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Campos da História / Fronteiras – Revista Catarinense de História / 2009
Uma paisagem árida cujo horizonte anuncia sua monótona continuidade. Ausentes pessoas, animais, vegetação. Entre as pedras do solo, próximas à estrada, protuberâncias arredondadas são percebidas, mas sua identificação não é imediata nem certa: seriam balas de canhão? Neste cenário inóspito da Crimeia, em 1855, Roger Fenton realizou dois registros fotográficos. O título que ambos receberam − O vale da sombra da morte – empresta dramaticidade ao território, tornando-o emblema de desolação ao remeter às mortes geradas por muitas batalhas. Os próprios combatentes britânicos da Guerra da Crimeia teriam passado a reconhecer o local como “vale da morte”, e o título dado por Fenton, ao combinar essa percepção a uma passagem bíblica, busca ganhar ainda mais força junto aos receptores da imagem.
Fenton fotografou episódios da Guerra da Crimeia sem registrar combates nem cadáveres – de um lado, porque os próprios meios técnicos dos quais dispunha exigiam longo período de exposição do material fotográfico para captação da imagem desejada; de outro, porque as autoridades britânicas que autorizaram sua presença na região do conflito não aprovavam imagens de mortos e mutilados. As fotos daquele “vale da morte”, porém, passariam a aludir às perdas e às dores humanas na guerra sem que a exibição de corpos sem vida ou agonizantes fosse necessária.
A capa de Fronteiras estampa o que foi provavelmente o primeiro dos dois registros fotográficos de Roger Fenton naquele local. Mas a questão é polêmica, pois o outro registro, diferentemente da imagem da capa, mostra várias balas de canhão distribuídas harmoniosamente ao longo da mesma estrada (a comparação das duas imagens pode ser feita, aliás, na página final deste número da revista). Como explicar a diferença? Teria Fenton interferido no cenário, alterando a disposição das balas de canhão que já se encontravam ali? Teria acrescentando outras? Se houve a redistribuição espacial das balas, poderia ela ser explicada pela ação de combatentes, interessados em facilitar sua remoção e reutilização? O registro fotográfico de Fenton, afinal, atestaria uma dada situação – a ele poderia ser atribuído valor documental? Ou seria intervenção criativa, reelaboração ficcional do fotógrafo a partir do real, de modo a torná-lo mais eloquente?
Do ponto de vista da História, as imagens produzidas por Fenton põem em causa a relação estabelecida pelos sujeitos históricos com seu próprio presente, bem como os elementos materiais que nascem dessa relação, interpretados pelos historiadores como evidências do real, vestígios de práticas e experiências a problematizar. Testemunhas e testemunhos, intenções de verdade, tramas ficcionais, tensões entre passado, presente e futuro são elementos continuamente considerados no fazer historiográfico. Não sem razão, portanto, tais elementos são discutidos nos textos deste número da revista, em especial nos artigos do dossiê “Campos da História”.
Sete artigos compõem o dossiê, que é aberto por texto de Fernando Gil Portela Vieira sobre as relações entre história e literatura, no qual a ficção é apresentada mais como traço de união do que de separação entre as duas áreas. Recuperando elementos fundamentais dessa discussão no debate historiográfico, o autor se atém particularmente às questões trazidas no bojo da “virada lingüística” e da emergência de uma historiografia pós-moderna.
A escrita da história ocupa também lugar privilegiado no artigo de Rogério Chaves da Silva, que valoriza a contribuição teórica de Jörn Rüsen. Destaca-se como, nas reflexões de Rüsen, a história tem suas especificidades disciplinares definidas tanto pelos procedimentos metodológicos adotados como por sua estreita ligação aos interesses e demandas da vida prática, que articulam sentidos para a produção do conhecimento histórico.
Na linha de uma “história da história”, Arnaldo Haas Júnior trata especificamente do lugar dos estudos de história local na historiografia contemporânea, bem como problematiza os perfis diversos daqueles que compartilham com os historiadores a tarefa de escrever textos de caráter histórico. No horizonte das considerações do autor estão as relações da historiografia catarinense com a história local, tal como praticada, no pós1945, por diferentes “produtores de história”.
Tiago de Melo Gomes examina a presença da política, da diplomacia e da guerra em obras de autores vinculados às diferentes gerações dos Annales, como Bloch, Braudel, Duby e Le Roy Ladurie. Busca demonstrar que, apesar das críticas do movimento dos Annales a uma história tradicional ou “historizante” (como a denominou Febvre), tais autores não conseguiram com ela romper ao enfrentar aqueles temas.
O imbricar de memória e narrativa na percepção e na recepção de registros fotográficos é tema do artigo de Tati Lourenço da Costa, cujo título traz a marca indelével da inspiração proustiana, entre outras influências significativas, como Roland Barthes e Ecléa Bosi. As imagens fotográficas aparecem aqui na plenitude de sua condição de vetores de sensações e sentimentos.
Das imagens apropriadas pelos processos de memória caminha-se para aquelas que buscam prioritariamente provocar o riso: no artigo de Michele Bete Petry e Emerson César de Campos são problematizadas as dimensões gráficas do humor (caricaturas, charges, cartuns).
Fecha o dossiê artigo de Eduardo Meinberg de Albuquerque Maranhão Filho, voltado para os desafios que se colocam à produção de caráter histórico que toma para si a empreitada de pensar, em especial, o tempo presente.
Embora não diretamente relacionados ao dossiê, são também instigantes para pensar os campos da História os quatro artigos e as duas resenhas que compõem o restante deste número da revista Fronteiras.
Primeiramente, o artigo de Ana Paula Pruner de Siqueira, que deveria ter integrado o número anterior da revista (como, aliás, assinalava a contracapa daquela edição). O número 17 de Fronteiras corrige o equívoco e apresenta o texto da autora, resultante de suas pesquisas em nível de mestrado relativas à escravidão nas atividades pecuaristas em Palmas, no Paraná, durante a segunda metade do século XIX.
Mas, como são vários os “mundos do trabalho”, das considerações sobre o trabalho escravo na Província do Paraná o leitor poderá seguir para as reflexões de Juçara da Silva Barbosa de Mello sobre as relações entre trabalho fabril, cultura operária e futebol no Distrito de Santo Aleixo, em Magé, Rio de Janeiro.
Iuri Cavlak, abordando o período desenvolvimentista, permite repensar as relações diplomáticas entre Brasil e Argentina com base em documentos por ele consultados no arquivo pessoal do político argentino Arturo Frondizi, há pouco tempo disponibilizados à pesquisa.
Religiosidade e patrimônio cultural mesclam-se no artigo de Patrícia Ferreira dos Santos, que apresenta a peculiar trajetória do templo em devoção a Sant’Ana, em Mariana, e sua história de afastamento e reaproximação em relação à comunidade do Gogô.
As duas resenhas contidas neste número de Fronteiras contemplam publicações efetuadas em 2007. Cristiane Cecchin aborda o livro Tecnologia e estética do racismo: ciência e arte na política da beleza, coletânea que reúne textos da historiadora Maria Bernardete Ramos Flores sobre a imbricação, no Brasil de inícios do século XX, de perspectivas nacionalistas, modernizadoras e racistas que convergiram para a modelagem de um brasileiro ideal. Belo e perfeito em sua adequação aos moldes europeus, tal brasileiro imaginário tentaria ser alcançado por meio de ações diversas que articularam arte e ciência. Sandor Fernando Bringmann, por sua vez, resenha o livro de Luísa Tombini Wittmann sobre as tensões e trocas culturais entre os grupos Xokleng e os indivíduos envolvidos nos empreendimentos de colonização do Vale do Itajaí, entre 1850 e 1926.
Cada uma das três seções da revista – relativas ao dossiê, aos demais artigos e às resenhas – tem, em sua página de abertura, uma imagem fotográfica produzida por Mariana Rotili da Silveira, graduanda em História na Universidade do Estado de Santa Catarina. Os trabalhos fotográficos aqui apresentados são cenas captadas em 2009 nas ruas de Florianópolis.
O conjunto de artigos e resenhas reúne pesquisadores de perfis variados, apenas uma parte deles atuante em Santa Catarina, e contempla ampla gama de tipos documentais, além de diferentes recortes espaciais e temporais. Oferece, assim, amostra significativa de problemas, abordagens e estilos que atravessam a produção historiográfica brasileira contemporânea. Apreendidos em sua totalidade, textos e imagens presentes na revista permitirão ao leitor estabelecer diálogos que seus autores, por certo, não previram nem suspeitaram. Aproximações e distanciamentos desenham-se em temas, referências, concepções – desenhos que agora caberá a cada um configurar na leitura.
Janice Gonçalves
GONÇALVES, Janice. Editorial. Fronteiras: Revista catarinense de História. Florianópolis, n.17, 2009. Acessar publicação original [DR]