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Câmaras municipais na América portuguesa: entre o universal e o específico / História Revista / 2016
O dossiê que apresentamos nesta edição de História Revista procura realizar um balanço da produção sobre a instituição camarária na América portuguesa, a qual assistiu um bem-vindo crescimento nos últimos 20 anos. De órgãos periféricos e subsidiários do poder central português, as Câmaras passaram a ser compreendidas como palco de poder de elites locais, as quais atrelavam-se à monarquia com um duplo e paradoxal compromisso. De um lado estavam comprometidas a empregar-se no real serviço, de outro guiar-se pelo que de melhor houvesse para o bem público, isto é, o interesse da comunidade (república). Ocupados por grupos de destaque em cada vila, as Câmaras intermediavam estes objetivos mesclando muitos dos projetos dos poderosos locais, demonstrando abrigar contradições e conflitos em seu seio.
Nas câmaras reuniam-se elites locais das diferentes comunidades, exibindo tanto as características desejadas na Corte quanto valores cujo sentido possuía alcance mais limitado. Suas funções incluíam discutir a organização do espaço, a limpeza e abastecimento da comunidade, mas ainda tratar de crianças expostas, do comércio, das procissões religiosas e festividades em honra de Sua Majestade Fidelíssima. Tratavam da política e da gestão humana em nível cotidiano tencionada pela confluência entre interesses locais e projetos do poder central.
Esta reunião de artigos se ancora na diversidade apresentada pela instituição na América, motivo pelo qual se privilegiou diferentes espacialidades. Tal diversidade se apresenta tanto pelas nuances de cada caso, mas igualmente porque os trabalhos demonstram as múltiplas funções desempenhadas pelas Câmaras. Esta diversidade já fora contemplada por Russel-Wood, que destacara a divergência cultural que pontuava os diversos conselhos espalhados no universo oceânico lusitano. As peculiaridades locais, entrementes, não impediram que alguns mecanismos se fizessem presentes, como destaca o mesmo autor, tornando a instituição um elemento de continuidade na dispersão espacial.[1] Daí a ideia de oscilar entre o específico e o universal, tônica presente nos trabalhos que compõem o dossiê.
Há uma clara predominância temporal do século XVIII, o que se explica por ter sido um momento de multiplicação de vilas na América portuguesa. Foi no 700 que a instituição camarária adentrou inúmeros sertões, fazendo-se presente em diferentes realidades e abrigando grupos de elite com características específicas em cada região.
Em Frágeis poderes: governadores e oficiais municipais em Goiás na segunda metade do século XVIII, encontramos tema recorrente no estudo das Câmaras, sua relação com os governadores. Esse relacionamento que recorrentemente alternou atritos e colaborações se desenvolveu pela falta de clareza jurisdicional das duas esferas. Estavam as Câmaras subordinadas ao governador ou eram órgãos independentes? O artigo escapa a uma dualidade simplificadora e propõe que as duas esferas de poder apresentavam fragilidades e autonomias, sendo necessárias em atender os desígnios de Sua Majestade. Não obstante, a Câmara de Vila Boa de Goiás não se curvava às imposições do governador Luís da Cunha de Meneses, valendo-se do recurso ao arbítrio régio para defender suas prerrogativas. Uma demonstração da inserção e retroalimentação entre periferia e centro.
O artigo Na confraria e na Câmara: a correspondência entre a Irmandade do Santíssimo do Pilar do Ouro Preto e a Câmara de Vila Rica aborda a relação entre o que Boxer chamou de pilares gêmeos da sociedade do império marítimo português. Desviando-se do binômio Câmara-Misericórdia, a escolha inclina-se ao senado e à confraria laica do Santíssimo Sacramento da igreja matriz de Vila Rica. Avalia-se a presença de indivíduos nas duas instituições e os auxílios prestados de uma à outra. Desvela-se na sociedade mineira não dois, mas um mesmo palco alargado de atuação da elite, o que implica em afirmar a ingerência do grupo tanto em assuntos administrativos quanto religiosos, um dado que celebra a proximidade entre religião e Estado no Antigo Regime.
Tão interessante quanto necessário é o estudo intitulado Redes associativas e de comunicação entre as câmaras de uma capitania, São Paulo (século XVIII). Aqui se aborda um tema em franco desenvolvimento no estudo camarário, o da comunicação política. Contudo, a fim de complementar e contrastar com estudos que optam pela correspondência entre os poderes locais e central privilegia-se a troca de cartas entre instituições municipais da capitania de São Paulo e destas com a da cidade do Rio de Janeiro. Os resultados apontam para uma capacidade de articulação surpreendente, na qual várias Câmaras enviavam requisições ao poder central, simultaneamente, tendo previamente, compartilhado entre si as informações e as impressões sobre o melhor modo de fazê-lo. A perspectiva horizontal da comunicação lança bastante luz sobre o funcionamento da América portuguesa e convida à multiplicação de estudos deste tipo. Neste, em específico, fica demonstrada a extrema vitalidade das Câmaras paulistas, capazes de realizar uma frente única de reivindicações. A pergunta inevitável ao final da leitura é quantas outras Câmaras se comunicavam desta forma?
A vitalidade expressa nos artigos anteriores encontra contraste no caso alagoano, no qual a Câmara se reunia pouco e, quando o fazia, limitava-se a assuntos de escopo local. A administração de duas Câmaras de perfil diferente é comparada em Variações do poder camarário na capitania de Pernambuco: Olinda e Alagoas do Sul na segunda metade do século XVII, com os benefícios costumeiros dessa abordagem, isto é, colocar em perspectiva a autonomia e o alcance da instituição. Se, por um lado é de se esperar que as vilas e cidades maiores atinjam maior influência, por outro é necessário perceber a realidade empírica das vereanças das mais modestas. Se dispensarmos estas considerações, teremos uma história parcial, que terminaria por anular o sentido da multiplicação de Câmaras citada acima. O modelo estabelecido nos grandes centros encontra um teste rigoroso no estudo de uma Câmara secundária e é na correlação entre ambos que é possível desenhar o funcionamento do Império Português e refinar nosso entendimento sobre o mesmo.
Câmaras municipais e ordenanças no Estado do Maranhão e Grão-Pará: constituição de uma elite de poder na Amazônia seiscentista analisa outro conjunto de relações institucionais de âmbito municipal. No artigo, as tropas de Ordenanças surgem como contraparte à ocupação dos principais cargos camaristas como modo de afirmação da elite residente. Concentrando-se em Belém e São Luís, o artigo mostra como a tendência a adaptar preceitos de nobreza à realidade amazônica fez da conjugação vereador-oficial de ordenanças um requisito para que o poder régio garantisse o monopólio social ao grupo. Novamente, esta situação é complicada pelos conflitos envolvendo oficiais nomeados diretamente pela Coroa, situação que não se encerrou com a passagem do século XVII para o XVIII.
O rei nas Minas: a construção simbólica do Império português na Capitania de Minas Gerais aborda um parâmetro não menos importante da ação camarária. A promoção de festividades conectava as várias partes do império ao fazerem circular símbolos da monarquia lusa. Ao construírem arcos triunfais decorados e iluminados e desfilarem retratos dos reis os camaristas confirmavam sua disposição em cumprir ao real serviço, fazendo o monarca materializar-se em duas diversas possessões, o que também conferia aos vassalos a ideia de participarem de um império de grandes proporções.
Em seu conjunto o dossiê mostra o crescimento do tema e da produção historiográfica brasileira, que recuperou um tema durante muito tempo considerado menor, executando um maduro debate com a historiografia internacional. Apesar de ser não mais do que uma amostra dos vários trabalhos existentes, mostra-se como a Câmara tornou-se um objeto de estudo privilegiado por permitir acessar a cultura, economia, política e sociedade da América lusitana, considerada sempre em sua relação com a totalidade do Império Português. Boa leitura!
Nota
1 RUSSEL-WOOD, A. J.R. Local Government in Portuguese America: A Study in Cultural Divergence. Comparative Studies in Society and History, vol. 16, n 2, mar. 1974, pp. 187-231. RUSSEL-WOOD, A.J.R. A base moral e ética do governo local no Atlântico luso-brasileiro durante o Antigo Regime. In. GONÇALVES, Andréa Lisly; CHAVES, Cláudia Maria das Graças; VENÂNCIO, Renato Pinto. Administrando Impérios: Portugal e Brasil nos séculos XVIII e XIX. Belo Horizonte: Fino Traço, 2012.
Adriano Comissoli – Doutor em História Social pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (2011). Professor do Departamento de História da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM)
COMISSOLI, Adriano. Apresentação. História Revista. Goiânia, v. 21, n. 1, jan. / abr., 2016. Acessar publicação original [DR]