Carta Ânua da Província Jesuítica do Paraguai 1659-1662 – FRANZEN et. al (HU)

FRANZEN, B.V.; FLECK, E.C.D; MARTINS, M.C.B. (orgs.). Carta Ânua da Província Jesuítica do Paraguai 1659-1662. São Leopoldo: Editora Unisinos/EdUFMT/Oikos Editora, 2008. 143 p. Resenha de: KARNAL, Leandro. Um documento jesuítico. História Unisinos 13(3): 312-313, Setembro/Dezembro 2009.

Pela primeira vez, é publicada no Brasil a Carta Ânua sobre a Província do Paraguai, que o provincial Andrés de Rada assinou em 1663. Esta Carta cobre o período 1659-1662 e, na edição organizada pelas pesquisadoras da Universidade do Vale do Rio dos Sinos, encontramos uma espécie de rascunho sobre os anos 1658-1660.

Os que trabalham com a documentação colonial jesuítica sabem o quanto esta publicação é importante. A documentação da Companhia de Jesus no período colonial é a fonte privilegiada para estudos religiosos, econômicos, políticos, antropológicos e até para os trabalhos sobre gênero. Escritores compulsivos, os membros de uma ordem que incorporou a noção moderna de texto e de sistematização de informações – a Companhia de Jesus – produziram uma pletora de cartas, relatórios, textos e imagens sobre quase tudo em sua época.

As Cartas Ânuas, síntese de muitas cartas parciais enviadas pelas unidades como colégios ou missões, constituem a atividade obrigatória de um jesuíta Provincial perante o religioso Geral em Roma, posto que fundamentam as decisões sobre a atuação dos jesuítas.

O documento publicado oferece uma rica oportunidade para as pesquisas brasileiras. Primeiro, porque fornece a visão corporativa e de conjunto da Companhia em sua ação no Novo Mundo. O texto revela um fl uxo de consciência com regras de retórica e apresenta os percalços da tarefa gigantesca que os padres enfrentavam. Entre estes se destacam o território imenso de atuação, os atritos com autoridades locais e até a defesa diante da acusação sobre a falta de empenho dos missionários.

Questões candentes como a tributação e o debate sobre o fornecimento de armas para as comunidades indígenas mostram que o olhar jesuítico concebe a Carta como um relatório amplo e não apenas religioso. Melhor dizendo: a visão sobre a eficiência da catequese parece incluir tudo que possa facilitar ou atrapalhar este projeto. O “mundo indígena e colonial em suas múltiplas facetas” (Franzen et al., 2008, p. 26) são o escopo do texto. Nesse sentido, a aspiração metafísica da Companhia de Jesus não parece excluir nada da imanência colonial.

O documento instiga o leitor, linha após linha, a reflexões e à formulação de perguntas que despertam pesquisas. De que maneira funcionavam colégios como os de Córdoba, Assunção ou Buenos Aires? Que modelos hagiográficos ou retóricos existem na descrição de cada necrológio da Carta, constituindo vidas exemplares, as quais, inclusive, poderiam conduzir a leituras mais amplas? Quais os modelos de missão descritos na obra? Como foram concebidos e implementados os projetos de evangelização dos indígenas? Qual o grau de maleabilidade tolerado pelos jesuítas em relação aos signos da cultura do outro? Como a alteridade é compreendida na pena dos padres? Quais redes de comunicação são constituídas e descritas pela Carta? Como as aparições da Virgem, indicadas pela narrativa, interagem, justificam ou corrigem a ação missionária? Que relações de gênero fluem da pena do provincial, ao descrever, por exemplo, a resistência de uma jovem índia ao assédio de um jovem tomado pela luxúria? Como as epidemias atuam nas comunidades? Quais conclusões demográficas podem ser retiradas de números registrados, como a cifra de 40 mil indígenas e 9525 famílias sob o cuidado da Companhia de Jesus na região? (Franzen et al., 2008, p. 106).

A publicação já é extraordinária pelos dois textos em si. Porém, o valor é aumentado pelo acréscimo de introdução, notas explicativas, mapas, relação de gerais, tabelas e índice onomástico final. A atual edição é a tradução realizada pelo P. Carlos Leonhardt, em 1927.

Como indicação final, resta sonhar com a ampliação da clareira aberta pelas pesquisadoras. Pensando no céu sobre esta estrada, resta também almejar que surjam outras publicações com a reprodução fac-similar do texto, sua transcrição paleográfica e tradução. Pensando na terra simples do chão do terreno, que despontem edições com a versão em português para o grande público. A lufada de ar fresco trazida pelo esforço das pesquisadoras Beatriz Vasconcelos Franzen, Eliane Cristina Deckmann Fleck e Maria Cristina Bohn Martins permite imaginar horizontes ainda maiores. Os pesquisadores sobre o período colonial agradecem.

Leandro Karnal – Doutor em História Social pela USP. Atualmente é RDIDP da Universidade Estadual de Campinas (IFCH/ Unicamp). Universidade Estadual de Campinas Cidade Universitária Zeferino Vaz, s/n, Caixa Postal: 1170 13083-970, Campinas, SP, Brasil. E-mail: karnal@uol.com.br.