Construindo impérios na época moderna: Negócios – Política – Família – Relações Globais | Cantareira | 2021

Cinchona Cantareira
Cinchona | Foto: Royal Botanic Garden

Nos últimos anos, com as abordagens trazidas pela História Global, os estudos das redes foram tendo sua importância renovada, sobretudo como método para o entendimento das relações complexas entre indivíduos, grupos e estados, tal como o colocou Fernand Braudel.

No campo da História, esta análise serviu como metodologia para compreender os sujeitos dentro das redes que se estabeleciam a partir de laços familiares, religiosos, clientelares, políticos ou econômicos, mas também dos mecanismos de controle, formais ou informais, que permitiram o desenvolvimento dessas relações na longa distância, em diferentes universos políticos, econômicos, sociais e culturais. Leia Mais

Mundos do Trabalho / Cantareira / 2021

Cantareira Mundos do Trabalho 1 Cantareira

A tradição da temática do trabalho na historiografia não impediu que apenas após 18 anos da sua primeira edição, a Revista Cantareira trouxesse entre suas publicações o seu primeiro dossiê inteiramente dedicado ao tema da História do Trabalho. Esta ausência se torna ainda mais surpreendente quando nos deparamos com a grande procura de pesquisadoras e pesquisadores não só de todo o Brasil, como também de outras partes do globo. De fato, as pesquisas de História do Trabalho e dos Trabalhadores e Trabalhadoras nas últimas décadas vem cada vez mais ampliando seu escopo e seus debates, mostrando que a experiência do homem branco, adulto e operário, que por muito tempo figurou na historiografia como o trabalhador ideal, não é a experiência universal dos mundos do trabalho.

Com um número recorde de artigos submetidos e aprovados, os trabalhos deste Dossiê mostram uma História do Trabalho dinâmica, plural, e que extrapola os grandes centros urbanos e as fronteiras nacionais. Ao mesmo tempo que os temas clássicos da História do Trabalho são revistos com novos olhares, abordagem e fontes, demonstrando a riqueza das pesquisas produzidas e a sua diversidade.

Refletindo os objetos discutidos pela sociedade atual, pesquisas abordando a convergência de classe, raça, gênero, identidade, orientação sexual aparecerem em diversos artigos do Dossiê. A ruptura dos paradigmas que segmentavam as investigações historiográficas entre trabalho e trabalhadores livres e não livres ajuda na formação de um complexo mosaico do Mundos do Trabalho. Dentro dessa seara, destacamos os artigos de Thompson Alves e Antônio Bispo, Ferreiros, “escravos operários” e metalúrgicos: trabalhadores negros e a metalurgia na cidade do Rio de Janeiro e na microrregião Sul Fluminense (Século XIX e XX) e de Karina Santos, Composição de trabalhadores na Fábrica de Ferro de Ipanema (1822-1842).

Para operacionalizar o rompimento da separação entre as análises sobre o trabalho livre e cativo, a ferramenta metodológica da interseccionalidade se mostra fundamental para pensar as complexidades do processamento da dominação e opressão de diversos grupos sociais dentro da classe trabalhadora. É o que podemos ver no artigo de Caroline Souza, Giovana Tardivo e Marina Haack, Localizando a mulher escravizada nos Mundos do Trabalho, bem como no de Caroline Mariano e Lígya de Souza, Mulheres úteis à sociedade: gênero e raça no mercado de trabalho na cidade de São Paulo (fim do século XIX e início do século XX), que mostram como a análise sobre o lugar social de mulheres escravizadas e os mundos do trabalho pode refinar a análise historiográfica. Ainda sobre a importância da interseccionalidade com o objetivo de pensar os trabalhadores, o artigo de João Gomes Junior, A “indústria bagaxa”: prostituição masculina e trabalho no Rio de Janeiro e na constituição da ordem burguesa aborda questões sobre a experiência de homens, trabalhadores sexuais que desviam do padrão heteronormativo, como parte formadora da classe trabalhadora carioca do início da República.

A utilização dos processos da Justiça do Trabalho emergiu como importantes fontes documentais há alguns anos e continuam rendendo pesquisas inovadoras: Tatiane Bartmann em Eles querem menos, elas querem mais: as reivindicações por trabalho na 1ª JCJ de Porto Alegre (1941-1945) e Vitória Abunahman, Trabalhadoras ou esposas? Um estudo sobre reclamações na Justiça do Trabalho de mulheres que trabalhavam para seus companheiros na década de 1950, trazem a luz as reivindicações das trabalhadoras, e Paulo Henrique Damião, A Justiça do Trabalho enquanto palco de disputas: entre estratégias e discursos, e Arthur Barros, Márcio Vilela, Fernanda Nunes, Marmelada de tomate: as relações de trabalho a partir do “sistema de parceria” na Fábrica Peixe (Pesqueira / PE), discutem as diversas estratégias e relações de trabalho a partir da instância judicial.

A cidade e a geografia nos mundos do trabalho se cruzam com diferentes fontes, temas e análises teórico-metodológicas, apresentando uma nova visão sobre o espaço urbano. Sob essa lente, podem ser lidos os trabalhos de Gabriel Marques Fernandes em A vida urbana em Tudo Bem (Arnaldo Jabor, 1978): a figuração dos “operários” durante a decomposição do “milagre” econômico brasileiro, de Amanda Guimarães da Silva em Lavadeiras na cidade: trabalho, cotidiano e doenças em Fortaleza (1900-1930), e de Aline Crunivel e Claudio Ribeiro em Memória, trabalho e cidade: contribuições para o debate contemporâneo sobre o lugar da classe trabalhadora.

Fora dos centros urbanos, a relação dos trabalhadores rurais, indígenas e migrantes com suas lideranças, com os empregadores e o Estado, suas lutas e representações, são temas dos artigos de Leandro Almeida, Os comunistas e os trabalhadores rurais no processo de radicalização da luta pela terra no pré-1964, de Idalina Freitas e Tatiana Santana, Entre campos e máquinas: histórias e memórias de trabalhadores da Usina Cinco Rios – Maracangalha, Bahia (1912-1950), e de Pedro Jardel Pereira, “A legião dos rejeitados”: trabalhadores migrantes retidos e marginalizados pela política de mão-de-obra em Montes Claros / MG, na década de 1930, e de Eduardo Henrique Gorobets Martins, As denúncias de trabalhadores indígenas do cuatequitl no códice Osuna durante a visita de Jerónimo de Valderrama na Nova Espanha.

Temas cânones dos estudos sobre o trabalho, como suas entidades representativas e seus discursos, o contato com o mundo da política, suas estratégias de luta e a organização burocrática, são discutidos sob novas perspectivas teóricas, metodológicas e bibliográficas nos artigos de Bruno Benevides, “Eu não tenho mais pátria!”: a primeira guerra mundial à luz da propaganda libertária de Angelo Bandoni, de Igor Pomini, As Jornadas de Maio de 1937, o antifascismo e o refluxo da Revolução Espanhola, de Eduard Esteban Moreno, Manifiestos políticos para la acción del movimiento obrero: Brasil y Colombia durante las primeras décadas del siglo XX, de Frederico Bartz, Os espaços da luta antifascista em Porto Alegre (1926-1937), de Pedro Cardoso, A atuação militar contra a greve do Porto de Santos em 1980, e de Guilherme Chagas, O corporativismo na construção do discurso da Revista Light (1928-1940).

Extrapolando os limites da História e da historiografia e nas suas interseções, o Dossiê também conta com contribuições de distintas áreas das Ciências Humanas e Sociais, o que mostra a importância do diálogo constante e como o tema do trabalho continua provocando discussões interdisciplinares sobre o sistema capitalista e os novos regimes de trabalho e explicação, de acordo com os artigos de Leonardo Kussler e Leonardo Van Leeuven, Da alienação em Marx à sociedade do cansaço em Han: fantasia e realidade dos trabalhadores precarizados, de Evandro Ribeiro Lomba, As estruturas históricas da formação para o trabalho no sistema capitalista e de Gustavo Portella Machado, Entre desemprego e freelance: a atual configuração do mundo do trabalho na cultura a partir da ocupação de produtores culturais como microempreendedores individuais. Ainda dentro dessa temática, este número também conta com a resenha de Regina Lucia Fernandes Albuquerque sobre o livro de Tom Slee, Uberização: a nova onda do trabalho precarizado.

Finalizando o Dossiê Mundos do Trabalho, apresentamos a entrevista concedida pelos professores Paulo Fontes (PPGH / UFRJ) e Victoria Basualdo (COCINET / FLACSO) para as organizadoras, Clarisse Pereira e Heliene Nagasava. Na conversa, os professores discutem suas formações acadêmicas, trajetórias de pesquisa, transformações no campo da história do trabalho e a importância do pensamento e da atuação dos historiadores, em especial os historiadores do trabalho e trabalhadores, fora dos muros da Universidade.

Desejamos a todas e todos uma ótima leitura!

Clarisse Pereira – Mestra e licenciada em História pela Universidade Federal de Pernambuco. Desenvolve pesquisa na área de História do Brasil Republicano, atuando principalmente no tema sobre trabalhadores rurais na ditadura civil-militar. Atualmente é doutoranda em História Social pela Universidade Federal Fluminense, com bolsa CAPES, e desde 2019 faz parte da Comissão Editorial da Revista Cantareira. E-mail: clarissepereira.snts@gmail.com

Heliene Nagasava – Doutoranda em História pelo Programa de Pós-Graduação em História, Política e Bens Culturais da Fundação Getúlio Vargas (CPDOC / FGV), pesquisadora do Laboratório de Estudos de História do Trabalho (LEHMT / UFRJ) e funcionária do Arquivo Nacional. E-mail: hnagasava@gmail.com


PEREIRA, Clarisse; NAGASAVA, Heliene. Apresentação. Revista Cantareira, Niterói- RJ, n.34, jan / jun, 2021. Acessar publicação original [DR]

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Fascismos e novas direitas | Cantareira | 2020

Observamos, nos últimos anos, vitórias como a de Boris Johnson, no Reino Unido; a ascensão de Jean-Marie Le Pen, como grande figura na França; Viktor Orbán, porta-voz da anti-imigração na Hungria; a reeleição de Sebastián Piñera no Chile; o retorno de partidos neofascistas na Alemanha; Rodrigo Duterte, o fascista das Filipinas; e, entre muitos outros, as expressivas vitórias de Donald Trump e Jair Bolsonaro. Essa guinada nos alerta para uma tendência na configuração da política mundial.

Em um contexto de crescimento de movimentos de extrema-direita pelo globo, as temáticas dos fascismos e das novas direitas vêm ganhando cada vez mais destaque e relevância nos debates acadêmicos. Seria o fascismo uma atitude desviante? Uma doença? Uma anomalia do sistema? Um retorno nostálgico a um passado “glorioso”? Além disso, seriam todas as direitas mais radicais, fascistas? Esta discussão foi objeto de grandes nomes dentro da historiografia e das ciências humanas e sociais, como Leandro Konder, Daniel Guerin, Ian Kershaw, William Reich, Antônio Gramsci, Umberto Eco, Hannah Arendt, Robert Paxtone e até mesmo, José Carlos Mariátegui. Cada um, a partir de diferentes abordagens –aproximadas ou discordantes –, elaboraram as suas perspectivas muitas vezes ancorados nas questões anteriormente apontadas.

A despeito das diferentes abordagens, bem como das análises de conjunturas, há um ponto em comum entre os autores: essas correntes, em geral, encontram terreno e se ampliam em cenários de crise, momento em que a classe dominada se sente atacada em todas as suas frações. Acreditamos que, diante da falta de horizonte, perda de status e déficit econômico, é comum que ideias salvacionistas sejam tentadoras. A percepção das causas de tantas perdas é deixada de lado em prol de uma luta contra seus efeitos.

Discursos que ressaltam problemas como: as crises econômicas e moral, a perda de status social e incompetência, a traição e fragilidade do governo etc., tornam-se demasiadamente atraentes para setores da sociedade que não se identificam com as transformações recentes. Assim, todos os medos sentidos são estereotipados na figura do “outro”, o qual, por muitas vezes, será compreendido como inimigo a ser combatido.

Ao analisar a ascensão tanto política, quanto eleitoral, de movimentos de extrema-direita, racistas, xenófobas ou, até mesmo, inteiramente fascistas na atualidade, Michael Löwy ressalta que a crescente emergência desses movimentos tem se dado principalmente em países inseridos no processo de internacionalização da economia e da tecnologia. No ápice do neoliberalismo e, portanto, da transnacionalização do grande capital, as tecnologias e os meios de comunicação também se desenvolveram de modo que abarcasse as novas dimensões das demandas impostas pelos interessados nesta transnacionalização e em suas novas dinâmicas funcionais. Antes, se por um lado, os meios de comunicação operavam de maneira verticalizada, partindo de um para muitos, e sendo unidirecional – como os grandes jornais impressos e os canais de radiodifusão. A internet, por outro, se conforma como uma enorme rede digital de troca de informação maciça, sendo menos centralizada, horizontal e multidirecional. É o que Manuel Castells denomina como “Mass Self-Communication”. Devido ao interesse dos movimentos de direita e extrema-direita contemporâneos em trazer a política para o cotidiano, esses grupos aplicam seus investimentos em canais populares de difusão da informação. Assim, expandem sua ação para a mídia digital, por ser moderna, de fácil acesso, de custo relativamente baixo de produção e ilimitada capacidade de difusão.

Ao considerar o papel das historiadoras e dos historiadores na análise destes fenômenos, o objetivo do dossiê é refletir, conceituar e problematizar a questão do fascismo e das novas direitas, reunindo pesquisas que os discutam e identifiquem suas particularidades, rupturas, continuidades etc. Agrupamos, desta maneira, uma coletânea de seis artigos – que perpassam desde as experiências do século XX até o tempo presente, em distintas partes do Globo –, diretamente associados aos temas centrais. Devido a sua pluralidade, estas produções estão ancoradas em distintas visões e tradições teóricas, com vista a ampliar um rico e diverso debate.

Contamos, no primeiro bloco de artigos, com fascículos acerca da experiência alemã, de essencial importância para a temática. Os autores, habilmente, levantaram questões de extrema relevância para qualquer discussão acerca do nazismo alemão e seus estudos, feito de maneira criteriosa. Karina Fonseca em Como a democracia em Weimar morreu: antirrepublicaníssimo e corrosão da democracia na Alemanha e a ascensão do Nazismo, relaciona a derrocada da República de Weimar aos discursos e práticas políticas antirrepublicanas e antidemocráticas que circulavam durante o período. Luiz P. Araújo Magalhães, em Intelectuais de extrema direita e a negação do Holocausto nos EUA dos anos 1960, analisa a formação de uma rede de intelectuais de extrema-direita estadunidense em torno da prática de negação do Holocausto. O texto defende a hipótese de que essa negação incorpora, informa e é informada por valores, visões do passado, esquemas de percepção e hábitos de pensamento desse campo político. Dessa forma, essa falsificação do passado nazista aparece como criadora ou reprodutora de comunidades de sentido e unidades potenciais de ação.

Breno César de Oliveira Góes oferece uma rica aproximação interdisciplinar entre história e a literatura no que concerne à experiência do Salazarismo em Portugal, fortalecendo o tema deste dossiê com o artigo Os fascistas que liam Eça de Queirós: estratégias da propaganda salazarista em torno de uma celebração literária. O texto analisa o plano original das celebrações oficiais do primeiro centenário de Eça de Queirós em 1945 e os motivos que causaram os descontentamentos da base de apoio do regime em relação a esse projeto. Dessa forma, o autor traz à luz o estudo de ditaduras fascistas na Península Ibérica, muitas vezes posposto pelas produções do nazismo alemão e do fascismo italiano de Mussolini.

O segundo e último bloco de texto se articula a partir da temática do avanço conservador e a articulação da direita no Brasil. Com o delicado e necessário debate sobre a educação em tempos de conservadorismo brasileiro, Eduardo Cristiano Hass da Silva e Gabbiana Clamer Fonseca Falavigna dos Reis, analisam em Avanço conservador na educação brasileira: uma proposta de governo pautada em polêmicas (2018) a superficialidade e apresentação polêmica das propostas educativas presentes no plano do atual governo brasileiro e retomam a importância do papel do intelectual no Brasil.

Na esteira das análises sobre a ascensão do conservadorismo brasileiro, os autores Giovane Matheus Camargo, Pedro Rodolfo Bodê de Moraes e Pablo Ornelas Rosa trazem à tona a importância que a Internet e o ciberespaço tomaram no campo político na contemporaneidade. A (des)construção da memória sobre a ditadura pós-1964 pelo governo de Jair Bolsonaro analisa as estratégias no meio digital para a difusão de uma determinada memória, ancorada no revisionismo histórico que as novas direitas brasileiras têm defendido para sustentar seus projetos de sociedade.

Finalmente, apresentamos duas entrevistas de conteúdo mais estritamente teórico. A primeira, apresenta o diálogo entre o entrevistador Sergio Schargel e o pesquisador multidisciplinar neerlandês e filósofo cultural Rob Riemen. As perguntas, levantadas por Schargel, esclarecem a abordagem do diretor do Nexus Institute, que através de uma tradição teórica consistente e calcada no liberalismo, recuperar a importância do conceito de fascismo e sua utilização na atualidade. A segunda, realizada pelas organizadoras do presente dossiê, foi realizada com docentes de países, vivências e perspectivas teóricas diferentes. A professora italiana Fulvia Zega (Università Ca’Foscari Venezia), e a professora brasileira Tatiana Poggi (IH / UFF), relataram suas posições sobre a ascensão conservadora no mundo, as possíveis particularidades no contexto da América Latina, a utilização do conceito fascismo e neofascismo, bem como de outros aprofundamentos.

O dossiê Fascismos e Novas direitas, nesta edição da Revista Cantareira, nasceu em meio à pandemia do coronavírus (COVID-19), uma crise sanitária internacional que, no contexto brasileiro, ganha o reforço de um Estado suicidário, para fazer menção às palavras de Vladimir Safatle. Como em outros governos – que vêm demonstrando uma preocupação desproporcional com a Economia –, o Brasil pretere a vida humana em nome de uma pretensa preocupação com os números. O intuito, portanto, é contribuir com a análise de acontecimentos recentes, discussões teóricas pertinentes e recuperação histórica das ciências humanas em geral, essenciais para a compreensão crítica do mundo em que vivemos. Através das ilações dos nossos autores, percebemos que não somente há um avanço fascista na política mundial, mas um intento de consolidar uma narrativa conservadora sobre a sociedade civil e a política, bem como das organizações alternativas mais conservadoras. Estes aspectos não são uma novidade do século XXI; tampouco, algo exclusivo ao século passado.

Boa Leitura!

Bárbara Aragon – Mestranda do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal Fluminense.

Milene Moraes de Figueiredo – Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em História da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul.


ARAGON, Bárbara; FIGUEIREDO, Milene Moraes de. Apresentação. Revista Cantareira, Niterói- RJ, n.33, jul / dez, 2020. Acessar publicação original [DR]

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Ideias e práticas econômicas no mundo atlântico: liberdade, circulação e contradições entre os séculos XVII e XIX / Cantareira / 2020

Ao longo das últimas décadas, o mundo atlântico e seus desdobramentos no campo conceitual tem, cada vez mais, ganhado destaque nas produções historiográficas. Há uma ressignificação na abordagem usada, em detrimento de certa historiografia tradicional, que admitia o mundo atlântico como uma barreira geográfica e política. Esta nova interpretação historiográfica se vale das conexões. Passa a ser entendido, portanto, como espaço de trocas, circularidades e trânsito de pessoas e ideias. Esse movimento teórico-conceitual encontra expoentes na historiografia internacional e nacional a partir dos anos 1980 e, ainda hoje, apresenta caminhos oportunos a serem explorados. O objetivo do dossiê não é se pautar em uma única historiografia ou autor, mas abrir espaço para um conjunto de trabalhos que compõem esse movimento intelectual.

O rompimento com os paradigmas de categorias de análise inflexíveis, como, por exemplo, a dualidade antagônica metrópole-colônia, foi um passo importante para a adoção de uma perspectiva renovada. Mas ainda é preciso romper com a universalidade de conceitos que, muitas vezes, são mobilizados de forma acrítica. Na formação do mundo atlântico, as ações e ideias eram muito mais complexas do que os conceitos tradicionais podem sugerir. Compreendendo a complexidade das relações intelectuais e das práticas econômicas, mostra-se imperioso pontuar as singularidades a partir das quais se conformam as ideias para além da realidade social, política e econômica europeia ao longo do tempo.

Os interesses que permeiam as pessoas e instituições que formam este novo cenário de uma primeira globalização traz à tona novas formas de pensar inauguradas com o contato entre os povos e a ascensão de uma latente ordem comercial que começa a tomar forma e constituir os ditames das políticas construídas na europa e no comércio ultramarino. Contudo, é importante atentar que esmiuçar o pano de fundo das empreitadas coloniais, em seus diversos aspectos, não é mitigar o processo de brutal dominação ocorrido.

O objetivo do presente dossiê não é apresentar contribuições de determinada corrente historiográfica. Trata-se, na verdade, de reunir trabalhos que, a partir de perspectivas teóricas diversas, dialoguem entre si e, ao mesmo tempo, expressem a complexidade de abordagens no cenário atlântico. Os artigos presentes no dossiê apresentam variações de temas e abordagens que a História Política e a História Econômica podem oferecer. Compreender a multiplicidade de interesses que formaram os impérios e as rotas comerciais na idade moderna – em seu lado micro e macro – torna-se, portanto, a proposta central deste dossiê. O trabalho de Steven Pincus é uma referência nesta questão, pois mostra a ineficácia de se trabalhar com conceitos totalizantes, como o “mercantilismo” e compreender as disputas internas que ocorrem no interior deste.

As novas interpretações historiográficas acerca do atlântico nos permitem questionar o papel das colônias como simplesmente replicadoras das políticas, práticas econômicas e pensamentos originados no cenário europeu. O conceito de “histórias conectadas”, proposto por Sanjay Subrahmanyan, coloca em evidência as conexões e supera a falsa ambiguidade de uma historiografia eurocentrada.

O dossiê contém cinco artigos que articulam temas de economia, ideias econômicas, administração estatal, cultural material e redes de poder. E provém uma dimensão do que está sendo produzido no sentido de aprofundar o debate da história econômica.

O primeiro destes, de autoria de Alice Teixeira, “Cultura material e o cotidiano do trabalho no Estado do Grão Pará e Maranhão no final do século XVIII e início do século XIX”, investiga – a partir de inventário e relatos de viajantes – como se dava a relação construída entre a dinâmica do mercado externo e as populações locais nas empreitadas agrícolas da região.

O artigo propõe uma visão ampla sobre o comércio regional, atenta à agência dos indivíduos, por meio da descrição de seus objetos O artigo seguinte, “Comércio de cabotagem e tráfico interno de escravos em Salvador (1830-1880)”, de Valney Filho, traz importantes observações sobre o tráfico intra e interprovincial, articulando o comércio de cabotagem e as companhias atuantes nesta dinâmica. A pesquisa aponta para a complexidade das dinâmicas sociais e econômicas na comercialização dos escravizados, por meio de um intenso trabalho com fontes.

O artigo de Débora Ferreira, “Uma bandeira da Vila Real do Senhor Bom Jesus do Cuiabá vai aos domínios de Castela”, examinou, a partir de um estudo de caso, as redes de poder que compunham o cenário político e econômico colonial. Tratando da “bandeirinha sertaneja” em meados do século XVII, a autora demonstra as disputas de poder entre certos agentes e instituições que tinham interesse em negociações com a Coroa.

Diogo Gomes, por sua vez, no artigo “Rendas e encargos das finanças municipais: uma análise da atuação do Conselho Geral de Minas Gerais nos primeiros anos do Império do Brasil (1828-1832)”, propõe uma análise da atuação do Conselho Geral Províncias, especialmente em Minas Gerais. O autor mobiliza as atas do Conselho a fim de identificar as funções deste órgão administrativo e compreender sua atuação, enquanto instância intermediária entre as câmaras municipais e o poder central, diante de um novo sistema político estabelecido, com ênfase na dimensão econômica atribuída à cobrança de tributos pelos municípios e pelas províncias.

O artigo “A produção de café na Vila de São João de Itaboraí e sua comercialização em Porto das Caixas (1833-1875)” é escrito por Gilciano Costa. Trata-se de uma pesquisa de História Regional em que se pauta a formação socioeconômica de Itaboraí, por meio da cultura cafeicultora e seu comércio. A pesquisa empenhada apresenta fontes e dados diversificados de registros de época para remontar a trajetória do café na região.

Por fim, a entrevista realizada com o professor português, José Subtil, da Universidade Autónoma de Lisboa, partindo de sua trajetória acadêmica, elucida certos questionamentos concernentes às discussões historiográficas sobre as instituições e o aparelho jurídico e administrativo. Versa, também, sobre questões atuais da História enquanto conhecimento acadêmico, como a sua relação com o público e possíveis direcionamentos para a ciência histórica.

Leonardo Cruz – Graduando IH / UFF E- mail: lacoliveira96@gmail.com

Matheus Basilio – Graduando IH / UFF E-mail: matheusfernandesgb@gmail.com

Matheus Vieira – Graduado IH / UFF E- mail: vieiramatheus@id.uff.br


CRUZ, Leonardo; BASILIO, Matheus; VIEIRA, Matheus. Apresentação. Revista Cantareira, Niterói- RJ, n.32, jan / jun, 2020. Acessar publicação original [DR]

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O esporte em tempos de exceção: práticas desportivas e ações políticas durante as ditaduras na América Latina no século XX / Cantareira / 2019

Sem abrir mão da interdisciplinaridade, o presente dossiê procura analisar os estudos sobre o esporte – e, de forma mais específica, sobre o futebol – existentes em tempos de exceção, durante as ditaduras na América Latina, no século XX. A história do esporte já superou a ideia de que seu campo de estudo pertencia, primordialmente, aos profissionais ligados exclusivamente à sua prática ou ao estudo delas, como os atletas e profissionais da educação física. O presente dossiê, nesse sentido, compreende o esforço de estimular e reunir trabalhos que trazem reflexões sobre a diversidade cultural de um fenômeno que, cada vez mais, requer diferentes campos de saberes para sua a compreensão. Antropólogos, sociólogos e posteriormente historiadores vêm, pelos menos desde a década de 1970, debruçando pesquisas sobre as práticas esportivas e suas ações culturais e políticas, bem como a maneira como essas ações se relacionam com o momento político vivido.

Revisitar o tema das relações entre esporte e os períodos ditatoriais durante o século XX, na América Latina, é, ao mesmo tempo, um desafio e um tema necessário. O Brasil, por exemplo, vivenciou durante 21 anos, um regime de exceção, marcado pela violência política e repressão às ações culturais, políticas, sociais e também esportivas, que impediam que a população se manifestasse e agisse livremente conforme seus desejos de expressão. Assim como diversos outros países da América Latina passaram por golpes e regimes que interromperam a experiência democrática e realizaram inúmeras ações autoritárias.

O cotidiano ditatorial tinha reflexos diretos nas ações esportivas e na vivência de clubes, atletas e torcedores desses países, impondo à eles uma nova realidade e a necessidade da criação de novas maneiras de expressão, manifestação e resistência para aqueles que discordavam da forma como o governo levava a cabo suas ações e eram, portanto, alvo de suas medidas repressivas. Nessas sociedades, marcadas pela ambivalência que nos fala Pierre Laborie, havia também aqueles que concordavam e apoiavam as práticas do governo, e tais indivíduos circulavam também no universo esportivo, fazendo ouvir suas propostas e pensamentos. Sejam dirigentes, técnicos, profissionais, atletas ou torcedores, muitos indivíduos compactuavam com a premissa ideológica do regime e, através do esporte, tinham sua voz ouvida.

Atualmente, a temática do esporte e a necessidade de discussão sobre o período de exceção que o Brasil e outros países latino-americanos vivenciaram ao longo do século XX estão presentes em diversos debates dentro e fora da academia; dessa maneira, se faz necessário abrir espaço nesse periódico acadêmico para que essas discussões tenham lugar de se realizar.

Os artigos que compõem este dossiê trouxeram à tona diversas temáticas e manifestações, que vão desde movimentos torcedores, como é o caso da Raça Rubro-Negra, do clube de Regatas do Flamengo, até ações mais diretas do governo, através de símbolos, como músicas e ações políticas mais diretas que visavam, grosso modo, conseguir o consenso através do esporte. Sendo assim, faz-se um convite aos leitores para uma imersão no mundo do futebol brasileiro em tempos de ditadura, possibilitando a percepção das continuidades e rupturas daquele momento do esporte para aquele que vivenciamos hoje, em tempos democráticos.

Encerrando esta edição e procurando percorrer um momento da história brasileira marcada por uma política de exceção, apresenta-se a entrevista com o ex-jogador de futebol Afonso Celso Garcia Reis, de codinome Afonsinho. Verifica-se, a partir de sua fala, que sua ação é um exemplo de que a repressão recaía sobre profissionais do esporte que se posicionavam um pouco mais à esquerda – ou que, pelo menos, não compactuavam abertamente com as práticas do regime. Afonsinho foi perseguido primeiramente pelo uso de uma barba considerada fora dos padrões da época, que, segundo ele, era apenas pretexto para cerceá-lo em função de seus posicionamentos políticos mais amplos e, posteriormente, tido como símbolo de luta quando da sua busca pelo fim do passe – instrumento que determinava a posse do jogador ao time de futebol para o qual atuava. Boa leitura!

Nathália Fernandes – Mestranda em História pelo Programa de Pós-Graduação em História na Universidade Federal Fluminense.

Aimée Schneider – Doutoranda em Ciências Jurídicas e Sociais pelo Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Direito na Universidade Federal Fluminense.


FERNANDES, Nathália; SCHNEIDER, Aimée. Apresentação. Revista Cantareira, Niterói- RJ, n.31, jul / dez, 2019. Acessar publicação original [DR]

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Cultura escrita no mundo ibero-americano: identidades, linguagens e representações / Cantareira / 2019

Segundo Lucien Febvre e Henri Jean-Martin, o livro moderno surgiu a partir do encontro de dois fatores que, apesar de distintos, mantêm alguma ligação. Primeiro, foi necessário que o papel se firmasse enquanto mídia, o que não aconteceu antes do século XIV. Até então, as técnicas empregadas na produção das folhas, faziam com que seu preço fosse alto e sua qualidade inferior, mais frágil e pesado, com a superfície rugosa e repleto de impurezas. Concorrendo com o já estabelecido pergaminho de pele de carneiro, o novo material não oferecia aos copistas um suporte adequado para a transcrição de manuscritos, sugando a tinta, mais do que o necessário, e com possibilidades de duração limitada.[4]

O segundo fator apontado é a técnica de impressão manual, composta pela tríade: caracteres móveis em metal fundido, tinta mais espessa e prensa. Deixando a alquimia das tintas de lado, pela facilidade com a qual era possível produzi-las então, o grande avanço da época foi a composição em separado dos tipos móveis. Para cada signo fabricava-se uma punção de metal duro – composto de uma liga de chumbo, estanho e antimônio que variava de proporção conforme a região –, sob a qual se demarcava a matriz em relevo. Em metal menos duro moldavam-se as imagens em côncavo. A seguir, colocadas em uma forma se podia produzir os caracteres em quantidade suficiente para imprimir uma ou mais páginas. Sob a pressão do torno, o velino – pergaminho de alta qualidade, feito a partir de pele de bezerro ou cordeiro – não resistia à tensão imposta pela placa de metal que guardava os tipos. O papel, por sua vez, forçado à mesma pressão, continha a tinta mais espessa, apresentando uma nitidez regular de impressão. Eis o surgimento da indústria tipografia.[5]

Dos incunábulos impressos na oficina de Johann Gutemberg, em Mogúncia, até o final do século XVIII, o trabalho dos tipógrafos e impressores permaneceu o mesmo, com algumas pequenas alterações. A realização da segunda edição da Encyclopédie, a exemplo, seguia os “ritmos de uma economia agrária”, dependente da sazonalidade dos recolhedores de trapos e dos papeleiros.[6] Segundo Robert Darnton: “No início da Era Moderna, as tipografias dividiamse em duas partes, la casse, onde se compunham os tipos, e la presse, onde se imprimiam as folhas.”[7] Na composição alinhavam-se de forma manual e solitária um a um os tipos, formando linha a linha as placas. No trabalho de impressão eram necessários ao menos dois homens: um deles entintava as formas que estavam encaixadas sobre uma caixa móvel, com a prensa ainda aberta; o outro colocava a folha sobre uma armação de metal, onde eram fixadas as presas, e puxava a barra da prensa, fazendo o eixo girar em parafuso, produzindo uma das páginas. Terminada a resma, a atividade começava novamente, com a impressão no verso das folhas. Uma operação que requeria enorme esforço físico, tanto mais se tratando de uma tiragem grande. [8]

Portanto, até que se introduzissem efetivas mudanças técnicas, o período tratado compreende uma era de manufatura do livro. Entre o trabalho realizado pelos monges nos scriptoria e pelos copistas profissionais, que se instalaram sobretudo ao redor dos grandes centros e das universidades,[9] e a tecnologia adotada em 1814, com a prensa cilíndrica, e da força do vapor, a partir de 1830,[10] existe um intervalo de tempo no qual o trato com o livro é peculiar. Para os homens da época moderna, a relação com este objeto é diametralmente outra, opondo-se tanto daquela adotada pelos medievais, quanto da praticada hoje. O exame cuidadoso dos aspectos físicos era um expediente comum aos leitores do Antigo Regime. À qualidade das páginas era essencial uma espessura fina, de um branco opaco, com a impressão devidamente legível e em caracteres de bom gosto.[11] Uma preocupação material, de consumo, secular.

Junto à difusão dos livros, ocorreu a difusão dos formatos. Pouco a pouco, os pesados in fólio foram dando espaço a novos tamanhos, mais leves e com caracteres menores. Em pleno século XVII, quando a indústria já estava suficientemente estável, os impressores Elzevier lançaram uma coleção minúscula para a época, in-12, o que causou o espanto dos eruditos.[12] A partir de então, as pequenas edições invadiram o mercado com publicações in-12, in-16 e in-18. A predominância da literatura religiosa não cessou, mas o interesse por temas como Literatura, Artes e Ciências, nos circuitos legais, e literatura pornográfica, sátiras, libelos e crônicas escandalosas e difamatórias, que corriam nos circuitos clandestinos, só fez aumentar.[13]

A popularização de material impresso e a diversificação dos temas foram acompanhadas de um aumento do público leitor. A Europa experimentou um crescente processo de alfabetização entre os séculos XVII e XVIII. Analisando países como Escócia, Inglaterra e França, e regiões como Turim e Castilla (Toledo), o historiador Roger Chartier apontou, a partir de assinaturas em registros cartoriais, que a alfabetização demostrou avanços contínuos e regulares nesse período. E, na América, Nova Inglaterra e Virgínia, o movimento seguiu ritmos muito parecidos. Os ofícios e as condições sociais eram fatores determinantes para o ingresso, mesmo que de forma superficial, no mundo da escrita e da leitura. É quase certo que um clérigo, um notável ou um grande comerciante soubesse ler e escrever. Bem como, é quase certo que um trabalhador comum não dominasse essas habilidades.[14]

A imprensa não desbancou de imediato os textos manuscritos. A função e utilização dada à cópia e o público para quem ela se destinava, amplo ou restrito, condicionaram a forma de reprodução durante muito tempo. A sua imposição ocorreu devido à possibilidade de um aumento considerável da reprodução, ao barateamento do custo das cópias e a diminuição do tempo de produção de um livro. Cada leitor individual passou a ter acesso a um número maior de títulos e cada título atingia um número maior de leitores. Estes argumentos, porém, não justificam ou não explicam, por si, as “revoluções da leitura” experimentadas pelo Ocidente na época moderna. A mudança e aprimoramento das técnicas tiveram um papel relevante, mas não são as únicas determinantes.[1]5 Ao mesmo passo em que elas ocorriam, alteravam-se os paradigmas sobre as práticas de leitura e a epistemologia em relação aos livros. A revolução passou por dois movimentos. No final do século XIV, a leitura silenciosa se converteu em prática comum, ganhando um número cada vez maior de adeptos, e a escolástica foi perdendo força, tornando o livro um objeto dessacralizado, um instrumento de trabalho e de conhecimento das coisas do mundo. Segundo Chartier: “Essa primeira revolução na leitura precedeu, portanto, a revolução ocasionada pela impressão, uma vez que difundia a possibilidade de ler silenciosamente (pelo menos entre os leitores educados, tanto eclesiásticos quanto laicos) bem antes de meados do século XV”.[16]

Passou-se, gradualmente, do predomínio de uma forma de leitura intensiva, ler e reler várias vezes um número limitado de obras, decorando trechos, recitando e memorizando com um sentido pedagógico, até outra forma, extensiva. Tornava-se cada vez mais comum possuir alguns livros ou uma pequena biblioteca particular para estudo ou para lazer. Textos curtos, alguns efêmeros, impressos e manuscritos de hora, o comércio ambulante de livretos… em tudo contribuíram para esse novo costume. É sabido que as duas modalidades ocuparam o mesmo espaço de tempo e uma não fez desaparecer a outra, no entanto, as descrições, as pinturas, os escritos e outros testemunhos tendem a sublinhar a vulgarização dessa prática.[17]

Em estudo recente, publicado pelos psicólogos Noah Forrin e Colin M. MacLoad, do Departamento de Psicologia da University Waterloo, no Canadá, constatou-se que a palavra lida em voz alta aparece como uma atividade com “efeito de produção”. Ler e ouvir o que se está lendo, uma medida duplamente ativa – “um ato motor (fala) e uma entrada auditiva autorreferencial” –, faz com que os trechos ganhem distinção, fixando suas marcas na memória de longo prazo. Esta ação, realizada repetidas vezes operacionaliza a memorização de passagens longas.[18] Poemas da antiguidade ou do medievo, possuíam um sem número de versos que eram recitados, em maior ou menor proporção, por diversas pessoas e em diferentes locais. A leitura silenciosa (e extensiva), porém, implica em um vestígio distinto à lembrança, mais próximo da anamnese do que da fixação mnemônica.[19]

O resultado da pesquisa de Forrin e MacLoad pode ajudar a desvendar desencadeamentos que ocorreram no passado e que mudaram nossa relação com o livro. Por um lado, novos gêneros aparecem, uma forma narrativa mais alongada e menos rimada fez sentir sua presença: o romance.[20] Este, possui todos os aspectos necessários para agradar um leitor voraz, que folheasse um volume para seu entretenimento sem a preocupação de decorar passagens, mas, em alguns casos, o efeito foi justamente o contrário. Na lista dos best sellers da época moderna estão Nouvelle Héloise, Pâmela, Clarissa, Paul et Virgine, Souffrances du jeune Werther, Les aventures de Télémaque, dentre outros, novelas com capacidade de prender seus leitores por mais de uma sessão repetidas vezes.[21] Por outro lado, encadernados de caráter mais informativo, como os guias, as enciclopédias, os atlas históricos e geográficos, as cronologias, os almanaques, os catálogos, etc., ganharam cada vez mais espaço. Situação que provocava a queixa dos eruditos, como é o caso do suíço Conrad Gesner, que cunhou a expressão “ordo librorum”, mas não deixou de reclamar da “confusa e irritante multiplicação de livros”, provocada pelo significativo aumento dos números de títulos disponíveis no mercado.[22]

É sob esta arquitetura histórica que debruçam os estudos apresentados para a trigésima edição da Revista Cantareira, compondo o dossiê “Cultura escrita no mundo ibero-americano: identidades, linguagens e representações”. Fisicamente distante das metrópoles europeias, os súditos ibéricos instalados ou nascidos no continente americano não se furtaram a experimentar as consequências dessa nova invenção. Mais do que ler, eles refletiram sobre as ideias trazidas pelos livros e por outros impressos, transportados, muitas vezes, clandestinamente – “sob o capote”. Alguns assumiram uma postura conservadora diante das novidades; outros utilizaram as palavras como motivação para contestar a ordem social, a religião ou as autoridades estabelecidas. A historiografia brasileira avançou significativamente, nos últimos anos, sobre as temáticas abordadas aqui. Portanto, esses textos, ao mesmo tempo em que apresentam novidades relacionadas às pesquisas de historiadores em formação, nível mestrado e doutorado, também caminham por terreno consolidado.[23]

No artigo “A cultura epistolar entre antigos e modernos: Normas e práticas de escrita em manuais epistolares em princípios do século XVI”, Raphael Henrique Dias Barroso aborda os códigos e normas da escrita epistolar que circulavam os ambientes cortesãos do início do Quinhentos. Com base nas obras de Erasmo de Roterdã e Juan Luis Vives, o autor demonstra a presença destes códices nas missivas diplomáticas trocadas entre o embaixador D. Miguel da Silva e D. Manuel, monarca português entre 1469 e 1521.

O segundo artigo, intitulado “A incorporação de elementos da cultura escrita castelhana nas histórias dos códices mexicas dos séculos XVI e início do XVII” de Eduardo Henrique Gorobets Martins, mostra a importância que a cultura escrita possuía nas relações de poder no mundo ibero-americano. Longe de considerar os índios como vítimas passivas da colonização, o autor evidencia como diversos grupos indígenas, que se aliaram aos espanhóis contra os mexicas, se apropriaram da cultura escrita castelhana tanto com o objetivo de reescrever suas histórias a partir de novos vocábulos como se inserir na colonização para obter cargos e privilégios juntos aos espanhóis.

O artigo seguinte, de autoria de Caroline Garcia Mendes, também demonstra a importância da cultura escrita no campo político em um outro espaço: a monarquia portuguesa nos anos seguintes à Restauração de 1640. Intitulado “As relações de sucesso e os periódicos da Península Ibérica na segunda metade do século XVII: imprimir, vender e aparecer nos materiais de notícia sobre a Guerra”, a autora analisou duas dimensões do processo de profusão das notícias impressas em Portugal: a política e a econômica. Para tal, destaca a conflituosa relação entre impressores e cegos no que dizia respeito à circulação dos impressos. Do lado político, enfatiza a importância que certos feitos de alguns personagens adquiriam ao serem difundidos pela cultura escrita. No fundo de tal preocupação, estava a preocupação de se fazer ver diante de todos, especialmente do rei.

Em “Da devoção à violência: a atribuição da mentira como estratégia de discurso na Guerra Guaranítica”, escrito por Rafael Cézar Tavares, o exame recai sobre as estratégias discursivas de ambos os lados partidários dos eventos. Para tanto, o autor analisou três conjuntos documentais difusos: as cartas dos Guarani enviadas aos funcionários coloniais na iminência do enfrentamento; o relatório pombalino escrito já ao fim dos conflitos; e o Cândido de Voltaire, novela em que o protagonista visita o Paraguai no contexto da Guerra. Um estudo relevante acerca de um episódio pouco visitado pela historiografia geral, abordado pela chave da retórica como fonte de análise.

O artigo de Anna Beatriz Corrêa Bortoletto tem como centro a cultura escrita ao avaliar a confecção e a trajetória de um documento do século XVIII redigido por Luís Rodrigues Villares, um comerciante envolvido com a expansão da colonização no atual Centro-Oeste brasileiro. Inicialmente pensado como uma instrução para os comerciantes que atuavam na região, a autora demonstra com tal documento foi ressignificado a partir de sua trajetória e materialidade. Ao fazê-lo, destaca que, atualmente, o documento se encontra num códice com diversos documentos de autoria de Custódio de Sá e Faria, um engenheiro militar que também atuou na América portuguesa do século XVIII, em outras palavras, o documento era importante para a administração colonial. A partir disso, o artigo analisa que, provavelmente, o manuscrito analisado circulou até chegar às mãos do Morgado de Mateus, então governador de São Paulo, cujo um dos descendentes vendeu o códice que hoje pertence à Biblioteca Mario de Andrade em São Paulo que o adquiriu de um bibliófilo com o objetivo de preservar documentos que pudessem responder diversas questões referentes à história do Brasil, ou seja, diferentes temporalidades históricas conferiram diferentes significados ao manuscrito. Natalia Casagrande Salvador, em artigo intitulado “Cultura Escrita para além do texto: percepções materiais e subjetivas do documento manuscrito”, destaca a importância dos estudos da cultura material e da codicologia para a interpretação dos documentos históricos. A partir do Livro de Termos da Ordem Terceira de São Francisco da Penitência de Mariana, nas Minas Gerais, a autora analisa o papel enquanto suporte, os instrumentos e a escrita, o conteúdo e as posteriores rasuras e correções.

O último artigo deste dossiê intitula-se “Entre Livros, Livreiros e Leitores: a trajetória editorial e comercial da Guia Médica das Mãis de Família” escrito por Cássia Regina Rodrigues de Souza. A autora borda os manuais de medicina doméstica por meio do Guia Médica das Mãis de Família, publicado em 1843 pelo médico francês Jean Baptiste Alban Imbert com o objetivo de instruir mães e gestantes. Ao investigar a trajetória editorial e comercial, a fim de discutir os possíveis leitores da obra, a autora demonstra que seu alcance ultrapassou os limites da elite alfabetizada imperial e penetrou, de diferentes formas, na vida de mães recém-paridas, comadres e parteiras.

Por fim, encerra nosso dossiê entrevista gentilmente concedida pela Dra. Ana Paula Torres Megiani, professora da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas e Livre Docente em História Social pela Universidade de São Paulo. Em resposta a quatro diferentes provocações, ela nos contou primeiro sobre sua trajetória e formação, indicando os caminhos que levaram às suas escolhas temáticas e as tendências da historiografia principalmente nos anos 1990. Na sequência, abordou a questão da circulação dos livros manuscritos na época moderna, salientando a recente atenção recebida por essa fonte. Para, então, tratar das influências do desenvolvimento da cultura escrita, entre os séculos XVI e XIX, no mundo iberoamericano como uma das bases de sustentação da administração imperial. E, no último bloco falou sobre os chamados “escritos breves para circular”, atribuição de tipologia documental que, segundo nossa leitura, evidência o surgimento de um novo “regime de historicidade”, como classifica François Hartog, ou uma nova “experiência de tempo”, conforme Reinhart Koselleck.

Esta edição conta ainda com dois artigos livres e uma resenha. O primeiro, intitulado “O materialismo histórico e a narrativa historiográfica”, escrito por Edson dos Santos Junior, aborda o problema da narrativa e do pensamento materialista histórico a partir da obra de Walter Benjamin. No segundo, intitulado “Aleia dos Gênios da Humanidade: escutando os mortos”, Cristiane Ferraro e Valdir Gregory tratam da comunidade conscienciológica sediada em Foz Iguaçu e os lugares de memória do grupo que a compõe. Mathews Nunes Mathias resenhou a obra Coração civil: a vida cultural sob o regime militar (1964-1985): Ensaios históricos (2017), escrita pelo historiador Marcos Napolitano.

Notas

  1. FEBVRE, Lucien; MARTIN, Henri-Jean. O aparecimento do livro. São Paulo: Ed; USP, 2017, p. 76-80.
  2. Evidentemente, o processo histórico não é tão linear e simples quanto esta exposição, apresentando múltiplas inconstâncias. Nossa intenção, porém, objetiva explicar de forma sintética o aparecimento de uma ferramenta que transformou o mundo de variados modos. Para uma exposição mais cuidadosa, cf.: Ibidem, p. 105-108ss
  3. DARNTON, Robert. O Iluminismo como negócio: A história da publicação da “Enciclopédia”, 1775-1800. São Paulo: Companhia das Letras, 1996, p. 14.
  4. Ibidem, p. 176.
  5. Idem.
  6. VERGER, Jacques. Os livros. In: Homens e saber na Idade Média. Bauru, SP: EdUSC, 1999; FEBVRE, Lucien; MARTIN, Henri-Jean. O aparecimento do Livro… Op. cit., p. 59-63.
  7. DARNTON, Robert. O Iluminismo como negócio… Op. cit., p. 189.
  8. Ibidem, p. 150.
  9. WILLEMS, Afonso. Les Elzevier: histoire et annales typographiques. Bruxelles: G. A. van Trigt, 1880, p. 109.
  10. CHARTIER, Roger. As revoluções da Leitura no Ocidente. In: ABREU, Márcia (org.). Leitura, história e história da leitura. São Paulo: FAPESP, 1999, p. 95-98.
  11. Chamamos genericamente de “registros cartoriais”, os documentos analisados por Chartier, cuja tipologia varia de certidões de casamento até contratos comerciais. CHARTIER, Roger. Práticas de escrita. In: CHARTIER, Roger (org.). História da vida privada. Vol. 3: da Renascença ao século das luzes. São Paulo: Companhia das Letras, 1991, p. 114- 118.
  12. CHARTIER, Roger. As revoluções da leitura… Op. cit., p. 22-23.
  13. Ibidem, p. 24.
  14. CHARTIER, Roger. Uma revolução da leitura no século XVIII? In: NEVES, Lucia Maria Bastos P. (org.). Livros e impressos: Retratos do setecentos e do oitocentos. Rio de Janeiro: Ed. UERJ, 2009, p. 93-95.
  15. FORRIN, Noah; MACLEOD, Colin M. This time it’s personal: the memory benefit of hearing oneself. Memory, [s.n.t.].
  16. Utilizamos “anamnese” no sentido expresso por Platão no Fédon, que é o mesmo retomado pela medicina moderna, no qual a experiência é reconstituída pela consciência individual, por meio dos sentidos, como uma ideia; ao contrário da mnemônica, que se refere a um conjunto de técnicas para gravar de forma mecânica um conteúdo.
  17. CHARTIER, Roger. As revoluções da leitura… Op. cit., p. 26.
  18. Ibidem, p. 95-96
  19. BURKE, PETER. Uma História Social do Conhecimento. Vol I: de Gutemberg a Diderot. Rio de Janeiro: Zahar, 2003, p. 97; BURKE, Peter. Problemas causados por Gutenberg: a explosão da informação nos primórdios da Europa moderna. Estudos Avançados, São Paulo, v. 16, n. 44, p. 173-185, abr. 2002, p. 175; CHARTIER, ROGER. A ordem dos livros: Leitores, autores e bibliotecas na Europa entre os séculos XIV e XVIII. Brasília: Editora da UnB, 1994.
  20. Por ser profusa, evitamos listar a produção de historiadores brasileiros. O ato de enumerá-los, mesmo considerando somente os mais relevantes, seria exaustivo e injusto, pois em toda seleção sempre há esquecimentos por descuido ou por cálculo. O leitor interessado, de todo modo, estará bem informado consultando a bibliografia apresentada em cada artigo publicado adiante.

Claudio Miranda Correa – Mestrando do Programa de Pós-graduação em História da Universidade do Estado do Rio de Janeiro.

Gabriel de Abreu Machado Gaspar – Mestrando do Programa de Pós-graduação em História da Universidade Federal Fluminense.

Pedro Henrique Duarte Figueira Carvalho – Mestrando do Programa de Pós-graduação em História da Universidade Federal Fluminense


CORREA, Claudio Miranda; GASPAR, Gabriel de Abreu Machado; CARVALHO, Pedro Henrique Duarte Figueira. Apresentação. Revista Cantareira, Niterói- RJ, n.30, jan / jun, 2019. Acessar publicação original [DR]

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Nas Teias do Império: Poder e Propriedades no Brasil Oitocentista / Cantareira / 2018

Depois de um longo período de descrédito, os estudos em História Política voltaram ao centro dos debates historiográficos. Graças a um importante movimento de renovação ocorrido nas últimas décadas – como a descoberta e utilização de novas fontes e objetos de estudo, assim como de novas abordagens teórico-metodológicas–, pesquisas políticas antes consideradas esgotadas ganharam um novo fôlego. Um exemplo disso são os diversos trabalhos que propõem um novo olhar sobre o processo de construção do Estado e da Nação brasileira ao longo de todo o século XIX, nos mostrando que, apesar de clássico, o tema em questão é ainda um terreno fértil.

Profundamente relacionado ao contexto econômico-social em suas múltiplas facetas, o tradicional estudo das ideias, do pensamento e das práticas políticas foi revolucionado. Tanto as doutrinas – o liberalismo e o conservadorismo –, quanto as disputas partidárias que as materializavam em projetos de governo ganharam novas dimensões ao serem vinculadas às manifestações culturais e religiosas; aos diversos movimentos sociais que demandavam direitos; aos interesses ligados ao escravismo, a posse de terras e a modernização econômica; a preocupação de forjar uma história nacional no qual o progresso e a civilidade fossem possíveis; e a uma ação diplomática que lutava pela manutenção da unidade e das fronteiras políticas brasileiras.

Nesta perspectiva, cremos que os elementos supracitados orbitam em duas grandes temáticas que particularizam o século XIX: a liberdade e a propriedade. Como sabemos, essa centúria foi marcada pela disputa entre duas linguagens políticas – uma ligada ao Antigo Regime e a outra ao Iluminismo. Este embate marcou a construção de uma nova concepção de mundo, a Modernidade, que estava completamente entrelaçada ao surgimento do liberalismo. Impulsionadas por essas novas ideias, várias regiões do mundo iniciaram um processo de transformação de suas estruturas políticas, econômicas e sociais, o que gerou impactos, interpretações e usos variados.

Não à toa, é justamente no decorrer desse mesmo século que a maior parte das ex-colônias americanas iniciaram seu processo de emancipação política e, consequentemente, a construção dos seus Estados e de suas Nações. Segundo Hespanha, alguns elementos aproximam estes diferentes processos, como o surgimento de grandes Estados bem como de suas gestões, que envolviam a administração de grandes territórios, a implantação de uma nova soberania e de uma nova organização da vida política baseada nas ideias de cidadania e de direitos3.

No caso brasileiro não foi diferente. A independência do Brasil e a posterior formação de suas instituições políticas e de seus cidadãos conciliaram as ideias liberais modernas com a persistência de antigas práticas do Antigo Regime. Nesse sentido, apesar do liberalismo ser central em todo este processo, ele foi apropriado e transformado para adaptar-se às características sociais brasileiras, cujas bases eram a escravidão, o patriarcalismo e o clientelismo.

Se tais questões de âmbito político e social demarcaram – e seguem a demarcar – diversos estudos acerca do oitocentos no Brasil, não diferente foram aqueles que alçaram a propriedade como fio-condutor. Terras, escravos e direitos são algumas das assertivas que norteiam as diversas leituras sobre as dimensões da propriedade no país.

Como produto histórico, a propriedade é marcada por diversas percepções e distintas análises, muito embora seja vista, ainda hoje, como algo natural e, consequentemente, a-histórico. Na contramão dessa interpretação estão autores nacionais e estrangeiros que defendem uma acepção mais plural para o conceito e para as experiências históricas a ela vinculadas, consagrando o que pode ser definido como uma História Social das Propriedades.

No exterior, destacam-se as clássicas obras de E. P. Thompson [4] que, atualmente, se somam às ilações de Rui Santos e Rosa Congost [5], como também as da economista Elionor Ostrom [6]. Em relação ao Brasil, verificamos uma gama de historiadores e cientistas sociais que se debruçaram – e debruçam – sobre o tema.

Em O Rural à la gauche, a historiadora Márcia Motta resgatou as principais interpretações da esquerda sobre o mundo rural brasileiro na segunda metade do século XX. De Nelson Werneck Sodré à Maria Yedda Linhares, Motta apresentou quais eram as concepções sobre o campesinato e os latifúndios para os autores e, de forma particular, demonstrou as razões que levaram à criação da linha de História Agrária no país, como também as novas marcas interpretativas que surgiram a partir dela [7].

Estruturado em três grandes blocos, a 28ª. edição da Revista Cantareira é resultado de um conjunto de investigações recebidas de diversas partes do Brasil e do exterior. No dossiê temático, composto por dez artigos, são propostas reflexões sobre o poder e as propriedades no oitocentos, com enfoque nas relações de dominação e de conflito que demarcam este momento da história nacional. Na seção de artigos livres encontramos uma série de trabalhos originais de graduandos e pós-graduandos de diversas instituições do país, complementadas com as transcrições e resenhas submetidas e aprovadas. A entrevista desta edição foi realizada com a Prof.ª. Dr.ª. Márcia Motta, considerada a maior especialista sobre propriedades no Brasil e que coordena, atualmente, o Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia História Social das Propriedades e Direitos de Acesso.

O dossiê temático é iniciado pela discussão do artigo, Ânderson Schmitt. Em “Se não cuidarmos em conservar as estâncias, donde e como teremos o necessário para sustentar a guerra?”: as propriedades embargadas durante a Guerra dos Farrapos (1835-1845), o autor analisou o tratamento dado às propriedades rurais durante a Guerra dos Farrapos, entre os anos de 1835 e 1845 no Rio Grande do Sul. Desnudou, a partir da documentação contemporânea ao conflito, a ação dos grupos revoltosos em um contexto de ação restrita. Ainda em relação à atual região do Sul do país escreveu Vinícius de Assis. Baseado em inventários post-mortem e outras fontes, seu artigo intitulado Do porto às casas de sobrado: cultura material e riqueza nos inventários de negociantes (Paranaguá / PR, século XIX) descortinou a materialidade presente no cotidiano dos comerciantes de grosso trato e fazendeiros do Paranaguá.

A freguesia de Nossa Senhora da Conceição do Bananal foi a região investigada por Jessica Alves. Em Donas e Foreiras: Senhoras proprietárias de escravos e terras na Freguesia de Nossa Senhora da Conceição do Bananal de Itaguaí em meados do século XIX, a pesquisadora resgatou a atuação de mulheres proprietárias de terras e escravos nesta localidade, ao demarcar suas estratégias para manutenção ou ampliação de seus patrimônios.

As relações de poder são resgatadas no trabalho de Flávia Darossi. Em “Benefícios reais da Lei de Terras”: uma releitura política com base na experiência do termo de Lages em Santa Catarina, a investigadora esmiuçou a forma como o Estado Imperial adequou o seu projeto centralizador em correspondência com as elites regionais e locais a partir da Lei de Terras. Como forma de sustentar sua hipótese, tomou como objeto de estudo a municipalidade de Lages, Santa Catarina. Eder de Carvalho e Carlos Gileno também desnudam debates característicos do período de consolidação do Estado brasileiro em Poder Moderador e a responsabilidade jurídica e política: polêmica constitucional da segunda metade do século XIX, mas a partir de outra questão chave: a polêmica constitucional que envolvia o Poder Moderador.

Mirian de Cristo, autora de A Elite Imperial do Porto das Caixas: Saquaremas no poder, se preocupou em relatar a influência política e econômica da família Rodrigues Torres na Freguesia de Nossa Senhora Imaculada Conceição do Porto das Caixas, como também no que concerne ao Império brasileiro. Thomaz Leite, posteriormente, sintetizou suas ilações em “Resta só o Brasil; resta o Brasil só!”: A primeira proposta de emancipação do ventre escravo, sua recepção e discussão no Conselho de Estado Imperial (1866-1868). Em seu texto discutiu a liberdade de ventre a partir do projeto escrito pelo conselheiro de Estado Pimenta Bueno e resgatou as querelas que constituíram os debates abolicionistas.

À luz dos embates periodísticos escreveu Ana Elisa Arêdes o artigo Liberdade e acesso à terra: debates acerca da colônia de libertos de Cantagallo, Paraíba do Sul (1882- 1888). Fundamentada na percepção da imprensa como uma ferramenta de luta política, a pesquisadora recuperou o caso da colônia de libertos de Cantagallo, Paraíba do Sul, para destrinchar as diferentes percepções sobre a abolição, manutenção da escravidão e trabalho nas lavouras.

Para finalizar o dossiê contamos com as instigantes contribuições de Pedro Parga e Rachel Lima. Em A experimentação literária de Machado de Assis e o tema da propriedade da terra no XIX, Pedro Parga refletiu sobre a presença temática do conflito de terras e da crítica à visão senhorial sobre a propriedade territorial em duas obras machadianas. Rachel Lima em Senhores, possuidores e outras coisas mais: As múltiplas funções dos proprietários do rural carioca no oitocentos, se preocupou em discutir as diversas funções dos proprietários de terras do rural carioca, especificamente da freguesia de Inhaúma, para demarcar a posição privilegiada que lhes eram outorgadas em virtude dessa variedade de atribuições.

Em conclusão, esperamos que o leitor se beneficie dos diálogos propostos neste dossiê, ao adensar cada dia mais as reflexões que norteiam a questão do poder e das propriedades no oitocentos.

Boa Leitura!

Notas

  1. HESPANHA, Antônio Manuel. “Pequenas repúblicas, grandes estados. Problemas de organização política entre antigo regime e liberalismo” In.: JANCSÓN, István (org.). Brasil: formação do Estado e da Nação. São Paulo: UCITEC; Jundiaí: FAPESP, 2003.
  2. THOMPSON, E. P. Costumes em Comum. São Paulo: Companhia da Letras, 1998; THOMPSON, E. P. Senhores e caçadores: a origem da lei negra. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987.
  3. CONGOST Rosa, Selman, Jorge & Santos, Rui.”Property Rights in Land: institutional innovations, social appropriations, And path dependence. Keynote” in: Presented at the XVIth World Economic History Congress, 9-13 July 2012, Stellenbosch University,South Africa.
  4. OSTROM, Elinor, HESS, Charlotte. “Private and common property rights” In: BOUCKAERT, Boudewijn (ed). Property Law and Economics. Cheltenham, UK / Northampton, MA, USA: NATIONAL BUREAU OF ECONOMIC RESEARCH, 2010; OSTROM, Elinor. Governing the Commons: The Evolution of Institutions for Collective Action. Cambridge University Press, 1990.
  5. MOTTA, Márcia. O Rural à la gauche: campesinato e latifúndio nas interpretações de esquerda (1955-1996). Niterói: EdUFF, 2014. Mais recentemente, no âmbito do INCT-Proprietas, reúnem-se pesquisadores de múltiplas áreas do conhecimento com o objetivo de analisar criticamente a propriedade enquanto instituição social.

Alan Dutra Cardoso – Mestrando do Programa de Pós-Graduação em História Social na Universidade Federal Fluminense e graduado (bacharelado e licenciado) pela mesma instituição. Desenvolve projeto de pesquisa sob orientação da Profª. Drª. Márcia Maria Menendes Motta, atuando principalmente nos seguintes temas: História Social das Propriedades, Fronteiras Políticas, Segundo Reinado do Brasil Império, República de Nova Granada / República de Colômbia (séc. XIX), Patrimônio material e Educação. Foi intercambista na Universidad del Rosario, Colômbia, sendo contemplado com o Edital Mobilidade para América Latina UFF / DRI 18 / 2013. Integra a Rede Proprietas, hoje INCT – Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia, projeto internacional: História Social das Propriedades e Direitos de Acesso (Disponível em: www.proprietas.com.br). É membro da comissão editorial da Revista Cantareira (www.historia.uff.br / cantareira) e bolsista do CNPq. E-mail: alandutra@id.uff.br

Luaia da Silva Rodrigues – Doutoranda e bolsista Capes pelo programa de Pós-Graduação de História da UFF. Possui graduação e mestrado pela mesma universidade. Especialista em História do Brasil Império, com ênfase nos seguintes temas: regências, Regresso, conservadorismo, liberalismo, Bernardo Pereira de Vasconcelos, identidades e partidos políticos. Atualmente é pesquisadora vinculada aos seguintes laboratórios de pesquisa: CEO, NEMIC e Primeiro reinado em Revisão e professora do pré vestibular social do Estado do Rio de Janeiro (PVS). E-mail: luaiarodrigues@gmail.com


CARDOSO, Alan Dutra; RODRIGUES, Luaia da Silva. Apresentação. Revista Cantareira, Niterói- RJ, n.28, jan / jun, 2018. Acessar publicação original [DR]

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A Redemocratização Brasileira e o Seu Processo Constituinte / Cantareira / 2017

No sábado, ou quando muito na segunda-feira, tudo

voltaria ao que era na véspera, menos a Constituição.

(Machado de Assis)

O encerramento dos anos 1980, dando lugar a última década do século, consagrou um marco para a história brasileira, servindo de palco para a retomada, pela sociedade, de uma série de movimentos sociais e culturais. As campanhas em torno de uma Anistia Ampla Geral e Irrestrita e pelas Diretas Já! são exemplos evidentes desse estado de mobilização transformadora – e essa mesma participação popular culminou na luta por uma Assembleia Nacional Constituinte (ANC), desaguando em uma etapa inédita na vida dos brasileiros. O processo constituinte trouxe reflexos de cunho cultural, social, político e jurídico, chegando ao seu ápice na Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 (CRFB / 88) – considerada, segundo expressão do constituinte Ulysses Guimarães, uma “Constituição Cidadã”.

Durante seus 18 meses de funcionamento, a ANC ocupou o centro do cenário político, mobilizando forças e atenções de agentes nas escalas políticas e populares. Os 584 dias que se seguiram à instalação da ANC de 1987-88 foram marcados por disputas e acordos, bem como por uma relação, sem precedentes, entre atores parlamentares e extraparlamentares. Segundo o cientista político Antônio Sérgio Rocha, estima-se que nove milhões de pessoas tenham passado pelo Congresso Nacional naqueles dois anos [2]. Porém, as mobilizações não ocorreram apenas durante a ANC; começaram bem antes, dentro e fora do Congresso, por meio do envio de cartas, telegramas e sugestões e caravanas, entre outras manifestações.

Uma série de desconhecidos se comprometeu com a Constituinte, ampliando a rede de atores que, até então, era composta quase que apenas por líderes políticos. Além dos partidos, inúmeras organizações da sociedade, como sindicatos e associações, dialogaram com a população acerca da Constituinte. O debate político incluía palavras de ordem e uma luta por um espaço visual para que permitisse colocar em evidência as mais diversas reivindicações. Neste contexto, foi criado o slogan “Constituinte sem povo não cria nada de novo”[3].

A compreensão de um fenômeno cultural só pode ser entendida em prisma histórico através da reconstrução do ambiente social e político onde ocorreu o debate. Logo, é preciso registrar que este período de transformações no cenário político foi marcado pela junção de duas forças: centrífuga, de dentro para fora, notadamente por meio da transição política conservadora, lenta e gradual, firmada através de acordos; e centrípeta, de fora para dentro, principalmente no que diz respeito à feitura da vindoura Carta Magna de 1988, baseada na participação popular. Em termos simbólicos, o processo de redemocratização visava ao equilíbrio da conjuntura, mas não às custas da herança institucional do passado. Contudo, em termos práticos, a mobilização popular foi o “x” da questão, equacionando a seguinte fórmula final: uma nova Constituição, elaborada por uma ANC que fora, por sua vez, pressionada pelas campanhas do próprio destinatário do documento final: o povo. Este, por seu turno, contribuiu fortemente para a confecção do diploma constitucional de 1988, impedindo, por meio da reivindicação de seus direitos, que o texto definitivo revelasse carga ainda mais conservadora.

Tendo em vista a coexistência inevitável, portanto, de forças opostas, contesta-se a ideia de que a transição esteja relacionada exclusivamente à operação do sistema político, que enfatiza as instituições e a negociação entre os parlamentares, deixando de analisar o papel dos movimentos sociais e sua relação com o Estado. É preciso abandonar o enfoque exclusivo da faceta da democratização relacionada às instituições políticas para abarcar, também, as ações sociais.

Faz-se necessário, ainda, calibrar o olhar e projetar a análise para o tempo atual, uma vez que o presente só pode ser compreendido de forma plena por meio de uma investigação do passado, de modo a promover uma síntese da dinâmica destes tempos, que se comunicam em via de mão dupla: “A incompreensão do presente nasce fatalmente da ignorância do passado. Mas talvez não seja menos vão esgotar-se em compreender o passado se nada se sabe do presente”[4].

Outra citação se faz pertinente: “O meu passado não é mais meu companheiro. Eu desconfio do meu passado”[5]. Se, em seu tempo, o poeta Mário de Andrade encontrou razões para estranhar o passado, que dizer do tempo atual, neste século XXI? Além do passado, o presente também é analisado de forma desconfiada. A recente expansão de ideologias antidemocráticas – tais como o clamor pela volta dos militares ao poder – deixa em evidência o quanto “é preciso estar atento e forte”, como já diziam Caetano Veloso e Gilberto Gil na música Divino, Maravilhoso.

O advento, nestes últimos anos de crise política, de novas medidas normativas voltadas para alterações no panorama da Carta Magna de 1988 endossa o presente apelo. É manifesto que o rumo de supressão de direitos e garantias individuais e coletivas em nome de interesses políticos conservadores, importa na transgressão ao espírito garantista da ANC de 1987-88 e à letra da norma petrificada nos títulos da CRFB / 88, intitulados “Dos Direitos e Das Garantias Fundamentais” e “Da Ordem Social”[6]. Dentre as mudanças mais recentes que acenam para a retirada de direitos, destaca-se a reforma trabalhista, engendrada na Consolidação das Leis do Trabalho (CLT).

Em contraste com o direcionamento adotado rumo à ANC de 1987-88, por meio do qual se buscava consolidar uma nova e relativamente ampla gama de direitos no seio constitucional, a tônica que hoje se desvela traz um cunho predominantemente autoritário. Dentro deste entrelace do ontem com o hoje, os acontecimentos do passado constituinte atravessaram os anos, perpetuando-se nos dias atuais. Por que, afinal, apesar de registrarem aspectos específicos de seu momento, seus embates e expectativas persistem? Frente a esse novo cenário, muito mais complexo e desafiador, a população não espera concessões da parte dos poderes estabelecidos – o que, curiosamente, evidencia o entrelace entre tempos idos e presentes e remete aos versos de Geraldo Vandré, na música “Pra não dizer que não falei das flores”, que traduzem a inquietude e a necessidade de ação: Quem sabe faz a hora, não espera acontecer.

Esta edição tem por objetivo elucidar a redemocratização brasileira e a importância do processo constituinte para o entendimento dos movimentos sociais no Brasil contemporâneo, cujas políticas públicas, em grande parte, possuem fundamento nas reivindicações daquele período. A redução da distância entre o processo constitucional e as práticas cotidianas fomentou o amadurecimento das experiências e de novas iniciativas rumo ao fortalecimento da identidade do povo brasileiro. O novo diploma legal incorporou ideias comprometidas com os direitos sociais e individuais, corroborando a noção de que o processo constituinte democrático estabelece novas bases de fortalecimento popular à medida em que investiga o passado com o intuito de ascender a um novo patamar na emancipação social.

Quatro artigos abordam temas relacionados à temática deste dossiê. O primeiro, intitulado Um Olhar Histórico-Jurídico da Liberdade Religiosa no Brasil: do Império à Constituição Cidadã (1824 a 1988), de autoria de Walber da Silva Gevu, faz um apanhado histórico que visa compreender o avanço do instituto da liberdade religiosa ao longo das Constituições brasileiras de 1824 até 1988 – enfatizando os avanços nesta última e a preocupação com os tempos presentes que, segundo o autor, “parecerem sombrios e de retrocesso”.

O segundo, por sua vez, foi escrito por Aílla Kássia de Lemos Santos, tendo como título Movimentos Negros em Pernambuco e a Imprensa Negra como estratégia de luta (1980-1990). O artigo examina o Movimento Negro Unificado de Pernambuco no período de redemocratização do país entre os anos de 1980 e 1990, suas estratégias de luta e sua relevância para a sociedade, notadamente nas suas ações voltadas para o combate ao racismo e ao mito da democracia racial.

As Diretas Já foram analisadas no terceiro artigo, intitulado Indiretamente pelas Diretas. A Democracia Corinthiana no Conjunto das Manifestações pelas Diretas Já!, de coautoria de Ana Cláudia Accorsi, Gabriel Félix Tavares, Mateus Henriques de Souza e Nathália Fernandes Pessanha. Neste texto, a Democracia Corinthiana é considerada como um movimento da década de 1980 que lutava não apenas pelas demandas do futebol, mas também pelo voto. Os autores procuram entender a inserção de tal movimento no contexto das Diretas Já, ilustrando a transformação do estádio esportivo em espaço de manifestação política.

O quarto e último artigo do dossiê – Mídia e Democracia: a Atuação dos Jornais na Ruptura da Ordem Constitucional de 1964 e no Cenário de Reabertura Política, de Matheus Guimarães Silva de Souza – está centrado no debate acerca da mídia e da democracia, por meio da análise de fontes de jornais. O autor aponta que a mídia contribuiu para a subida e consolidação dos militares ao poder político, elaborando um panorama do golpe de 1964 enquanto mostra a participação das principais publicações brasileiras como responsáveis pelo curso da história. O autor visa não somente alicerçar o regime autoritário, mas também a ação de tais veículos de comunicação, almejando “reaver a atuação da mídia durante o processo de redemocratização do país”.

Também constam quatro artigos da seção livre, a saber: o primeiro, de autoria de Robson Williams Barbosa dos Santos, aborda o papel desempenhado pelos escravos do rio Poxim na Vila Real de São José do Poxim, atual município de Coruripe (Alagoas), sendo intitulado Fragmentos da Escravidão em Alagoas: Escravos, Sociedade na Villa Real de São José do Poxim – 1774 a 1854; o segundo, intitulado O instrumento da Correição Geral na São Paulo Setecentista: o Caso do Juízo dos Órfãos (1744), de autoria de Amanda da Silva Brito, trata do “papel da correição geral enquanto mecanismo de disciplinamento da ação do juiz de órfãos”, no século XVIII; o terceiro, por sua vez, escrito por Denilson de Cássio Silva, chama-se O ‘Afeto das Palavras’: Pátria, Nação e Estado em Fernando Pessoa, Mário de Andrade e Cecília Meireles (Lisboa, São Paulo, Rio de Janeiro, Primeira Metade do Século XX), e tem por objetivo abordar, nos textos de Fernando Pessoa, Mário de Andrade e Cecília Meireles, os conceitos de “pátria”, de “nação” e de “Estado”; e o quarto e último possui como título Cultura em Campo: Entre o Elitismo e a Popularização do Futebol (1897-1938), de autoria de Lucas de Carvalho Cheibub, e tem por foco o exame do “processo de popularização do futebol na sociedade do Rio de Janeiro, durante a Primeira República”.

Encerrando esta edição, apresenta-se entrevista com a parlamentar constituinte de 1987-88 e atual Deputada Federal Benedita da Silva. Independentemente de bandeira partidária, é necessário ter acesso à perspectiva de quem participou diretamente do processo, de modo a evidenciar, sob o olhar de um dos Constituintes, a trajetória daquele momento histórico e expor alguns dos resultados das dinâmicas de enfrentamento, das disputas de poder e das resoluções de interesse entre parlamentares e extraparlamentares.

Tendo em vista os 30 anos da inauguração da ANC, em 1º de fevereiro de 1987, e da própria promulgação da Constituição Federal, em 2018, as questões abordadas neste dossiê assumem dimensões de destaque, invocadas que são por estas datas comemorativas. O desenvolvimento de uma análise sobre as relações entre a sociedade brasileira e o seu processo de redemocratização, pela via constitucional, tem sua importância, assim, amplificada.

Boa Leitura!

Notas

  1. ROCHA, Antônio Sérgio. “Genealogia da Constituinte. Do autoritarismo à Redemocratização”, Lua Nova: Revista de Cultura e Política, Dossiê “Constituição e Processo Constituinte”, nº88, 2013, p.74.
  2. BRANDÃO, Lucas Coelho. Os movimentos sociais e a Assembleia Nacional Constituinte de 1987-1988: entre a política institucional e a participação popular. Dissertação de Mestrado. São Paulo: Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP, 2011, p.217
  3. BLOCH, Marc. Apologia da História. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editora, 2001, p.65.
  4. ANDRADE, Mário de. O movimento modernista. Aspectos da literatura brasileira. São Paulo: Livraria Martins / INL, 1978, p.254.
  5. Títulos II e VIII da Carta Magna, respectivamente

Aimée Schneider Duarte – Doutoranda em Sociologia e Direito pela Universidade Federal Fluminense. E-mail: schneider_aimee@hotmail.com


DUARTE, Aimée Schneider. Apresentação. Revista Cantareira, Niterói- RJ, n.27, jul / dez, 2017. Acessar publicação original [DR]

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Intelectualidade Latino-americana, Cultura e Política no Século XX / Cantareira / 2017

Ao longo do século XX, a figura do intelectual tanto no Brasil quanto na América Latina em geral, foi moldando-se através das décadas. O chamado intelectual circulava entre os meios políticos e culturais, produzindo, criando e recriando através do lugar onde considerava estar e suas relações com a sociedade. Entre as décadas de 1920 e 1940, ocorreu um determinado esforço dos meios intelectuais em construir e afirmar uma identidade nacional no nosso país e pela América. A ideia era definir o que seria a cultura nacional, noção que foi fortalecida após 1930, momento em que essa intelectualidade flertou com os movimentos autoritários, muitas vezes apoiando o fortalecimento das funções do Estado e rejeitando a noção de democracia representativa em todo continente, como vemos claramente no Brasil, Argentina, etc. Por mais que se falasse em nação e sociedade, as formas de ação vinham de “cima para baixo”, tendo a elite à frente dos processos e não as camadas mais baixas, a partir de uma visão hierárquica da ordem social.

Os anos de 1950 modificam essa noção, transformando a visão de mundo e as ideias dessa intelectualidade a partir de um processo de modernização iniciado em décadas anteriores e que ganhou maior impulso nesse período, abrangendo diversos países latino-americanos. Povo e nação tornaram-se indissociáveis, pois as massas populares eram a garantia da unidade nacional, tornando essas noções tanto panfletos da intelectualidade quanto de grupos políticos, principalmente os de cunho populista.

A intelectualidade de esquerda começa a ganhar força a partir das décadas de 1950 e 1960. Muitos desses intelectuais acreditavam ter como missão atuar como interpretes desse povo, ajudando-os na tomada de consciência de sua vocação revolucionária. Estava em curso um projeto que visava ao desenvolvimento econômico e à emancipação das classes populares, o que levaria à independência das noções que se envolvessem nesse plano. Os intelectuais de esquerda desse período, de modo geral, sofreram a influência do marxismo e de ideologias vinculadas aos partidos comunistas espalhados pela América Latina. No Brasil, o Partido Comunista Brasileiro auxiliou na construção de uma cultura política e a identidade do grupo. Havia a existência de um lugar que esses intelectuais atribuíram a si e uma necessidade de reconhecimento de seu lugar e importância dentro da sociedade presente neste processo.

Com o fim das ditaduras militares e governos autoritários, juntamente com o processo de redemocratização política em curso em diversas nações latino-americanas, houve uma transformação na posição dos intelectuais na sociedade. Nessa dança das cadeiras, a intelectualidade abandonava uma determina posição de superioridade em relação às demais categorias sociais. Se durante muitos anos as noções diferenciadas da realidade desses países e a heterogeneidade social desses grupos haviam sido deixadas de lado em prol de uma oposição aos regimes autoritários, o retorno a democracia escancarou os limites dessa, até então, união, abrindo as portas para conflitos de identidade.

Foi a partir de fins dos anos de 1970 e na década de 1980, no novo contexto político e social que se apresentou nesses países latino-americanos, que intelectuais renomados e atuantes foram gradativamente perdendo seus espaços na sociedade, dentro da política, dos meios culturais, onde quer que fossem seus meios de atuação. Aos intelectuais atuantes e engajados das décadas anteriores se propunha um novo dilema: a hora era de adaptação, sendo momento de reinventar-se ou sair de cena. As últimas duas décadas do século XX marcaram um período de transição política, econômica e social no Brasil e no mundo, além de mudanças e buscas por novos espaços pela intelectualidade. O colapso dos regimes comunistas na Europa, a crise do marxismo, o início do desgaste de modelos alternativos de esquerda como o caso da China, levaram a intelectualidade nos moldes que eram até então estabelecidos a diminuir sua influência e credibilidade na sociedade, levando a uma crise política no interior desse grupo.

Dentro desse processo de instabilidade ocorreu uma crise de caráter identitário, principalmente pelo surgimento de novos formadores de opinião, com quem essa intelectualidade característica do século XX veio a disputar lugar. Com a perda de espaço para personalidades midiáticas, paulatinamente, os intelectuais foram perdendo seu locus como porta-vozes das questões nacionais, o que os guiou e reforçou uma crise ideológica que pode ser percebida tanto na América Latina como em outros lugares do mundo. As novas vozes começaram a se levantar da mídia, sendo alçadas ao papel de formadores de opinião e tendo presença marcante nos meios de comunicação. Com isso, aquela intelectualidade identificada com os modelos que vinham desde a década de 1920 ia gradativamente perdendo seus espaços anteriormente conquistados.

As arenas que nas décadas do século XX foram ocupadas por uma determinada intelectualidade através dos livros, passando pelos palcos teatrais e chegando às telas de tevê durante a segunda metade do século XX com o fim do milênio e entrada no século XXI tiveram suas definições foram atualizadas. Hoje, onde a internet com seus canais de vídeos, blogs, vlogs e etc. – através de computadores, tablets e smartphones – ocupa um acentuado papel junto a outras mídias como televisão, cinema e rádio, houve uma ampliação dos ambientes para ver, ouvir e falar. Personagens ligadas à televisão, ao meio musical, à internet, e atividades intelectuais foram ganhando espaço dentro dessas diferentes mídias. Num mundo cada vez mais tecnológico, no qual os livros feitos de “papel e tinta” disputam atenção com os hipertextoscom gadgets, algumas personagens como os astros de futebol mantêm sua importância, juntamente com as novas personalidades. Ocorre também uma tendência de pessoas cada vez mais jovens exporem suas opiniões e ideias para um público igualmente jovem. Esses chamados influenciadores por vezes tornaram-se vozes das novas gerações, que estão cada vez mais conectadas e influenciadas pelas plataformas digitais. Dos ídolos adolescentes a filósofos reconhecidos, esses grupos foram ocupando locais de diálogo que décadas atrás eram vinculados a uma intelectualidade que tinha bases nas definições feitas ainda no século XX.

Esta edição teve como objetivo estimular uma reflexão e debate sobre a intelectualidade através das conexões entre história, política e cultura, essa vista como uma convergência de métodos e interesses diversos, relacionada às atividades culturais e as atividades sociais, estabelecendo uma conexão estreita entre cultura e política.

Esses intelectuais eram, em geral, ideólogos de um projeto que primava pelo desenvolvimento econômico, pela emancipação das classes populares e pela independência nacional. Havia a crença de serem conscientizadores do povo e uma ideia de que a proximidade da revolução, tanto social, política, ou socialista, era latente, movimento esse sentido em diversos países latino-americanos.

As relações entre cultura e política e as discussões sobre o papel da intelectualidade – seus ideais, transformações e permanências – foram os eixos centrais das discussões aqui apresentadas. Os debates sobre a noção de cultura e intelectualidade, oferecendo um panorama geral sobre a cultura latino-americana na primeira metade do século XX; a cultura em tempos de exceção, o papel dos intelectuais – tanto os de direita, quanto os de esquerda – e as formas de engajamento; argumentações acerca da cultura, do papel dos intelectuais e dos seus meios de atuação à partir da redemocratização no Brasil e em outros países da América Latina.

Três artigos articulam as questões levantadas seguindo a temática do dossiê. O primeiro – Literatura e(m) movimento (negro): debates e embates sobre cultura, política e organização entre a intelectualidade negra brasileira (1978-2000) –, de autoria de Bárbara Araújo Machado, analisa os debates e as estratégias políticas, culturais e de organização da intelectualidade – a partir da concepção de intelectuais orgânicos de Antonio Gramsci – dentro do movimento negro contemporâneo. Nele está apontado as mudanças ocorridas dos anos de 1970 até o início do século XXI. Rachel de Queiroz e seu engajamento político dentro de jornais e revistas durante a primeira metade dos anos de 1960, das eleições de Jânio Quadros ao início do governo militar, é o tema do segundo texto – “Jornalismo de combate” nas páginas da revista O Cruzeiro: o engajamento político de Rachel de Queiroz (1960-1964) –, de autoria de Fernanda Mendes. Amanda Bastos da Silva é a autora do terceiro artigo do dossiê – Euclides da Cunha, Manoel Bonfim e a complexidade do século XX. Seu trabalho está centrado nas relações entre intelectualidade, a partir das figuras de Euclides da Cunha e Manoel Bonfim, suas concepções e ideias de Brasil e suas influências na cultura nacional, com foco no cinema, mais especificamente nos filmes O Pagador de Promessas e Deus e o Diabo na Terra do Sol.

Na seção livre, temos o artigo de Paula de Souza Valle Justen – A palavra escrita do rei: chancelaria e poder régio através de uma carta plomada –, que refere-se à análise de um diploma régio emitido por Afonso X, por seu caráter excepcional, além de suas condições e seu lugar de produção, pensando sobre a sua função dentro no contexto da segunda metade do século XIII. Bárbara Benevides, em seu texto Implantação e Normatização da Pena Última no Brasil Colonial (1530-1652), reflete sobre a normatização e estabelecimento da pena de morte no Brasil durante os anos de 1530 e 1652. Limites das Administrações Ibéricas: e Conflitos Sociais no Rio da Prata de Inícios do Século XVIII: Um Estudo de Caso, de Matheus de Oliveira Vieira, se debruça sobre questões concernentes à administração portuguesa e o escoamento de produtos em região de fronteira na Colônia de Sacramento.

Daniel Schneider Bastos trata das polêmicas dentro dos grupos liberais e conservadores em torno da utilização e exploração do trabalho infantil dentro das indústrias da Inglaterra, além da introdução de leis trabalhistas que também beneficiassem a burguesia industrial, durante as décadas de 1830 e 1840 no texto A Questão dos Pequenos Operários: Liberalismo, Conservadorismo e Trabalho Infantil Durante a Fase Final da Revolução Industrial na Inglaterra. O artigo de Fabiane Cristina de Freitas Assaf Bastos – A Crise do Capitalismo e o Mundo Imperialista (1870-1920) – estabelece um debate sobre as relações entre o Imperialismo e as modificações em relação a globalização do mundo a partir da crise do Capitalismo inglês a partir de 1870, além da transição de um antigo para um moderno capitalismo. Finalizando os artigos desta edição, temos o texto de Pedro Sousa da Silva – A Trajetória da Revista Municipal de Engenharia: Planejamento Urbano e Influência do Urbanismo Norte-Americano no Rio de Janeiro (1930-1945) –, que aborda as mudanças dentro dos debates sobre o planejamento urbanístico durante as décadas de 1930 e 1940 através da Revista Municipal de Engenharia, que foram analisados entre os anos de 1932 e 1945.

Fechando esta edição, temos uma entrevista com Paulo César Gomes Bezerra, doutor pelo Programa de Pós-Graduação em História Social da Universidade Federal do Rio de Janeiro e editor / criador do site História da Ditadura2 , que produz e divulga conteúdos sobre a história recente de nosso país. Nela, apresentam-se aspectos de suas pesquisas recentes, focadas nas relações diplomáticas entre Brasil e França durante as décadas de 1960 e 1970, além de reflexões sobre a produção de conteúdo historiográfico em mídias digitais e a chamada História Pública.

Boa Leitura!

Nota

1. http: / / historiadaditadura.com.br / sobre /

Aline Monteiro de C. Silva – Doutora em História pela Universidade Federal Fluminense. E-mail: alinemsc@gmail.com


SILVA, Aline Monteiro de C. Apresentação. Revista Cantareira, Niterói- RJ, n.26, jan / jun, 2017. Acessar publicação original [DR]

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Áfricas / Cantareira / 2016

A fase de escolha para a temática que irá compor um dossiê perpassa uma série de questões que visam dialogar com as constantes demandas sociais, acadêmicas e de ensino que circundam o nosso meio. Nesse sentido, ganhar mais esse espaço para o debate acerca dos estudos africanos, principalmente ao considerarmos que esse espaço é produzido por estudantes que transitam entre a graduação, pós-graduação e magistério de ensino básico, vem comprovar o quanto os estudos sobre a África cresceram e vêm se consolidando no Brasil. Embora muito tenhamos para percorrer, aos poucos a África mitificada e ocidentalizada vai ficando para trás. Em diálogo com os novos debates historiográficos, o estudo das tradições e a valorização da oralidade permitem novas significações para a história do continente.

No Brasil, essa temática vem sendo fortalecida desde a obrigatoriedade do ensino de África nos bancos escolares com a lei 10.639 / 2003. De lá pra cá, muito se avançou. A História da África vem sendo pensada, sobretudo, a partir de uma perspectiva do africano como sujeito de sua história, o que abriu novas possibilidades para construirmos a historicidade das sociedades africanas. À medida que o objetivo passa a ser romper com os esteriótipos que marcaram a visão sobre o continente desde a Antiguidade, passamos a enxergar no “lugar das essências, os processos históricos, dinâmicas sociais e culturas em movimentos”, em que as identidades passam a ser vistas a partir da sua pluralidade.

Dessa forma, é interessante notarmos que os artigos que integram o presente dossiê buscam repensar a história do continente a partir da perspectiva do africano como sujeito, ampliando a imensa diversidade cultural desse povos. A multiplicidade dos significados que se abrem com a generalização do termo africano vai, aos poucos, dando lugar às especificidades dos grupos locais que compõem o continente.

Ao iniciarmos o dossiê nos voltamos para os artigos de Fabiane Miriam Furquim, “A Permanência do Lobolo e a Organização Social no Sul de Moçambique”, e de Fernanda Bianca Gonçalves Gallo: “Para Poderes Viver Como Gente: Reflexões Sobre o Persistente Combate ao Modo de Vida Disperso de Moçambique”. Os debates acerca das tradições africanas aparecem sobre uma nova perspectiva, que traz como proposta se afastar das simplificações existentes e problematizar as relações de poder locais, as formas de organização e legitimação que envolvem essas populações. Dessa forma, ampliamos o nosso olhar para as dinâmicas e conflitos particulares que fazem parte do dia a dia dos diferentes povos existentes e buscamos conhecer, a partir das questões internas, os processos históricos que nos conduzem a uma África sem essencialismos. A prática do Lobolo no artigo de Furquim nos conduzem a novas conceituações de tradição e modernidade, em que um não exclui o outro mas se modificam constantemente, trazendo à baila a complexidade existente. Da mesma maneira, Fernanda Gallo aponta para as resistências locais às imposições de uma política de Estado que via suas práticas como um atraso à modernidade.

Em seguida, o artigo de Rodrigo Hotta “Juízo de Inconfidência em Angola: A Conspiração dos Degredados em Luanda, 1763” traz como proposta repensarmos as trocas culturais existentes entre os africanos e portugueses a partir de uma prática política comum à época: os degredados. Ainda pouco estudado, o cumprimento do degredo em Luanda é problematizado a partir de uma conjuração que busca aterrorizar a administração local. Um importante trabalho para nos atentarmos para as fissuras coloniais existentes no período e as trocas existentes entre o colono e o colonizador, que estão muito além dos binarismos impostos. Essas tensões coloniais também estão presentes no artigo de Jéssica Evelyn Pereira dos Santos, “Guerra e Sangue Para uma Colônia Pacificada: A Revolta do Bailundo e o Projeto Imperial Português para o Planalto Central do Ndongo (1902-1904)”, em que a ocupação dos portugueses sobre o território angolano se coloca como complexa à medida que também se propõe mostrar a participação dos povos locais nessa empreitada, marcada pelas disputas de memória sobre o evento.

Ainda dentro do diálogo colonial entre angolanos e portugueses, Marilda dos Santos Monteiro das Flores em “Angola: Rememorando as Idas e Vindas de um Lugar Desconhecido” traz como proposta, a partir dos debates teóricos que cercam a memória, refletirmos sobre a saída de portugueses para a Angola no contexto da guerra colonial na década de 1970. Ressaltando um novo contexto das migrações portuguesas para Angola, a chegada em terras angolanas representa um novo começo, cercado de disputas.

Já no texto de Patrício Batsîkama “A Mulher na Luta de Libertação e na Construção de Estado-Nação em Angola”, as lutas pela independência de Angola são repensadas a partir de uma perspectiva interna, que parte dos atores sociais angolanos para problematizar os meios de resistência à política colonial no território. A participação das mulheres é colocada em evidência a partir de um estudo de caso: Luzia Inglês, o que ressalta uma abordagem que aos poucos vem se fazendo presente nas pesquisas acadêmicas.

O crescimento dos estudos culturais na historiografia também vem contribuindo para novas problematizações sobre a história do continente africano. Com o artigo intitulado “Safi Faye: Cinema e Autorepresentação”, Evelyn dos Santos Sacramento traz uma abordagem da cineasta senegalesa que envolve uma reflexão sobre intelectualidade e diáspora a partir da produção cinematográfica abordada. Ainda dentro de um debate diaspórico, Paola Vargas em “Aka de Camarões, Cazumbá do Maranhão e Marimonda de Barranquilla: Diálogos Entre História e Culturas Sul-Atlânticas” nos brinda com um trabalho comparativo sobre as expressões culturais de grupos que se constituíram no processo da diáspora atlântica.

Para finalizarmos o dossiê, três trabalhos trazem como proposta refletir sobre os debates e desafios teóricos e metodológicos que cercam a pesquisa e o ensino de África. Álvaro Ribeiro Regiani e Kênia Érica Gusmão Medeiros refletem sobre a obrigatoriedade do ensino de História da África e da Cultura afro-brasileira em “A Negação da Filosofia Africana no Currículo Escolar: Origens e Desafios”. O diálogo interdisciplinar aí presente tem como objetivo abordar como o ensino de África está sendo aplicado nos livros didáticos de História e Filosofia, contribuindo para os debates contemporâneos. Dentro de um mesmo diálogo, Lucival Fraga dos Santos em “Que África se Inscreve e se Ensina no Brasil?”, contempla os impactos do ensino de África na cultura brasileira, principalmente a partir da obrigatoriedade do seu ensino com a lei 10.639 / 2003, ressaltando de que modo ela vem contribuir com a quebra de esteriótipos. Por último, o artigo de Fabrício Cardoso de Mello “Reflexões Críticas sobre o Debate em torno dos Movimentos Sociais na África”, traz uma discussão de âmbito acadêmico acerca dos processos de mobilização social no continente africano. Para isso, o autor dialoga com diferentes vertentes teóricas a fim de colocar os movimentos sociais da África dentro dos debates conceituais presentes sobre o tema.

Compõe ainda o dossiê a seção artigos livres, composto pelas pesquisas de Beatriz dos Santos de Oliveira Feitosa, Tomás de Almeida Pessoa, Marcus Castro Nunes Maia, Cláudia de Andrade Rezende e José Ernesto Moura Knust. A partir de diferentes temáticas, suas pesquisas contribuem para enriquecer nossas análises historiográficas. Da mesma forma, recebemos a contribuição de Michel Ehrlich com a resenha do livro do Prof. Dr. Daniel Aarão Reis Filho (UFF) “Ditadura e Democracia”, dialogando com o cenário político atual.

Por fim, é com grande prazer que agradecemos a participação da professora Flávia Maria de Carvalho da Universidade Federal de Alagoas (UFAL). A jovem pesquisadora e professora universitária traz um pouco da sua história na entrevista que nos concedeu, ressaltando os caminhos que lhe levaram à História da África e como os seus anos de estudante na Universidade Federal Fluminense (UFF), contribuíram para o seu amadurecimento na pesquisa do tema.

Espero que a publicação do dossiê venha colaborar para a abertura de novos caminhos para os estudos africanos. Foi um prazer poder dialogar com os autores e pareceristas que participaram dessa produção. Agradeço à equipe da Revista Cantareira todo o carinho e dedicação para colocarmos mais um número no ar.

Boa leitura a todos.

Carolina Bezerra Machado – Doutoranda em História pela Universidade Federal Fluminense. Bolsista Capes e pesquisadora do grupo Interinstitucional Áfricas. E-mail: lowbezerra@gmail.com


MACHADO, Carolina Bezerra. Apresentação. Revista Cantareira, Niterói- RJ, n.25, jul / dez, 2016. Acessar publicação original [DR]

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História e gênero / Cantareira / 2016

Desde a década de 80 muito tem sido discutido sobre o conceito de gênero. Hoje, cerca de trinta anos após o boom dos estudos de gênero na pesquisa acadêmica, os debates em torno do tema continuam atuais. No Brasil, desde 2014 houve um crescimento acalorado das discussões relativas ao assunto em decorrência da elaboração do Plano Nacional de Educação (PNE), que culminou com a exclusão do termo gênero do referido documento. Exclusão esta que se verificou igualmente nos Planos Municipais de Educação (PME), implementados em 2015. A retirada do termo do PNE e do PME pode ser considerada como uma tendência em considerar o gênero como um dado natural e, portanto, não passível de discussão. Essa tendência pode ser observada no projeto de lei ligado ao movimento ‘Escola Sem Partido’ que tramita no Senado e incorpora como um de seus motes a proibição da discussão de gênero nas escolas. Como reação a este projeto, setores da sociedade brasileira tem-se manifestado sobre a importância da inclusão do debate no ambiente escolar. Isto porque a adequada compreensão do conceito possibilita o convívio com as diferenças e, consequentemente, o combate à discriminação e ao preconceito.

O gênero, ao contrário do que muitos acreditam, não está naturalmente ligado ao sexo biológico. Apesar da confusão comumente feita entre sexo, gênero e orientação sexual, há distinções que precisam ser ressaltadas. A orientação sexual se refere ao tipo de atração do indivíduo, o sexo ao órgão sexual do corpo humano, enquanto o gênero – de acordo com Judith Butler – “não é nem o resultado causal do sexo nem tampouco tão aparentemente fixo quanto o sexo”3, mas culturalmente construído. Para Butler o gênero é uma performance. Segundo esta definição, o gênero não é visto como inerente ao indivíduo, mas como uma imitação repetitiva de determinados comportamentos e atributos de modo a passar a impressão de que são reais. É por meio dessa performance, realizada por hábito ou por imposição, que os indivíduos são levados a acreditar que o gênero é natural4. A crença nesta naturalidade dá lugar muitas vezes a ações discriminatórias e de violência. Não raro aqueles que não se adequam às normas de gênero impostas pela sociedade sofrem represálias que podem chegar à punição física. Deste modo, vemos um exemplo do que Butler denomina de o poder coercitivo do gênero em policiar, isto é, disciplinar as pessoas, sendo a disciplina – de acordo com Michel Foucault – um mecanismo de dominação e controle dos comportamentos desviantes. Isto posto, a percepção de que o gênero é algo produzido e igualmente fluido é importante para evitar a marginalização de indivíduos, assim como para entender – como ressalta Joan Scott – que a ‘suposta’ hierarquia entre os sexos não é inata. Scott apresenta o gênero como definidor primário das relações de poder, expondo os antagonismos sexuais como gerador de tensões permanentes e indica a necessidade de enxergar a hierarquia entre os sexos como algo construído5.

Por conseguinte, devido à atualidade das discussões relativas à questão de gênero e a importância do entendimento do conceito para o respeito às diversidades apresentamos o Dossiê História e Gênero. Os artigos presentes neste volume abordam o gênero nas diferentes temporalidades e temáticas. Waldir Moreira de Sousa Junior analisa a tragédia de Eurípedes, As Bacantes, através do personagem Penteu, pensando identidades de gênero e sexualidade pelo viés da figura masculina. Lisiana Lawson Terra da Silva e Jussemar Weiss Gonçalves mostram como a sociedade ateniense do V séc. a. C. articulava as necessidades do mundo androcêntrico às possibilidades do feminino e como isso era discutido na tragédia. Thiago de Almeida Lourenço Cardoso Pires trata da construção da figura heróica de Enéias na Eneida de Virgílio como um tipo ideal de gênero masculino para a sociedade romana. Ainda com relação à Antiguidade, Érika Vital Pedreira a partir da análise do triplismo presente nas imagens das Deusas-mães da Britânia Romana (séculos I e II d.C.) atesta a formação de práticas de religiosidade híbridas.

No que se refere à Idade Moderna, Juliana Torres Rodrigues Pereira e Marcus Vinícius Reis refletem sobre a relação entre o temor e o reconhecimento social de que eram alvo as mulheres tidas por suas comunidades como feiticeiras na Arquidiocese de Braga, em Portugal, na segunda metade do século XVI, enquanto Kaíque Moreira Léo Lopes aborda temas como lesbianismo e gênero na Bahia do século XVI através de uma querela judicial envolvendo a primeira Visitação do Tribunal do Santo Ofício da Inquisição portuguesa na Bahia.

Carla Adriana da Silva Barbosa realiza um estudo de famílias da elite no contexto da guerra Farroupilha (1835-1845) através de correspondências trocadas dentro desses núcleos a fim de discutir noções de maternidade e casamento compartilhadas entre seus membros. Raimundo Expedito dos Santos Sousa, por sua vez, investiga formas como a colonização inglesa buscou feminizar os homens irlandeses e como a resistência irlandesa acentuou os aspectos masculinos contra a dominação inglesa. Já Isabelle Cristina da Silva Pires procura analisar as condições do trabalho feminino em fábricas de tecidos no início do século XX, tendo como exemplo um estudo de caso na Companhia de Fiação e Tecidos Aliança, no Rio de Janeiro.

Gilvânia Cândida da Silva e Alcileide Cabral do Nascimento apresentam a liderança da escritora Martha de Hollanda, que recorreu à Rádio Clube de Pernambuco como estratégia da luta pelo direito ao voto em Recife na década de 1930. Sobre o mesmo período, Thiago Pacheco apresenta interessante panorama sobre gênero e espionagem no Estado Novo e na República de 1946 através da ação de mulheres na perspectiva da Polícia Política.

Fernanda Nascimento Crespo inicia as abordagens sobre o gênero no Ensino de História. A autora utiliza as histórias de vida de Laudelina de Campos Mello como um recurso para a construção de conhecimentos relativos à História do Brasil, como meio de superar os entraves a abordagem das questões raciais e de gênero no currículo de história. José Cunha Lima e Isabela Almeida Cunha partem dos Parâmetros Curriculares Nacionais para tocar em questões referentes às relações de gênero e diversidade sexual contemporâneas.

Discutindo a historiografia da ditadura civil militar no Brasil, Tatianne Ellen Cavalcante Silva apresenta um artigo sobre as vivências de mulheres militantes que foram presas políticas durante o período entre 1969-1979, registradas no documentário Vou contar para meus filhos (2011). Dayanny Deyse Leite Rodrigues expõe temas como assistencialismo através da figura da primeira dama Lucia Braga (1983 – 1986), posteriormente deputada federal pelo PFL, pensando esse mesmo assistencialismo enquanto prática e estratégia política.

Denise Machado Cardoso e Ana Patrícia Ferreira Rameiro colheram relatos das trajetórias profissionais de mulheres atuantes nos altos cargos doJudiciário do estado do Pará, bem como as relações de gênero incutidas nesse processo, especialmente aquelas concernentes aos papeis tradicionalmente atribuídos às mulheres, como esposas e mães. O texto de André Pizetta Altoé foca-se no Programa Mulheres Mil: Educação, cidadania e desenvolvimento sustentável e sua implantação dentro da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, campus Campos–Guarus, também relacionando a formação e inserção de mulheres no mercado de trabalho.

Gênero e violência são as temáticas retratadas por Michelle Silva Borges, que volta sua atenção para as práticas das mulheres submersas à violência conjugal como o outro termo nas relações de poder, enquanto Aline Beatriz Pereira Silva Coutinho e Suzane Mayer Varela da Silva realizam uma análise de questões como o aborto e os direitos reprodutivos da mulher na atualidade.

A Professora Doutora Cristina Wolff (UFSC) discorre brilhantemente sobre as questões de gênero em nosso país na entrevista concedida para esta edição, em que conta um pouco sobre sua trajetória enquanto pesquisadora ligada aos estudos da área. Versando sobre militância, trabalho e feminismo, a pesquisadora apresenta suas reflexões a partir de questões trabalhistas para entender como o sistema de gênero coloca as mulheres em posições subordinadas, levando em conta os aspectos culturais e do imaginário social da sociedade brasileira. A partir da análise da militância das mulheres nas organizações de esquerda no Brasil e no Cone Sul, Cristina Wolff compreende que militância também é um trabalho de articulação e elaboração política continua, através da negociação e resignifcação de sua posição e relação com homens e grupos de pertencimento sociocultural, político e econômico. A pesquisadora atenta também para a abordagem de aspectos da cultura e da religiosidade nacional, compreendo que mulheres brasileiras têm conquistado um espaço grande em diversos setores, da Academia à sociedade em geral, sempre enfrentando o machismo em suas diversas expressões. Machismo esse que precisa ser encarado não como o contrário de feminismo, mas como um fenômeno social e cultural, a partir de uma cultura e uma ideologia que “naturaliza” a subordinação das mulheres. Por tal, defende a importância sobre os estudos de gênero, apontando para o fato que atualmente as pesquisas tendem a focar as interseccionalidades, pensando o gênero ao lado de outros aspectos das relações sociais, ou esses aspectos em seu conjunto. Outra tendência que a ser considerada atualmente é a importância dos estudos de sexualidades de forma conjunta com os estudos de gênero, compartilhando enfoques teóricos e metodológicos, insights e objetos de pesquisa.

Este dossiê buscou através de várias temáticas ao longo dos séculos fazer um mapeamento heterogêneo sobre as questões relativas ao gênero. Entre ser mulher na Elite Farroupilha, a construção do feminino nas tragédias gregas, a vivência de mulheres desembargadoras no Judiciário do Pará a dificuldade de associar a sexualidade feminina para além de uma saúde reprodutiva, lesbianismo e inquisição na Bahia, a construção da concepção de cidadania envolvendo o feminino e o assistencialismo de primeirasdamas como prática marcante da cultura política brasileira, apresentamos um leque amplo de reflexões sobre a construção das concepções de sexualidade, gênero, sexo, representação social e vivência política de homens e mulheres do Brasil e do mundo.

Desta maneira, convidamos aos nossos leitores para apreciar o trabalho de pesquisadores de diversas áreas e temporalidades sobre esta temática tão importante e atual para se compreender e refletir as relações sociais, em seu esplendor versátil, questionador e inovador como as proposições apresentadas pelos estudos de gênero. Boa leitura!

Notas

  1. BUTLER, Judith. Problemas de gênero: Feminismo e subversão da identidade. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2015, p.26.
  2. Idem.
  3. SCOTT, Joan. Gênero: uma categoria útil para análise histórica. S.O.S. Recife: 1991.

Juliana Magalhães dos Santos – Doutoranda em História Social pela Universidade Federal Fluminense. Bolsista Capes. E-mail: jumagasantos@gmail.com

Talita Nunes Silva – Doutora em História Social pela Universidade Federal Fluminense. E-mail: talita.nunes@uol.com.br


SANTOS, Juliana Magalhães dos; SILVA, Talita Nunes. Apresentação. Revista Cantareira, Niterói- RJ, n. 24, jan / jun, 2016. Acessar publicação original [DR]

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História e cinema / Cantareira / 2015

Um escrito do câmera polonês Boleslas Matuszewski, de 1898, é identificado por Mônica Kornis, em um balanço histórico a respeito dos estudos históricos sobre cinema como o primeiro trabalho relativo ao valor do filme como documento histórico. Neste escrito de Mastuszewski, o autor defendia o valor da imagem cinematográfica como testemunho ocular verídico e infalível, sendo que estas observações se referiam ao filme documentário, produção predominante na época, e baseavam-se em um princípio de autenticidade do registro. Somente décadas mais tarde ela seria questionada em um debate acerca do cinema mudo entre os cineastas russos Dziga Vertov e Serguei Eisenstein. No debate, uma nova definição surgiria, e afirmaria que a natureza da imagem cinematográfica é também ela um constructo[2].

O historiador francês Marc Ferro, considerado o principal responsável pela incorporação do cinema na pesquisa histórica, viria a se referir a essa discussão em sua confrontação da ideia de que o documentário seria mais objetivo que a ficção, argumentando que ambos devem ser objetos de uma análise cultural e social. Alinham-se a essa perceptiva sobre as relações entre o cinema e a história, as considerações do escritor alemão Siegfried Kracauer, que contribuiu significativamente para os estudos nesse domínio ao estabelecer ligações entre um filme e seu meio de produção em suas análises, atribuindo aos filmes de ficção a capacidade de refletir a mentalidade de uma nação, revelando uma concepção realista do cinema que se consolidaria no campo da sociologia do cinema.

Tal identidade entre a realidade ou o meio de produção e o filme seria questionada posteriormente, sobretudo pelo crítico francês Pierre Sorlin, ao relativizar a autenticidade conferida à imagem fotográfica e problematizar a relação entre cinema e público. Acompanhando o histórico traçado por Kornis, percebe-se como a discussão sobre a linguagem cinematográfica esteve restrita aos cineastas e teóricos do cinema, em sua fase inicial, sendo que somente a partir da década de 1960 teve lugar um debate metodológico acerca das relações entre cinema e história, focalizando a questão da natureza da imagem cinematográfica.

Nesse sentido, é reconhecida a relevância da reflexão historiográfica francesa promovida nos anos 1960 e 1970 pelo movimento conhecido como Nova História, que destacou a importância da diversificação do uso de fontes na pesquisa histórica, abrindo caminho para a identificação de novos objetos e novos métodos que expandiram os domínios da história tradicional. Nesse campo, Marc Ferro é reconhecido como o principal expoente da incorporação do cinema como fonte aos estudos históricos, apontando para a presença do imaginário no cinema, bem como para o seu caráter de agente social e não apenas produto de uma época; na medida em que nele são expressas as crenças e as intenções de seus realizadores, podendo também servir de instrumento à doutrinação, glorificação ou conscientização de uma sociedade.

Ferro indicava, além disso, a necessidade de se considerar na análise fílmica elementos do filme assim como o que excede seu conteúdo, como as fontes a ele relacionadas. Portanto, sua proposta de análise distingue-se daquela apresentada por Sorlin, conforme bem observa Kornis, na medida em que este se atém à compreensão da linguagem cinematográfica, recusando a homologia estabelecida por Ferro, entre outros, entre um filme e seu contexto histórico, nos moldes de uma análise contextual[3].

Em discussão sobre as relações entre história e cinema nos escritos de Marc Ferro, Eduardo Morettin, retoma o movimento da História Nova ao analisar a incorporação do cinema como fonte documental aos domínios da pesquisa histórica, a partir dos anos de 1970. O autor discute a perspectiva de trabalho de Ferro com a fonte fílmica, segundo a qual o cinema é compreendido como um testemunho de sua época, tendo em vista uma articulação fundamental entre imaginário e cinema, o qual, não estando submetido ao controle das instâncias de produção social, viabilizaria uma contra análise da sociedade, segundo sua natureza histórica, enquanto possibilidade de revelar o inverso da sociedade. Nesse sentido, o filme agiria como um contra poder, revelando lapsos que se referem a uma realidade representada independentemente das intenções do operador. Morettin destaca, também, a marca da busca por uma realidade histórica em toda a obra de Ferro, que se relaciona a uma necessidade de se atingir a compreensão do que exatamente ocorreu no passado representado, orientada pelo princípio de que o fato histórico constitui o referencial da análise.

Contudo, o autor faz ressalvas a essa perspectiva sobre as relações entre cinema e história, recusando as dicotomias esboçadas por Ferro de modo a evitar simplificações no trato com a fonte fílmica, da qual ressalta o caráter polissêmico e aponta para as tensões próprias à sua linguagem. Nas suas palavras, “um filme pode abrigar leituras opostas acerca de um determinado fato, fazendo desta tensão um dado intrínseco à sua própria estrutura interna” [4]. Ele ressalta, ainda, a necessidade de por o cinema em primeiro plano nos trabalhos de história que mobilizem esse tipo de fonte a partir da análise fílmica, a qual, contudo, não deve se identificar às leituras da obra expressas pela crítica ou pelas falas do diretor, mas da qual deve emergir o sentido de sua estrutura.

Os artigos que integram o dossiê tomam por base esses apontamentos, apostando na pertinência da análise da fonte fílmica como realização integral, conforme preconizada por José D’Assunção Barros, para quem o seu exame não pode prescindir de uma metodologia multidisciplinar e pluridiscursiva, tendo em vista que “para compreender tanto as possibilidades formais e estruturais como os conteúdos encaminhados por um filme, faz-se necessário ultrapassar a análise exclusiva dos componentes discursivos associados à escrita (os diálogos e os roteiros, por exemplo)”[5].

Esses artigos são oriundos dos trabalhos de pesquisa apresentados no seminário “Fabulações Históricas: Reinventando o tempo através do cinema” – evento interno à Universidade Federal de Uberlândia (UFU), coordenado pela Profa. Dra. Ana Paula Spini, do Instituto de História da UFU, vinculado ao Grupo de Pesquisa CNPq “História, literatura e cinema: fronteiras metodológicas, apropriações e diálogos interdisciplinares”, realizado com o objetivo de promover a socialização e o debate das experiências de pesquisa dos alunos. O seminário ocorreu entre 16 de junho e 03 de julho de 2015, com uma mesa de debate por semana, em que foram apresentadas comunicações de seis alunos do curso de graduação em História da UFU, além de dois mestrandos em História, um da mesma instituição e outro da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp).

O dossiê conta também com uma entrevista realizada por alunos da UFU com Eduardo Morettin, professor na Escola de Comunicação e Artes da Universidade de São Paulo. Autor de referência na área de História e Cinema, ele discute na entrevista questões atinentes ao seu envolvimento com esse campo de estudos, bem como aspectos de sua formação e percurso intelectual.

O artigo de Vinícius Alexandre Rocha Piassi, “Memórias no ecrã: os trabalhos de memória da ditadura no cinema de Lúcia Murat” arrola as primeiras observações de sua pesquisa de monografia acerca da filmografia da cineasta. A partir de uma análise transversal dos filmes em que Lúcia Murat aborda temas referentes à ditadura militar brasileira, busca-se identificar, em uma perspectiva de cinema autoral, as representações construídas sobre esse passado no qual estão imbricadas experiências pessoais da diretora. Analisando a mobilização das memórias da cineasta nesses filmes, articula-se à análise fílmica conceitos caros à psicanálise como trauma, luto e elaboração, para compreender os modos como ela lida com esse passado por meio da produção cinematográfica.

“Cuba libre? Laços de poder e jogos de azar na Máfia de Havana: Uma análise do filme O Poderoso Chefão: Parte II” é o desdobramento de um trabalho realizado por João Lucas França Franco Brandão para a disciplina de História da América III na UFU, no primeiro semestre de 2015. O tema desenvolvido alia a proposta da disciplina de abordar questões relativas ao século XX no continente americano, do qual se destaca a Revolução Cubana, e a interface história e cinema, na qual o aluno empreende uma pesquisa de Iniciação Científica vinculada ao CNPq. No presente artigo, o autor analisa no filme de Francis Ford Coppola de 1974 as representações construídas sobre o apogeu e o ocaso da máfia de Havana.

Suelen Caldas de Sousa Simião é mestranda em História na área de Política, Memória e Cidade na Unicamp, egressa do curso de graduação em História da UFU. O mestrado iniciado em 2015 tem como tema “Medianeras no cinema e na cidade: sensibilidades contemporâneas em El hombre de al lado (2009) e Medianeras (2011)”, de cuja pesquisa o presente artigo constitui um produto. Em “(In)visibilidade contemporânea: o olhar e a cena urbana em Medianeras (2011)”, a partir da opção pelo filme argentino de Gustavo Taretto, é desenvolvida uma análise das relações de seus protagonistas com a cidade de Buenos Aires em que se problematiza a prática da flanêrie contemporânea, ao lado do fenômeno da multidão das grandes cidades, como formas de socialização características do que se compreende por hipermodernidade.

Em “Tradição (re)inventada: a desconstrução do mito do cowboy em Crepúsculo de uma raça” Lucas Henrique dos Reis desenvolve o tema abordado em sua monografia detendo-se na análise do último western de John Ford, lançado em 1964, do qual são destacados os papéis representados por seus personagens em relação com os mitos nacionais dos Estados Unidos. Desse modo, é ressaltada uma perspectiva crítica de Ford em sua representação do cowboy no cinema hollywoodiano dos anos de 1960, interpretando uma narrativa fundadora da identidade nacional dos Estados Unidos do século XIX.

O artigo de Lucas Martins Flávio, “Da conquista do espaço às portas do Paraíso: a ficção científica entre utopias e distopias” está relacionado à sua pesquisa de mestrado no Programa de Pós-Graduação em História da UFU, financiada pela CAPES. Da pesquisa iniciada em fevereiro de 2015, intitulada “Reminiscências de uma Contracultura tardia: os filmes de ficção científica de George Lucas da década de 1970”, destaca-se a revisão da história do gênero de ficção científica, desde sua origem literária até suas expressões cinematográficas, com especial atenção para as relações do gênero com as questões da utopia e da distopia, situando nesse campo a produção do cineasta George Lucas nos anos de 1970, nos Estados Unidos.

“Dr. Fantástico, Ironia e Guerra Fria”, de Arthur Rodrigues Carvalho, é fruto de sua pesquisa de Iniciação Científica financiada pelo CNPq, iniciada em agosto de 2015, a qual se relaciona também à temática desenvolvida em sua iniciação científica, ainda em andamento. A partir da análise do filme Dr. Fantástico ou Como aprendi a parar de me preocupar e amar a bomba (1964) de Stanley Kubrick, é explorada a construção narrativa do período da Guerra Fria pelo diretor, com atenção especial para o uso do tropo linguístico da ironia no filme.

Os autores dos textos apresentados devem um agradecimento às professoras Ana Paula Spini e Mônica Brincalepe Campo, do Instituto de História da UFU, pelo apoio na execução das pesquisas e estímulo à publicação. Os artigos que integram o dossiê exemplificam formas diversas de abordagem da interface história e cinema, oferecendo perspectivas distintas sobre o uso da fonte fílmica na pesquisa histórica e expressam, dessa forma, o envolvimento de jovens pesquisadores nesse campo de estudos. Portanto, são convites a uma imersão no universo de relações em que se imbricam o cinema e a história, configurado por trilhas em movimento de sons e imagens

Notas

  1. KORNIS, Mônica. “História e Cinema: um debate metodológico”, Estudos Históricos, Rio de Janeiro, vol. 5, n. 10, 1992, p.240.
  2. KORNIS, op. cit., p.245.
  3. MORETTIN, E. V. “O cinema como fonte histórica na obra de Marc Ferro”. História: Questões e Debates. Imagem em Movimento: o cinema na história, ano 20, n. 38, jan. / jun. 2003. p.15.
  4. BARROS, José D’Assunção. “Cinema e história: considerações sobre os usos historiográficos das fontes fílmicas.” Comunicação & Sociedade, Ano 32, n. 55, jan. / jun. 2011. p.192.

Vinícius Alexandre Rocha Piassi – Aluno do curso de graduação em História da Universidade Federal de Uberlândia (UFU).


PIASSI, Vinícius Alexandre Rocha. Apresentação. Revista Cantareira, Niterói- RJ, n.23, jul / dez, 2015. Acessar publicação original [DR]

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A Antiguidade, o Tempo, Nós e a História / Cantareira / 2015

“(…) a própria ideia de que o passado, enquanto tal, possa ser objeto de ciência é absurda” [2].

Ao escrever essa frase, Marc Bloch construía uma crítica à História tal como era escrita por Langlois e Seignobos, como uma sucessão de fatos ocorridos em tempos antanhos, a famosa histoire événementielle, focada nos grandes eventos e grandes figuras. Bloch concebe a História como a “ciência dos homens no tempo”, enfatizando o “continuum”, a “perpétua mudança”. Quando se debruçam sobre a Antiguidade, tema do presente dossiê, os historiadores buscam justamente o que há de continuidade e o que há de “perpétua mudança” no andejar dos homens nas estradas do tempo. E desse caminhar chegaram até nós as marcas fragmentárias de suas pegadas, suas representações: vestígios materiais de sua cultura ou, como diz Denise Jodelet, conhecimentos partilhados socialmente, que construíam uma noção de realidade comum para uma comunidade [3]. Nesse sentido, a própria História nasceu como representação [4]: Heródoto elabora seu relato sobre as Guerras Greco-Pérsicas a partir do que ouviu, ou seja, das ideias e noções sobre esse fenômeno que circulavam entre os gregos. Ao tornar público o resultado de sua pesquisa -eis o sentido da palavra iστορία na época- o primeiro historiador também criou uma visão da realidade. As representações construídas por Heródoto nos mostram o continuum de que Marc Bloch fala: as tensões entre Oriente e Ocidente, por exemplo, mais que nunca presentes na imprensa do século XXI.

Por falarmos em mídias, os antigos nunca realmente “saem de moda”. Vemos sua presença nos livros para jovens adultos como “Jogos Vorazes”, “Harry Potter”, “Percy Jackson”. Em filmes como “A Múmia”, “Tróia”, “Hércules” (em suas variadas versões) e “Fúria de Titãs”. Nas histórias em quadrinhos com “Asterix”. A série “Roma” foi um sucesso de crítica; em 2014 a vida do faraó Tutankamon foi romantizada na televisão em “O Rei Tut”, exibida neste ano no canal a cabo History Channel. O teatro grego, que exercia verdadeira função educacional na Grécia Antiga, não perdeu seu caráter catártico mesmo hoje: “Ajax”, de Sófocles, é encenada, em 2015, para que veteranos da Guerra do Iraque possam confrontar seus traumas e fantasmas [5]. Spike Lee se inspirou em Lisístrata, de Aristófanes, ao criar o enredo de seu filme “Chi-raq”, no qual perscruta as tensões existentes na Chicago contemporânea. Na época de seu lançamento, o filme “300”, de Zack Snyder, foi objeto de debate de vários classicistas: as relações entre espartanos e persas na película retratavam as hostilidades atuais entre Ocidente e Oriente. Os quadrinhos que o originaram se inspiraram, por sua vez, em outro filme: “300 de Esparta”, de 1962, cujos tons mostravam que a beligerância encenada pelos atores estava mais conectada à Guerra Fria que ao século VI a.C. A Antiguidade, tal como o teatro clássico fazia para os gregos, nos oferece um “espelho” pelo qual podemos enxergar a nós mesmos, contemporâneos, como o Outro. Ela nos obsequia o exercício da alteridade indispensável para compreendermos nosso próprio cotidiano e nossa identidade. Em outras palavras: os antigos ainda são estudados, representados e estão “na moda” porque são bons meios, diríamos, para a construção do pensamento crítico sobre nós, pessoas vivendo em 2015. Não apenas continuamos analisando as representações que eles nos legaram, mas construímos nossas próprias visões do que seria o mundo deles em filmes, séries, livros e etc. Atualmente, os estudos sobre as recepções da Antiguidade estão em expansão no mundo anglófono. Talvez a mesma atenção deva ser dada pelos pesquisadores brasileiros acerca das visões sobre a Antiguidade e como elas, de fato, se referem ao próprio contexto histórico em que são concebidas. Para citar mais um exemplo cinematográfico, o filme “Deuses do Egito”, dirigido por Alex Proyas, será lançado em 2016, mas já está sendo objeto de discussão. A maioria dos atores retratando as divindades egípcias são brancos e europeus, o que não condiz com as representações legadas pelos próprios antigos. Tal fato, claramente, diz muito mais sobre nossa própria sociedade e a falta de diversidade étnica na mídia contemporânea que sobre as crenças engendradas no Antigo Oriente Próximo há mais de 3.000 anos atrás.

Em tempos de discussão da Base Nacional Curricular Comum (BNCC), cuja proposta retira do Ensino Médio os conteúdos de História Antiga e Medieval, cabe aos historiadores exporem suas pesquisas e demonstrarem como seus objetos dialogam com o seu tempo e sua sociedade. Também na “Apologia da História” Bloch cita o ditado árabe Sociais. “os homens parecem mais com seu tempo que com seus pais” [6]: os temas que interessam os historiadores da Antiguidade são os mesmos que inquietam aqueles que pesquisam temporalidades mais recentes, como podemos perceber pela leitura dos artigos que compõem nosso dossiê. Se historiadores devem ser como ogros, farejemos, pois, a carne humana!

Os primeiros artigos do dossiê tratam da História das Mulheres na Grécia Antiga. Talita Nunes Silva é a autora do texto “A mulher grega como ‘sacrificadora’: ‘transgressão’?”, no qual faz um apanhado das visões acerca da transgressão apresentadas por pensadores do Direito, da Psicanálise e das Ciências Sociais para discutir o uso desse conceito na atuação religiosa feminina através da personagem Clitmnestra tal como construída na trilogia Oréstia, de Ésquilo e também para pensar a possibilidade das mulheres terem agido como sacrificadoras nos ritos religiosos gregos. O artigo de Juliana Magalhães dos Santos, “Eros e a prostituição feminina ateniense no V Século a.C: aproximações e representações”, também reflete sobre a religiosidade helênica ao tratar o banquete (symposion) como ritual de cidadania e amizade. Eros é apresentado como potência geradora e elemento de união e equilíbrio social, necessário para a manutenção dos laços entre os cidadãos. A presença de prostitutas (hetairai) na celebração marca a heterotopia da casa ateniense como espaço religioso e espaço festivo. O âmbito privado tornava-se, no symposion, microcosmo do amor e da amizade que deveriam, segundo Platão em O Banquete, unir a cidade. “Entre ideologia e representação: novos olhares sobre as mulheres atenienses”, por sua vez, trata das divergências entre as representações na cerâmica ateniense e o conteúdo do discurso filosófico e político no que tange à visão sobre as mulheres dessa pólis. Dayanne Dockhorn Seger, a autora, ressalta que os registros literários procuravam evidenciar a reclusão feminina. Contudo, as representações na cerâmica ática mostram que as mulheres gozavam de mais liberdade que as fontes escritas e a historiografia tradicional nos fazem crer.

Luis Henrique Bonifácio Cordeiro e José Maria Gomes de Souza Neto elaboram em “Vingança e arrependimento como parte da concepção do ser trágico do período clássico ateniense na Electra de Eurípides” uma visão sobre o ser trágico ateniense a partir da análise das personagens da peça do título. Os autores defendem que as personagens trágicas estão em situações marcadas pela contradição e pelo questionamento. A tragédia coloca em cena o desequilíbrio da ordem cósmica (social, econômica, política e religiosa) e as personagens euridipianas em Electra apresentam em si relações dialéticas como destino / escolha pessoal, vingança / arrependimento, entre outras.

“Os gregos, os romanos e os celtas: contatos entre culturas e a representação do gaulês no De Bello Gallico de Júlio César”, cuja autoria é de Priscilla Adriane Ferreira de Almeida, aborda como os gauleses foram figurados na literatura greco-romana, buscando focar-se na representação dos gauleses construída na obra do estadista romano. Em De Bello Gallico, Júlio César trata de diferentes níveis civilizacionais dos bárbaros, ao que ele denomina de ferocitas. As condições climáticas do habitat gaulês faziam desse povo inferior aos romanos e, por estarem nas bordas do mundo, sua selvageria era perigosa à ordem representada por Roma. Apesar de serem fortes e corajosos, era preciso dominálos. Litiane Guimarães Mosca traz em seu texto “A construção da imagem de Otávio César Augusto como propaganda política: uma análise das Res Gestae Divi Augusti (séc. I d. C.)” uma discussão dos elementos presentes no Res Gestae que enaltecem a figura de Augusto e que permitem que identifiquemos esse documento como propaganda política. O artigo defende que o imperador utilizou as placas de bronze póstumas a fim de legar para a posteridade uma imagem positiva do governo e de si próprio. Assim, não apenas teria seus feitos reconhecidos, mas a legitimidade do poder de Tibério, seu sucessor, seria atestada.

Nelson de Paiva Bondiolli disserta em “Doados aos Humanos como um Segundo Sol: Uma abordagem póscolonial à História Natural de Plínio, O Velho” acerca das fronteiras e identidades do Império Romano durante o Principado, defendendo que a presença de estereótipos na obra de Plínio, o Velho, permite-nos perceber a construção da identidade romana em oposição ao “Outro”, qual seja, os povos que não comungam da cultura de Roma. As conquistas militares do Império solidificam a identidade romana, enquanto o Outro, bárbaro, é desumanizado. Ser romano, na História Natural é, assim, sinônimo de civilização. “Um estudo da recepção do epicurismo pela elite romana do século I AEC: alguns problemas e revisão crítica”, de Maria de Nazareth Eichler Sant’ Angelo, argumenta que a pesquisa sobre a recepção do epicurismo pela elite romana no primeiro século de nossa era é prejudicada pelo fato dos especialistas não perceberem essa corrente filosófica como parte da identidade da elite romana. Sant´Angelo afirma que os círculos literários romanos eram campos férteis para a circulação das ideias epicuristas, especialmente os banquetes aristocráticos. A prática da filosofia helenística não negava a religiosidade, aberta a influências estrangeiras. “Fontes e representações políticas sobre o polêmico imperador Nero”, de Ygor Klain Belchior, traz um diálogo entre as modernas interpretações historiográficas acerca do imperador romano e suas representações nas fontes clássicas. Enquanto a obra de Suetônio traça uma imagem ambígua sobre Nero, primeiro como um bom governante e depois como um sanguinário, Tácito descreve-o como um político “fantoche”, manipulado por sua mãe Agripina, por Sêneca e Burrus e, posteriormente, por Tigelino. O autor ressalta que as visões negativas sobre Nero que chegaram até nós são consequências das disputas pelo poder em Roma, especialmente após a ascensão da dinastia dos Flávios.

Sobre a religiosidade monoteísta na Antiguidade temos os textos de Vítor Luiz Silva de Almeida e Mariana de Matos Ponte Raimundo. Do primeiro autor é ““Dirigi-vos, antes, às ovelhas perdidas da casa de Israel”: A memória anti-samaritana na literatura neotestamentária”, artigo que perscruta os evangelhos bíblicos a fim de entender a representação negativa dos samaritanos neles contida. Narrativas como a parábola do bom samaritano e o conto dos dez leprosos salientam que não se esperava um comportamento moral ou de amor ao próximo por parte dos habitantes da Samaria. Longe de exaltar as virtudes dos samaritanos, essas historietas mostram as más ações dos judeus uns com os outros. Almeida aponta que os relatos do Novo Testamento, nesse sentido, apontam para divergências religiosas entre samaritanos e judeus, mostrando ainda uma visão de superioridade desse último grupo. Já “A consolidação da identidade cristã no século IV”, da segunda autora, tem como tese a ser defendida a ideia que a construção de uma identidade associada ao cristianismo foi resultado de interações e embates com outros grupos, como pagãos e judeus. As tensões dentro da própria comunidade cristã são ressaltadas, mostrando que a identidade surgida não significou ausência de contradições internas. Todavia, as tentativas de conciliação entre os diversos cristianismos existentes e a reorganização de elementos da cultura romana permitiram que a religião se consolidasse.

Finalizando os artigos do dossiê temos “Os inimigos dos romanos sob o imperium de Graciano no tratado De fide de Ambrósio, bispo de Milão (séc. IV d.C.)”, de Janira Feliciano Pohlmann, no qual desenvolve-se uma discussão sobre as maiores ameaças ao Império Romano e à cristandade no entender de Ambrósio, quais sejam: os bárbaros e os hereges, especialmente os arianos. Em seu relato, o religioso retrata o imperador Graciano como um governante escolhido por Deus, responsável pela guarda do povo cristão.

A resenha de Mateus Mello de Araújo Silva sobre o recém-lançado livro de Emma Bridges contribui para a divulgação de trabalhos bem recentes sobre as interações entre gregos e persas. De fato, os helenistas de língua inglesa nos últimos anos têm se dedicado à pesquisa dos governos autocráticos, especialmente das monarquias helenísticas e persas, renovando os estudos sobre Cultura Política na Antiguidade.

A entrevista realizada com Professor Doutor Alexandre Carneiro Cerqueira Lima (UFF) ressalta que o olhar do historiador, seja qual for a temporalidade que ele pesquisa, está sempre guiado por questões do seu próprio cotidiano. Segundo ele, suas vivências e sua identidade carioca influenciaram sobremaneira as temáticas de seus trabalhos sobre a Grécia Antiga. Questionado sobre as implicações da BNCC nos rumos da História Antiga no Brasil, o professor deixou claro que, em seu entender, as propostas não prejudicariam apenas o estudo desse eixo temporal, mas a própria ideia de que a História se trata de análises sobre as experiências humanas.

Na seção de artigos livres as temáticas são variadas, tratando desde o Medievo inglês ao Brasil contemporâneo. Os autores são de diferentes áreas das Ciências Humanas, mostrando a importância da Revista Cantareira como um periódico discente que agrega diversos pontos de vista teóricos e metodológicos.

Aos pareceristas que contribuíram com este número enfatizamos o nosso agradecimento. E a você desejamos uma leitura prazenteira!

Notas

  1. BLOCH, M. Apologia da História ou o Ofício do Historiador. Rio de Janeiro: Zahar, 2001, p.52-53.
  2. JODELET, D. “Representações Sociais: um domínio em expansão” In: JODELET, D. (org.). As Representações Sociais. Rio de Janeiro: Eduerj, 2001, p.22.
  3. Ideia defendida por François Hartog. Ver: HARTOG, F. O Espelho de Heródoto: Ensaio sobre a Representação do Outro. Belo Horizonte: Editor UFMG, 2014, p.336-393.
  4. CLARK, Nick. “Harry Potter star Jason Isaacs joins ‘extraordinary’ project using Ancient Greek plays to help veterans”, 2015. Disponível em: . Acesso em 8 dez 2015.
  5. BLOCH, op.cit., p.60.

Mariana Figueiredo Virgolino – outoranda em História Social pela Universidade Federal Fluminense. Pesquisadora do NEREIDA / UFF. Bolsista do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq).


VIRGOLINO, Mariana Figueiredo. Apresentação. Revista Cantareira, Niterói- RJ, n. 22, jan-jul, 2015. Acessar publicação original [DR]

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A historicidade da fronteira nos tempos passados e presentes / Cantareira / 2014

Pensar a constituição dos chamados Estados Nacionais têm sido uma preocupação constante nas análises historiográficas. A nação foi, enquanto produto do século XIX, uma construção orientada por traços comuns que a sustentavam, tais como a constituição de uma memória comum, de uma trajetória comum e de um porvir comum. Nesse sentido, estabelecer fronteiras entre o “nós” e o “eles” permitiu a consolidação de “comunidades imaginadas” – ainda que em graus variados para cada lugar -, seguindo a expressão usada no livro de Benedict Anderson para pensar o Estado Nação [2´]. Em um período onde as nacionalidades vêm sendo cada vez mais reivindicadas e os limites dos países ocidentais reafirmados, é interessante perceber o lugar destinado às fronteiras e sua ligação com a sociedade que as envolve.

A preparação deste número para a Revista Cantareira dedicado a um estudo que vislumbrasse uma história social das fronteiras tinha por objetivos trazer à cena os agentes sociais que viviam nesses espaços fluidos, indeterminados e por vezes confusos para os que nela transitavam. Nosso maior desafio foi pensar a historicidade do tema na medida em que, cada vez mais, a ideia de fronteira entre Estados Nação distintos têm se fortalecido diante de outras demandas sociais e econômicas como as ondas de imigração no continente europeu e as diferentes ações dos Estados para contê-las. As tentativas de impedir a entrada de imigrantes somadas à uma série de ações de proteção ás fronteiras nacionais têm sido noticiadas na imprensa nacional e internacional. Na era da Internet e do imediatismo das informações, os contornos mundiais vêm ganhando outras dimensões que podem atender a perspectivas e interesses variados, os quais muitas vezes estão associados a ideia de soberania – conceito formulado ao longo do século XVIII para abarcar a defesa dos interesses dos Estados Modernos, onde é possível destacar uma polarização entre a moral e a política para a constituição desta ideia [3]. Nesse sentido, é importante sublinhar que a constituição de espaços de soberania podem, ainda hoje, ser referendados como norteador fundamental para os Estados Nação; embora haja certo paradoxo com a integração e a união, destacadamente econômica.

Muitos jornais têm noticiado o impacto da entrada de estrangeiros na Europa. Esta, por sua vez, vem sendo interpretada como a maior crise de imigração ocorrida desde a Segunda Guerra Mundial (1939-1945). Países como Áustria, Hungria, Grécia, Espanha, Sérvia, Itália, Alemanha, França e Reino Unido se veem recebendo um número elevado de refugiados oriundos da Síria, de países africanos, da Turquia, entre outros lugares. Isso têm fomentado reações as mais diversas das autoridades e também da sociedade, dentre as quais podemos destacar: 1) a intensificação da segurança nas fronteiras, como no Canal da Mancha, e o uso de linhas de arame farpado numa cerca definitiva que separaria países como Sérvia e Hungria; 2) o aumento da força nas ações policiais e, por conseguinte, de ações de xenofobia nos mais variados estratos sociais e; 3) uma série de pedidos da Organização das Nações Unidas (ONU) em prol de uma postura mais branda por parte das autoridades europeias em relação a estes refugiados [4].

A partir destas linhas de raciocínio, como podemos dar conta de uma realidade tão variada e distinta presente nos espaços fronteiriços? É importante frisar que não falamos apenas das fronteiras coloniais, reflexo do processo de colonização; mas também a constituição destes espaços na contemporaneidade e seus reflexos no que tange as políticas públicas e de assistência social. É nítido que os primeiros debates sobre o tema tiveram sua importância ao perceber a singularidade da fronteira, a qual não pode ser vista apenas enquanto uma linha imaginária que dividia o domínio de duas (ou mais) jurisdições distintas; mas também como um espaço de múltiplos significados cuja experiência precisava ser melhor interpretada e construída. O pensar a vida na fronteira recaía em, pelo menos, dois pólos: um sinalizava o papel do Estado diante das interações sociais, pensando o viés das instituições coloniais para melhor compreendê-las. Já o outro polo sinalizava a ação dos indivíduos frente a um mundo que lhes era hostil, onde predominava o desconhecido, o bárbaro – locus ideal aos chamados excluídos da sociedade [5].

Optamos por pensar este espaço de múltiplos significados através de análises interdisciplinares, na busca da apreensão de diversos elementos para a configuração deste espaço, contemplando questões políticas, culturais, econômicas, tanto dos tempos passados quanto dos tempos atuais. O primeiro artigo, intitulado “O nervo mais forte das fronteiras: dinâmicas sociais dos índios no Paraguai [séculos XVI e XVII]”, de Bruno Castelo Branco, busca mostrar a participação ativa dos povos indígenas da América Meridional nos processos de constituição destes territórios; destacando a ação dos mesmos enquanto força de trabalho através da mita e da encomienda, reiterando a importância de se abordar a “agência histórica indígena” numa perspectiva de negociação, e não somente dentro de uma leitura assimétrica da dominação no decorrer do processo de conquista e de colonização da América.

O segundo artigo, “As fronteiras sociais do nacionalismo alemão: Identidade nacional, etnicidade e os paradoxos da democracia alemã nos dias atuais” já nos remete a questões do tempo presente a partir da discussão sobre os paradoxos da identidade nacional alemã; a qual teve, ao longo de sua história, uma construção baseada num passado de glórias e de guerras. Num país atualmente multiétnico, “ser alemão” têm sido cada vez mais questionado por conta de questões econômicas, sociais e culturais que perpassam a realidade de outros países europeus – tais como a França e o Reino Unido – onde a presença de imigrantes, sobretudo muçulmanos, vem sendo polemizada e questionada.

Já no texto de autoria de Alexandre Guilherme da Cruz Alves Junior aparecem as complexidades das relações diplomáticas entre o Brasil e Guiana Francesa dentre fins do século XIX e inícios do século XX, tomando o espaço do Amapá como local de análise. A partir de publicações do jornal norte-americano Times, o então território do Amapá “surgia” num veículo de comunicação que objetivava retratar uma determinada visão dos fatos e que, por outro lado, acabou por contemplar experiências de outros agentes sociais que viviam naquelas regiões; estabelecendo conexões entre o Brasil, a Guiana Francesa e os Estados Unidos. A ideia de consolidar pesquisas que tratem de temáticas transnacionais nos coloca o desafio de se pensar a multiplicidade das ações e das reações na fronteira no gerenciamento de conflitos e no quanto os mesmos podem impactar a política e a diplomacia tanto no passado quanto em tempos recentes.

Por fim, o artigo intitulado “Vivendo na Bolívia, contudo trabalhando do Brasil: uma discussão acerca de convivência(s) e migrações na Zona de Fronteira Brasil / Bolívia”, envereda por uma questão fundamental nos espaços de fronteira: a relação das pessoas com o trabalho. Num espaço onde uma das principais atividades econômicas é o comércio, constituir determinadas interações sociais poderia fomentar conflitos em torno do que os agentes locais interpretam como uma noção de territorialidade. Nesse ínterim, o diálogo entre as pessoas e o espaço é fundamental a apreensão de um significado econômico da fronteira, de modo que os habitantes de cidades do Mato Grosso confluentes com a Bolívia irão se ater a suas lógicas de apropriação e significação do território.

Ainda na busca por problematizar os temas relativos ao universo das fronteiras, temos uma entrevista com a Profª Drª Keila Grinberg (UNIRIO), que tratou de temas mais recentes de sua pesquisa sobre o papel da escravidão nestas regiões e o peso que ela possuía no relacionamento diplomático do Império Brasileiro com as recém formadas repúblicas do Uruguai, da Argentina e do Peru. Além disso, a historiadora ressaltou as possibilidades de pesquisa dentro de uma perspectiva atlântica, a importância da comparação enquanto método de pesquisa para compreender semelhanças a diferenças nos processos históricos e o papel das chamadas histórias regionais à compreensão de realidades locais e, por que não ousar dizer, nacionais?

Por fim, contamos com uma sessão de artigos livres, onde é possível ver contribuições interessantes ao estudo de histórias regionais e a importância de instituições para garantir o atendimento demandas sociais. Além disso, outros artigos destacam o papel que determinadas fontes têm para o trabalho do historiador e a importância das experiências conectadas no mundo colonial em campos como a cultura e a religiosidade.

Agradecemos aos pareceristas e desejamos, desde já, uma boa leitura!

Notas

  1. ANDERSON, Benedict. Comunidades imaginadas. Reflexões sobre a origem e a difusão do nacionalismo. São Paulo: Companhia das Letras, 2008. Também são obras importantes deste debate os livros de Eric Hobsbawm. Nações e nacionalismos desde 1780. Programa, mito e realidade. 5ª edição. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2008. Do mesmo autor, com organização junto com Terence Ranger. A invenção das tradições. 6ª edição. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2008.
  2. KOSELLECK, Reinhart. Crítica e crise. Uma contribuição à patogênese do mundo burguês. Rio de Janeiro: Ed. Uerj / Contraponto, 1999. p. 55-56.
  3. Ver, dentre outras notícias sobre o tema: Jornal O Globo, 25 / 08 / 2015. Europa militariza fronteiras frente à crise migratória. Disponível em: http: / / oglobo.globo.com / mundo / europa-militariza-fronteiras-frente-crisemigratoria-3-17303595. Folha de São Paulo, 26 / 08 / 2015. Polícia húngara usa gás lacrimogêneo em centro para migrantes. Disponível em: http: / / www1.folha.uol.com.br / mundo / 2015 / 08 / 1673716-policia-hungara-usagas-lacrimogeneo-em-centro-para-migrantes.shtml. RFI Brasil, 27 / 08 / 2015. Áustria e Hungria, em dia fúnebre para os migrantes. Disponível em: http: / / www.portugues.rfi.fr / mundo / 20150827-austria-e-hungria-em-diafunebre-para-os-migrantes.
  4. TURNER, Frederick Jackson. “O significado da fronteira no Oeste Americano”. KNAUSS, Paulo (org). Oeste Americano: 4 ensaios de História dos Estados Unidos da América de Frederick Jackson Turner. Niterói: EDUFF, 2004. BOLTON, Herbert E. “La misión como institución de la frontera en el septentrion de Nueva España”. Francisco de Solano e Salvador Bernabeu (orgs): Estudios (Nuevos y Viejos) sobre la frontera. Madri: Consejo Superior de Investigaciones Científicas, 1991. p. 45 – 60. HOLLANDA, Sergio Buarque de. Raízes do Brasil. 26ª edição. São Paulo: Companhia das Letras, 1995. p. 31. RUSSELL-WOOD, John. Histórias do Atlântico português. São Paulo: Editora UNESP, 2014.

Hevelly Ferreira Acruche – Doutoranda pela Universidade Federal Fluminense. Bolsista pela Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal do Ensino Superior (Capes).


ACRUCHE, Hevelly Ferreira. Apresentação. Revista Cantareira, Niterói- RJ, n. 21, jul / dez, 2014. Acessar publicação original [DR]

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O legado das ditaduras civis-militares / Cantareira / 2014

O que o recente ciclo de ditaduras latino-americanas legou às nossas democracias?

Na esteira das comemorações dos 50 anos do golpe civil-militar no Brasil, a Cantareira, revista discente de História da Universidade Federal Fluminense, optou por preparar um número que contribuísse para aprofundar os debates que ocorreram ao longo deste ano. Escolhemos um viés que ajuda compreender a herança da ditadura no Brasil, em perspectiva comparada com outros países da América Latina, que passaram por experiências semelhantes. Nossa questão aqui é pensar sobre o que o recente ciclo de ditaduras latino-americanas legou às nossas incipientes democracias.

Há que se ponderar que parte considerável dos legados deixados pelas ditaduras civis –militares na América Latina estão intrinsecamente ligados à forma como ocorreram os processos de transição e como se construíram as relações entre civis e militares após o fim destes regimes. Há uma vasta literatura que trata deste tema e quem vem sendo revisitada, principalmente para que se possa tratar de outro tema: a Justiça de transição, campo de estudo interdisciplinar, cujo número de pesquisadores aumenta no Brasil.

Existem várias especificidades que diferenciam o modo como estas transições ocorreram em cada um destes países. Na perspectiva de uma literatura clássica sobre as transições, na Argentina, o processo de transição teria se dado “por colapso”, ou seja, o regime passava por um processo de desgaste por crise econômica, divergências internas dentro das três Forças Armadas e o ápice da crise, que levou ao fim do regime, foi a derrota para a Inglaterra na Guerra das Malvinas. Dentro deste quadro, a saída dos militares se deu sem uma organização ou tutela das próprias Forças Armadas. Por outro lado, os civis não assumiram de imediato esta situação de crise e se dividiram sobre como deveria ser tratado o poder militar e como seriam tratados os crimes cometidos pelo regime.

Alguns pesquisadores questionam esta visão clássica do “colapso”, e consideram a transição como “contingencial”, tendo em vista que o governo permaneceu por mais 13 meses no poder, tempo suficiente para definir uma agenda política para o país, assegurando os rumos da transição e as eleições em 1983, evitando uma saída do poder desqualificada [2].

O governo Alfonsinista limitou-se, de acordo com Marcelo Saín, à revisão judicial das violações aos direitos humanos, sem que se reformasse e democratizasse as Forças Armadas. A lógica presidencial era de punição dos militares de alta patente envolvidos em violações de direitos humanos e de livrar a maioria dos outros participantes, dentro da lógica da obediência devida. O governo seguinte, de Carlos Menen, caracterizou-se, neste campo, por haver sucateado as Forças Armadas, tirando a obrigatoriedade do alistamento e cortando os investimentos. Com a transição, desenha-se um novo tipo de relação civil-militar: o histórico protagonismo militar cedeu espaço a um outro papel, do militar subordinado, passivo e perdido dentro da burocracia do Estado[3].

O caso uruguaio se configura como uma transição tutelada pelos militares. Tutela esta, exercida em vários âmbitos da vida política: os partidos políticos foram proscritos, e antigos desafetos do regime continuavam proibidos de voltar ao país. A censura não foi desarticulada e as prisões continuavam com presos políticos. Das peculiaridades deste processo, estão a falta de influências externas, ou seja, não houve, como no caso argentino, uma “aventura militar” internacional, tampouco houve grande pressão internacional para o fim da ditadura [4]. Há três hipóteses levantadas acerca do processo de transição uruguaio:

a)As forças armadas eram permeáveis à cultura democrática precedente, pelo que a posição oficial não aceitou um discurso autoritário e continuísta. b) O processo autoritário não foi capaz de dar soluções aos problemas estruturais do país e teve cada vez mais dificuldades de conduzir o Estado e a sociedade. c) As forças armadas foram perdendo seu poder de distribuição, na medida em que sua política econômica foi revelando seu fracasso [5].

Mesmo assim, no apagar das luzes do governo civil-militar, foi aprovada a Lei de Caducidad de la Pretensión Punitiva del Estado, que propunha a não punição dos delitos cometidos por militares e policiais até março de 1985 por mando do governo. Somente em 2011 o Congresso aprovou uma lei que considera delito de lesa-humanidade os crimes ocorridos na ditadura, viabilizando a punição dos agentes do sistema repressivo.

Já no caso brasileiro, tivemos a “transição por transação”, ou transação compactuada. Como muito bem apontou Maria Celina D´Araújo, um dos legados da ditadura civil-militar brasileira, que a distingue de outras ditaduras como a Argentina foi, sem dúvida, a não punição de agentes do Estado que cometeram crimes contra a humanidade, devido à lei de Anistia de 1979, que contemplou tanto os crimes cometidos pelos opositores do regime, mas também os agentes torturadores e envolvidos em desaparecimentos. A forma em que a Lei de Anistia foi cuidadosamente articulada pelos setores governistas, criou uma outra situação também atípica nos demais países do Cone Sul: o Brasil é o país em que estes mesmos agentes de Estados que cometeram crimes de lesa-humanidade tiveram mais sucesso como veto players, quando o assunto em questão se relacionava à revisão do passado. Isto pode ser comprovado pelo fato de até o corrente ano sermos o único país da região que não julgou algum policial ou militar envolvido neste tipo de crime. Segundo a autora, isto se deve à existência de uma autonomia militar que vem de antes da ditadura e se mantem até os dias atuais, aliada à baixa cultura de respeito aos direitos humanos na sociedade brasileira e ainda ao desinteresse dos governos, em geral, pelo tema das Forças Armadas.

Parte-se da premissa de que desde 1979 as Forças Armadas fizeram da Lei da Anistia um assunto tabu e atuaram com poder de veto sempre que o tema entrou na agenda política. Contaram para tanto, com o apoio velado ou explícito do Poder Executivo, com a morosidade da Justiça, a inapetência do Legislativo para com os temas dos militares e dos direitos humanos. Tiveram a seu favor, especialmente, o fato de que a sociedade brasileira nunca se mobilizou em defesa de uma política de direitos [6].

Este protagonismo dos militares como veto players pode ser percebido sensivelmente se observarmos a nossa Comissão Nacional da Verdade. Criada em 2012, após uma série de negociações, estabeleceu-se que não teria caráter punitivo. Mesmo uma vez identificados os crimes e seus autores, eles não seriam passíveis de punição. Em toda demanda por justiça dentro desta perspectiva de crimes cometidos por militares, a autonomia castrense veta qualquer avanço.

Mas o problema não se restringe à atuação dos militares. Maria Celina D´Araujo e Sue Ellen Souza realizaram um balanço da posição da imprensa em relação à CNV, quando da sua criação [7]. Entre 2011 e 2012, o argumento mais forte era o da conciliação. De certa forma, como conclui D´Araújo, evidenciava-se um temor de risco do processo democrático e “não raro a Comissão é tratada como ação extemporânea, desprovida de sentido prático, e movida por ação raivosa”. Já a ação militar no combate à violência é vista positivamente. Ou seja, uma baixa cultura de direitos humanos aliada a esta visão “nos colocam num patamar vergonhoso nos rankings internacionais” [8]

Às vésperas do encerramento do relatório final da Comissão Nacional da Verdade, que será realizado em dezembro próximo, foi noticiado que a Comissão defenderá a responsabilização criminal de agentes da ditadura acusados de tortura e morte de militantes de esquerda. Falta decidir se pedirão abertamente a revogação da Lei de Anistia, que protege os acusados, ou se deixará esta tarefa para os partidos e movimentos sociais [9].

Tendo em vista estas considerações sobre relações civis-militares pós-ditaduras e as consequências das transições no modo como se trata este passado presente, buscamos uma leitura dos artigos aqui reunidos, desenhando um panorama da questão: Quais os legados das ditaduras no Brasil e na América Latina?

Optamos pela interdisciplinaridade, para termos uma amostra de como determinados temas são tratados em outras áreas que dialogam com a História. Assim sendo, o artigo que abre nosso dossiê é: “O que resta das ditaduras e o que havia de nós: história e memória nos mecanismos de justiça de transição no Brasil”, de Pedro Ivo Teixeirense. O autor faz algumas reflexões sobre História e Memória quando se trata da temática da justiça de transição no Brasil, bem como apresenta algumas reflexões acerca dos limites que a configuração de dado gênero narrativo impõe a quem produz narrativa inserida nesse contexto. Ainda, Teixeirense apresenta o processo de configuração do gênero narrativo mencionado, que surge por meio da definição de um modelo para a apresentação das demandas de justiça, história e memória no Brasil, em análise restrita ao modelo adotado pela Comissão de Anistia criada no ano de 2001.

O segundo artigo, “Ditadura militar brasileira e produção ideológica: Um estudo de caso com militares que atuaram no período ditatorial”, de Thiago Vieira Pires, analisa a produção ideológica da ditadura civil-militar brasileira, a partir de um estudo de caso. O autor busca compreender como os militares produzem e reproduzem uma determinada ideologia – a da segurança nacional –, que de modo algum os exime das responsabilidades dos crimes por eles cometidos em nome do Estado. Por meio de depoimentos, o autor evidencia a atualidade deste pensamento em determinados setores militares e como persiste uma cultura de desconfiança e monitoramento da sociedade.

O terceiro texto traz novamente a perspectiva comparada. “Fuerzas Armadas y gobierno en Argentina y Brasil: Tres décadas en perspectiva comparada”, de Gregorio J. Dolce Battistessa e María Delicia Zurita problematizam o papel delegado / assumido pelos militares após o fim das ditaduras. Passaram a ser convocados não para ir contra a população, ao contrário, passaram a ser convocados em momentos de tragédias, trabalhos de assistência, desenvolvimento tecnológico e luta contra o tráfico de drogas. Claro que esta mudança no papel das Forças Armadas não ocorreu sem tensões, sobretudo no que diz respeito ao passado ditatorial.

Na sequência, “Do banimento à luta pela Anistia: a Associação dos Anistiados Políticos e Militares da Aeronáutica– GEUAr”, de Esther Itaborahy Costa, traz outro estudo de caso, dos integrantes que lutam por direitos políticos suspensos, por terem perdido suas funções militares na instituição que serviram, perda esta que se deu a partir de uma portaria de 12 de outubro de 1964. Esses ex-militares alegam em seus processos, enviados à Comissão de Anistia, que essa portaria teve caráter exclusivamente político, já que com dez anos de serviço o militar alcançava estabilidade e poderia progredir na carreira chegando a postos superiores. O artigo mostra uma batalha pela memória e por direitos e os limites da justiça para casos como estes.

Por fim, Maria Soledad Lastra contribuiu com o artigo: “Semillas de la recepción a los retornados del exilio argentino y uruguayo”, que analisa as formas de criação de redes de solidariedade e auxílio aos exilados retornados à Argentina e Uruguai. O artigo evidencia as distintas formas de recepção em ambos países, as distintas formas de atuação dos organismos de direitos humanos em torno das agendas criadas no pós-ditadura. A análise comparada mostrou como os processos de transição e o tema do retorno foram inscritas de forma diferente em cada caso: no Uruguai se tornou um dos pilares políticos centrais, que permitiram que se confluísse em partidos políticos e movimentos de direitos humanos, já na Argentina, esta questão foi atendida por organizações muito próximas às de direitos humanos, mas apesar disto, esta questão se tornou politicamente isolada. Ou seja, houve maior integração dos exilados à política no Uruguai e maior exclusão na Argentina.

Ainda visando aprofundar a questão da luta por direitos humanos e exílio, temos: “Explorando las redes transnacionales de derechos humanos en América Latina: los orígenes de la Federación de Latinoamericana de Familiares de Detenidos Desaparecidos. Una entrevista con Patrick Rice”. Mario Ayala apresenta o primeiro secretário da Federacion Latinoamericana de Familiares de Detenidos Desaparecidos (1981-1985), localizada na Venezuela.

Agradecemos aos pareceristas que ajudaram a viabilizar este trabalho e desejamos uma boa leitura!

Notas

  1. Cf. BRANDÃO, Priscila. Argentina, Brasil e Chile e o desafio da reconstrução das agências nacionais civis de inteligencia no contexto no contexto de democratização. Tese de Doutorado. Ciências Sociais. UNICAMP. 2005.
  2. Cf. SAIN, Marcelo. Democracia e Forças Armadas: entre a subordinação militar e os “defeitos civis”. In: D´ARAUJO, Maria Celina & CASTRO, Celso. Democracia e Forças Armadas no Cone Sul. Rio de Janeiro. FGV, 2000. P.21-55; D´ARAUJO, Maria Celina & CASTRO, Celso. Apresentação. In: D´ARAUJO, Maria Celina & CASTRO, Celso. Democracia e Forças Armadas no Cone Sul. Rio de Janeiro. FGV, 2000.
  3. CABRAL, João Pedro. A recuperação democrática uruguaia, 1982-1984: Transição via concertação tutelada. http: / / www.historia.uff.br / estadoepoder / 7snep / docs / 026.pdf . Acesso em 21 / 10 / 2014.
  4. AGUIAR, Cesar citado por CABRAL. op.cit. p.2.
  5. D´ARAÚJO, Maria Celina. O estável poder de veto Forças Armadas sobre o tema da anistia política no Brasil. In: Varia História. Vol.28 no.48. UFMG. Belo Horizonte. Jul / Dez 2012. Retirado de: http: / / www.scielo.br / scielo. php?pid=S0104-87752012000200006&script=sci_arttext .Acesso em 25 / 10 / 2014
  6. SOUZA, Sue Ellen. Forças Armadas, Transição e “Verdade”: Brasil e Cone Sul. Departamento de Ciências Sociais. PUC / RJ. 2012. http: / / www.puc-rio.br / pibic / relatorio_resumo2013 / relatorios_pdf / ccs / SOC / CSOCSue%20Ellen%20de%20Souza.pdf . Acesso em 20 / 10 / 2014.
  7. D´ARAUJO. op. cit. 2012.
  8. Comissão defenderá responsabilização criminal de agentes da ditadura. Painel. Folha de São Paulo. 02 / 11 / 2014

Isabel Cristina Leite – Doutoranda em História Social pela UFRJ. Bolsista FAPERJ nota 10. Co-organizadora dos livros: À sombra das ditaduras: Brasil e América Latina. (Mauad, 2014) e Questões da América Latina contemporânea. (Fino Traço. No prelo.)


LEITE, Isabel Cristina. Apresentação. Revista Cantareira, Niterói- RJ, n. 20, jan / jun, 2014. Acessar publicação original [DR]

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História e meio-ambiente / Cantareira / 2013

A partir de uma abordagem interdisciplinar as pesquisas que investigam as relações entre a História e a natureza, em seu sentido mais amplo, ganharam força nos últimos anos. Motivada por esse impulso a Revista Cantareira recebeu contribuições com essa proposta.

Desde o final do século XIX e princípios do século XX, o chamado “determinismo geográfico” era uma corrente científica influente em vários países da Europa, com repercussões também no Brasil. “Os Sertões” (1902) de Euclides da Cunha talvez seja o exemplo mais marcante dessa influência entre os intelectuais brasileiros. Nas primeiras décadas do século XX esse determinismo também começava a ser revisto. Os estudiosos fizeram uma releitura passando a destacar não como o meio determinava o desenvolvimento das sociedades, mas o quanto ele influenciava. A publicação de “O Mediterrâneo e o Mundo Mediterrâneo na Época de Filipe II” de Fernand Braudel em 1946 foi um passo importante nessa releitura, mas antes dele Marc Bloch e Lucien Febvre já haviam dado contribuições nesse sentido. Mais uma vez, os historiadores brasileiros acompanhariam de perto esse processo ainda que, neste momento, não se possa estabelecer uma relação direta entre a produção intelectual na França e no Brasil. Gilberto Freyre com “Nordeste” (1937) tratava do impacto da cana de açúcar na destruição do meio ambiente e suas implicações sociais, assim como Sérgio Buarque de Holanda alguns anos mais tarde abordaria com “Monções” (1945), como a expansão das bandeiras paulistas também esteve condicionada aos regimes fluviais.

A partir de meados do século XX as investigações sobre o tema ganharam grande sofisticação com os trabalhos de Emmanuel Le Roy Ladurie – “L’Histoire du climat depuis l’na mil” (1967) – na França e de Keith Thomas – “O homem e o mundo natural” (1983) – na Inglaterra. O historiador francês procurou relacionar o surgimento das doenças, como pestes, e as transformações de ordem natural, enquanto Thomas demonstrou o surgimento de novas sensibilidades do homem em relação as plantas e os animais na época moderna.

Ainda relacionada a esta temática é preciso se referir ao livro “A Ferro e Fogo: a história e a devastação da Mata Atlântica Brasileira” (1996) de Warren Dean que tratou da história das relações entre o homem e a Mata Atlântica e da devastação desse ecossistema único no mundo.

Todas essas questões foram debatidas com argúcia por uma das principais referências quando se fala em História Ambiental no Brasil atualmente, o professor José Augusto Pádua da UFRJ em entrevista concedida nessa edição. Como se trata de um campo, por essência, interdisciplinar, constituiu um bom exemplo disso o artigo de Ana Marcela França sobre as percepções da natureza na História da Arte, a partir de um olhar da História ambiental. Essa abordagem aparece plural também aparece no artigo de Catarina de Oliveira Buriti, José Otávio Aguiar e de Bread Soares Estevam em análise do clássico “Vidas Secas” (1938) de Graciliano Ramos, em que os autores discutem as imagens atribuídas aos animais presentes na obra, como uma forma de representação do modo de vida dos sertanejos.

Entre os artigos livres, mas de alguma maneira tangenciando o tema do dossiê, Patrícia Govaski investigou o padre português Teodoro de Almeida e a defesa que fez da filosofia Natural Moderna em Portugal na segunda metade do século XVIII que, segundo o religioso, sobressaía a filosofia dos seguidores de Aristóteles.

Nessa edição o leitor ainda irá encontrar o artigo de Maurício Dezordi que discutiu o fluxo migratório em meados do século XX no Paraná baseado na agricultura familiar. A história da historiografia das teorias raciais no Brasil é apresentada por Diego Uchoa de Amorim. Também apresentamos um interessante debate sobre a historiografia relacionada as teorias raciais no Brasil, no artigo de Diego Uchoa de Amorim.

A tradução feita por Luís R. A. Costa do artigo “Mera crônica e história apropriada” do norte americano Arthur Danto, não deixa de ser uma forma de homenagem a esse importante crítico de arte, recentemente desaparecido.

Como de praxe, a revista ainda traz a resenha feita por Douglas de Freitas A. Martins do livro “Santos e pregadores nas cidades medievais italianas: retórica cívica e hagiografia” de autoria de André Luís Pereira Miatllo.

Com a expectativa de que esta publicação seja não apenas um meio de divulgação do conhecimento, mas também de debate, colocamos a disposição do público mais uma edição da Cantareira.


Editores. Apresentação. Revista Cantareira, Niterói- RJ, n.19, jul / dez, 2013. Acessar publicação original [DR]

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Guerras, Conflitos e Tensões / Cantareira / 2012

A Revista Cantareira tem a satisfação de apresentar sua 17ª edição com o dossiê intitulado “Guerras, Conflitos e Tensões”. A história da humanidade foi constantemente marcada por esses três elementos. Buscando explorá-los em suas múltiplas possibilidades, a Revista apresenta artigos que contribuem para o seu conhecimento histórico no âmbito mais convencional, a partir das relações entre Estados, assim como produções acadêmicas que privilegiam as tensões sociais num sentido mais amplo, tais como conflitos étnicos e religiosos. Os temas presentes nesse Dossiê abrangem variados períodos históricos, desde o Brasil Colônia, passando pela Guerra do Vietnã, até chegarmos a Guerra Cibernética, expressão dos conflitos do “tempo presente”. Numa tentativa de tornar mais claras as definições teórico-metodológicas sobre o tema do dossiê, publicamos também uma entrevista exclusiva com o professor Francisco Carlos Teixeira. Através de sua leitura podemos aprender mais profundamente as distinções conceituais entre Guerra, Conflito e Tensão, além de passearmos ao longo da história do Tempo Presente com um dos mais destacados historiadores brasileiros da área.


[Guerras, Conflitos e Tensões]. Apresentação. Revista Cantareira, Niterói- RJ, n.17, jul / dez, 2012. Acessar publicação original [DR] Observação: A apresentação dessa edição está no número 18.

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Cantareira | UFF | 2002

Cantareira3 Cantareira

Cantareira (Niterói, 2002-) é um periódico eletrônico dos graduandos e dos pós-graduandos em História da Universidade Federal Fluminense, fundada em 2002.

A revista tem periodicidade semestral e recebe trabalhos inéditos, teóricos ou empíricos, que contribuam para o desenvolvimento da pesquisa no campo historiográfico.

As suas finalidades são enfocar questões teóricas e críticas pertinentes aos estudos de História e áreas afins, fomentar o debate entre estudantes e pesquisadores de todo o país, oferecer aos leitores textos de excelente qualidade, democratizar o conhecimento e ser uma referência acadêmica no meio web.

Periodicidade semestral

Acesso livre

ISSN 1677-7794

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