Clichês baratos: Sexo e humor na imprensa ilustrada carioca do início do século XX | Cristiana Schettini

Cristiana Schettini
Cristiana Schettini | Imagem: Café História

Como se dava a relação da sociedade carioca da Primeira República com as questões sexuais? Quais eram as possibilidades para o consumo do erótico em uma cidade recém-saída da escravidão, com um novo regime político cuja ideia de modernidade estava presente nos discursos de diferentes grupos sociais? E por fim, o que uma investigação das sociabilidades noturnas masculinas pode revelar sobre o modo pelo qual homens e mulheres negociavam hierarquias sociais e morais no Rio de Janeiro? O livro Clichês Baratos: Sexo e humor na imprensa ilustrada carioca do início do século XX, de Cristiana Schettini, busca justamente examinar as conexões entre o processo de mercantilização das diversões, a sociabilidade noturna, o humor e a sexualidade.

A maneira como as pessoas se divertiam já vem sendo interesse de pesquisas de história social desde as décadas de 1970 e 1980, quando se aproximaram os diálogos entre a Antropologia e a História. Trabalhos sobre o carnaval, as festividades religiosas, o teatro e outras formas de sociabilidade vêm trazendo para a historiografia novas contribuições para se entender as disputas políticas e sociais no país. Trabalhos como o de Cristiana Schettini têm sido fundamentais para a compreensão de quais fantasias e desejos sexuais ocupavam um lugar essencial na vida noturna do Rio de Janeiro do início do século XX. Leia Mais

Néstor Perlongher: memórias, poéticas e espacialidades desejantes/ Cadernos Pagu/2022

O dossiê que, para a nossa felicidade, trazemos neste número 66 dos cadernos pagu responde a um tempo que, acreditamos, precisa ser notado. Ocorre que, no dia 26 de novembro deste ano de 2022, completam-se 30 anos do falecimento do antropólogo, poeta e militante argentino Néstor Perlongher. Sua dissertação em Antropologia Social, defendida em 1986 e orientada por Mariza Corrêa, uma das fundadoras do Núcleo de Estudos de Gênero Pagu (Unicamp), completará, em breve, 35 anos. Notar o tempo de Néstor e de uma obra que marcou profundamente as trajetórias intelectuais e artísticas de tantas pessoas é convertê-los em oportunidade de futuro. Leia Mais

Mulheres brasileiras migrantes: a des/re/construção do(s) corpo(s) | Cadernos Pagu | 2021

Trilhando o caminho

A estrutura da apresentação deste dossiê foge um pouco à regra e começa com uma sessão de agradecimentos.

Um agradecimento ao comitê editorial da cadernos pagu que, em meados do ano de 2020, quando a vida como conhecíamos já havia sido inteiramente desestruturada pelo invisível coronavírus, encontrou tempo para analisar nossa proposta de dossiê e aceitou este ousado desafio. Em meio a uma pandemia que forçou a suspensão de quase todas as formas de mobilidade, os artigos publicados neste número analisam a experiência migratória das mulheres brasileiras por meio de abordagens absolutamente originais e inovadoras. Não poderia ser mais oportuno pensar movimento e experiências transfronteiriças de mulheres brasileiras em um momento em que vivíamos a patologização da mobilidade tida como principal meio de propagação do vírus e quando muitas vozes anunciavam o fim ‘do paradigma da mobilidade’ ( Cresswell, 2020 ; Lin; Yeoh, 2021 ). Os artigos aqui reunidos mostram como o(s) corpo(s) das mulheres categorizadas pela nacionalidade brasileira está(ão) sempre em movimento e ocupa(m) uma posição central em suas trajetórias migratórias.

Um agradecimento também as revisoras e revisores que contribuíram anonimamente para garantir a qualidade deste dossiê. O trabalho de revisão de artigos é um espaço fundamental de diálogo com as autoras e autores, que oferece pistas e questões valiosas para pensar os problemas propostos. A apreciação anônima de artigos é um exemplo concreto do caráter inerentemente coletivo da produção de conhecimento. Não é necessariamente a mais prazerosa das atividades académicas, entretanto, posto que quase nunca recebe o devido reconhecimento público.

No contexto de pressão extenuante da academia neoliberal por ‘produtividade’, a pandemia agravou a precariedade das condições de trabalho com as demandas de aulas remotas, de conteúdos para as plataformas de educação a distância, de adaptações para a conclusão de trabalhos de campos, dentre outras. O aumento do trabalho doméstico e de cuidado tornou o tempo já escasso ainda mais valioso, requerendo uma escolha cuidadosa dos compromissos a serem assumidos. A contribuição dos avaliadores em meio a esse contexto tornou-se, portanto, inestimável.

Um último agradecimento volta no tempo, mais precisamente ao ano de 2019 quando, apesar de as fronteiras não estarem igualmente abertas a todos os corpos, alguns espaços acadêmicos configuravam-se como encontros de diversidade. À Beatriz Padilla, com quem organizei o painel Brazilian emigration: what you know and what it is new about no Congresso da Associação de Estudos Latino Americanos (LASA). À Tamaki Watari e Nádia Luna Treillard, que no mesmo ano organizaram a sessão Quando migrantes femininas (re)encontram o(s) “corpo(s) brasileiro(s): os casos da Europa, do Japão e do Brasil no Congresso da Associação de Brasilianistas na Europa (ABRE). Ambos eventos foram o início de uma colaboração feminista e transnacional entre as autoras aqui reunidas, que se mantém até os dias de hoje. Em 2021, partilhamos mais uma vez um painel conjunto no Congresso da ABRE. Muitas das questões aqui apresentadas foram discutidas e amadurecidas nesses encontros, alimentando nosso interesse em organizar o presente dossiê que não pretende oferecer conclusões ou respostas sobre a diversidade da experiência mulheres brasileiras migrantes e seu(s) corpo(s) brasileiro(s). Antes, tem como objetivo constituir-se como espaço de diálogo com um público maior.

A impressão da colonialidade no(s) corpo(s) brasileiro(s) das mulheres brasileiras imigrantes

As trajetórias e vivências transfronteiriças e transnacionais de mulheres brasileiras têm sido objeto de crescentes estudos nacionais ( Carpenedo; Nardi, 2017 ; De Oliveira Assis, 2014 ; Escudero, 2016 ; Fleischer, 2003 ; Piscitelli, 2008a, 2008a; Piscitelli; Assis; Olivar, 2011; Pontes, 2004 ) e internacionais ( Gomes, 2013 ; Lidola, 2015 ; Lucchese Et Al., 2021 ; Mcdonnell; Lourenço, 2009 ; Mcilwaine; Evans, 2020 ; Messias, 2002 ; Padilla; França, 2015 ; Watarai, 2014 ). Tal multiplicidade de interesses dá-se tanto pelo seu aumento exponencial e a diversificação de destinos, bem como pela complexidade de sentidos, materialidade e significados. De maneira geral, a literatura existente tem se dedicado largamente, em nível macro, aos processos de constituição e direcionalidade dos fluxos migratórios, inserção e/ou precarização laboral, acolhimentos, cidadania, (ir)regularidades e acesso à saúde, por exemplo. Em perspectivas mais contextuais, e complementares, muito do debate acadêmico tem se voltado à questões acerca de processos identitários, afetos, racialização e sexualização, agências, entre outros.

A migração das mulheres brasileiras, para além de um e deslocamento geográfico, é um fenômeno social atravessado por clivagens de gênero, classe, raça. Como em outras dinâmicas societais, tais clivagens organizam de forma particular as experiências dessas mulheres, forçando negociações constantes sobre suas identidades/identificações e seu(s) corpo(s) brasileiro(s) tanto nos países de origem quanto nos de destino ( Donato et al., 2006 ; Hondagneu-Sotelo, 2011 ).

Devido à posição subalterna nas matrizes de relação de poder, em suas trajetórias migratórias, as mulheres brasileiras vivenciam intensas convergências de processos de estigmatização, sexualização e racialização que moldam suas experiências e subjetivações corporais (Piscitelli, 2008b). Interseccionalidade e colonialidade, portanto, apresentam-se como conceitos-chave para pensar as experiências migratórias dessas mulheres em contextos de múltiplos sistemas de poder e hierarquias ( Carneiro, 2003 ; Crenshaw, 1991 ; González, 1984 ; Lugones, 2008 ; Paredes, 2008 ). Como Mahler e Pessar (2001) afirmam, a imigração de mulheres implica não apenas um deslocamento geográfico, mas engloba também continuas práticas e discursos de negociação de posições em diferentes níveis das matrizes de poder que moldam a experiência de atravessamento das fronteiras.

Os debates decoloniais têm produzido desafiadoras chaves analíticas na problematização da colonialidade resultante do binómio colonialismo-modernidade materializada em assimetrias geopolíticas, econômicas e culturais de dominação e hierarquização dos sujeitos ( Quijano, 1992 ). Lugones (2008) avança nessas discussões, revelando que a colonialidade de gênero, como um dispositivo de dominação, impôs uma visão hegemônica e eurocêntrica dos atributos que categorizam as mulheres do Sul Global como seres subalternos e inferiores. A autora argumento que a colonialidade de gênero localiza as “mulheres do Sul Global” como sendo corpos exóticos e sexualmente disponíveis, objetificando-os em função do prazer dos homens das metrópoles ( Cusicanqui, 2010 ; Lugones, 2008 ).

A essas dinâmicas de sexualização estão intrincados, também, processos de racialização que, como uma herança da história colonial, forjaram diferenças e distinções, as quais ordenaram a humanidade em categorias posteriormente convertidas em hierarquias ( Ahmed, 2000 ). Essa prática anexou uma identidade racial aos corpos dos sujeitos das colônias investida de significados pré-determinados, transformando-os em corpos racializados ( Ahmed, 2015 ). A racialização das mulheres das colônias deu-se, portanto, como uma experiência intrinsecamente corpórea. O dispositivo saber-poder colonial uniu a identidade das mulheres ao seu corpo ( Ahmed, 2015 ). Aos corpos das mulheres das colônias, assim, associou-se uma identidade racial sexualizada. A medida em que a colonialidade de gênero e a racialização passaram a definir os corpos das mulheres das colônias, foram também sendo empreendidas dinâmicas de inferiorização e subalternização delas em relação às mulheres brancas ( Lugones, 2008 ).

Como mulheres da ex-colônia, as brasileiras imigrantes são construídas como ‘corpo colonial’ ( Fanon, 2007 ). Um corpo racializado, libidinoso e imoral que não obedece às normas dominantes. Tendem a ser vistas, portanto, como o Outro das mulheres brancas ( Ahmed, 2000 ). Essas dinâmicas de opressão se materializam nos dias de hoje através da exotização e erotização dessas mulheres e da sua vinculação constante ao mercado do sexo, resultando em experiências de discriminação e marginalização (Piscitelli, 2008a). O(s) corpo(s) brasileiro(s) das mulheres brasileiras migrantes continua(m) submetido(s) a dispositivos de controle e disciplina construídos discursivamente pelo colonialismo e mantido pela colonialidade.

O(s) corpo(s) sexualizado(s) e racializado(s) das mulheres brasileiras em seus contextos migratórios constituiem-se como uma arena de conflitos, negociações e resistências. Elas jogam com e deslizam sobre os processos de essencialização de suas existências que traduzem e aprisionam suas identidades em um “corpo feminino brasileiro unitário” disponível sexual, afetiva e laboralmente ( Malheiros; Padilla, 2015 ; Piscitelli, 2014 ). Ressignificam os sentidos atribuídos ao(s) seu(s) corpo(s) brasileiro(s), corporificando práticas insurgentes e insubmissas. Práticas de recusa ao lugar subalterno de ‘corpo colonial’ que lhes está reservado previamente. Nesse sentido, as mulheres produzem subjetivações a partir de uma resistência combativa que desafia o discurso hegemónico e forja outras possibilidades identitárias (ver Gomes, 2013 ). As experiências migratórias das brasileiras expõem, portanto, uma multiplicidade de perspectivas de habitar o(s) corpo(s) brasileiro(s).

Ao nos referirmos a ‘corpo(s) brasileiro(s)’ nas experiências transfronteiriças e transnacional das mulheres brasileiras objetivamos refletir sobre as práticas de des/re/construção e experimentação do corpo como um corpo racializado e sexualizado. Desse modo, pensamos ‘o(s) corpo(s) brasileiro(s)’ como técnicas, modos, práticas de resistência, de interpretação, representação e ressignificação. Nas experiências migratórias das mulheres brasileiras, ‘o(s) corpo(s) brasileiro(s)’ constitui-se, simultaneamente, como experiência de opressão e de agência.

Os artigos deste dossiê

Tendo em vista as inúmeras possibilidades experimentação do(s) corpo(s) brasileiro(s) nas trajetórias e vivências transfronteiriças das mulheres brasileiras, este dossiê trata de questões como racialização, sexualização, corporalidades, feminilidades, agência, resistência, identidade(s) e masculinidades em perspectivas transnacional e interseccional, levando em conta diferentes contextos geográficos e sociais. A pluralidade de performances possíveis do(s) corpo(s) brasileiro(s) nas vivências migratórias das mulheres brasileiras que o(s) negocia(m), ressignifica(m) ou contrapõe(m) aos discursos e práticas de dominação, controle e disciplina que impede qualquer tentativa de aprisionamento em uma categoria fixa e ‘natural’. O questionamento central que guia os artigos deste dossiê se volta para os sentidos e os lugares que o(s) corpo(s) brasileiro(s) assumem nas vivências transnacionais e transfronteiriças das mulheres brasileiras. Ou seja, como essas mulheres imaginam, vivem, percebem e sentem seu(s) corpo(s) brasileiro(s) em suas trajetórias de migração. Que transformações o(s) corpo(s) brasileiro(s) experienciam? Qual potencial de agencialidade do(s) corpo(s) brasileiro(s)? Mais ainda, perguntamos como o(s) corpo(s) brasileiro(s) das mulheres brasileiras migrantes conforma(m) ou resiste(m) ao lugar que lhe é previamente reservado com base em construções imaginárias preexistentes. Qual posição assume o(s) corpo(s) brasileiro(s) nos movimentos transfronteiriços das mulheres brasileiras imigrantes e em suas negociações por pertencimento em diferentes geografias.

As experiências de ativismo feminista digital das mulheres brasileiras imigrantes em Portugal é o ponto de partida para as reflexões de Thais França e Stefanie Prange de Oliveira no artigo, Brazilian migrant women as killjoys: disclosing racism in ‘friendly’ Portugal , o qual abre este dossiê. As autoras analisam as estratégias de resistência e enfrentamento à narrativa colonial que as constroem como um corpo racializado, sexualizado e subalterno, levadas a cabo nas redes sociais por brasileiras imigrantes em Portugal. A partir dos posts publicados pelo projeto ‘Brasileiras não se calam’ no Instagram e das problematizações de Ahmed sobre a busca pela felicidade, as autoras, situam o projeto como um ‘coletivo feminista estraga prazeres (feminist killjoy)’ que desafia a falácia do mito sobre Portugal como um país tolerante à diversidade e não-racista. França e de Oliveira argumentam que, ao colocar-se como uma plataforma de denúncia aberta nas redes sociais, o projeto ‘Brasileiras não se calam’ se contrapõe ao lugar de silêncio e passividade reservado às mulheres brasileiras no país.

Ainda no contexto Europeu, Maria Lidola elege o cenário alemão para analisar as estratégias de subversão das hierarquias e estigmas que envolvem a experiência laboral das mulheres brasileiras naquele país. A partir da análise da inserção laboral das mulheres brasileiras no setor de depilação, em seu artigo Civilizando as outras: Beleza, trabalho íntimo e encontros affectivos em Brazilian Waxing Studios em Berlim , a autora analisa como o trabalho íntimo realizado nos Waxing Studios (estúdios de depilação) se constitui como muito mais do que um serviço de remoção de pelos. Lidola argumenta que as mulheres brasileiras atuam como educadoras do corpo alemão não só para uma corporalidade categorizada como mais higiênica e mais feminina, senão também para um comportamento mais humanizado com o diferente. Apesar dos limites que atravessam os relacionamentos temporários e frágeis que se dão no contexto dos Waxing Studios, Lidola argumenta que a inserção laboral das brasileiras no setor estético alemão abre espaços de agência a que essas mulheres não experienciam em outros segmentos feminizados ou etnicizados do mercado laboral.

O artigo Aprendendo a maquiar as hierarquias: corpo “ocidental” e o “oriental” nos cursos de maquiagem da comunidade brasileira no Japão , de Tamaki Watarai, leva-nos ao Japão e segue as análises sobre corpo, beleza e agência. A partir da pesquisa de campo realizada com maquiadoras brasileiras no Japão, a autora discute os processos em que o “corpo brasileiro” se apresenta como “ocidental” em comparação ao “oriental”, criando uma nova hierarquia que coloca as brasileiras em um patamar superior às japonesas. Tal constatação contraria a expectativa da hierarquia econômica existente entre os dois países, bem como das assimetrias sociais, nas quais as brasileiras se classificam como classe menos favorecida por se engajar no trabalho não qualificado no Japão. Watarai analisa como as relações entre corpo, consumo, classe social, gênero e raça possibilitam inversões de hierarquias e como isso constrói os mundos cotidianos das mulheres brasileiras no Japão.

Erica Hatugai, em seu artigo Ler, no corpo da “mestiça”, beleza, corporalidades e fronteiras no parentesco nikkey: as experiências de mulheres nipodescendentes no Brasil , continua a discutir a experiência das mulheres brasileiras no contexto japonês. Seu artigo, porém, parte das concepções de parentesco entre as famílias “japonesas” no Brasil, seguindo um estudo etnográfico realizado com imigrantes de origem japonesa e nipodescendentes de diferentes gerações da região Centro-Oeste Paulista. A autora analisa o deslocamento migratório ao longo de diferentes gerações de descendentes de imigrantes do Japão e suas concepções nativas sobre parentesco, corporalidades e o lugar das mulheres nessas famílias. Hatugai argumenta que as mulheres “mestiças” estabelecem uma ‘nova’ fronteira no parentesco e, portanto, são capazes de confrontar, com suas corporalidades, os estereótipos acerca das mulheres nipodescendentes miscigenadas e não miscigenadas.

Em um contexto e social geográfico distinto, os processos de transformações identitários subjetivos é o objeto do artigo de Ariany da Silva Villar, Dareila Sharim e Beatriz Padilla, Entre la agencia y el estigma: negociaciones identitarias de brasileñas/os en Santiago de Chile desde una perspectiva Biográfica-Interseccional. Analisando a experiência de mulheres brasileiras e homens brasileiros imigrantes no Chile, as autoras trazem uma grande contribuição para a literatura sobre imigração feminina brasileira no contexto Sul-Sul. Elas exploram como as identidades narrativas das mulheres e homens foram negociadas e produzidas entre agência e sujeição ao imaginário sobre a ‘brasilidade’, onde o corpo é o espaço destas negociações. Villa, Sharim e Padilla observam, também, que algumas mulheres brasileiras no Chile escapam ao estereótipo da “mulata”1, sendo posicionadas como “brancas”. Portanto, as autoras concluem que ao contrário do que acontece em outros contextos migratórios, o processo de racialização das brasileiras no Chile compreende também um distanciamento de algumas dessas mulheres dos estereótipos tradicionalmente associados às brasileiras.

Fechando o dossiê, está o artigo Entre o Brasil e a Europa: brasileiras negociando gênero e raça nas representações sobre “a mulher brasileira de Gláucia Assis e Sueli Siqueria. Este estudo multissiatuado investiga os processos de transnacionalização e percepção das marcas da racialização e exotização que as mulheres brasileiras vivenciam ao longo de suas experiências de imigração para Portugal, Itália e Alemanha. As autoras analisam como essas mulheres repensam seus projetos migratórios, negociam posições de gênero e, enfrentando processos de racialização, constroem outros significados para os imaginários associados à “mulher brasileira”, reiteradamente vinculados à relações de conjugalidade estabelecidas com parceiros portugueses, alemães ou italianos. O casamento para as mulheres entrevistadas foi importante para marcar a mudança nas expectativas temporais e na decisão de permanecer nos países de imigração, ao mesmo tempo em que se constituiu como um espaço de afetos e segurança.

Os envolvimentos afetivos afrontaram preconceitos de parentes e amigos, de modo que as mulheres entrevistadas foram desafiando o estigma e preconceito buscando se afastar dos estereótipos da mulher brasileira. As estratégias de enfretamento ao preconceito e discriminação que vivenciam diariamente passam pela ressignificação dos estereótipos sustentados pela colonialidade que as situam numa posição subalterna nas relações laborais, sociais e íntimas. Embora em alguns casos os processos de racialização e sexualização reforcem as assimetrias de poder no interior dessas relações, Assis e Siqueira ilustram como as trajetórias migratórias das brasileiras permitem, também, possibilidades de reposicionamento diante do estigma a que são confrontadas na sociedade de acolhida.

O conjunto dos artigos aqui reunidos mostra que pensar as trajetórias e experiências migratórias de mulheres brasileiras é refletir, obrigatoriamente, sobre as possibilidades e ambiguidades do(s) corpo(s) brasileiro(s) nessas experiências. A abordagem amplia o entendimento de que o(s) corpo(s) brasileiro(s) não conforma(m) uma categoria analítica estática e que, portanto, não pode(m) ser naturalizado(s) ou homogeneizado(s). A partir das discussões aqui apresentadas, convidamos as leitoras/autoras na continuidade das analises sobre a multiplicidade de lugares e papéis que o(s) corpo(s) brasileiro(s) pode(m) ocupar nas vivências transfronteiriças e transnacionais das mulheres brasileiras. Quiçá que os desdobramentos analíticos possam incorporar as formas por meio das quais a pandemia afetou experiências das mulheres que corporificam brasilidades em movimento.

Desejamos que a leitura das nossas reflexões seja prazerosa e estimulante!

Nota

1 Por “mulata” refiro a construção discursiva da mulher brasileira como essencialmente mestiça, dotada de uma sexualidade exacerbada. Nas palavras de Giacommini (1994:221) “A autêntica mulata brasileira revela-se, então, a mulher sedutora por excelência – sedutora porque sensual e disponível”.

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Organizadora

Thais França – Investigadora Integrada. Instituto Universitário de Lisboa (ISCTE-IUL). Centro de Investigação e Estudos de Sociologia, Lisboa, Portugal. E-mail: thais.franca@iscte-iul.pt ORCID: 0000-0003-1279-412X


Referências desta apresentação

FRANÇA, Thais. Corpo(s) em movimentos: trajetória(s) corpórea(s) de mulheres brasileiras migrantes. Cadernos Pagu. Campinas, n.63, 2021. Acessar publicação original [DR]

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Discursos humorísticos e identidad de género | Cadernos Pagu | 2021

Penelope
“Penélope e los pretendientes” | John William Waterhouse – óleo sobre lienzo – 130 x 188 cm – 1912 | Aberdeen Art Gallery and Museums (United Kingdom)

Discursos humorísticos e identidad de género incluye estudios vinculados a distintas disciplinas del saber, entre ellas filosofía, historia, sociología, lingüística, literatura (española, francesa e inglesa), arte gráfico, música, dramaturgia o redes sociales que abordan cuestiones relativas a la construcción y deconstrucción del género en el marco del sistema patriarcal desde la perspectiva del humor. Como fuente de diversión, como vía de comunicación interpersonal, como elemento de creación artística, como herramienta de denuncia social, como experiencia cognitiva de descubrimiento de realidades, como elemento catártico, como mecanismo psicológico de defensa ante la adversidad o como fórmula terapéutica para reparar traumas, el humor ha sido materia de análisis a lo largo de la historia, de especial trascendencia son los tratados al respecto de Platón y Aristóteles1 en la Grecia Clásica, de Laurent Joubert2 en el Renacimiento o de Sigmund Freud3 en el siglo XX. En la actualidad gana fuerza como objeto de estudio en muy diversos campos de investigación, muestra de ello es este monográfico, en el que las autoras analizan producciones culturales en las que se representan diferentes identidades de género a través de elementos cómicos, en ellas, el humor se emplea como recurso creativo para examinar el modo en el que se construyen, se difunden o se subvierten determinados prototipos de feminidad y masculinidad que encasillan al sujeto – limitando sus posibilidades de desarrollo personal– al tiempo que lo adscriben a una determinada posición –central-marginal, superior-inferior, dominante-subordinada–. Leia Mais

Tecnopolíticas de gênero | Cadernos Pagu | 2020

As relações entre tecnologias, gênero e ativismos contemporâneos constituem o tema central que guiou a organização do dossiê Tecnopolíticas de Gênero. Os artigos propõem desdobrar as associações entre técnicas, artefatos, tecnologias, informação, corpos e gênero. Inspiradas por uma noção aberta de técnica e de tecnologia, que incorpora e expande sua acepção restrita às tecnologias de informação e comunicação (TICs), propomos discussões que levam em conta as ações técnicas e agenciamentos de corpos, linguagens, coisas e artefatos em conexão com as diversas redes que os constituem, e as questões de gênero que emergem com esses processos.

Interessa-nos pensar e explicitar esses processos em sua dimensão tecnopolítica, seguindo a intuição de Donna Haraway (1991) ao propor o ciborgue como um mito-ficção política possível para um feminismo “de esquerda” no contexto da “informática da dominação”. Nesse sentido, importam as formas como máquinas e organismos se articulam na constituição das redes de poder, informação e comunicação. Leia Mais

Imaginações rebeldes: disputas e derivações da artepensamento feminista | Cadernos Pagu | 2020

À ideia de incerteza viva (Volz, 2016) deriva a potência do risco e da instabilidade acerca de normatizações de corpos e subjetividades. Podemos assumir isso como o circuito em que trafegam imaginações artísticas rebeldes, em que os corpos e suas performances dissidentes, desarticulados das convenções e padrões hegemônicos, travam um embate para resistir, existir, permanecer e se (re)inventar nos variados sistemas e expressões artísticas.

Diante disso, que relações produtivas podemos estabelecer entre os pares gênero/sexualidade e arte e vice-versa, ou de que forma gênero e sexualidade, como tecnologias subjetivas, imbricam em formas artísticas e essas mesmas formas artísticas nos ajudam a repensar as relações de gênero e suas interseccionalidades? Gênero, como categoria relacional, interage com outros determinantes étnico-raciais, de classe, localização e geração, o que tornam as estruturas e conjunturas nas quais interatuam essas articulações ainda mais complexas. Ao mesmo tempo, esses “atravessamentos” se dão tempo-espacialmente, constituindo processos histórico-sociais-políticos que definem as questões artísticas em tela. Leia Mais

Simone de Beauvoir | Cadernos Pagu | 2019

Há vinte anos Mariza Correa (1999) iniciava a apresentação do dossiê Simone de Beauvoir e os feminismos do século XX , publicado pela cadernos pagu , comentando que sua primeira reação foi pensar que talvez Simone não gostasse de homenagens, mas, frente à importância de sua obra, mais que as merecia.

Este dossiê parte dessa introdução, tão no estilo de Mariza e da convicção de que essa senhora, Simone de Beauvoir, continua merecendo muitas homenagens, pois sua obra multidisciplinar permite sempre novas leituras. Afinal, de fato ser mulher não é um fato da natureza e sim o resultado de uma história, como Simone reafirma em sua primeira entrevista televisiva, em 1975.1 Contudo, o maior interesse da entrevista é por ser esta a primeira em que Simone, então com 68 anos de idade, se declara inequivocamente feminista. Também é interessante notar que a própria entrevista de Simone provavelmente tinha relação com o fato de a questão da mulher ter entrado na pauta da ONU – e 1975 ter sido declarado o Ano Internacional da Mulher. No entanto, Simone, na sua modéstia, não se deu conta de que as lutas feministas que tornaram possível o Ano Internacional da Mulher resultavam, em grande medida, de sua obra teórica, especialmente de O Segundo Sexo (1949). Leia Mais

Prisões em etnografias: perspectivas de gênero | Cadernos Pagu | 2019

Nos últimos anos, um número significativo de coletâneas e dossiês sobre etnografias em prisões foram publicadas (Bandyopadhyay et alii, 2013; Drake; Earle, 2013; Jewkes, 2013, Martin et alii, 2014; Ugelvik, 2014; Drake et alii, 2015; Godoi; Mallart, 2017; Frois, 2017). Essas publicações resultam de trabalhos desenvolvidos desde diversos campos disciplinares – psicologia, sociologia, criminologia, antropologia, entre outros – e fornecem inúmeros apontamentos e ideias voltadas para o desenvolvimento analítico sobre os desafios e possibilidades de produzir pesquisas no campo prisional, tendo a etnografia como prática privilegiada no trabalho de campo (Peirano, 2014). Este dossiê é tributário das contribuições desenvolvidas pelas publicações sobre etnografias e prisões, mas por meio dos artigos aqui elencados, propomos adensar as análises ao destacar a centralidade das relações e tecnologias de gênero no trabalho de campo elaborado desde as fronteiras entre dentro e fora das prisões.

Se, dezessete anos atrás, Loïc Wacquant (2002) se perguntava sobre a ausência de pesquisas sobre prisões na era do encarceramento em massa, atualmente há uma infinidade de estudos antropológicos voltados para o campo prisional e/ou para a experiência de encarceramento. Embora os antropólogos estejam cada vez mais engajados na pesquisa prisional, pouco se escreve sobre questões epistemológicas, éticas e metodológicas específicas dos compromissos antropológicos com esse campo específico (Rhodes, 2013). Este dossiê procura abordar essa importante lacuna na literatura, olhando para além da etnografia como prática de pesquisa e propondo refletir sobre os desafios e possibilidades de realização dos estudos antropológicos situados nos e sobre os estabelecimentos prisionais. Leia Mais

Pagu | Unicamp | 1993

Pagu3

Cadernos Pagu (Campinas, 1993-), publicação quadrimestral interdisciplinar, tem como objetivo contribuir para a ampliação e o fortalecimento do campo interdisciplinar de estudos de gênero, dando visibilidade à produção realizada no Brasil e promovendo o intercâmbio de conhecimento internacional sobre a problemática. Publica artigos inéditos com contribuições científicas originais, que colaborem para a inovação teórica, metodológica e/ou agreguem conhecimento empírico inovador, e debates em torno de textos teóricos relevantes no campo dos estudos de gênero, viabilizando, assim, a difusão de conhecimentos na área e a leitura crítica da produção internacional.

Tem publicado contribuições das seguintes áreas: Antropologia, Sociologia, História, Ciência Política, Letras e Linguística, História da Ciência, Educação. Mais recentemente, também de áreas como Direito, Psicologia, Comunicação, Saúde Coletiva e Serviço Social. Estimula a publicação de artigos de diferentes áreas disciplinares, desde que estabeleçam uma discussão com as teorias de gênero e feministas, buscando articulações entre gênero e outras diferenças (raça/etnia, cultura, classe, idade/geração, sexualidade e outras). São bem-vindas contribuições em língua portuguesa, espanhola ou inglesa.

A publicação dos cadernos pagu iniciou-se em 1993 e desde então vem contribuindo para a constituição do campo de estudos de gênero no Brasil. A revista foi criada em um momento em que os estudos de gênero já contavam com alguma legitimidade acadêmica no país e a intenção era ampliar sua visibilidade, difundindo e estimulando a produção de conhecimento na área.

A criação do cadernos pagu foi resultado de mais de dois anos de leituras, pesquisas e debates, nos quais integrantes do Núcleo de Estudos de Gênero – Pagu mapeavam os avanços na produção sobre gênero e seus impasses. O primeiro número foi inteiramente redigido por integrantes do Núcleo, cujos artigos esboçavam essas inquietações. Entre o segundo e o terceiro número, a publicação redefiniu sua política editorial e, simultaneamente, abriu para contribuições de pesquisadoras/es brasileiras/os e estrangeiras/os. Para tanto, constituiu-se um corpo de pareceristas ad-hoc e foram criados o Comitê e o Conselho Editorial. A partir do quinto número, a revista contou com financiamento externo à universidade.

De fato, há dois momentos na história da publicação, visíveis em diversos aspectos da revista, que estão ligados à obtenção do apoio de diversas agências -FAPESP, FAEPEx (Fundo de Apoio ao Ensino, à Pesquisa e à Extensão, da Unicamp) e, sobretudo, CNPq, que concedeu o apoio mais relevante em termos de recursos e de continuidade a partir de 1996. Esses financiamentos foram cruciais para o crescimento da publicação, não apenas no que se refere à melhoria da qualidade gráfica e à incorporação de maior número de textos, mas também à adequação às normas editoriais, à ampliação do Conselho Editorial, ao registro em diversos indexadores nacionais e internacionais.

Periodicidade quadrimestral.

Acesso livre.

ISSN 1809 4449 (Impresso)

ISSN 0104-8333 (Online)

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