Gênese e desenvolvimento de um fato científico – FLECK (SS)

FLECK, Ludwik. Gênese e desenvolvimento de um fato científico. Belo Horizonte: Fabrefactum, 2010. Resenha de: CARNEIRO, João Alex. Gênese e recepção do projeto epistemológico de Ludwik Fleck. Scientiæ Studia, São Paulo, v.13, n. 3, p. 695-705, 2015.

Nesta oportunidade completam-se 80 anos da publicação de Gênese e desenvolvimento de um fato científico, livro que exerceu reduzido impacto em seu lançamento. Contudo, após um longo período de ostracismo, ele constitui hoje um ponto incontornável tanto para a compreensão do debate epistemológico do entreguerras, como de suas reverberações contemporâneas. Com um título inusitado, o livro, também conhecido como a “monografia”, causou estranhamento na década de 1930, momento em que a epistemologia europeia era francamente influenciada pelo positivismo lógico de Viena. Seu objetivo central foi o de descrever cerca de meio milênio de desenvolvimento de uma doença, a sífilis. A audácia do empreendimento estava não só no largo escopo temporal analisado, mas principalmente nas formulações teóricas em um quadro conceitual inovador, servindo-se de expressões incomuns à filosofia e à língua alemã.

Luwik Fleck (1896-1961) destoa dos principais epistemólogos de sua época por carecer de formação em física ou matemática, e por não ter exercido a carreira acadêmica em filosofia. Foi, sobretudo, um “pesquisador de bancada” que nutria profundo interesse pela história da medicina e pelo debate filosófico. Formou-se em medicina pela Universidade Jan-Kazimierz de Lwów (Galícia, então território polonês), sua cidade natal. Atuou como clínico e pesquisador em microbiologia e imunologia. Com extensa produção científica, assumiu importantes posições acadêmicas e profissionais. Seu primeiro escrito de caráter epistemológico, redigido em polonês, “Sobre algumas características específicas ao modo médico de pensar” (1927), enfatiza o caráter construtivo e histórico dos conceitos utilizados pela medicina, em especial o de “entidade nosológica” (Fleck, 1927, p. 56). Destaca também a especificidade da atuação médica que, por não ser uma ciência de base, não demandaria uma fundamentação lógica, mas um “estilo de pensamento específico” (1927, p. 57). Dois anos depois, em um esforço de extrapolar tanto as barreiras de sua língua natal como as especificidades do campo profissional, Fleck publica seu segundo artigo epistemológico “Sobre a crise da ‘realidade’” (1929) na prestigiada revista alemã Die Naturwissenschaften. Tendo como pano de fundo a crise epistemológica promovida pelo advento da mecânica quântica, enfatiza não só a dimensão histórica do conhecimento, mas os elementos sociais e antropológicos que estariam presentes em todo ato cognitivo. A própria noção de “realidade” é entendida não de modo absoluto, mas relacional, produto de um certo “estilo de pensamento” compartilhado por uma “comunidade de conhecimento” (Flek, 2011 [1929], p. 54). Destaca ainda a democracia como caráter distintivo da comunidade científica na modernidade.

Em 1933, Fleck estabelece contato com Moritz Schlick. Em carta, busca apoio para a publicação da monografia, cujo esboço intitulava-se A análise de um fato científico – Busca por uma teoria comparativa do conhecimento. Na justificativa, indica as limitações da epistemologia da época, que investigava “não o conhecimento tal como fatualmente se manifesta, mas sua construção ideal imaginária”. Herdeira do empirismo ingênuo, centrava-se nas impressões sensíveis, ignorando os processos comunicativos e seus registros escritos: “nunca se pesquisou com seriedade se o comunicar de um saber, sua peregrinação de homem a homem, de revista especializada a manual, estaria em princípio relacionado com uma transformação direcionada de maneira particular” (Fleck, 2011, p. 561). Em sua resposta, Schlick minimiza qualquer esperança de publicação por seu intermédio. A monografia acaba então lançada na Suíça pela editora Benno Schwabe, que está um tanto distante do debate epistemológico da época, limitando sua difusão.

Gênese e desenvolvimento de um fato cientifico oferece – com base em uma ampla visão do desenvolvimento do conhecimento no curso histórico – um entendimento dos mecanismos responsáveis pela mudança do conhecimento científico no quadro da cultural geral. Trata-se de uma nova incursão no campo da medicina, mas a partir da perspectiva de uma teoria geral do conhecimento.1 Dividido em quatro breves capítulos, o livro ambiciona reconstituir o desenvolvimento da entidade nosológica sífilis desde o Renascimento até o início do século XX, enfatizando o advento da reação de Wassermann (cap. 1, 3). Entretanto, sua maior parte (cap. 2, 4) consiste em uma exposição mais detalhada dos conceitos aplicados em sua análise, alguns deles já apresentados nos artigos que acabamos de citar.

Nesse contexto, uma inovação central diz respeito à noção de “comunidade científica”, entendida de modo mais preciso sob a rubrica de “coletivo de pensamento” (Denkkollektiv):

Se definirmos o coletivo de pensamento como a comunidade de pessoas que trocam ou se encontram numa situação de influência mútua de pensamentos, temos, em cada uma dessas pessoas, o portador do desenvolvimento histórico de uma área de pensamento, de um determinado estado de saber e da cultura, ou seja, de um estilo específico de pensamento. Assim, o coletivo de pensamento representa o elo na relação que procurávamos (p. 82).

A participação em um coletivo de pensamento é amalgamada pelo conceito de “estilo de pensamento”, que “exerce uma ‘força coercitiva’ em seu pensamento e contra a qual qualquer contradição é simplesmente impensável” (p. 84). Genericamente, um estilo de pensamento é entendido como uma “disposição” quase inconsciente que direciona e faz convergir o pensamento dos membros do coletivo. Em um sentido mais específico, expressa a capacidade desses mesmos membros para “um determinar dirigido, voltado para um objeto” nele reconhecendo de modo imediato uma “forma” ou “configuração” (Gestalt) (p. 144). Tal capacidade é designada pelos termos “visão estilizada” ou “percepção de forma” (Gestaltsehen). Com isso, encerra-se o trinômio cognitivo, cujos polos são o indivíduo, o coletivo-estilo que direciona sua percepção, e o objeto a ser percebido. Dentre os exemplos oferecidos está o de reconhecer, após treinamento, padrões visuais distintivos em lâminas microscópicas preparadas com amostras biológicas.

Denominado pelo próprio filósofo como uma “sociologia do pensamento”, “ciência dos estilos de pensamento”, ou ainda, “teoria comparativa do conhecimento”, seu projeto epistemológico posiciona-se como uma resposta crítica ao seu tempo. Dada a ênfase na dimensão concreta, social e histórica, do desenvolvimento do conhecimento em geral, todos os projetos filosóficos que ignoram tais aspectos são caracterizados como “epistemologia imaginabilis” (Fleck, 2011, p. 62). Quanto a isso, é emblemática a crítica à sociologia e à antropologia de então, bem como a defesa de uma visão lógicoaxiomática da linguagem cientifica pelo positivismo lógico.

Outro erro, também muito característico, é cometido pelos cientistas-filósofos. Sabem que não existem “qualidades e condições exclusivamente objetivas”, mas apenas relações dentro de um sistema de referências mais ou menos arbitrário. Mas comentem, por sua vez, o erro de ter um respeito excessivo diante da lógica, uma espécie de devoção religiosa diante das conclusões lógicas” (p. 94).

A axiomatização da linguagem e o reconhecimento de “fatos científicos” seriam apreensíveis como resultados de um longo processo de desenvolvimento, baseado em pressupostos, “acoplamentos ativos” nos termos fleckianos. Suas implicações, os “acoplamentos passivos”, corresponderiam ao que denominamos como “fatos”. De modo geral, a história da ciência é vista como uma sucessão de estilos de pensamento, que atuam como sistemas fechados, autorreferentes. Mesmo a noção de “verdade” é entendida de modo relacional, no sentido de ser relacionada a algum estilo de pensamento. “Em todos os tempos, o saber era, na opinião de todos os envolvidos, sistematizável, comprovado e evidente. Todos os sistemas alheios eram para eles contraditórios, não comprovados, não aplicáveis, fantásticos ou místicos” (p. 63-4). Ao negar a existência de um estilo de pensamento absoluto ou universal, a “teoria comparativa” fleckiana consiste justamente no exercício de elucidar, por meio de uma abordagem comparativa, distintos estilos de pensamento.

Nesse exercício comparativo, grande importância é dada à linguagem. Porém, diferentemente do encaminhamento dado pelos positivistas lógicos, a monografia de Fleck inova ao enfatizar os mecanismos comunicacionais presentes, na atividade científica, em seus coletivos. Um coletivo informal pode ser subsumido pelo mero diálogo de seus participantes. Nos grandes coletivos científicos, porém, há uma estruturação formal, baseada em dois “círculos”: um “esotérico” e outro “exotérico”. O primeiro, caracterizado pela presença de membros profissionais, já iniciados no estilo de pensamento corrente e proficientes em uma língua mais precisa. Esses profissionais participam de polêmicas conceituais e deliberações às quais os demais membros não foram introduzidos ou não dominam por completo. Já o segundo círculo, difuso, possui níveis de participação e engajamento variados (p. 157).

A análise dos processos comunicacionais atuantes nos coletivos seria capaz de justificar tanto a persistência, como a alteração de um estilo de pensamento. Sendo os coletivos de pensamentos relativos às ciências naturais constituídos pela sobreposição de muitos desses círculos, a “circulação de pensamento no interior de um mesmo coletivo de pensamento” – principalmente no interior dos círculos exotéricos – atua no sentido de fortalecer as convicções compartilhadas, produzindo um “companheirismo gerado pela atmosfera comum” (p. 158). Há, porém, uma importante distinção entre esse tipo de circulação e aquela produzida entre coletivos.

A simples comunicação de um saber não é, de maneira alguma, comparável ao deslocamento de um corpo rígido no espaço euclidiano: nunca acontece sem transformação, mas sempre com uma modificação de acordo com um determinado estilo; no caso intracoletivo, com o fortalecimento; no caso intercoletivo, com uma mudança fundamental (p. 162-3).

Essa alteração pode consistir em uma mera “mudança matizada, passando por mudança completa de sentido ou até a aniquilação de qualquer sentido” (p. 143). Assim entendidos, os processos comunicativos intercoletivos alteram a “disposição da percepção direcionada”, resultam em “novas possibilidades de descobertas e cria novos fatos” (p. 144).

No âmbito comunicativo das ciências naturais modernas, Fleck destaca a importância dos meios de comunicação impressa, implicados diretamente na tensão entre fixação e mudança do conhecimento. Há publicações diretamente voltadas ao círculo exotérico, como o livro de divulgação científica (populäres Buch). Este, de linguagem simplificada e apresentação “esteticamente agradável, viva e ilustrativa”, desempenha papel preponderante na construção do que é designado por “saber popular” ou “ciência popular”, bem como na constituição de uma “visão de mundo” comum (p. 166). Do ponto de vista dos círculos esotéricos, o veículo mais emblemático é a “revista especializada” (Zeitschrift). Nela ocorrem os debates especializados, proporcionando a expressão de perspectivas pessoais e fragmentadas, muitas vezes divergentes ou incongruentes. Nesse sentido, a revista especializada constitui o veículo propício para a emergência de novas concepções que, ulteriormente, poderão engendrar novos “fatos” (p. 173). Finalmente, próximo ao limite entre os círculos esotérico e exotérico, encontra-se o “manual” ou “livro-texto” (Handbuch), que consiste na sistematização dos resultados acordados pelos especialistas tendo em vista a formação de novos integrantes para seu círculo.

Entendidas de modo sincrônico, as contínuas alterações sofridas pelos estilos de pensamento devido ao fluxo comunicacional são pouco visíveis. No entanto, em uma análise diacrônica, os resultados são notáveis. Ainda que não descrevam rupturas ou grandes revoluções, as mudanças transcorrem “de uma maneira muito mais rápida do que aquela ensinada pela paleontologia, de modo que assistimos constantemente às ‘mutações’ do estilo de pensamento” (p. 67-8). Contudo, é possível antever a permanência de certas linhas de desenvolvimento conceitual, amalgamadas por “protoideias” (Urideen/Präideen). Trata-se de um conceito de alcance maior que o de “entidade nosológica”, aplicável ao desenvolvimento do conhecimento em geral. Dentre os exemplos de protoideias, são citados o “átomo” e os “micro-organismos patogênicos”, ambos originários da Antiguidade. As protoideias não devem ser entendidas de modo substancializado, mas como uma perspectiva aberta ao desenvolvimento. São “predisposições histórico-evolutivas de teorias modernas e sua gênese deve ser fundamentada na “sociologia do pensamento” (p. 66). Disso resulta seu dinamismo conceitual, pois seu valor “não reside em seu conteúdo lógico e ‘objetivo’, mas unicamente em seu significado heurístico enquanto potencial a ser desenvolvido” (p. 67). Estão, consequentemente, envolvidas no desenvolvimento de novas linhas de pesquisa pois estabelecem o elo do tráfego entre diferentes coletivos e círculos de pensamento.

Dado que a ciência popular abastece a maior parte das áreas do saber de cada pessoa, e dado também que o profissional mais meticuloso lhe deve muitos conceitos, muitas comparações e seus pontos de vista gerais, ela representa um fator de impacto genérico de qualquer conhecimento e deve ser considerada como um problema epistemológico. Quando um economista fala em organismo econômico, ou um filósofo em substância, ou um biólogo no estado de células, todos utilizam em sua própria especialidade do repertório popular do saber. É em torno desses conceitos que constroem suas ciências especializadas (p.165).

Nesse sentido, o círculo exotérico e seu “saber popular”, ainda que distante do debate especializado, cumpre um papel fundamental ao fornecer um repertório de ideias capazes de serem transformadas e aplicadas em diferentes círculos especializados. Um exemplo oferecido é o da identificação do agente etiológico sifilítico, que “não nasceu de maneira imediata dos trabalhos individuais dos periódicos. Surgido em última instância dos pensamentos exotéricos (populares) e extracoletivos, obteve seu significado atual no tráfego esotérico de pensamento” (p. 175).

Ao refletir sobre o trabalho propriamente historiográfico, Fleck resume sua compreensão da história e o desafio que esta exige.

É difícil, quando não impossível, descrever corretamente a história de um domínio do saber. Ele consiste em numerosas linhas de desenvolvimento das ideias que se cruzam e se influenciam mutuamente e que, primeiro, teriam que ser apresentadas como linhas contínuas e, segundo, em suas respectivas conexões. Em terceiro lugar, teríamos que desenhar ao mesmo tempo separadamente o vetor principal do desenvolvimento, que é uma linha média idealizada (p. 55-6).

São justamente as múltiplas linhas de desenvolvimento da sífilis que Fleck busca traçar, ao comparar distintos estilos de pensamento. No Renascimento, havia um forte caráter ético-místico que associava astrologia e valores cristãos, o que configurou a sífilis como “doença venérea por excelência”, resultado de um “castigo pelo prazer pecaminoso” (p. 41). Outra corrente, de natureza empírica, a concebe como uma moléstia passível de cura por meio de certos tipos de metaloterapias. Posteriormente surge uma linha “patológica experimental”, preconizando a inoculação de tecidos e secreções contaminadas, tendo em vista controlar seu mecanismo de contágio. Esse polimorfismo sifilítico acaba por associá-lo a algum tipo de contágio ou corrupção dos humores sanguíneos.2 Desse contexto surge a tese da “alteração sanguínea” (alteratio sanguinis), que abre caminho para sua posterior associação a alguma entidade etiológica patogênica, fomentando a “descoberta” da bactéria Spirochaeta pallida como agente etiológico sifilítico.3 Diante da identificação do agente etiológico específico, boa parte do esforço da microbiologia e da imunologia nas primeiras décadas do século xx concentrou-se no desenvolvimento de algum método de imunorreação sorológica capaz de diagnosticar a sífilis de modo eficaz. A “gênese de um fato científico” a que Fleck se refere no título de seu livro corresponde justamente ao estabelecimento de um teste sorológico padrão: a reação de Wassermann. Esta denominação rende homenagem ao seu principal desenvolvedor, August Paul von Wassermann. Trata-se de uma imunorreação sorológica baseada na técnica de fixação de complemento (desenvolvida por Jules Bordet e Octave Gengou), sendo, por isso, também conhecida como reação de Bordet-Wassermann.

Ainda que de modo abreviado, a narrativa de seu desenvolvimento é também o momento de aplicação de suas inovadoras categorias comunicacionais.

Descrevemos na história da reação de Wassermann, o processo de transformação da ciência provisória e pessoal dos periódicos na ciência universalmente válida e coletiva de manuais: esse processo se manifesta, primeiro, como mudança no significado dos conceitos e na apresentação dos problemas, e, posteriormente, na forma da coleção de uma experiência coletiva, isto é, da gênese de uma disposição peculiar para uma percepção direcionada e de um processo específico do percebido. Esse tráfego esotérico de pensamento se realiza, em parte, já dentro da pessoa do próprio pesquisador: ele dialoga consigo mesmo, pondera, compara, decide. Quanto menos essa decisão repousar na adaptação à ciência dos manuais, ou seja, quanto mais original e ousado o estilo de pensamento pessoal, tanto mais tempo durará até se completar o processo de coletivização de seus resultados (p. 174).

Por fim, Fleck enfatiza que o advento da reação não encerraria a discussão sobre o diagnóstico sifilítico, alentando grande debate na literatura diante dos desafios a serem vencidos. Cabe ressaltar que à época, inexistia a penicilina. Ademais, a reação de Wassermann gerava muitos casos de falsos positivos, indicando baixa especificidade para a interação antígeno-anticorpo.

O ano de publicação da monografia, 1935, marca também o início de dramáticas dificuldades sofridas pelo autor diante da ascensão do nazismo. Em 1937, Fleck é expulso da Associação Médica Polonesa devido a sua ascendência judia. O subsequente domínio nazista na Galícia o faz com que perca outros cargos. Em 1942, Fleck realiza trabalho forçado na Fábrica Químico-Farmacêutica de Laokoon. É deportado em 1943 para o campo de Auschwitz e, subsequentemente, para Buchenwald. Finda a guerra, retorna para a Polônia (já sob influência soviética), onde assume posições de destaque acadêmico-institucional. Embora concentrado na pesquisa científica do entreguerras ao começo do pós-guerra, Fleck não cessou sua produção epistemológica. Seus escritos, porém, publicados em polonês em revistas de divulgação científica ou filosófica de circulação restrita, não ultrapassariam as fronteiras de sua terra natal. No conjunto, visavam reapresentar as principais teses de seu livro, ou melhor detalhar alguns de seus tópicos. Caminham nesse sentido, “Observação científica e percepção em geral” (1935) e “Ver, enxergar e conhecer” (1947), nos quais a relação entre percepção visual, estilo e coletivo de pensamento é apresentada de modo mais elaborado. Já “O problema da teoria do conhecimento” (1936) enfatiza tanto o relacionismo, quanto a possibilidade de haver incomensurabilidade entre conceitos oriundos de estilos distintos.

Redigido em inglês e póstumo, “Crisis in science” (1960) constituiu o último artigo epistemológico de Fleck, trabalho que fora recusado pelas revistas Science, American Scientist, New Scientist e The British Journal for the Philosophy of Science. Nele, os perigos decorrentes da “opinião oficial sobre a natureza da ciência” são indicados de modo contundente. Suas origens residiriam na formação escolar e acadêmica ingênua, que tem “verdade” e “objetividade” como “ideais sagrados”. Essa visão negaria a atividade científica “real”, resultado de convenções, técnicas investigativas, interpretações estatísticas e aquisição de uma linguagem e treinamento específicos. O filósofo explicita ainda suas críticas ao produtivismo e carreirismo por minarem o senso crítico da comunidade científica, já amordaçada pelo oportunismo: “a melhor política é não fazer muitas perguntas e permanecer em boas relações com aqueles que estão no poder” (Fleck, 1986 [1960], p. 154). Com título e linha argumentativa similar à adotada em 1929, o artigo defende que a “crise” não residia na noção de “realidade”, mas na manutenção da “opinião oficial” sobre a natureza da ciência. Mudaram apenas os países e línguas hegemônicas do debate filosófico científico. O antídoto oferecido para ambas as situações continuou sendo o mesmo: desvelar a natureza social e histórica da ciência.

A recepção da monografia seguiu um caminho tortuoso. Mesmo sem despertar grande interesse inicial, não foi ignorada. Da tiragem de 1.000 exemplares, cerca de 450 restavam em estoque até 1940, indicando alguma circulação ainda no entreguerras” (Graf, 2009, p. 65). No pós-guerra, Fleck, em carta de 20 de abril de 1949 ao editor suíço, demonstrava interesse em difundir seu livro nos EUA.4 “Na minha opinião seria muito importante promover o livro no mundo científico americano, onde a problemática da sociologia do conhecimento é discutida vivamente hoje” (Graf, 2009, p. 70). Em outra carta, mais extensa, de 1 de novembro de 1959, Fleck faz referência a um “físico reconhecido” norte-americano, Schilling, citando passagens de correspondência dele recebida, em que a monografia é qualificada como “notável” e “à frente de seu tempo”. Há ainda referência a Michel Polanyi, autor de Personal knowledge, afirmando que o livro conteria um “ponto central comparável” ao da monografia. Fleck indica que havia enviado a Polanyi um exemplar da monografia “por ele desconhecida” (Graf, 2009, p. 71-2). Nesse ínterim, Fleck solicita, ao final da carta, uma nova edição: “meu livro ainda é atual e talvez fosse conveniente pensar em uma nova edição com atualizações”. A proposta não fora deferida pelo editor, alegando baixa vendagem da primeira edição, que rendera 258 exemplares “encalhados” no estoque, descartados pela editora anos mais tarde, como indica uma última carta endereçada ao autor, em 11 de outubro de 1966 (cf. Graf, 2009, p. 74). Fleck falecera em 1961.

É inevitável atentar para o fato de que, um ano após a morte de Fleck, é publicado em solo norte-americano uma obra diretamente associada a sua redescoberta, The structure of scientific revolutions, de Thomas Kuhn. Graf destaca que, ironicamente, essa obra surge como fascículo da Foundations of the Unity of Sciences (último grande projeto associado ao positivismo lógico, lançada em fascículos entre 1938-1969 sob coordenação de Charles Morris, Otto Neurath e Rudolf Carnap). Igualmente irônico é o fato de que foi um positivista o responsável pela tomada de conhecimento de Kuhn da obra de Fleck. Hans Reichenbach em Experience and prediction (1938) faz uma única e marginal referência à monografia, cujo título incomum despertou a curiosidade de Kuhn, que a leu entre os anos de 1949-1950 (cf. Kuhn 2000 [1997], p. 283). Passados doze anos, o prefácio de seu livro rendia homenagem ao polonês: “Um ensaio [monografia] que antecipa muitas de minhas próprias ideias. O trabalho de Fleck, (…) fez-me compreender que essas ideias podiam necessitar de uma colocação no âmbito da sociologia da comunidade científica” (Kuhn, 1970 [1962], p. 11). A alta difusão do livro de Kuhn motivou indiretamente o resgate da obra fleckiana. Contudo, apenas com a edição em língua inglesa da monografia em 1979, seguida pela reedição alemã de 1980, que o público readiquire um contato material com a monografia, há muito esgotada no mercado. Acrescenta-se a isso a publicação da coletânea alemã organizada por Schäfer e Schnelle (1983), contendo os principais artigos epistemológicos de Fleck, posteriormente acrescidos de comentários críticos e traduzidos para o inglês na edição de Cohen e Schnelle (1986). Ambas as publicações possibilitaram uma pesquisa mais ampla de seus escritos.

Esse interesse post mortem por Fleck resume a “segunda fase” de sua recepção, marcada por investigar em que medida suas ideias teriam antecipado ou influenciado Kuhn. Com a ascensão de concepções epistemológicas cada vez mais interessadas pela historicidade de seus elementos, emergiria uma “terceira fase” da recepção. Nesse caso, Fleck passaria a fornecer um instrumental conceitual capaz de lidar com questões atuais, mas já presentes em sua obra: o papel da metáfora, das ilustrações, da instrumentação, das relações interdisciplinares na prática científica. Essa ampla gama de estudos espelha uma direção de pesquisa interessada em separar completamente Fleck de Kuhn.

Pensamos que o atual momento é favorável às contribuições fleckianas, mas o puro exercício de afastamento de Kuhn não parece ser o ponto mais relevante. Fleck merece uma leitura crítica, que aponte para sua originalidade e potencialidade, mas também problematize suas posições. Nesse sentido, a recente coletânea organizada por Werner e Zittel (2011), precedida pela reedição de parte dos artigos originais poloneses pelos mesmos Werner e Zittel (2007), cumpre papel fundamental, pois oferece traduções revisadas, bem como artigos inéditos de Fleck, todos dotados de amplo e consistente aparato crítico. Ademais, não poderíamos deixar de saudar a edição brasileira de seu livro, ora resenhado. Sua tradução, quase sempre fiel ao original alemão, abre novas oportunidades de pesquisa em língua portuguesa. Por fim, mais que um trabalho exegético, a proposta fleckiana de uma teoria comparativa do conhecimento deve ser entendida – para ser consistente com seu próprio espírito democrático, crítico e criativo – como um projeto aberto ao desenvolvimento e aplicação. Já é tempo de (re)visitar Fleck e incorporá-lo aos estudos sobre a ciência e a tecnologia.

Notas

1 Também em 1935 é publicado o artigo “Sobre a questão dos fundamentos do conhecimento médico”. Trata-se de um ensaio que, além de resumir as principais teses da monografia, justifica sua preferência por temas médicos. Fleck indica a permeabilidade oferecida pela medicina a novas técnicas e métodos, ao mesmo tempo em que sedimenta inúmeros conceitos de origem remota. Ademais, a medicina desperta grande interesse social, possuindo volumosa literatura especializada. Esses fatores a tornam um campo especial, capaz de fundamentar de modo “racional” uma nova teoria do conhecimento, interessada em “investigar o condicionamento social do conhecimento”.

2 Sabe-se hoje que a sífilis possui vários estágios clínicos. Principia com ulcerações cutâneas genitais, passa por estágios assintomáticos, assume posteriormente contorno sistêmico, podendo, décadas depois, manifestar-se como neurossífilis. Esse polimorfismo está na base da dificuldade do diagnóstico.

3 Hoje conhecida como Treponema pallidum, isolada em 1905 por Fritz Schaudinn e Paul Erich Hoffmann.

4 Fac-símile das cartas, ora citadas, encontra-se disponível em Graf, 2009, p. 70-5.

Referências

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João Alex Carneiro – Programa de Pós-Graduação em Filosofia. Departamento de Filosofia, Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas. Universidade de São Paulo, Brasil. E-mail: joao.alex.carneiro@usp.br

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