodológica e hermenêutica, pondo em evidencia os temas e as teses mais importantes entre aqueles de que se ocuparam os filósofos anteriores a Platão em suas investigações. Este período da historia da filosofia cuja denominação foi fixada em conseqüência do emprego do termo Vorsokratiker por Hermann Diels na sua coletânea de testemunhos e fragmentos destes filósofos, mostra-se cada vez mais importante quando se percebe a sua significativa contribuição para a compreensão das filosofias de Platão e de Aristóteles. Todavia é preciso esclarecer os limites do termo para entender o caráter das informações que nos fornece sobre esta geração de filósofos. Casertano, como o fazem hoje os estudiosos mais cuidadosos em suas interpretações deste período da história da filosofia (temos em mente, por exemplo, os recentes volumes publicados ou organizados por A. Laks, entre outros), serve-se ainda do termo, como ele próprio diz, “por comodidade”, e nos recorda – são as suas palavras – que
… se é preciso conservar o adjetivo pré-socrático, ele não pode indicar uma ou mais características comuns à “filosofia”de um certo período, mas indicar apenas que um certo pensador viveu grosso modo antes de Sócrates. (…) a novidade da atmosfera cultural que se começou a criar na Grécia e nas colônias gregas entre os séculos VI e V a.C. não pode ser determinada com base naquilo que ela “ainda não é”, isto é, a filosofia de Sócrates, e de Platão que fala de Sócrates, mas, pelo contrario, com base naquilo que ela “já não é”, ou seja, em relação às culturas anteriores à grega e à própria cultura grega antes do século VI. (p. 24-25).
Vale notar que o autor prefere falar de “filósofos pré-socráticos”que de uma “filosofia pré-socrática”, consciente da inexistência de um fundo homogêneo do qual emergiriam as suas doutrinas.
Consciente dos problemas inerentes em uma empresa desta natureza, Casertano inicia o seu livro por um exame do que ele denomina o “paradoxo da pesquisa histórica”, isto é, o desafio que representa o desejo de compreender o passado mesmo sendo homens do presente. Vejamos o que ele diz a esse respeito:
Por um lado, isto é, se queremos compreender uma forma cultural do passado, e a mentalidade própria dos homens que a produziram, não podemos atribuir àquele passado e àqueles homens esquemas e atitudes mentais próprias aos homens de hoje. Mas, por outro lado, não podemos tampouco espoliarmo- nos de todo da nossa cultura e da nossa mentalidade de homens de hoje no momento em que realizamos uma pesquisa histórica sobre uma época passada, porque qualquer que seja a investigação que desenvolvemos seremos sempre nós, hoje, a realizá- la, nós com os nossos problemas, os nossos interesses, a nossa cultura. (p. 14).
De fato, o ato de individuar temas e problemas, de selecionar as fontes a privilegiar, testemunhos e fragmentos, traz em si um elemento subjetivo que além disso determina nossas escolhas. O elenco dos Pré-Socráticos que figuram em seu livro corresponde a uma orientação que tem por escopo apresentar a emergência dos problemas que segundo o autor constituem os delineamentos mais significativos do seu pensamento. Mesmo se eles são reunidos com respeito a estes temas e problemas, não permanecem isolados juntos aos seus próximos, mas são confrontados aqui e ali para ressaltar o diálogo entre as idéias e doutrinas e tornar evidente a natureza processual do pensamento que vai de um a outro filósofo. De Epimênides aos Milésios, passando pelos Pitagóricos, pela poesia filosófica de Parmênides e dos demais eleatas, Heráclito, Empédocles, os primeiros filósofos de Atenas, isso é Anaxágoras, Diógenes de Apolônia e Protágoras, até os atomistas. Casertano insere um capítulo sobre a medicina e a matemática dos séculos V e IV que em muito concorre para a inteligibilidade do percurso proposto. Vemos aparecer, um após outro, os principais problemas dos quais se ocuparam filósofos e homens de ciência e que podem ser reunidos sob a égide daquele problema no qual todos os demais encontram a sua origem: aquele da descoberta de um cosmo eterno, sem nascimento nem morte, diferente mas não estranho ao mundo fenomênico dos nascimentos e da mortes, em outras palavras, como escreve Casertano, “uma realidade única imutável, no interior da qual se desenrolam as vicissitudes das coisas que vêm a ser e que mudam”, “uma única realidade que, para ser compreendida, deve ser estudada e pensada a partir de dois pontos de vista: aquele da totalidade e da unicidade, e aquele da particularidade e da multiplicidade”(p. 84).
Ao longo de seu livro, Casertano deixa aparecer os diversos matizes desta enquête, identifica os núcleos problemáticos e as linhas de reflexão comuns, mostrando como emergem, no seu interior, os outros problemas que configuram horizontes de investigação: a alma, o conhecimento, a linguagem e a ética, diferentes campos de manifestação dos basilares problemas da unidade e da multiplicidade, da identidade e da diferença, do visível e do invisível. Neste fundo emergiu a reflexão sobre o corpo e sobre a alma, sobre o conhecimento sensível e o intelectivo, nos quais estes aparentes opostos são considerados em sua imediaticidade e contigüidade.
Enfatiza-se, a cada vez, o caráter de ruptura, particularmente no campo das certezas, seja no que concerne a continuidade com relação à tradiçao mito-poética grega, seja no que concerne aos aspectos da cultura precedente. Em suma, na sua crítica aos estudiosos que afirmam uma radical contraposição ou a mecânica passagem de uma mentalidade a outra, Casertano adverte:
…é importante não formar uma idéia simplista da passagem de uma época e uma cultura afilosóficas ou pré-filosóficas a uma época e uma cultura em que a filosofia nasce e floresce: ou seja, não se forme a idéia de um “salto”ou de um só “passo crucial”no nascimento daquele tipo de pensamento e de mentalidade que chamamos filosóficos, nem se forme a idéia de um progresso continuo e pacífico de uma mentalidade “alógica”e “irracional”a uma nova mentalidade “lógica”e “racional”. (p. 21-22).
Na reconstrução das doutrinas dos Pré- Socráticos, evidencia-se os aspectos inovadores que caracteriza cada um deles em sua singularidade e, em particular, apresenta-se os elementos que permitem ver a emergência de uma indagação sobre o próprio método de pesquisa e atesta a sua crescente consciência de sua necessidade para se alcançar uma autentica compreensão do macrocosmo e dos seus microcosmos.
A título de exemplo, gostaria de assinalar alguns dos momentos de sua interpretação que incitam a pensar e a repensar os lugares comuns que entrevemos nas diversas empresas de interpretação dos Pré-Socráticos.
No quarto capítulo, intitulado “A poesia filosófica do VI e V século”, ao apresentar a cosmologia de Xenófanes, Casertano defende que encontra-se ali o que poderia ser considerado a idéia-chave para entender o cenário no qual se desenrola a investigação dos primeiros filósofos, a qual se traduz na identificação dos dois planos da realidade cósmica: aquele do que vemos, domínio dos fenômenos, que no movimento dos seus elementos fundamentais encontram-se presos no céu do compor-se e decompor-se, e aquele dos elementos constitutivos, eternos, que não conhecem nem nascimento nem destruição. Este duplo aspecto da realidade concerne o conjunto dos Pré-Socráticos.
A propósito de Parmênides, Casertano observa que o programa do saber revelado pela deusa abraça “todo o campo do saber humano, quer o que a deusa chama de verdade, quer o que chama de experiências”, e acrescenta que “o fato de que das experiências não se possa obter uma pistis alethes, isto é, uma crença, uma certeza verdadeira, não significa que elas não tenham nenhum valor, mas apenas que elas têm um valor diferente das primeiras…”(p. 86). Parmênides é apresentado como o inventor de um método de pesquisa – posição esta que já havia defendido o autor em seu Parmenide il método la scienza l’esperienza (Nápoles, 1989) – cujo pressuposto teorético consiste em reconhecer que “as leis que governam a realidade governam também o pensamento que reflete sobre a realidade”(p. 85), o que se pode concluir, segundo ele, da interpretação do fragmento 3: “de fato é a mesma coisa pensar e ser”(DK 22 B 3). Como conseqüência sustenta a tese que Parmênides “concebe fisicamente aquilo que é ”, isto é, o “to eòn “não seria outra coisa que “o cosmo entendido na sua totalidade”, o cosmo inteiro, uno-todo dos Pré-Socráticos, eterno, fora do tempo, que não nasce e não morre, imóvel; e “ta eònta ”, “as coisas que são”, as coisas que nascem e morrem, as coisas que se movem, que mudam, isto é a multiplicidade dos fenômenos. Casertano nega assim a existência de duas realidades distintas, afirmando não haver uma
contraposição entre realidade e não-realidade, entre um “ser”metafisicamente pensado e um “aparecer”que é condenado, mas antes uma distinção entre o discurso que se deve fazer sobre a realidade como uno-todo e o que se deve fazer sobre a realidade como multiplicidade de fenômenos. (p. 86).
A novidade de Parmênides comporta, segundo Casertano, um duplo aspecto: 1/ se “estabelece claramente estas afirmações como conseqüência de dois métodos diversos de ler a mesma realidade”; 2/ se “justifica logicamente as suas afirmações fazendo referencia ao ‘princípio de não contradiçao’ que depois será teorizado por Aristóteles.”
Quanto aos Pitagóricos, Casertano começa por distinguir, seguindo os passos de Aristóteles, os “primeiros Pitagóricos”e os “segundos Pitagóricos”. Esta distinção constitui uma premissa importante para a interpretação dos Pitagóricos Pré-Socráticos, sobre os quais, segundo o autor, “há pouca história e muitas lendas”. Com base nas concepções comuns aos outros Pré-Socráticos, Casertano se recusa a atribuir aos primeiros Pitagóricos a doutrina da metensomatose, considerando não encontrar ainda formulada uma nítida distinção entre alma e corpo, para o que se apóia nos testemunhos de Platão e de Aristóteles sobre os Pitagóricos nos quais não se faz nenhuma referencia a uma doutrina semelhante. A sua perspectiva aproxima ainda mais os primeiros Pitagóricos dos outros Pré- Socráticos.
No campo das reflexões comuns, Casertano aproxima Pitagóricos e Heráclito em torno da doutrina dos contrários: “O tema da discórdia e da disputa se conjuga com aquele Pitagórico da harmonia-tensão dos opostos.”Um outro ponto de contato entre Heráclito e os primeiros Pitagóricos concerne a interação alma-corpo. Ele o aproxima, ainda, de Parmênides, para fazer de sua enquete a primeira reflexão grega sobre o problema da linguagem e do conflito no “nomear”dos homens. No âmbito da reflexão sobre o problema da linguagem, e em estreita conexão com o problema da possibilidade de um conhecimento verdadeiro, muitas são as perspectivas presentes nos testemunhos, e não somente no que se refere aos sofistas.
Um outro aspecto característico da interpretação de Casertano, consiste em seu esforço em evidenciar o nexo estreito que liga cosmologia e antropologia. Seguindo a via de uma espécie de historia natural se faz derivar dos mesmos princípios cosmológicos uma explicação da vida dos organismos singulares inscritos em um processo de evolução no qual pretendem compreender ao mesmo tempo a vida humana individual e coletiva. Este filão, que começa com Anaximandro, encontra a sua formulação mais complexa em Demócrito e Protágoras. Entre outras coisas, eles se interrogam sobre a geração dos viventes, sobre os papéis respectivos do macho e da fêmea, avançando hipóteses até mesmo no terreno da embriologia.
Com o capitulo sobre os filósofos de Abdera chegamos ao fim deste longo e denso percurso, e reencontramos em seu pensamento não apenas os diversos temas e problemas já presentes nas enquetes dos seus predecessores, e com novas formulações, mas também outros ainda não considerados. De fato, nenhum outro mais que Demócrito diversificou suas vias de enquete. No terreno da física, Casertano reconhece a herança eleata, segundo ele “um modelo ao qual o pensador cientifico não podia mais renunciar”. Tornara-se imperativo encontrar hipóteses aptas a explicar a realidade, escreve o autor, “que mesmo sendo logicamente – racionalmene – corretas e coerentes, oferecessem ao mesmo tempo uma valida justificação de todos os fenômenos particulares, e principalmente do homem, da sua historia, da sua vida”(p. 185). E assim é introduzida a noção de átomo, o qual considera uma solução para o problema levantado na escola eleática: “Todos os corpos dos quais temos experiência são divisíveis, mas para explicar esta sua divisibilidade e as qualidades diversas que eles assumem e as transformações às quais estão sujeitos, é preciso admitir que todos são constituídos por elementos indivisíveis.”(p. 185). Entram em cena os átomos! Ainda uma vez, Casertano encontra ocasião para estabelecer conexões entre as diferentes doutrinas, e o seu esforço para resolver os problemas enfrentados pelos seus autores. Além de uma rica apresentação e discussão dos testemunhos sobre a física dos atomos, nós encontramos no capitulo em que se ocupa dos atomistas, uma exposição acerca de sua historia natural, de sua reflexão sobre o conhecimento e sobre a educação, para alcançar, como conseqüência natural do percurso feito, a um exame dos testemunhos que tratam dos diversos temas presentes em sua reflexão ética: a felicidade, o prazer, o belo, a amizade e a vida política.
Este ensaio, cuja tradução em língua portuguesa inaugura a coleção “Sabedoria Antiga”das Edições Loyola, não é somente mais uma apresentação geral dos filósofos Pré-Socráticos, embora seja também esta a sua finalidade. Se o volume pode ser considerado uma apresentação de conjunto para quem quer conhecer este capitulo da historia da filosofia, é também verdade que ele constitui uma sedutora provocação que nos convida a revisitar estes filósofos, a recolocar em discussão as interpretações de que foram objeto desde a Antiguidade até os nossos dias.Se è verdade, como pensa Casertano, que a obra de “reconstrução do passado é obra que nunca termina”, estamos de acordo com ele quando afirma que o valor das nossas conclusões e soluções reside precisamente em sua capacidade de suscitar novos problemas e de abrir novas perspectivas para a investigação (p. 13). Encontramos ao longo destas paginas leituras polêmicas e interpretações inusitadas, mas tudo isso não faz senão tronar ainda mais interessante a leitura deste volume. Ele convida o leitor, especialista ou não, a colocar em ação o seu pensamento, a confrontar testemunhos e fragmentos e a dar a sua contribuição para este trabalho interminável de reconstrução e interpretação do legado dos filósofos Pré- Socráticos. O livro é assim coerente com o critério estabelecido pelo próprio autor para a avaliação dos resultados de um trabalho de pesquisa: a sua capacidade de “propor novos problemas e abrir novas vias de investigação”!
Miriam C. D. Peixoto – Professora da Universidade Federal de Minas Gerais. E-Mail: mpeixoto@ufmg.br