Posts com a Tag ‘CALDEIRA Rodrigo (Aut)’
Os baluartes da tradição: o conservadorismo católico brasileiro no Concílio Vaticano II – CALDEIRA (H-Unesp)
CALDEIRA, Rodrigo Coppe. Os baluartes da tradição: o conservadorismo católico brasileiro no Concílio Vaticano II. Curitiba: CRV, 2011, 335 p. Resenha de: GONÇALVES, Marcos. História [Unesp] v.31 no.1 Franca Jan./June 2012.
O objetivo de Rodrigo Coppe Caldeira em Os Baluartes da Tradição é apresentar a atuação e as principais ideias dos bispos brasileiros Antonio de Castro Mayer (1904-1991) e Geraldo de Proença Sigaud (1909-1999) durante o Concílio Vaticano II (1962-1965). Os dois prelados, expoentes do catolicismo conservador e antimoderno no Brasil, encabeçaram, junto com Marcel Lefebvre (1905-1991) e com o apoio de alguns bispos italianos e latino-americanos, a Aliança Conservadora minoritária, que lutou pela manutenção, pode-se assim dizer, de uma Igreja do século XIX no século XX. Uma Igreja de matriz institucional ultramontana e cuja perspectiva integrista apresentava-se irredutível às novidades possíveis de ameaçar a autoridade da tradição eclesiástica fortemente sedimentada.
Em tempos de concordata entre o Brasil e o Vaticano – firmada em novembro de 2008 – e levantamento das excomunhões impostas pela Santa Sé à Fraternidade Sacerdotal São Pio X (janeiro de 2009), que contava entre seus membros com o bispo negacionista Richard Williamson, é oportuno trazer à luz questões que atribulavam os bispos antimodernos mergulhados no acontecimento mais importante do século XX para a Igreja romana.
Embora na Europa seja fecunda a literatura especializada sobre o Concílio II, no Brasil continuam escassos os estudos mais específicos e verticalizados que abordem a participação dos prelados brasileiros no evento, além de serem poucas as reflexões da historiografia sobre as ressonâncias das normativas no período pós-Concílio.
Originalmente uma tese de doutoramento defendida pelo autor na Universidade Federal de Juiz de Fora-MG, o texto de Caldeira dialoga com e complementa estudos de envergadura, como o de José Oscar Beozzo (2005), que construiu interessante prosopografia dos bispos brasileiros envolvidos no Concílio.
Disse-o bem Annibale Zambarbieri (1995) que, num Concílio ecumênico, vicejam tensões, estratégias de luta e disputas por classificações e hegemonias discursivas equivalentes a um parlamento: lugar no qual a astúcia política faria sombra à ética religiosa. A noção de “campo de lutas simbólico-normativas”, empregada por Caldeira, em que duas tendências que disputam espaço num determinado cenário social lutam obstinadamente por certa hegemonia, parece responder adequadamente a essa equivalência. Tal campo de lutas acentuou-se no século XIX, quando o Vaticano I (1869-1870) adquiriu claros contornos de enfrentamento entre maiorias e minorias que eram, e são, comuns às assembleias parlamentares modernas ao institucionalizarem os conflitos sociais. Dentro do modelo que interpreta a história conciliar operando analogias às câmaras políticas cabe, por exemplo, assinalar o estudo do eminente historiador francês Philippe Levillain, publicado pela primeira vez em 1975: La mécanique politique de Vatican II. La majorité et l’unanimité dans un Concile.
O estudo de Caldeira sai em busca da constatação dessas tensões, dividindo-se em duas partes, assim constituídas: a Parte I, composta por quatro capítulos que abordam a época anterior da realização do Concílio e a emergência e consolidação de um catolicismo antimoderno; a Parte II, com cinco capítulos, que discute exclusivamente a atuação e as intervenções dos católicos antimodernos brasileiros no Concílio.
O autor recorre a um amplo universo de acervos documentais para demonstrar os papéis assumidos na minoria conciliar pelos bispos brasileiros: arquivos do Istituto per le Scienze Religione di Bologna, Biblioteca da Obra Social Redentorista Pesquisas Religiosas, fontes oficiais do Concílio, diários e crônicas produzidos no calor do momento, como o são as descrições de Frei Boaventura Kloppenburg (1919-2009) e do teólogo dominicano e futuro cardeal Yves Congar (1904-1995). Todavia, a fonte mais original do estudo talvez seja os arquivos pessoais do bispo Sigaud, localizados em Diamantina (Minas Gerais). Nesse grupo de testemunhos, são identificadas as alianças forjadas entre os religiosos que, em graus diversos, comungavam da mesma constelação de valores tradicionalistas. Caldeira também divulga que a base doutrinária de onde partiu a ação dos bispos antimodernos foi a organização Coetus Internationalis Patrum (Grupo de Padres Internacionais), liderada por Lefebvre ao menos nominalmente e com expressivo protagonismo de Geraldo Sigaud, síntese do antimodernismo religioso brasileiro na segunda metade do século XX.
Os bispos organizados na minoria tradicionalista – ligada às formas clássicas situadas entre o Concílio de Trento e o Vaticano I – defendiam a irredutibilidade da tradição apoiada na compreensão de uma igreja marcadamente antimoderna que, por sua vez, segundo Caldeira, atualizava-se com base em três pilares-chave: a especificidade da Virgem Maria na economia salvífica; o anticomunismo, o antijudaísmo (p. 17). É desses elementos que se desdobram os novos problemas que iriam surgir nos chamados “esquemas”, produzidos pelos padres a fim de deliberarem sobre as relações entre uma Igreja tensionada pelas divisões doutrinárias e um mundo social plural e complexo. No polo oposto aos conservadores se reuniram os bispos e teólogos pertencentes à Aliança Centro-Europeia, composta principalmente por eclesiásticos franceses e alemães desejosos de uma abertura da Igreja para o mundo, sem qualquer precedente até então.
Mas o que é ser antimoderno no contexto do catolicismo institucional? Ou, dito de outra forma, como as históricas bases do antimodernismo católico emergem reativamente nesse momento em que a Igreja romana se empenhava na busca de uma acomodação mínima e moderada com a cultura moderna?
Caldeira reconstitui a experiência antimoderna da Igreja desde a disjunção que a reforma protestante engendrou. Esse seria o movimento que iria inaugurar o paradigma moderno, trazendo “transformações substanciais no panorama político-religioso e também nas consciências dos indivíduos [individualização da fé] ao longo dos tempos” (p. 30). Além da reforma, o autor situa o iluminismo como um movimento que minou a cristandade, acelerando o colapso da visão teocêntrica e reconfigurando a ordem mundana sem a presença da religião; e, por fim, a revolução francesa, o “grande satã” do século XVIII, que gerou um dos frutos mais amargos a ser digerido pela Igreja no século seguinte: o liberalismo.
A alternativa da Igreja decimonônica frente ao avanço da secularização e da laicidade foi uma centralização, que descambou para o centralismo, ou seja, o excesso dogmático e a obsessão por não abrir vias de comunicação com as igrejas locais, tornando absolutas as decisões da burocracia romana e abrindo um conflito com vários Estados nacionais, que derrogaram o princípio da confessionalidade nas suas constituições.
A formação de um catolicismo antimoderno no Brasil foi possível graças à vitalidade assumida na terceira década do século XX pela Igreja que, ao recuperar a herança dos modelos conservadores do século XIX e início do XX, construiu sólidas alianças com o poder político: “Com as mudanças conjunturais que ocorreram com a tomada de poder por Getúlio Vargas, a Igreja passou a uma nova fase na vida pública do país” (p. 93). O período, chamado de fase de “restauração” católica no país, pareceu estabelecer pontos de contato e fornecer inspiração para o que viria a ser, nas duas décadas após a segunda guerra, uma rede de conservadorismo católico sob a liderança de leigos, como Plínio Correa de Oliveira, líder da TFP, e de religiosos com estreitas relações no plano internacional, como Sigaud e Mayer.
Assim, quando João XXIII foi eleito em 1959 o “papa de transição” e logo anunciou a realização de um concílio, os antimodernos se mobilizaram em torno das principais demandas que os afligiam; como salienta Caldeira:
As matérias que eram caras aos antimodernos e as quais deveriam se empenhar defensivamente contra as ideias introduzidas pela Aliança e seguidas pela maioria eram as seguintes: a liturgia codificada pela tradição, a transmissão imutável da revelação, a inerência das Escrituras, a estrutura hierárquica da Igreja, o primado do catolicismo sobre as outras tradições religiosas, o dever do Estado assumir a moral católica e a moral cristã (p. 131).
Os antimodernos temiam a renovação da Igreja, a promoção da unidade dos cristãos e um aprofundamento das relações da Igreja com o mundo contemporâneo. Essa pauta, reforçada por Paulo VI após o curto papado de João XXIII, seguiu as linhas mestras elaboradas por este último. Neste sentido, o Concílio devia pensar a Igreja em duas direções: ad intra e ad extra (p. 156).
O já mencionado Coetus nasce, segundo Caldeira, entre 1962 e 1964, em razão das expectativas que se transformaram em angústias para os antimodernos. É no interior desse grupo de pressão que também emerge o papel mais visível de Sigaud na condução dos trabalhos, ao ser escolhido – ou se impor – como seu secretário:
[…] os indícios advindos dos arquivos de Sigaud dão a entender que o Grupo de pressão se institucionaliza em outubro de 1964, a partir de algumas iniciativas encabeçadas por Sigaud como a compra de uma impressora rotativa offset, a organização sistemática de reuniões, e a escolha de um porta-voz com o estatus de cardeal, escolha que recaiu sobre o arcebispo de Manila, cardeal Santos (p. 181).A partir do grupo constituído e da conexão com outras redes tradicionalistas, como o ROC (Romana Colloquia), definem-se as bases de sua atuação, bem como o poder de pressão que terá, tanto nos bastidores quanto nos momentos-chave de deliberação dos “esquemas”. A linha assumida pelo Coetus far-se-á de acordo com os seguintes princípios, que seriam defendidos no resultado final dos textos conciliares: 1) defesa do primado papal e recusa de uma gestão colegiada que pudesse colocar em risco, sobretudo, as hierarquias das igrejas locais diante de “novas teologias”, mas, principalmente, diante do avanço das Conferências Nacionais; 2) negação da liberdade religiosa e da igualdade de direitos para todas as religiões, pois somente a religião verdadeira (a católica) teria o direito de ser professada publicamente (tese defendida por Mayer); 3) manutenção da “tradição” de culpabilidade dos judeus pela morte de Jesus; 4) luta contra a renovação litúrgica, notadamente contra a introdução das línguas nacionais na liturgia da missa; 5) condenação explícita do comunismo e das doutrinas que contradiziam a razão e a experiência comum da humanidade e levavam o homem a decair em sua excelência natural.
Para os antimodernos, o Vaticano II parece ter sido visto como a oportunidade de ratificação do Vaticano I. Repensar a política da Igreja diante do mundo era uma alternativa pouco concebível. “Mundo”, nesse contexto, era uma dimensão divorciada de qualquer injunção ou influência frente à Igreja. Este princípio tendia a desfazer o pressuposto inicial de João XXIII, que desejava, ao longo do Concílio, formular uma concepção doutrinária que desse conta de ajustamentos parcimoniosos e sem rupturas, interna e externamente.
Caldeira, tomando as palavras de Paulo VI no encerramento do Concílio, ratifica a tese de que as possíveis novidades foram contidas ou ganharam a sua “justa proporção”, atendendo aos interesses de minoritários e aliancistas. Desse modo, permanece a questão sobre o aggiornamento: não foi ele mais do que um rearranjo acomodatício ou significou uma renovação excessivamente moderada que os anos de conflitos posteriores denunciariam? Talvez um pouco de cada coisa. Caldeira informa que, malgrado os esforços de Paulo VI na criação de comissões posteriores com o objetivo de preparar instruções que indicariam como aplicar, de modo concreto, o resultado dos debates conciliares, o que predominou foi a interpretação particular das correntes que se formaram, pró e contra suas normativas. Uns, denunciando os excessos, outros, desejosos de avançar no sentido de um “cristianismo de libertação” e dialético. Quanto aos antimodernos, como nota Caldeira, houve o afastamento progressivo de Sigaud em relação a Lefebvre e Mayer. O bispo de Diamantina passou a discordar do radicalismo negativo de ambos, o que teria encaminhado as teses tradicionalistas à marginalidade.
Por causa dessa radicalidade, que chegou ao extremo na década de 80 do século XX com as excomunhões de Lefebvre e Mayer, o autor conclui:
Os grupos conservadores tornaram-se, no imediato pós-Concílio, sempre mais marginais na geografia eclesial, principalmente no Brasil, no qual o avanço de um ‘cristianismo de libertação’, ligado claramente às posições marxistas, levou a Igreja brasileira a ser considerada uma das mais progressistas do mundo (p. 249).
O estudo de Caldeira reafirma a persistência de um estado de crise reconhecido pelo atual papa (Bento XVI) ao declarar que tal estado deve-se, em muito, “à hermenêutica que privilegia a noção de ruptura do evento Conciliar” (p. 250). De fato, o catolicismo é um mundo em crise e, apesar de sua pretensão de homogeneidade, o que permanece do Vaticano II parece configurar um duplo dilema: conciliar a antítese tradição-progresso como tema central da história de uma Igreja católica imersa na modernidade; questionar em que medida existe renovação, ou há vontade de renovação, na Igreja, levando-se em conta o risco de uma ruptura.
Marcos Gonçalves – Doutor em História – Professor Adjunto da Universidade Estadual do Paraná – Campus Paranaguá. Rua Comendador Correia Júnior, 117 – CEP 83203-280 – Paranaguá/PR, E-mail: paideia_mg@yahoo.com.br.