História e Fotografia: interdisciplinaridade, arquivo e memória / História Revista / 2016

O tema inicial deste dossiê apontava para uma reflexão sobre a articulação entre História e Fotografia, arquivo e memória, tomando esse entrelaçamento nas suas vertentes diversas e do ponto de vista de uma interdisciplinaridade profícua. A intenção era dar ênfase aos interesses da historiografia e da Cultura Visual, dos estudos sobre a Imagem e, até, uma iconografia, ligada à representação da história e da(s) temporalidade(s) que a atravessa(m). Finalizado o trabalho de leitura e organização dos textos recebidos, concluímos que nossa expectativa foi superada pelas reflexões que seguem, pois nelas se enxerga o vigor da interdisciplinaridade e o rigor das análises teórico‐metodológicas.

Podemos, assim, considerar três eixos fundamentais neste dossiê. Um primeiro prende‐se às questões da teoria da história e da historiografia e tem o seu início numa inédita colaboração do prestigiado filósofo Gérard Bensussan. Com o texto Rosenzweig, Schelling et l’histoire: quelques aperçus, veio mostrar‐nos o enraizamento da teoria da história contemporânea, que conhece em Rosenzweig, Ernst Bloch e Walter Benjamin os mais ferozes críticos da concepção hegeliana da história e de todos os positivismos subsequentes. Ainda nessa linha de reflexão, incluimos o texto de Maria João Cantinho, Aby Warburg e Walter Benjamin: a legibilidade da memória, que, ao partir da relação entre o conceito de memória e imagem (incluindo esta noção a representação fotográfica), examina, nos dois mencionados autores, a forma como a história e o passado podem ser interpelados mais figurativamente e menos como narrativa clássica e tradicional. Tais perspectivas abrem o caminho a uma nova visão, tanto da história como da própria história da arte, pondo a tônica numa imprescindível interdisciplinaridade que contamina toda a historiografia contemporânea.

Um outro eixo, ligado às possibilidades que a técnica e a reprodução imprimiram à fixação do passado, começou a impor‐se cada vez mais na fotografia contemporânea, lançando as bases teóricas para uma reflexão imprescindível: a ideia do arquivo fotográfico tornado indispensável à história. Nessa linha, sobretudo ao nível da fundamentação teórica, que antecede as reflexões de Barthes sobre a importância da fotografia como registro e potencialidade da construção do arquivo, temos o texto do filósofo Márcio Seligmann‐Silva, A fotografia na obra de Walter Benjamin: dialéctica congelada e a “segunda técnica”. Duas abordagens interessam a este texto: 1) o papel da fotografia como possibilidade técnica de reprodução, que permite a fixação do testemunho histórico; 2) o modo como a fotografia – expressão máxima de uma época em que a técnica desmonta todo o valor cultual e ritualístico da arte – alavancou, ela própria, a possibilidade (rizomática) de um novo olhar para a história, contribuindo para a construção da historiografia assentada no conceito de “imagem dialéctica”. Acompanha esse exame teórico‐metodológico o texto de Cristina Susigan, Desastres da Guerra, que aponta para as interrogações em torno da representação pela imagem (da pintura, da gravura e da fotografia), pela história e pelo passado. Parte a autora da análise de Aby Warburg e de Susan Sontag e da forma como a catástrofe e os desastres da história são registrados cada vez com maior precisão e rigor, permitindo a criação do arquivo e do testemunho histórico. Se as relações entre a história e a fotografia sempre foram visíveis e inegáveis a partir da década de 1930, graças à importância crescente da fotografia documental, o registro, entretanto, começou muito antes, com a fotografia trazendo uma capacidade de fixação do passado que se acentuou, eficazmente, nos nossos dias. Esse convívio entre ambas, história e fotografia, nem sempre foi fácil, pois os teóricos da fotografia recusavam a ideia de que a fotografia pudesse ser um mero instrumento de utilização para a história, o que poria em causa a sua autonomia. Certo é que essa relação era imperiosa, e tanto uma como a outra beneficiavam‐se dela, no sentido em que a contextualização histórica dava à fotografia uma nova consistência, convocando‐a à construção da história.

Um último vetor engloba os textos de Miguel Vieira e de João Oliveira Duarte, apontando para uma interdisciplinaridade que se encontra aqui contemplada, pois remete‐ nos para as questões da literatura e da Teoria da Literatura, da hermenêutica e da interpretação da obra de reconhecidos escritores portugueses como Sophia de Mello Breyner Andresen e Rui Nunes, repectivamente. Se Miguel Vieira, no seu texto sobre a poeta Sophia, procura resgatar a importância da obra e da biografia da autora, esse não é o mais importante aspecto do texto, todavia. O modo como a literatura e a poesia incorporam uma tradição da epopeia e da narrativa tradicionais, rememorando a mitologia clássica e assinalando o passado, é convocado na sua máxima expressão na poética de Sophia, que estabelece um diálogo vivo com a poesia, a tragédia e a epopeia gregas. Já o texto de João Oliveira Duarte cuida de outra questão mais contemporânea, que é a do luto e da melancolia na experiência moderna e o modo como essa experiência se inscreve na literatura. Por fim, alcançamos o último texto do dossiê, Imagens e estereótipos na construção de uma visão do Brasil nos anos de 1950, de Marlise Regina Meyrer. Nele, encontramos a associação entre a memória afetiva e a identidade, explicitando como a fixação do passado se inscreve, também, em um processo de procura identitária.

Organizamos o dossiê e apresentamos seus temas por meio do que compreendemos como “vetores” ou “eixos”. Isso porque essa foi a opção teórico‐ metodológica que nos capacitou a dar conta do modo pelo qual os autores circulam entre a história, a fotografia e a imagem, contribuindo para uma reflexão pertinente entre as várias disciplinas que aqui dialogam. A escrita que ruma ao passado é comparável a um trabalho arqueológico. Escava, busca o detalhe e, então, ilumina o passado para dele obter um encontro com a explicação e o sentido.

Fabiana de Souza Fredrigo – Professora Doutora (UFG)

Maria João Cantinho – Professora Doutora (Iade, Portugal)

Organizadoras


FREDRIGO, Fabiana de Souza; CANTINHO, Maria João. Apresentação. História Revista. Goiânia, v. 21, n. 2, maio / ago., 2016. Acessar publicação original [DR]

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