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Uma Aventura de mais de um Século. A História das Edições de Nietzsche – FORNARI (CN)
FORNARI, Maria Cristina. Uma Aventura de mais de um Século. A História das Edições de Nietzsche. Trad. Maria Elisa Bifano, São Paulo: Editora Unifesp, 2019. Resenha de: NASSER. Descoberta e redescoberta de um espólio itinerante. Cadernos Nietzsche, São Paulo, v.41 n.1 jan./abr. 2020.
O mais novo título da série Recepção, parte da coleção Sendas & Veredas, Uma Aventura de mais de um Século. A História das Edições de Nietzsche, de Maria Cristina Fornari, renomada pesquisadora e professora da Universidade de Salento, tem por objeto o destino do espólio de Nietzsche, “de suas obras e cartas, da biblioteca” e “em especial do que ficou por fazer” (p. 11). Longe de ser um enfadonho trabalho de arquivista, consiste numa trama vibrante, margeada por um meticuloso empreendimento investigativo. Fornari salienta que quis contar essa história aos moldes de um romance, sem renunciar ao “rigor científico” (p. 13)1. Essa admirável combinação de elementos é engrandecida pela competente tradução de Maria Elisa Bifano, bem como pela preciosa revisão técnica de Scarlett Marton.
O cerne da primeira parte do livro são os delitos editoriais cometidos por Elisabeth Förster-Nietzsche e seus efeitos desastrosos. Somos levados a ver, com uma impressionante riqueza de detalhes, de que forma a soeur terrible, dominada por desejos sórdidos de fama e fortuna, e cercada por pávidos cúmplices e bajuladores, se apodera da herança espiritual de Nietzsche a fim de criar um novo objeto de culto, não importando os onerosos custos morais e científicos, incluindo ocultação, falsificação e até mesmo destruição de manuscritos, cartas e livros da biblioteca pessoal.
Essa parte embaraçosa da história começa logo após o colapso de Nietzsche em Turim, quando as conversações mais ponderadas e respeitosas mantidas por Franz Overbeck e Heinrich Köselitz sobre os rumos das últimas obras do amigo e mestre, prestes a serem publicadas por Naumann, são rapidamente sucedidas pelo cenário mais caótico criado por Elisabeth. Recém-regressada da experiência malograda no Paraguai e ávida por algum tipo de compensação, ela define como a sua nova meta de vida ser a única representante de Nietzsche. Almejava ser a biógrafa, organizadora das obras completas e, até mesmo, tutora do irmão alienado, que seria levado a Weimar para ser usado como um acessório extravagante dos Arquivos Nietzsche. A última tarefa não é de imediato levada a bom termo devido à resistência colocada por Franziska, a mãe protetora que mantém o filho sob a sua custódia em Naumburg até 1897; mas Elisabeth tem melhor sorte nos outros intentos.
Após assumir o comando da organização das obras completas, destituindo um impotente Köselitz, e se ocupar mais firmemente de sua “biografia hagiográfica”, Elisabeth dá início à reunião de todo o material que Nietzsche escreveu – “cada linha era um tesouro em potencial” (p. 33) -, incluindo as missivas, tanto dele quanto dos destinatários, um tipo de atividade extenuante que dá uma ideia de sua obstinação. Todavia, Fornari deixa muito claro que esse afinco jamais foi pautado por motivações genuinamente científicas. O real intuito de Elisabeth era se beneficiar do estrondoso impacto cultural que o irmão estava provocando em vários segmentos da sociedade alemã. Dirige toda a sua energia para a elaboração da imagem de Nietzsche, um propósito estritamente propagandístico que termina por involucrar a organização das obras completas (“minha missão nas próximas décadas será a de enraizar fundo no coração do público a imagem de Nietzsche, essa figura iluminada. É isso o que me motiva a fazer as minhas publicações”, p. 36). Essa era uma finalidade inegociável. E qualquer um dos inúmeros colaboradores de Elisabeth (como Koegel, Steiner, Seidl, os irmãos Horneffer, Weiss, etc., além, naturalmente, do inconstante Köselitz, todos cautelosamente tematizados por Fornari) que colocasse objeções, ou que não estivesse suficientemente comprometido – o que significava, no geral, incapacidade em conciliar o tempo de trabalho com os manuscritos, obrigatoriamente vagaroso, com a velocidade da máquina de propaganda, tolerante com toda sorte de infidelidade filológica -, tinha invariavelmente o mesmo destino: o afastamento.
Um momento particularmente didático a esse respeito, evocado de forma estratégica no livro, é a reação de Elisabeth a um fato inusitado ocorrido em Sils-Maria, quando Nietzsche, interessado na pintura de natureza morta que uma jovem dama inglesa realizava, a aconselha a contrastar o belo com algo feio, um sapo (ou uma rã?), que ele mesmo se encarrega de capturar. Indignada com o relato, Elisabeth publica um artigo na revista Die Zukunft em que acusa o divulgador da historieta, Durisch, de transmitir uma imagem difamatória do irmão enquanto um tipo de delinquente que se diverte ao “assustar senhoras discretas e debochar delas” (p. 43). Contudo, o fato é que Elisabeth estava inteirada da veracidade do relato, visto que era de seu conhecimento a carta enviada pela mãe da pintora, Emily Flinn, para Franziska, na qual confirma o ocorrido. Portanto, como diz Bernoulli, guardião da correspondência de Overbeck, num trecho oportunamente citado por Fornari, “talvez justamente este pequeno e insignificante exemplo seja útil para abrir os olhos de muitas pessoas indulgentes demais a respeito do sistema operacional que era responsável pela produção das ‘lendas Nietzsche’” (p. 45).
A anedota funciona como um tipo de preparação para o leitor ser conduzido ao cenário mais obsceno de adulterações e violações praticadas por Elisabeth. A lista causa perplexidade:
- Destruição e falsificação, integral ou parcial, das cartas de Lou, Rée, Franziska, Overbeck, Bernhard Förster e “uma boa parte de suas próprias, dentre as quais, sem exceções aquelas dos anos de 1882-1884” (p. 51);
- Quando da publicação do oitavo volume da Grossoktavausgabe(GOA), alteração do título de O Anticristo, que teve também “quatro passagens censuradas” (p. 57);
- Constante adiamento da publicação de Ecce Homo, cujo conteúdo poderia ser prejudicial à “imagem de Nietzsche” e, ao lado de Köselitz, e mesmo de Franziska, falsificações dessa obra, “não de poucas e pequenas passagens que as edições seguintes poderiam nos devolver, mas de textos importantes, não se sabe quais, que foram ocultos e propositalmente destruídos” (p. 93);
- E, evidentemente, a fabricação de a Vontade de Potência, seguramente um dos incidentes mais conhecidos pelos nietzschianos, quando, por meio de uma perversa e inesperada parceria com Köselitz, agora Peter Gast, e sob a alegação de ter descoberto a obra perdida do irmão em prosa, que conferiria fechamento ao projeto da Transvaloração de todos os valores, agrupa aleatoriamente anotações de Nietzsche, mais diretamente na segunda edição, de 1906, “sozinha e sem ajuda científica” (p. 78).
Mas ao sair praticamente ilesa após executar tão graves infrações, sendo regularmente aclamada – recebe um doutorado honoris causa da Universidade de Iena, quatro indicações para o Nobel de literatura, é afagada por personalidades artísticas, acadêmicas e políticas, incluindo Hitler, com quem frequentemente se entretém -, é provável que Elisabeth tenha sido vítima do excesso de autoconfiança, tornando-se descuidada. Num dos momentos mais interessantes do livro, Fornari nos mostra de que modo a edição histórico-crítica (BAW), projeto editorial entabulado no começo da década de 1930, cujo intuito era reparar a reputação cada vez mais deteriorada das obras organizadas nos Arquivos, precipita o fim da farsa. Não obstante os membros da comissão científica da nova edição, Joachim Mette e Karl Schlechta, trabalharem nas anotações de Nietzsche com o consentimento de Elisabeth, em segredo, “com a discrição e aquiescência externa de um grupo de conspiradores” (p. 112), planejam desfazer as manipulações cometidas.
Apesar de terem sido publicados somente cinco volumes das obras (quatro das cartas) dos quarenta previstos, a edição BAW pode ser vista como um sinal de que o futuro será mais generoso com o espólio nietzschiano, afinal, foi “o primeiro exemplo de um trabalho científico durante a longa história dos Arquivos Nietzsche” (p. 115). Esse presságio é confirmado com o surgimento da edição organizada por Giorgio Colli e Mazzino Montinari, foco da segunda parte do livro2. Possuidores de uma jovial energia, tenacidade e zelo filológico, realizam a recuperação de documentos corrompidos, de transcrições e datações inadequadas, além de divulgarem uma grande quantidade de material inédito. Existem, por certo, pontos de contato entre as diretrizes da nova iniciativa italiana com o projeto descontinuado da edição BAW, assim como com os louváveis empreendimentos alemães do pós-guerra encabeçados por Schlechta e Erich Podach, que prosseguem engajados, de diferentes formas, com a campanha desmistificadora. Mas em virtude da persistência de imperfeições técnicas nessas realizações – “as edições de Schlechta e Podach, ao lado da (suposta) boa vontade filológica mostram limites evidentes” (p. 126) -, a autora é também bastante firme, não abrindo mão de se guiar pelo indelével corte epistemológico impresso pela edição Colli-Montinari.
A edição foi gerada como que por obra do destino. Pouco depois de assinar o contrato de uma nova tradução de Nietzsche com Einaudi em 1959, Colli é alertado por Montinari, que tinha ido a Weimar em abril de 1961 para avaliar os manuscritos, acerca da necessidade de providenciar uma nova edição, porquanto “correções de texto não seriam suficiente” (p. 139). Segue-se uma cadeia de impactantes repercussões provocadas pela audaciosa decisão de assumir o desafio, todas aclaradas por Fornari: mudança de editora (Adelphi); transferência em definitivo de Montinari para Weimar no ano de 1965, onde ficaria por nove anos; e, dentre as consequências cientificamente mais prósperas, implantação de um critério confiável de ordenação dos póstumos – cronológico ao invés do temático, outrora adotado na edição GOA – e a criação de uma nova metodologia de estudo, “em uma direção histórica e anti-metafísica, filológica e não atualizadora” (p. 150). Posteriormente, graças a Giuliano Campioni, esse método serve de estímulo para a formação da escola italiana de pesquisadores, dedicada especialmente ao estudo de fontes e à preservação e catalogação da biblioteca de Nietzsche.
Em todo o caso, as inovações contidas na edição crítica enfrentam uma recepção relutante, ao contrário do que se poderia supor. A começar pela prenunciada indisposição de nomes importantes da pesquisa Nietzsche, cujas monografias eram amplamente respaldadas pela Vontade de Potência, como Karl Löwith. É por esse motivo que Colli e Montinari participam do célebre Colóquio de Royaumont munidos de um “plano de batalha” (p. 140). Mas os inconvenientes não estão circunscritos à época. No momento mais desconcertante do livro – mais até do que a exposição do caso Elisabeth -, Fornari nos coloca em contato com recentes ataques feitos por nomes conhecidos da comunidade filosófica, como Maurizio Ferraris e Domenico Losurdo. Convencidos de que a edição crítica não provoca uma significativa alteração no conteúdo de a Vontade de Potência, entendem que os resultados divulgados seriam de teor dissimulatório e que Colli e Montinari continuam vinculados ao antigo plano de canonização de Nietzsche, ainda que com outra roupagem ideológica. É possível que esse argumento falacioso tenha sido benéfico para o mercado editorial, haja vista a quantidade de reimpressões de a Vontade de Potência em vários países nas últimas décadas, inclusive no Brasil.
Embora o fantasma de Elisabeth ainda assombre, Fornari conclui o livro trazendo um panorama alentador. Nesse momento, discorre sobre os herdeiros de Colli e Montinari que em nossa atualidade promovem avanços em direção a um tratamento mais criterioso dos escritos de Nietzsche. Trata-se do Nietzsche Source, um desdobramento do HyperNietzsche. O projeto, dirigido por Paolo D’Iorio, disponibiliza “a todos os nietzschianos, a Digitale Kritische Gesamtausgabe (ou seja, a versão digital da edição Colli-Montinari das obras e das cartas), a Digitale Faksimile Gesamtausgabe (reprodução em fac-símile, embora ainda incompleta, do espólio de Nietzsche: primeiras edições das obras, manuscritos, cartas e documentos biográficos)”, além da inclusão, a ser em breve concluída, “dos volumes da biblioteca pessoal completamente digitalizados e acrescidos de comentários” (p. 183). A edição digitalizada vem também acompanhada por uma grande quantidade de correções da edição Colli-Montinari, melhorias que não passam despercebidas aos olhos do pesquisador experimentado3.
Nietzsche dizia que a obra, quando descolada do criador, passa a gozar de uma vida própria, algo que, num certo sentido, ele reafirma ao se voltar para a sua produção mesma: uma coisa sou eu, outra são meus escritos. O livro de Fornari revela que, malgrado essa apreciação, o espólio de Nietzsche conhece uma vida similar à do autor: atribulada, incerta, itinerante, enfim, aventurosa. Resta agora saber se terá um desfecho menos dramático.
Referências
CAMPIONI, G. Leggere Nietzsche. Alle origini dell’edizione critica Colli-Montinari. Con lettere e testi inediti. Pisa: ETS, 1992. [ Links ]
D’IORIO, Paolo. “The Digital Critical Edition of the Works and Letters of Nietzsche” in: The Journal of Nietzsche Studies, 40, 2010, pp. 164-74. [ Links ]
FORNARI, Maria Cristina. Uma Aventura de mais de um Século. A História das Edições de Nietzsche. Trad. Maria Elisa Bifano. São Paulo: Editora Unifesp, 2019. [ Links ]
HOFFMANN, David Marc. Zur Geschichte des Nietzsche-Archivs. Chronik, Studien und Dokumente. Berlin/New York: Walter de Gruyter, 1991. [ Links ]
HOFFMANN, David Marc. Das “Basler Nietzsche-Archiv”. Katalog der Ausstellung. Basel: Universitätsbibliothek Basel, 1993. [ Links ]
Notas
1Diferencia-se, assim, de outros empreendimentos similares, tais como os realizados por Hoffmann. Cf. Hoffmann, 1991, p. 3 – 131; 1993, p. 25 – 94. Saliente-se, ainda, que a obra de Fornari traz um aporte mais atualizado, como era de esperar.
2Cf. também: Campioni, 1992.
3A esse respeito, Cf.. Paolo D’Iorio, Paolo, 2010, pp. 164-74.
Eduardo Nasser – Professor pesquisador da Alexander von Humboldt-Stiftung na Albert-Ludwigs-Universität Freiburg, Freiburg, Alemanha. Bolsista CAPES. E-mail: eduardo.nasser@philosophie.uni-freiburg.de
Nietzsche e as cartas – DIAS; OLIVEIRA (CN)
DIAS, Rosa M.; OLIVEIRA, Marina G. de. Nietzsche e as cartas. Rio de Janeiro: Via Verita, 2019. Resenha de: COSTA, Gustavo Bezerra do N. Nietzsche por suas cartas. Cadernos Nietzsche, São Paulo, v.41 n.1 jan./abr. 2020.
Nietzsche e as cartas, coletânea organizada por Rosa Maria Dias e Marina G. de Oliveira, lançada no segundo semestre de 2019 pela Editora Via Verita, apresenta, de saída, dois importantes méritos.
Primeiramente, o fato de reunir em livro os textos apresentados no colóquio homônimo, realizado em novembro de 2017 na Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Desnecessário talvez seja dizer que da relevância desse evento, cujo sentido extrapolou o estritamente acadêmico e alcançou a esfera política, na medida em que se pôs como importante marco de resistência do corpo docente, discente e de funcionários daquela universidade ante o processo de desmantelamento imposto pelo governo estadual, que naquele período chegava a um de seus momentos mais críticos.
Não obstante esse feito por si auspicioso, colóquio e livro têm também o mérito de trazer a público ensaios de cunho biográfico e filosófico em torno do epistolário de Nietzsche1, colaborando decisivamente para preencher a lacuna decorrente da escassez de produção teórica sobre esse tema em nosso país. Não se trata, certamente, de mera ilustração ao pensamento filosófico, como se poderia aventar em abordagens com viés estruturalista ou mesmo pós-estruturalista. Ao contrário, e os textos contidos em Nietzsche e as cartas dão prova disto, o epistolário pode fornecer uma seleta matéria-prima ao exercício filosófico, mais ainda quando se trata de um pensador no qual a relação entre vida e obra se mostra tão visceral.
Além de ser o elo do andarilho Nietzsche com a família e os amigos, particularmente: Erwin Rohde, Carl Fuchs, Franz Overbeck e Heinrich Köselitz (Peter Gast), suas cartas se mostram como um exercício genuíno de reflexão filosófica. Cabe ao epistolário, assim como aos fragmentos, textos póstumos e também aos prefácios à reedição de suas obras, fornecer subsídios e indícios de teor genético à compreensão e interpretação de uma filosofia na qual o problema da gênese é intrínseco a seu próprio método. Isto, além de ser o meio adequado ao relato daquilo que em sua obra publicada – particularmente as do período intermediário e em Ecce homo – assume importância filosófica ímpar no que se refere à criação ou cultivo de si: a atenção com as coisas próximas: saúde, clima, amizades, dietética, por exemplo.
Com graus diversos de liberdade interpretativa, sem porém descurar do rigor exegético, os textos reunidos na coletânea apresentam um leque variado de abordagens em torno do epistolário de Nietzsche, ora com ênfase na cronologia, ora com acento temático. À guisa de orientação de leitura, e ainda que sob risco de esmaecer a variedade de nuances ali envolvidas, poderiam ser elencados alguns temas gerais.
As questões de método no trato com o epistolário são o mote para o texto de Fabiano de Lemos, que aponta para a necessidade de uma propedêutica à epistolografia nietzscheana como forma de mensurar seu estatuto em relação à obra. Já a aproximação, há pouco aludida, entre vida e escrita em Nietzsche, ganha destaque no belo ensaio de Clara Savelli, bem como, mais especificamente voltados ao período de elaboração de Assim falou Zaratustra, nos textos de Tiago Barros, Carla Silva e Enock Peixoto – este último, salientando um viés educativo no problema da autossuperação presente naquela obra. Também próximos a esse tema estão os escritos que abordam a relação, bastante recorrente em suas cartas, entre saúde e doença, alimentação e clima, amizade e solidão, deslocamentos e estadias. Aqui merecem menção os ensaios de Sandro Adão, Pedro Lima Filho, Lana Faya, Suyane Comar e Gabriela Alves, que abordam o tema sob perspectivas e enfoques diversos; e ainda, o texto de Rosa Dias, uma das organizadoras do livro, que traça a relação entre vida e obra em Nietzsche a partir das missivas dos períodos de estadia em Sils-Maria, onde foi concebido e delineado Assim falou Zaratustra e onde eclodiu, em agosto de 1881, o pensamento do eterno retorno.
As cartas do período de docência na Basileia, com ênfase em sua interrupção por motivos de saúde, bem como na crítica nietzschiana à burocracia e ao nivelamento imposto pelo sistema educacional alemão, são alvo, respectivamente, das abordagens de Vilmar Martins e Mariana Moreira. Já as missivas em torno da relação entre Nietzsche e Wagner são objeto da interpretação de Nilcinéia Longobuco, Marina Oliveira e Maria Helena Lisboa. Marina Oliveira, também organizadora da coletânea, toma a noção de amor fati como mote para pensar as distintas disposições de afeto suscitadas na comparação feita por Nietzsche entre a obra do compositor alemão e Carmen, ópera de Bizet. Esse ponto é também levantado na robusta interpretação de Maria Helena Lisboa sobre a amizade e o rompimento com Wagner, explorando determinadas nuances e mitigando aquilo que em uma leitura desatenta se teria como uma ruptura radical e pouco amistosa. As cartas sobre o relacionamento com Paul Rée e Lou-Salomé, por sua vez, ganham relevo no ensaio de Cristie Campello.
Chama a atenção, em uma abordagem distinta, a maneira atenta com que foram tratados nessa coletânea os prefácios de Nietzsche à reedição de suas obras, verdadeiras cartas a seus leitores, como muito bem apontam os ensaios de Joaquim Alves e de Miguel Angel de Barrenechea – este último, argutamente intitulado “Carta ao jovem Nietzsche”.
Já as cartas do período que antecede seu colapso mental, as chamadas “cartas da loucura”, ganham destaque nos textos de Alexandre Cabral, Carlos Estellita-Lins, Aparecida Duarte e José Nicolau Julião. Trata-se certamente do período mais crítico da trajetória intelectual nietzscheana, daí a importância inestimável que possuem os relatos desse período. Sob diferentes perspectivas, os três primeiros autores tratam dos temas da transgressão, despersonalização, performatividade e ressignificação da loucura a partir da escrita de si, chegando com isso a interpretações distintas, mas certamente mais potentes do que a leitura científica do estado psíquico do filósofo. Dentro dessa mesma temática, mas com abordagem diversa, está o texto de José Nicolau Julião que, partindo da missiva de Köselitz a Overbeck, traz à tona o debate ainda hoje aberto sobre a indefinição quanto ao diagnóstico do colapso.
Podem também ser ressaltadas as interpretações que, a partir das cartas e ainda que com temáticas diversas, estimulam um paralelo entre Nietzsche e outros filósofos e escritores, tais como Heidegger, Emerson, Sartre e Bishop. Aqui podem ser mencionados os textos de Kim Abreu, Tito Palmeiro, Helio Herbst e Lucrecia Corbella. Chamam ainda a atenção dois curiosos e bem-humorados ensaios. Um deles, uma bem construída carta a Nietzsche em torno do tema da ciência, redigida por Christine White. O outro, escrito com refinado grau de ironia por Rilza Barbosa, em torno dos boatos sobre o suposto encontro entre Nietzsche com D. Pedro II.
A abrangência de abordagens que aqui procuramos elencar e expor de forma sintética e talvez pouco atenta não faz certamente jus à miríade de perspectivas que caracterizam os ótimos ensaios contidos em Nietzsche e as cartas. Espera-se, contudo, que sirvam de ensejo à leitura dessa obra que, como aventamos no início, já se põe como marco nas pesquisas em torno desse instrumento ímpar de reflexão filosófica que é o epistolário de Nietzsche.
Referências
DIAS, Rosa M.; OLIVEIRA, Marina G. de (orgs.). Nietzsche e as cartas. Rio de Janeiro: Via Verita: 2019. [ Links ]
NIETZSCHE, Friedrich W. Correspondencia. Trad. esp. Luis Enrique de Santiago Guervós et. al. Madrid: Trotta, 2005-2012, 6v. [ Links ]
NIETZSCHE, Friedrich W. Sämtliche Briefe – Kritische Studienausgabe in 8 Bänden (KGB). Berlim: DTV / Walter de Gruyter, 1975-2004, 8v. [ Links ]
1A edição consolidada das cartas de Nietzsche, Sämtliche Briefe – Kritische Studienausgabe (Nietzsche, KGB, 1975-2004), é resultado de um trabalho extenso e minucioso coordenado por Giorgio Colli e Mazzino Montinari, e publicada a partir de 1975 em oito volumes por Walter de Gruyter, em parceria com a Deutscher Taschenbuch Verlag (dtv). Os textos que compõem Nietzsche e as cartas valem-se dessa edição, bem como da espanhola Correspondencia (Nietzsche, 2005-2012), organizada por Luis Enrique de Santiago Guervós, publicada entre 2005 e 2012 em seis volumes pela Editorial Trotta.
Gustavo Bezerra do N. Costa – Universidade Estadual do Ceará (UECE), Fortaleza, CE, Brasil. E-mail: arqgustavocosta@hotmail.com
Do Romantismo a Nietzsche: Rupturas e Transformações na Filosofia do século XIX – ARALDI (CN)
ARALDI, Clademir Luís. Do Romantismo a Nietzsche: Rupturas e Transformações na Filosofia do século XIX. Pelotas: Dissertatio Filosofia, 2017. Resenha de: MEIRELES, Tulipa Martins. Dos românticos a Nietzsche. Oito estudos sobre a Filosofia do século XIX. Cadernos Nietzsche, São Paulo, v.39 n.3 set./dez. 2018.
Compreendemos que o período moderno e contemporâneo da história da filosofia ocidental é permeado pelo sentimento de crise e crítica vivenciado pelo ser humano europeu no final do século XVIII e ao longo do século XIX. Nesse contexto, o indivíduo passa a perceber a si mesmo a partir do estabelecimento das novas estruturas do mundo moderno que afetam sua maneira de viver. Após o triunfo científico e a derrocada dos ideais religiosos e humanistas próprios de uma sociedade dominada pela secularização e industrialização das massas, a constituição do sentido da vida e das formas de existir encontram na criação artística, na concepção de Subjetividade, própria do Gênio, e na noção de Natureza criadora uma forma de unir o Espírito com a Natureza, a Ciência com a Arte. Essa atitude, como manifestação do sentimento e do conflito entre a interioridade inquieta e a realidade racionalizada, tanto quanto os esforços por preencher o “vazio moderno” a partir de ideais laicizados como os de progresso, razão e ciência, parece ter ocupado grande parte do pensamento dos artistas e filósofos da época, assumindo sua forma mais acabada e radical no pensamento tardio de Nietzsche1.
Em Do Romantismo a Nietzsche: Rupturas e Transformações na Filosofia do Século XIX encontramos uma seleção de estudos que oferecem um desenvolvimento para essa temática. A obra foi publicada em 2017 e constitui-se do material produzido em 2015 para a disciplina História da Filosofia Moderna e Contemporânea do curso de Licenciatura em Filosofia a Distância da Universidade Federal de Pelotas (CAPES – UAB). Ao selecionar os oito estudos que compõem essa obra e ao discutir com pensadores como Karl Löwith e Eric Hobsbawn, o autor propõe uma investigação sobre as “rupturas e transformações que se deram no âmbito da Filosofia Moderna e Contemporânea”. Essas transformações são tentativas de responder a questão: “Como a Filosofia reage ao triunfo das ciências naturais e da industrialização no século XIX?” (p. 2). Conforme expõe, o século XIX sentiu o impacto de dois importantes acontecimentos: a dupla revolução, francesa e industrial e o progresso tecnocientífico do mundo. Sua hipótese é que a dupla revolução no mundo ocidental e a consequente transformação no modo de viver das pessoas, gerou um desconforto por parte do indivíduo que sentiu o vazio deixado pela crise dos antigos valores que resultou em certo sentimento de perda do sentido da própria existência. A essa crise, a Filosofia encontrou nas noções de arte, natureza e subjetividade uma forma de conceber, pela via da arte, um caminho fecundo na direção de uma nova concepção de vida.
Nesse contexto, o Romantismo apresenta-se como uma das primeiras reações à secularização e à racionalização, propondo a criação artística e a Filosofia da arte como crítica às estruturas modernas, a partir da qual era possível ressignificar o mundo. O ímpeto revolucionário da arte e da criação artística perpassa os oito estudos propostos pelo autor, que encontra traços da atitude romântica de Schelling a Hegel, passando pelo Idealismo de Fichte e de Marx a Nietzsche, passando por Schopenhauer, Kierkegaard e o materialismo de Feuerbach. Nietzsche é apresentado como o filósofo que sustenta a crítica mais radical da modernidade. Ao anunciar a morte do Deus cristão como advento fundamental e a radicalização do niilismo moral consequente, o filósofo sustentaria a necessidade de instaurar um projeto de “transvaloração dos valores”, a partir do qual a criação de valores afirmativos da vida seriam possíveis.
O livro integra oito Capítulos e é precedido por uma Apresentação, na qual o autor expõe o tema geral, as principais problemáticas que serão tratadas e o desenvolvimento dessas questões por parte dos filósofos. A proposta dos românticos a Nietzsche torna visível tanto a crise da filosofia metafísica e moral como os novos caminhos que se abrem para a filosofia nessa época de crise e crítica da modernidade. Nelas são valorizadas as especulações românticas, assim como o reino da arte, no seio de uma época secularizada e dominada pela ciência natural. Araldi apresenta a riqueza do pensamento filosófico do século XIX, quando a modernidade passa a pensar a autossuperação de si mesma.
O capítulo 1, intitulado Os românticos e o idealismo alemão, é dividido em dois tópicos: Gênio, natureza e sentimento e Schelling e a filosofia da arte romântica. O autor apresenta o Romantismo como um movimento cultural, artístico e filosófico que pretendia através arte, do gênio artístico e criador, revolucionar todas as estruturas do mundo moderno. O Romantismo é caracterizado pelas noções de Subjetividade, próprias do gênio criador, de arte e de Natureza que se apresentavam como atitude, maneira de viver e movimento cultural e filosófico que tinham como objetivo preencher o “vazio da modernidade” a partir da união entre Espírito e Natureza. Pela arte e pela obra de arte os românticos manifestavam o caos e o desconforto que traziam dentro de si. Mesmo não sendo um movimento homogêneo, os românticos tinham em comum a busca pela “fuga da modernidade” que se dava no âmbito do refúgio em um passado remoto ou na projeção de um futuro utópico.
No contexto da “dupla revolução”, românticos como Hölderlin, Schlegel, Schelling e Schopenhauer consideravam que a Filosofia e a vida filosófica encontravam-se ameaçadas tanto pela política, como pela economia e pela ciência. Conforme Araldi, “A modernidade é marcada por abalos das estruturas religiosas, políticas e culturais tradicionais, assim como pelo pressentimento de novas formas de vida” (p. 9). Segundo ele, os românticos tinham consciência de que estavam vivendo em um período de transição para uma “nova era”.
Schelling é o considerado o principal filósofo do Romantismo, por ter construído uma Filosofia da Natureza que é também uma Filosofia da arte. Seu pensamento foi uma tentativa de unir a filosofia de dois pensadores importantes para o Romantismo: Fichte, filósofo da Subjetividade, que influenciou diretamente os românticos por ter valorizado o Espírito (Eu Absoluto) em sua Filosofia Idealista, e Goethe, através de sua concepção de Natureza criadora. Para Schelling, a Natureza possui um valor tão elevado quanto o Espírito, sendo também ela incondicionada, dinâmica e viva. O princípio originário em Schelling, como união entre Natureza e Espírito, não é, contudo, inteiramente racional e consciente, pois o Espírito não é somente razão, mas sobretudo vontade originária. Ainda que diferente de Schopenhauer, para quem a vontade é a própria origem consciente do mundo, a vontade para Schelling anseia pela consciência. A intuição estética, própria do gênio artístico, é considerada a via privilegiada para alcançar o princípio originário, pois a criação artística é o meio de tornar concreta a manifestação do Espírito. Schelling é nesse sentido considerado o pensador que traz os traços mais marcantes do Romantismo em sua Filosofia da arte, que é desenvolvida principalmente na obra Ideias para uma filosofia da natureza (1797).
O capítulo 2, intitulado De Fichte a Hegel: idealismo subjetivo e dialética especulativa, é composto por dois tópicos: Fichte e o idealismo da subjetividade e Dialética especulativa de Hegel. Segundo o autor, Fichte foi o filósofo que pretendeu unificar os antagonismos herdados da filosofia kantiana, tentando superar o dualismo entre o mundo da necessidade natural e o mundo do Espírito, da liberdade. Fichte fez a opção pela supressão de um dos termos e sustentou que o Espírito e sua interioridade eram o que havia de mais efetivo. Em sua obra Fundamento de toda Teoria da Ciência (1794) ao colocar o “Eu puro” no centro da filosofia teórica e prática, ele construiu um Idealismo da Subjetividade, que influenciou tanto o Romantismo como Hegel. Hegel, por sua vez, teria radicalizado a teoria da Subjetividade a partir da construção de uma “dialética especulativa”, na qual elaborou uma Metafísica da Subjetividade Absoluta, tendo sido o ponto culminante do Idealismo alemão.
Assim como os românticos, Hegel considerou a modernidade o momento de transição para uma época radicalmente nova, sendo o primeiro a desenvolver um conceito de modernidade propriamente filosófico. Em Fenomenologia do espírito (1807) o filósofo concebeu a filosofia como um processo histórico, sem, contudo, abdicar de pressupostos racionais e dialéticos. Assim, se Fichte está interessado pela história atemporal do Eu e Schelling pela história do mundo, da arte e dos mitos, Hegel estaria interessado pela “vida do Espírito” que ele considera um procedimento histórico no qual o Absoluto se manifestaria de maneira contínua, progressiva e racional. Sua intenção seria construir uma Filosofia da História, mostrando que o Espírito é história e que a História Universal resulta do Absoluto. No entanto, na visão do autor, Hegel não conseguiu unir satisfatoriamente os movimentos fenomenológicos com os históricos, nem sua Filosofia da História com a Filosofia do Espírito, pois ao valorizar a vida universal do conceito, Hegel teria desvalorizado as transitoriedades históricas. Seu método “dialético especulativo”, como o esforço sistemático para elaborar a primazia do Espírito diante das contradições e limitações do mundo histórico e real expôs, contudo, a miséria da filosofia idealista, e nesse momento a história entrou no período da crítica da esquerda hegeliana.
O capítulo 3, intitulado Feuerbach e a esquerda hegeliana é também apresentado em dois tópicos: Feuerbach, Hegel e a esquerda hegeliana e A crítica da religião e a antropologia. Segundo Araldi, a esquerda hegeliana considera-se a herdeira legítima da filosofia de Hegel e Feuerbach (1804-1872) é o filósofo que rompe com a “Direita hegeliana” escrevendo em 1830 a obra Pensamentos sobre a morte e a imortalidade, em que se afasta das tentativas de justificar o Estado e a Religião pela razão. Em 1839 escreve a obra Crítica da filosofia hegeliana, na qual compartilha com outros autores da esquerda hegeliana a proposta de “despotencializar a filosofia”. No entanto, Feuerbach é um filósofo recolhido demais para propor a transformação da filosofia em práxis. Ainda assim, foi um importante pensador do materialismo do século XIX, tendo construído uma filosofia como tentativa de reduzir a metafísica e a teologia à antropologia. Com essa redução o filósofo pretendia sustentar a verdadeira essência do cristianismo, que tinha como foco o indivíduo. Sua obra A essência do cristianismo, escrita em 1841, teria sido muito relevante, segundo Engels, por pelo menos dois aspectos: por seu materialismo, a partir de sua concepção de natureza; e pela crítica à religião, que teria influenciado Marx. Segundo Araldi, a antropologia de Feuerbach consiste na compreensão de que todos os resultados da religião podem ser reduzidos à essência humana, definida como Razão, Vontade e Coração.
O capítulo 4, intitulado A dialética e a práxis histórica em Marx é apresentado em três momentos: A crítica a Hegel: a miséria da filosofia, A dialética como práxis histórica e Fim da Filosofia, Fim da História? Do círculo dos jovens hegelianos de esquerda, Marx foi o pensador que mais se destacou ao propor a superação da Filosofia a partir de uma crítica da sociedade inseparável da práxis revolucionária. Segundo o autor, a crítica de Marx a Hegel se dá pelo caráter abstrato atribuído ao homem. Hegel concebe a essência do homem como autoconsciência, pensamento puro e nesse sentido, a alienação para ele, é alienação da autoconsciência. Diferentemente, para Marx, a autoconsciência é apenas um aspecto da natureza humana e seu interesse é investigar a “alienação efetiva”. Desse ponto de vista, a dialética para ele consistiria no esforço em recuperar as forças essenciais do homem, que foram alienadas, e nasceram para a objetivação, concebendo o homem como ser objetivo e natural. Com relação a sua práxis histórica, o jovem hegeliano propôs uma Filosofia como “crítica interventora”, na qual concebeu a possibilidade de transformar a práxis histórica, política e social a partir da tomada de consciência do sujeito humano, em meio às tensões da sociedade. Para ele, esse caminho da sociedade culminaria no “comunismo”. O que move o processo histórico, em sua concepção, são as próprias capacidades dos seres humanos: a produção, o trabalho e a práxis social.
O capítulo 5, intitulado Schopenhauer, o pessimismo e o valor da vida, é exposto a partir de três tópicos: O pessimismo na juventude de Schopenhauer, O Pessimismo e a sabedoria dos Antigos e A vontade de viver, o ascetismo e o Nada. Nesse capítulo o autor sustenta que o tema do pessimismo esteve presente no pensamento de Schopenhauer desde sua juventude. Ainda que não tenha sido uma invenção sua, pois o pessimismo já estava presente na Antiguidade, tanto na filosofia como nas religiões, o pensamento de Schopenhauer é considerado ‘a forma mais acabada de pessimismo’. O filósofo pretendeu construir uma metafísica maior, ‘verdadeira’, que é também uma arte da vida, assente na ascética, sendo esta a proposta de uma “arte de viver pessimista” e afirmativa.
Em O mundo como vontade e representação Schopenhauer desenvolve sua “Verdadeira metafísica” que considera a vontade como o que há de mais essencial e originário, ela é a “coisa em si”. Para ele, o mundo dos fenômenos possui em relação ao mundo da representação uma preocupação prática, ética e ascética, que torna difícil justificar uma separação entre o mundo e a vontade. Enquanto “coisa em si”, a vontade é a essência do próprio fenômeno, mas ao mesmo tempo em que é independente, ela penetra no mundo para poder se manifestar. Para ele a vontade, ao se manifestar, abre a possibilidade para a “autorredenção”. A proposta do filósofo é conceber uma vontade que seja capaz de alterar o próprio querer e assim negar a vontade de viver.
Para ele, a vida é um constante necessitar e o homem é a manifestação concreta do querer que busca incessantemente saciar suas necessidades e logo após é conduzido ao tédio e à dor. A vontade de querer viver é nesse sentido negativa e consiste na passagem para o “nada”. Sua perspectiva sobre a vida ocorre, portanto, a partir da recusa no núcleo da vida e do vivente, no sentido de elevar-se acima do querer. Essa perspectiva é “relativa e fugaz”, proveniente de um indivíduo que a partir de si, se volta contra os instintos de dentro e de fora de si. Nesse movimento ele pode retornar a si transformado, mas nunca abandona completamente seu ser. A forma mais eficiente de arrancar-se dessa existência, para Schopenhauer, está no âmbito da ascese, mas também da arte e da ética. Assim, em meio às esperanças revolucionárias do século XIX, Schopenhauer quer livrar-se das paixões da vida e das ilusões modernas a partir de uma “arte pessimista de ser feliz”. Segundo o autor, o pessimista teria sido um dos primeiros a criticar o pensamento idealista de Hegel, por não considerar a efetividade do mundo, os sofrimentos do mundo, que ele compreendia como vontade e representação.
O capítulo 6, de título Kierkegaard: o indivíduo, o desespero e a fé cristã é constituído também por três seções: Kierkegaard e seu tempo, Da estética para a ética: por que Don Juan e Abraão se desesperam? E A doença para a morte. Segundo o autor, o filósofo dinamarquês buscou a superação da filosofia na religião, na fé e no desespero, a partir da estética e da ética. Para ele, o indivíduo decidido a si mesmo só poderia superar o desespero da existência no confronto com Deus. No contexto da existência transitória e angustiante da vida moderna, Kierkegaard sustentou que o indivíduo experimenta possibilidades de liberdade que o levam ao desespero. A angústia está na base da subjetividade própria do ser humano, tanto no estágio estético em que o indivíduo se depara com toda a transitoriedade da vida, como no estágio ético, em que se defronta com seu “eu mais próprio”, não podendo se furtar de assumir a tarefa de sua existência. O desespero, enquanto aspecto abstrato, pode ser considerado em Kierkegaard uma vantagem do ser humano em relação aos outros animais, mas pode também ser visto, como uma das “piores misérias”. Para ele é somente pela fé cristã que o homem consegue elevar-se acima do desespero, consistindo no ápice do desenvolvimento espiritual do ser humano. Contudo, segundo Araldi, o pensamento de Kierkegaard apresenta um paradoxo filosoficamente desafiador, a partir da concepção de um indivíduo único, como um Si-mesmo, que se eleva diante de Deus.
O capítulo 7, intitulado O positivismo e as ciências no século XIX, apresenta a importância filosófica do positivismo do século XIX com relação as ciências naturais que se consolidavam em todas as esferas da vida humana, em duas seções: Auguste Comte: a física social e a lei dos três estados e Spencer e o positivismo evolucionista. O positivismo de Comte é considerado a expressão do triunfo das ciências naturais no século XIX e também signo de uma nova mentalidade cientificista que tinha pretensão de torna-se a “nova religião”. A partir de sua “física social”, Comte pretendia compatibilizar a visão humanista com os progressos científicos, mas acabou em uma visão dogmática. Spencer por seu lado, pretendia compatibilizar as aspirações humanas e morais com o pensamento científico a partir de uma ciência moral e social, pela fisiologia. Nesse capítulo vemos os esforços da filosofia para preencher o vácuo da modernidade através da compatibilização com o progresso científico. Será, contudo, com Nietzsche que essas ideias encontrarão uma radicalização mais acentuada e à filosofia ficará a tarefa de “criar novos valores”, como tentativa de unir a ciência com a arte.
O capítulo 8, intitulado Nietzsche: a crítica da moral e a filosofia do futuro, é constituído por cinco tópicos: As três transmutações do Espírito, A crítica da moral em Humano, demasiado humano, A crítica da modernidade em Além do bem e do mal, A genealogia da moral e A criação de novos valores e a filosofia do futuro. Nesse capítulo, o autor apresenta os aspectos críticos e criativos do pensamento de Nietzsche, que busca ir além da modernidade ocidental, não só na moral, mas na metafísica e na religião. A partir da ênfase na tarefa afirmativa deixada à filosofia do futuro, como tentativa de compatibilizar a ciência com a “ética-estética”, encontramos nesse capítulo um dos projetos mais ambiciosos do século XIX para superar a crise dos valores.
A partir da exposição sobre Das três transmutações, discurso presente em Assim falou Zaratustra, o autor apresenta a tentativa ali presente de “abarcar todo o movimento do espírito humano, da vida do próprio Nietzsche e da história da filosofia ocidental” (p. 117). Segundo Araldi, estaria na base do pensamento de Nietzsche a ideia de uma “transmutação radical” na qual o indivíduo, livre dos valores transcendentes, buscaria ultrapassar a si mesmo para criar novos valores.
Através da criação da Filosofia do Espírito Livre, presente na segunda fase do pensamento de Nietzsche, o filósofo buscaria libertar-se dos mestres Schopenhauer e Wagner, que até então marcavam seu pensamento, buscando refúgio na ciência, no filosofar histórico, no positivismo e na psicologia moral de Paul Rée. A proposta de uma ‘história efetiva da moral’ teria sido realizada nas últimas décadas do século XIX, momento no qual Nietzsche compartilha com Paul Rée a derivação dos sentimentos morais a partir dos sentimentos de prazer e desprazer. Perspectiva que irá mudar na fase tardia, com o desenvolvimento da doutrina da vontade de potência que passa a ser o novo critério para a avaliação dos valores morais.
Em Além do bem e do mal, obra do período tardio do pensamento nietzschiano, a história natural da moral ganharia um novo desenvolvimento a partir do método de análise genealógico. Para Nietzsche, a vontade de potência foi o critério utilizado para criticar não só os valores morais tradicionais, mas também para estabelecer novos e construir uma tipologia da moral, que definiu dois tipos de moral: uma afirmativa, proveniente da moral dos senhores, e uma moral negativa, proveniente da moral dos escravos. O projeto de naturalizar a moral em Além do bem e do mal encontra, contudo, lacunas que Nietzsche irá tentar preencher em Genealogia da moral. Mas essa obra também não esgota o estudo sobre a história da moral e suas consequências niilistas, deixando a promessa para um estudo que estaria por vir: A vontade de potência que, no entanto, não fora concluída.
Ao distinguir o surgimento de dois tipos de moral, a moral dos senhores e a moral dos escravos, o genealogista mostra que no tipo nobre, o valor de bom, se refere ao que provém dos instintos fortes da vida. Em oposição, ruim, é tudo aquilo que é desprezível e fraco em relação ao nobre, que é forte. Para o tipo de homem da moral escrava a moral nasce a partir da forma de valorar do fraco: o bom é tudo que se opõe ao nobre, guerreiro, forte e dominador, que é considerado mau na moral escrava. Nietzsche compreende a forma de valorar do sacerdote ascético nos seguintes termos: “Ao ‘dizer-não’ para o odiado nobre, ao voltar-se para fora de sua existência malograda, o sacerdote propriamente não cria, mas inverte valores” (p. 129). A história da moral teria sido assim, dominada por essa inversão dos valores. Para ele, se a moral escrava triunfa é a partir da negação dos instintos afirmativos da vida, considerados bons na moral dos fortes. A análise genealógica, nesse sentido, apontaria a fonte moral não só da verdade e da religião, mas da metafísica e da ciência.
Conforme o autor apresenta, no período tardio das obras de Nietzsche, entre 1885-1888, o filósofo insere o caráter artístico no procedimento de criação de valores. Para Nietzsche, a moral poderia ser justificada como fenômeno estético, na medida em que os juízos e valores morais teriam origem em percepções estéticas, sem o suporte das oposições metafísicas. O projeto de reduzir a moral à estética, presente nos escritos tardios, deveria, contudo, ser questionado. Segundo o autor, esse projeto está no âmbito do indivíduo singular que se colocaria para além do período moral da humanidade. Para Nietzsche, o indivíduo soberano é aquele que, liberado da moralidade dos costumes, é igual apenas a si mesmo. O indivíduo soberano, considerado um indivíduo singular e autônomo, estaria no final do processo da história universal da moral. Ele encontrar-se-ia, portanto, no período “extramoral”, cuja condição é a naturalização do homem, que se torna possível através da investigação genealógica-histórica da moral. Para Nietzsche, a própria moralidade revelaria a imoralidade reinante tanto na natureza como na história.
Para o autor, Nietzsche seria precursor de uma “nova filosofia afirmativa”, como intenção de superar a moralidade consolidada no homem moderno. No entanto, teria se restringido a investigar criticamente a história natural da moral e lançado à filosofia do futuro a tarefa de afirmar a si mesmo pela via ético-estética – que consiste na sua tentativa de romper com a crise do mundo moderno. Segundo Araldi, é somente pela arte que a existência pode ser afirmada para Nietzsche. E para propor valores não-morais, como uma arte afirmativa de si mesmo, o homem precisa se liberar dos velhos valores herdados da tradição europeia. E nesse sentido, o projeto de naturalizar a moral, auxiliaria na tarefa deixada aos filósofos do futuro.
Ao final de sua trajetória Do Romantismo a Nietzsche, o autor deixa o questionamento: “Num mundo dominado pelas ciências, o que resta para a filosofia?” (p. 136). Esse questionamento encontra ao longo dos estudos selecionados por Clademir Araldi o seguinte desenvolvimento: a filosofia do século XIX buscou na união tanto do Espírito com a Natureza como da Arte com a ciência uma maneira de reagir ao vazio deixado na modernidade. Por meio desses estudos recentes, compreendemos que o filósofo alemão descreveu o espírito moderno a partir do niilismo moral, enquanto um processo que encontra aí sua forma mais radical. Esse sentido já estava presente em seu trabalho anterior Para uma caracterização do niilismo na obra tardia de Nietzsche (1998), a partir da qual percebemos que a criação de novos valores como forma de conceber uma maneira de viver afirmativa torna-se necessária. Em Do romantismo a Nietzsche o autor insere tal problemática no contexto histórico da filosofia moderna e contemporânea que se apresenta como crítica mais radical a esse estado de crise já reivindicado pelos primeiros românticos.
Da subjetividade do gênio criador à tentativa de reduzir a ética à estética a partir de uma análise genealógica dos valores morais, vemos um percurso na história do pensamento ocidental que privilegia a via artística como tentativa de conceber a noção de vida, a partir de um indivíduo, que para além da moral e do progresso tecnocientífico, busca dar um sentido afirmativo à existência. Em nossa concepção, a aposta nos filósofos do futuro, enquanto criadores de novos valores, deixa, portanto, essa tarefa a ser realizada pela filosofia: a de conceber novos valores para a vida, que encontra na trajetória dos românticos a Nietzsche, como herança do ímpeto tempestuoso e ao mesmo tempo criador da modernidade, uma via significativa.
Referências
ARALDI, Clademir. Do romantismo a Nietzsche: rupturas e transformações na filosofia do século XIX. Pelotas: NEPFIL Online, 2017. [ Links ]
ARALDI, Clademir. Para uma caracterização do niilismo na obra tardia de Nietzsche. Cadernos Nietzsche, São Paulo, n. 5, p. 75-94, 1998. Disponível em: <Disponível em: http://www.gen.fflch.usp.br/sites/gen.fflch.usp.br/files/upload/cn_05_05%20Araldi.pdf >. Acesso em: 30/04/2018. [ Links ]
HOBSBAWM, Eric. A Era das revoluções: Europa 1789-1848. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1998. [ Links ]
Notas
1 Assim, percebemos que se a ideia que dominou o século XX deixou de lado a compreensão das raízes românticas do século XIX, o historiador Eric Hobsbawm em A Era das Revoluções: Europa 1789-1848 ([1998]) apreendeu diferentemente esse significado, atribuindo grande valor a Filosofia da Natureza Romântica para o século XIX, contribuindo inestimavelmente para o pensamento filosófico contemporâneo, na mesma esteira seguida por Araldi.
Tulipa Martins Meireles – Doutoranda da Universidade Federal de Pelotas, UFPEL, Pelotas, RS, Brasil. E-mail: tulipameireles@hotmail.com
Ecce Homo: a autobiografia como gênero filosófico – MURICY (CN)
MURICY, Katia. Ecce Homo: a autobiografia como gênero filosófico. Coleção Pequena Biblioteca de Ensaios, Rio de Janeiro: Zazie Edições, 2017. 39p. Resenha de: ZATTONI, Romano S. Cadernos Nietzsche, São Paulo, v.39 n.3 set./dez. 2018.
Nesse ensaio, Katia Muricy busca estabelecer uma reflexão acerca do valor filosófico de escritos de natureza autobiográfica, tomando como obra central para sua interpretação o texto nietzschiano de Ecce Homo. Trata-se do endereçamento a uma certa lacuna na pesquisa Nietzsche, no que se refere a esse texto do fim de 1888, a qual foi comumente encarada pejorativamente na recepção da obra do filósofo como um escrito de loucura.
Antes de se dedicar de forma mais direta à obra de Nietzsche, a autora engendra um pano de fundo histórico-filosófico a partir do qual é possível conceber a própria proveniência da noção de autobiografia, primeiramente como gênero literário. Trata-se de uma tarefa que se depara de início com a notável fluidez de sentido que essa espécie de texto pode demonstrar. Se tomada em seu sentido mais amplo, ou seja, como a menção de si mesmo no texto em seu nível mais ordinário, pode-se dizer que se trata de um ato que existe desde o início da escrita, contudo, sob um critério mais estreito, poderia ser compreendida como um empreendimento de autonarrativa que tem origem bem específica na Europa ocidental no século XIX, em paralelo com o que poderíamos chamar de a origem da noção contemporânea de indivíduo. Diante desse cenário, a autora toma como fio condutor para sua investigação o trabalho foucaultiano de genealogia do ato de escrita de si, sobretudo em sua relação com o fazer filosófico.1
São diversas as paradas que a autora realiza em seu traçado acerca do ato de escrita de si na história da filosofia, a começar pelas variações que a escrita de si toma nos primeiros séculos da era cristã no Ocidente, nomeadamente, os chamados hupomnêmata (anotações e memorandos para serem lidos pelo autor posteriormente) e as correspondências. Chama a atenção nesse âmbito o caráter etopoiético atribuído por Plutarco a escrita de si, no que se refere ao cuidado de si e fundação de um ethos próprio. Destaca-se também os trabalhos confessionais dos quais as Confissões de Agostinho tomam o lugar mais representativo, em uma modalidade na qual a escrita de si transfigura-se em um ato de louvor.
Na passagem para a filosofia moderna, seria possível identificar um ponto de quebra com relação ao valor filosófico da escrita de si, sobretudo no que se refere ao advento do pensamento cartesiano e as consequentes mudanças na concepção do que seria um sujeito. Com Descartes, aprofunda-se a certeza do que seria o eu da consciência, de modo que, a partir de sua existência, se fundam todas as outras certezas do espírito. Poderia-se supor que isso significaria o aumento da presença do eu no discurso filosófico, contudo, a argumentação da autora afirma justamente o contrário, pois o conceito de eu cartesiano, destilado pelo método da dúvida, estaria depurado de suas vivências que são em última instância o substrato da autobiografia. Para a autora isso se deve à retirada do corpo da cena filosófica:
Se o corpo é mera res extensa, desprovido de interesse no âmbito do pensamento, o cogito, desencarnado, é uma impossibilidade biográfica – seria o que a vida do cogito? Ficção tão improvável, da perspectiva cartesiana, quanto um relato do corpo, que só pode existir, para além do automatismo de máquina, insuflado pela consciência que detém uma incontestável autonomia, livre de qualquer condicionamento exterior. (p. 12)
Embora a autora veja no pensamento cético de Hume uma oposição ao caráter autoevidente do eu unificado, a recepção desse tema no século XIX estaria mais demarcada pela influência do pensamento de Kant. O filósofo alemão restaura a primazia do sujeito, desta vez longe da concepção de uma substância distinta, mas sim na fundação de um sujeito cognoscente, condição para a objetividade do conhecimento filosófico. O caráter não-empírico desse sujeito – um eu transcendental – manteria afastada da filosofia a dimensão da vida concreta.
De forma geral, esse é o cenário de despersonalização do exercício filosófico com o qual Nietzsche se depara, e contra o qual irá opor-se tanto teoricamente, ao afirmar que o pensamento é uma espécie de confissão pessoal do autor, quanto literariamente, ao escrever um texto autobiográfico como Ecce Homo. Para a autora, a pessoalidade seria o “testemunho de um regime de instintos do qual a filosofia é forma” (p. 14), e de acordo com sua interpretação, a presença dos instintos no exercício filosófico de Nietzsche não representa uma desvantagem ou demérito de seu pensamento, pelo contrário, é a implicação do corpo no pensamento que funda a possibilidade de transformação do próprio ethos.
Paradoxalmente, a incorporação da pessoalidade na filosofia nietzschiana representa uma desestabilização da unidade do sujeito moderno, em prol de uma hierarquia de multiplicidades instintuais, que no limite representa o próprio conceito de corpo para Nietzsche. Diante desse raciocínio, a autora realiza uma interessante aproximação com o pensamento de Montaigne, ao afirmar que esse movimento de construção da narrativa de si já estava relacionado com uma certa perda da identidade estabilizada do sujeito. Em seus ensaios, Montaigne se demonstra cético com relação ao fato de que seu eu pode ser encontrado por meio do puro discernimento. A mudança em si está sempre presente, portanto, escrever sobre si é um exercício que exige palavras rápidas, que não resistam ou se surpreendam com o acaso de encontrar-se onde não se era esperado. Nas palavras da autora, para Montaigne “o eu é uma multiplicidade de percepções cambiantes e contraditórias que exige a prontidão dessa escrita rápida para ser fixado provisoriamente nas palavras que o constituem e o dessubstancializam”. (p. 21)
Essa tese central para a autora, a de que a identidade se despedaça no exercício autobiográfico, parece encaminhar-se ao longo de seu ensaio para a proposição do que se poderia chamar de um paradoxo da autoria. Em Ecce Homo, por exemplo, por um lado há a presença constante do pronome eu, que transmite a ideia de um autor unificado, entretanto, as diversas e heterogêneas aparições e contextos desse eu implicam na ideia de que ele não pode ser previsto ou compreendido fora de transformação. De fato, a noção de eu em Ecce Homo é compreendida pela autora a partir da insígnia da ficção. Trata-se de uma construção narrativa que exprime “unificação a partir de uma exterioridade múltipla” (p. 31), e que de certa forma dissolve a dicotomia entre a estabilidade do ser e a transitoriedade do devir ao exprimi-las em simultâneo. Em última instância, é essa afirmação simultânea de ser e devir que se faz presente no subtítulo de Ecce Homo: “como tornar-se o que se é”. Em paralelo poderia-se adicionar aqui também a noção de amor fati, que poderia ser compreendida como o ato de imprimir de intenção o que foi contigente, em um ato de natureza interpretativa.
Para a autora, afirmar a multiplicidade do eu não significa compreendê-lo em uma espécie de desagregação absolutamente transitória. Trata-se de uma multiplicidade que se apresenta como organização hierárquica entre os instintos, cujas relações de domínio se referem diretamente ao que Nietzsche formula em seu conceito de “vontade de poder”. A estrutura instintual que compõe a noção de sujeito para Nietzsche se aproxima justamente ao que a autora se refere em seu ensaio como o conceito de corpo, que seria o “‘fio condutor’, a primeira forma de organização. Nele a diversidade simultaneamente se revela e se organiza sem conflitos, segundo suas necessidades e seus objetivos” (p. 33).
É nesse ponto que a autora engendra outra aproximação importante de Nietzsche com a tradição filosófica, mais precisamente com o pensamento estóico e epicurista. Trata-se da retomada do processo de escrita de si como technê tou biou, no qual a escrita – e também a leitura – se endereçam a um trabalho de elaboração das próprias vivências e de trabalho dos próprios instintos. Esse aspecto denota-se sobretudo no capítulo “Por que sou tão inteligente” de Ecce Homo, no qual alimentação, o clima, os livros, etc., são temas considerados por Nietzsche como “inconcebivelmente mais importantes do que tudo o que até agora tomou-se como importante” (EH/EH, Por que sou tão inteligente, KSA 6.295-296), ou seja, embora se tratem de “pequenas coisas” são fundamentais para o filosofar. Nas palavras de Katia Muricy, “a consideração dessa esfera do privado irá constituir não uma ética, mas uma minuciosa dietética” (p. 37). O ensaio termina de modo a afirmar o valor filosófico do escrito autobiográfico, dando ênfase ao fato de que se trata de um gênero privilegiado para a abordagem de temas relacionados ao exercício ético do “cuidado de si”.
Do ponto de vista formal, se trata de um ensaio que não se fundamenta no modus operandi estritamente acadêmico de fundamentação de hipóteses a partir de uma densa e exaustiva trama de citações, seja de artigos exegéticos ou mesmo de textos do próprio Nietzsche. As hipóteses dispostas no ensaio muitas vezes fundamentam-se na alusão à experiencia mesma de escrita de si, e não somente na interlocução com outros textos que tratam do tema; esse fato, aliado a performatividade estética do texto, possibilita outros modos de interação com o leitor, que não somente o da argumentação. A reflexão sobre a autobiografia é acompanhada da intenção literária de criação de cenários nos quais é possível imaginar Nietzsche em sua face efêmera e cotidiana, sentado na escrivaninha de sua casa, tomando seu sorvete, etc. Esse movimento literário da autora pode ser compreendido como o lançar mão de recursos ficcionais semelhantes aos utilizados por Nietzsche na construção performática de sua obra. Para além da veracidade possível desse tipo de narrativa, trata-se de um recurso muito interessante para promover justamente a atmosfera à qual o texto autobiográfico procura transmitir, qual seja: a pessoalidade na filosofia.
Referências
FOUCAULT, Michel. Dits et écrits, V. Paris: Gallimard, 1994 [ Links ]
MURICY, Katia. Ecce Homo: a autobiografia como gênero filosófico. Rio de Janeiro: Zazie Edições, 2017 [ Links ]
NIETZSCHE, Friedrich W. Ecce homo ou como alguém se torna o que é. São Paulo: Companhia das Letras, 1995 [ Links ]
Notas
1Trata-se da investigação presente no ensaio “L’Écriture de soi” presente em FOUCAULT, Michel. Dits et écrits, V. Paris: Gallimard, [1994].
Romano S. Zattoni – Doutorando em Filosofia pela UFPR, Curitiba, Paraná, RS, Brasil. E-mail: romanozattoni@gmail.com
Nietzsche y “la nueva concepción del mundo” MARTON (CN)
MARTON, Scarlett. Nietzsche y “la nueva concepción del mundo”. Córdoba: Brujas: 2017. Resenha de: PASCHOAL, Antonio Edmilson. O mundo como medida: o papel conferido por Scarlett Marton à cosmologia na interpretação da filosofia de Friedrich Nietzsche. Cadernos Nietzsche, São Paulo, v.39 n.2 maio/ago. 2018.
Com o livro Nietzsche y “la nueva concepción del mundo”, publicado pela Editorial Brujas, de Córdoba, Argentina, em 2017, 114 p., Scarlett Marton oferece à comunidade de língua espanhola uma de suas teses mais caras: a de que a filosofia de Nietzsche enuncia uma “nova visão de mundo”. A demonstração dessa tese, como se pode observar, segue um itinerário peculiar em meio ao conjunto de textos publicados e apontamentos do filósofo posteriores a 1883, o que faz do livro um comentário, ao certo, mas, acima de tudo, uma interpretação plausível e justificável da filosofia de Nietzsche a partir de possibilidades deixadas por ele em sua obra. Uma interpretação que se aplica especialmente para os escritos do filósofo posteriores a Assim falou Zaratustra.
Para nos inteirarmos dessa interpretação singular e apreendermos a tese defendida pela autora, seguiremos seus passos pelo percurso proposto, observando como se move naquele conjunto labiríntico de escritos, suas opções, sua metodologia e o modo como tece a sua argumentação, passando com sutileza do que já é conhecido entre os leitores de Nietzsche para o inusitado e inesperado. Uma argumentação que, embora enuncie desde o início o seu propósito, só o revela de fato em toda a sua complexidade e consequências nas últimas linhas do texto. No final da trilha.
Inicialmente, cabe observar que em Nietzsche y “la nueva concepción del mundo”, S. Marton se mantém fiel a alguns pontos centrais de uma interpretação geral do pensamento de Nietzsche e que já nortearam vários outros trabalhos publicados por ela em diversos idiomas. Em especial, neste livro, mantém-se coerente com a ideia de que Nietzsche não produz uma ontologia, nem constrói um pensamento nos padrões de uma metafísica, mas propõe uma cosmologia, ao modo como fazem os filósofos pré-socráticos. Uma cosmologia, ou concepção de mundo, à qual se vinculariam outros temas da obra do filósofo, como é o caso, por exemplo, de sua crítica aos valores. O detalhamento exigido pelo tema, contudo, impõe a divisão ao livro em duas partes. Uma primeira voltada especificamente ao conceito de vontade de poder e, uma segunda dedicada particularmente ao conceito de eterno retorno do mesmo. Dois conceitos que se interligam, conforme veremos, por meio da teoria das forças de Nietzsche.
O conceito de vontade de poder, conforme lembra a autora, foi exposto por Nietzsche pela primeira vez na obra publicada em Assim falou Zaratustra. Uma exposição na qual se acentua o caráter orgânico do conceito que, naquela publicação, se identifica com a vida. Já neste ponto do livro, contudo, para além do conteúdo exposto, chama a atenção do leitor o modo como a autora constrói seus argumentos. Apoiando-se nos textos publicados, nas anotações do filósofo e recorrendo às suas fontes, como é o caso dos biólogos Wilhelm Roux e William Rolph, além de manter um debate permanente com outras interpretações sobre o tema em pauta. O que permite constatar no seu trabalho a herança, tanto de um tipo de análise que remete a intérpretes clássicos como Walter Kaufmann (W. Kaufmann, 1974) quanto de uma metodologia de leitura dos escritos de Nietzsche que foi consagrada por Mazzino Montinari como “histórico filológica”. Uma metodologia que estabelece uma íntima conexão entre a obra publicada pelo filósofo e os fragmentos póstumos do período, além de colocar em relevo o papel das “fontes” utilizadas para a compreensão de seu pensamento (M. Montinari, 1997, p. 78).
Assim, apoiando-se em parte na obra publicada, em parte nos apontamentos pessoais do filósofo e também nas leituras decisivas sobre o tema feitas por ele na época em que formula sua filosofia, Marton coloca em relevo o modo como o conceito de vontade de poder se vincula, então, à ideia de vida entendida como um conflito tanto entre os seres vivos quanto entre órgãos. Um conflito no qual “as minúsculas partes de um organismo vivo, não luta(m( por prazer ou por um objetivo que seria, por exemplo, a auto conservação ou subsistência, como pensa Darwin, mas por ‘um plus de poder’ (S. Marton, p. 34)”. Em resumo, uma concepção em que a vida, entendida como vontade de poder, se pautaria por um conflito permanente, não “pela autodefesa, mas pela voracidade” (p. 40), pela superabundância.
Após o Zaratustra, embora o filósofo mantenha o uso da biologia para a construção de seus argumentos ligados ao tema, em especial nas suas anotações pessoais, o fato é que ele amplia o conceito de vontade de poder para além do universo dos seres vivos. O marco dessa mudança, que na obra publicada tem lugar especial em Além do bem e do mal, consiste em retirar aquele “traço distintivo fundamental” entre orgânico e inorgânico. A partir de então, para o filosofo, ambos, orgânico e inorgânico, participariam do mesmo princípio. Em ambos “atua [wirkt] a vontade de poder” (p. 43) que passa a compreender o mundo em sua totalidade.
A ampliação do campo de atuação do conceito de vontade de poder obriga a intérprete a se ocupar de forma mais pormenorizada da teoria das forças de Nietzsche, construída pelo filósofo, segundo ela, justamente em função da necessidade de “decifrar o modo como se efetua a passagem da matéria inerte para vida, um dos problemas fundamentas para a ciência da época” (p. 44). No âmbito dessa teoria, uma força corresponderia a um quantum de vontade, de atividade e, assim, a algo que não se distingue de sua manifestação, de seu atuar. Desse modo, nessa teoria, não haveria espaço para um sujeito operante separado daquele atuar. “A ação é tudo” (p. 49), como afirma o filósofo de forma conclusiva na sua Genealogia da moral.
Ainda no domínio dessa teoria, a relação das forças entre si, como foi visto em relação à vida, seria de uma luta permanente, na qual cada uma delas busca expandir-se até o seu limite, tornar-se mais forte. O mundo seria, assim, um complexo e tenso campo de forças em conflito por expansão, sem princípio, fim ou sujeito. O que nos recoloca no âmbito da vontade de poder, pois, nesse sentido, como ressalta a intérprete, “toda força é vontade de poder” (p. 51). Agora, porém, ao designar aquele impulso por mais poder, a vontade de poder tem também uma ampliação do ponto de vista conceitual. Ela passa a corresponder a uma “explicação do caráter intrínseco da força” (p. 52) – como uma qualidade da força. Um ponto decisivo para a interpretação da autora que, tendo por pressuposto, neste momento, tanto aquela ampliação do campo de atuação do conceito quanto a sua compreensão como uma qualidade da força, pode arriscar sua hipótese de que aquela teoria de fundo cosmológico serviria de pedra de toque para o filósofo em outras esferas de seu pensamento, como é o caso da axiologia.
Tomar o domínio dos valores a partir da perspectiva da vontade de poder significa dizer que nesse âmbito não existe qualquer critério absoluto ou tábua de preceitos pré-estabelecida, anterior à vida e às suas manifestações. Significa também considerar, assim, em última instância, como o único critério plausível para diferenciar, por exemplo, bom e ruim, a própria vida – concebida, no caso, “como vontade de poder” (p. 60). A avaliação dos valores se daria, então, pela observação do quanto eles seriam expressão da afirmação ou da negação da vida, do quanto a favoreceriam ou obstruiriam. Nesse ponto, a autora reitera que “moral, política, religião, ciência, arte, filosofia, qualquer apreciação de qualquer ordem deve ser submetida a um exame, deve passar pelo critério da vida. E a vida é vontade de poder” (p. 62). O que confirma a sua hipótese, que mencionamos no parágrafo anterior, de que a vontade de poder, enquanto uma concepção de mundo, uma cosmologia, tem precedência sobre outros campos considerados pelo filósofo. No caso, o da axiologia.
Diferentemente do que foi notado na primeira parte do livro, em que a autora – abordando o tema da vontade de poder – não parece encontrar grandes dificuldades para comprovar sua tese de que o caráter cosmológico, a “nova visão de mundo” teria um papel central na filosofia de Nietzsche, em especial nos escritos posteriores ao Zaratustra, na segunda parte – quando se volta para o tema do eterno retorno do mesmo – as dificuldades parecem se ampliar. O que faz acentuar também o caráter polêmico da obra e a maior atenção às posições contrárias. Numa sequência, o debate se ocupa, inicialmente, da tese de Nietzsche, do eterno retorno do mesmo e suas principais controvérsias e, posteriormente, da tese da autora, de que o eterno retorno, parte capital daquela “nova visão de mundo”, teria um papel decisivo na filosofia de Nietzsche.
Iniciando sua argumentação, Scarlett Marton cita um fragmento do ano de 1885, no qual se evidenciaria a correlação entre os dois conceitos, o de vontade de poder e do eterno retorno, posto que o mundo, segundo o filósofo, seria “um mar de forças” que se transforma eternamente, retorna eternamente. O vínculo entre ambas seria feito, como se evidencia naquela passagem, pela teoria das forças, que é tomada nesse contexto por seu caráter polêmico. Pela contraposição que representa em relação a algumas teorias conhecidas da época, em especial à ideia de entropia e à segunda lei da termodinâmica. Nesse sentido, é ressaltada a ideia do filósofo de que as forças seriam finitas e se correlacionariam entre si num tempo infinito, configurando um universo que não se ampliaria e nem atingiria uma finalidade, pois, se houvesse essa finalidade, com o tempo infinito e as combinações finitas entre as forças, ela já teria sido atingida.
Adentrando na polêmica, a autora explicita a posição assumida por Nietzsche, mas não se limita a defendê-la. Ao contrário, tomando como referência G. Simmel, afirma que aquela repetição pensada por Nietzsche não seria um dado necessário “a não ser que as cartas estivessem marcadas e os dados viciados” (p. 69). Mais ainda, ela evidencia que a posição cosmológica assumida por Nietzsche no debate com os físicos de sua época incorre em outro problema ainda mais sério, pois ela não apenas fecha as portas para a realização de uma finalidade última, como retira do mundo “qualquer novidade” (p. 67).
A disputa se estende também à recepção do eterno retorno na pesquisa Nietzsche. Nesse campo, a crítica da autora se volta à ênfase conferida por parte daquela recepção às “consequências psicológicas” do eterno retorno, estendendo-se também aos intérpretes que conferem à teoria circular de Nietzsche apenas um papel heurístico, que se limitaria a levar o leitor do filósofo a tomar uma posição diante da vida. Outra interpretação criticada pela autora é aquela que faz do eterno retorno um imperativo ético, próximo ao que se tem na filosofia kantiana, e que culminaria, como nos casos anteriores, mas aqui de um modo ainda mais acentuado, numa espécie de sujeito livre e responsável por suas ações. Algo totalmente contrário ao pensamento do filósofo.
O desfecho do debate com os interlocutores conduz a uma retomada do ponto nevrálgico da polêmica anterior. De que o eterno retorno não permitiria ao mundo “qualquer novidade”. Neste ponto, fica evidente que a autora não pretende ceder terreno a qualquer interpretação da teoria que venha a retirar dela justamente esse ponto terrível, o caráter determinista daquela visão de mundo que toma como uma fatalidade o fato de que tudo retorna – até mesmo o niilismo e o homem mais pequeno. Assim, se inicialmente ela parece tomar aquele determinismo como um problema, aos poucos deixará claro que ele não constitui um inconveniente para a teoria, mas é parte indispensável dela.
Nesse sentido, acompanhando o filósofo, também a intérprete não se recusa a experimentar filosoficamente o pensamento abissal em suas últimas consequências. Portanto, reafirma que não se deve tentar retirar da teoria a sua consequência determinista, mesmo quando se pretende considerar a correlação entre aquela visão de mundo e o campo dos valores. Isto porque é justamente o seu determinismo que permite a ela se apresentar como uma contraposição ao livre arbítrio e também àquelas tentativas de buscar saídas para o caráter terrível da existência em instâncias fora do mundo, no além.
É a concepção de mundo de Nietzsche que permite a ele pleitear que seus leitores voltem seus olhos para a terra e não para o além, postulando que essa vida, o instante presente como eterno. Nesses termos, rechaçar a metafísica, o recurso a uma esfera suprassensível, assim como o mecanicismo, consiste em assumir o mundo como ele é, a “amar o destino” (p. 98). O que corrobora, agora de forma conclusiva, a tese de que a visão cosmológica se antepõe à moral, pois, no âmbito dessa tese, “o ser humano” não seria o centro pensante do universo, mas “participa(ria( do destino de todas as coisas” (p. 99). O homem é parte do mundo. Pertence a ele. Como a um fatum. Assim, do mesmo modo como não temos uma posição fora da vida para julgar o valor da vida, também não teríamos, segundo a autora, uma posição fora do mundo para julgá-lo, cabendo ao homem, portanto, “conhecer o curso do mundo e entender sua natureza” (p. 101). O mundo é a medida e o homem divide com ele o seu destino. O homem não é o sujeito dos acontecimentos, mas parte do mundo. Nele se manifesta a totalidade do mundo, tanto aquela ampliação do campo de autuação do conceito.
Referências
KAUFMANN, W. Nietzsche, Philosopher, Psychologist, Anti-christ. 4. Ed. Nova York: Princeton University Press, 1974. [ Links ]
MARTON, Scarlett. Nietzsche y “la nueva concepción del mundo”. 1a ed. Córdoba: Brujas, 2017. [ Links ]
MONTINARI, M. Ler Nietzsche: O Crepúsculo dos ídolos. Trad. Ernani Chaves. In.: Cadernos Nietzsche 3, p. 77-91, 1997. [ Links ]
Antonio Edmilson Paschoal – Professor do Departamento de Filosofia da Universidade Federal do Paraná (UFPR), Curitiba, PR, Brasil. Pesquisador do CNPq. E-mail: antonio.paschoal@yahoo.com.br
A Origem dos Sentimentos Morais – RÈE (CN)
RÈE, Paul. A Origem dos Sentimentos Morais. Trad. André Itaparica e Clademir Araldi, São Paulo: Ed. da Unifesp, 2018. Resenha de: SALVIANO, Jarlee. O naturalismo moral e o pessimismo em A Origem dos Sentimentos Morais de Paul Rée. Cadernos Nietzsche, São Paulo, v.39 n.2 maio/ago. 2018.
A Coleção Sendas & Veredasvem há dezoito anos se constituindo como um dos mais importantes veículos de divulgação do pensamento de Friedrich W. Nietzsche no país, através de trabalhos de renomados especialistas (brasileiros e estrangeiros) na obra do polêmico filósofo alemão, promovendo um espaço permanente de debate filosófico sobre as mais variadas abordagens e impactos da filosofia nietzschiana. Além das séries Ensaios e Recepção, a Coleção conta agora com a série Fontes. O primeiro livro, que dá início a esta série, é a excelente tradução de André Itaparica e Clademir Araldi de A Origem dos Sentimentos Morais, de Paul Rée. Coordenada pela professora Scarlett Marton, a Coleção inaugura também, com esta tradução, sua nova casa: a Editora da Unifesp.
Paul Rée escreve o livro em 1877. De uma intensa conversação em Sorrento com o amigo Nietzsche (que conhecera no período de Basel, após a publicação de O Nascimento da Tragédia) surgiram A Origem dos Sentimentos Morais e o Humano, Demasiado Humano de Nietzsche. A amizade entre os dois foi regada ao pessimismo de Arthur Schopenhauer, de quem Rée herdou os elementos filantrópicos de sua ética. Apesar de comungar com Nietzsche, contra Schopenhauer, a proibição de qualquer fundamentação metafísica da moral, a concepção do desinteresse altruísta da ética da compaixão schopenhaueriana marcou profundamente o pensamento e a vida de Paul Rée – além do naturalismo ético de Rée, que influenciou decisivamente a genealogia nietzschiana, noutro ponto ainda poder-se-ia notar a contravenção em relação a Schopenhauer: caso fosse comprovado, o suicídio de Paul Rée (tendo em vista a rejeição schopenhaueriana do suicídio, como escapatória à sua visão trágica da vida). Com o rompimento do triângulo intelectual-amoroso entre os dois e Lou von Salomé, e após o casamento de Lou com Friedrich Carl Andreas, Rée refugia-se em sua cidade natal promovendo ações filantrópicas através do conhecimento de medicina que adquiriu após a desistência da docência em filosofia. Em Nietzsche, o doloroso dessabor em relação a Lou Salomé originou a orgiástica explosiva poesia de Assim Falou Zaratustra.
A tradução de Itaparica e Araldi oferece ao leitor uma apresentação inicial em que são apontadas, com riqueza de detalhes, as aproximações e os distanciamentos de Paul Rée e Nietzsche, em toda a obra dos dois filósofos e em relação ao ensaio traduzido; bem como uma nota biográfica, ao final, sobre Rée.
A comparação feita de início pelo autor de A Origem dos Sentimentos Morais entre o geólogo e o filósofo da moral dá a dimensão da tarefa a ser empreendida. Assim como o primeiro inicialmente “inspeciona e descreve diversas formações” e só então parte para a investigação de suas causas, também o segundo participa do mesmo esforço genealógico: parte da experiência para a origem dos conceitos éticos (como a consciência moral, liberdade, justiça, castigo, caráter etc.). Sem uma pretensão de esgotamento sistemático do assunto. Antes uma lacuna, diz ele, que um tapa-buraco.
Num estilo direto, incisivo, sem meias palavras, e com a ajuda do evolucionismo de Darwin, Paul Rée quer reduzir o fenômeno moral a causas materiais e históricas. Em relação aos conceitos de Bem [gut] e Mau [böse] o autor procura mostrar que o egoísmo e o altruísmo são inerentes à natureza humana. São inatos, heranças de “nossos ancestrais animais”. O Mau se configura em diversas atividades egoístas, em especial na preservação, satisfação sexual e vaidade. A realização dos anseios do ego, em contraposição ao altruísmo, encontra naturalmente no outro um obstáculo a ser superado. O clímax deste impulso imoral se encontra no prazer da desgraça alheia ou alegria maligna [Schadenfreude]. Por outro lado, o instinto altruísta visa ao bem-estar no outro, sua promoção, ou o afastamento do infortúnio. Do mesmo modo, a complacência [Mitfreude] objetiva tão somente a felicidade do outro. São bem visíveis aí os traços da ética da compaixão de Schopenhauer. A novidade consiste na ideia da distinção entre a compaixão altruísta (a exemplo da ação da mãe perante a dor do filho) e a compaixão egoísta: diante da dor alheia e tendo em vista que esta dor causa sofrimento num espectador, este age compassivamente, ainda que em vista da eliminação do sofrimento próprio. A motivação, portanto, não parte do outro, mas de si mesmo.
Louvável decerto, a secura da prosa de Paul Rée origina, no entanto, em alguns momentos, uma atmosfera conceitual rarefeita, como no caso da apresentação da tese schopenhaueriana sobre o altruísmo. Rée fornece, no primeiro capítulo, uma versão um tanto caricaturada do filósofo pessimista. Ele toma primeiramente como referência o pequeno e não tão expressivo ensaio Sobre a Vontade na Natureza, que trata en passant da questão ética da compaixão. E comete um grave equívoco: utilizando-se da distinção kantiana entre princípio constitutivo e regulativo, diz ser a Vontade de vida de Schopenhauer (o conceito mais importante de sua filosofia, o princípio ontológico que ele faz equivaler à Coisa em si de Kant) um conceito meramente regulativo: termo utilizado por Kant para se referir ao uso das Ideias da Razão Prática, como Deus e alma imortal. Não se pode dizer, sobre a Wille zum Leben de Schopenhauer, que devemos tomá-la ao modo do “como se”.
Enfim, interessa a Rée neste primeiro capítulo a ultrapassagem desta fundamentação metafísica do altruísmo para se chegar sem demora à concepção darwiniana e historicista dos sentimentos morais. De Darwin ele toma a tese de que em várias espécies animais (como em nossos ancestrais símios) já se manifesta o instinto de sociabilidade, que se fortaleceu através da seleção natural, e que originará o sentimento de compaixão. E é justamente este instinto, ligado à compaixão e à complacência, que dará o ritmo da seleção.
A dualidade egoísmo-altruísmo que marca a filosofia moral de Rée não o levou, contudo, a lançar mão do conceito kantiano de interesse, presente também no ambiente filosófico pós-kantiano. O seu oposto, o desinteresse, aparece timidamente em alguns capítulos, sem um maior desenvolvimento.
Na esteira de Schopenhauer e Rousseau, e contra a deontologia de Kant, o princípio da moralidade tem a ver fundamentalmente com a intersubjetividade: com a relação com o outro – a despeito dos aspectos formais do agir (o respeito pela lei moral de Kant) ou da virtude ou vício do agente moral, importa a Paul Rée a consequência (maléfica ou benéfica) da ação para o outro. Daí o aspecto utilitarista de sua ética. E neste ponto se distancia de Schopenhauer, que já é representante de uma ética da virtude (santo e monge budista), de uma doutrina do caráter metafísico inato, e se contrapõe a toda ética consequencialista.
O egoísmo (mais natural que o altruísmo), através do medo do castigo e da troca comercial, originou o Estado. O conceito de bom, de ação boa, surge através do hábito de ajuizar uma ação como boa a partir de sua utilidade: posteriormente a ação passa a ser considerada boa em si, independente da constatação imediata de sua utilidade.
A didática preocupação do autor leva-o a concluir o primeiro capítulo sobre a origem dos conceitos de Bem e Mau com um procedimento inusitado: uma compacta “síntese do primeiro capítulo” (do mesmo modo, realiza o fechamento da obra com uma “recapitulação e conclusão”).
O segundo capítulo trata da origem da consciência moral. Servindo-se de Hume e do utilitarismo de John Stuart Mill, defende que a naturalidade com que associamos o egoísmo ao mau e o altruísmo ao bem se deve a que desde tenra infância observamos, no meio social em que nos desenvolvemos, serem frequentemente louvadas as ações altruístas e censuradas as egoístas. O altruísmo e o egoísmo são inatos ao homem, mesmo no “estado de natureza”, mas o louvor ou censura, no entanto, são resultados de hábitos culturais e históricos. Caso ocorresse o contrário (louvor ao egoísmo e censura ao altruísmo) então conectaríamos naturalmente o altruísmo ao mal e o egoísmo ao bem. A sensação dolorosa, determinada por tal hábito, pela percepção de ter cometido uma má ação, e a autocensura advinda daí, constitui o remorso.
Rée faz referência, no terceiro capítulo (que trata da responsabilidade e da liberdade da Vontade), a uma série de pensadores que negariam a liberdade da vontade. Entre essas referências, está o ensaio Sobre a Liberdade da Vontade de Schopenhauer: e aqui se nota outro equívoco: na verdade Schopenhauer rejeita a ideia do livre-arbítrio, a pretensa liberdade incondicional da consciência – nele, Vontade (irracional, metafísica, livre) e arbítrio (intelectual, determinado) são coisas distintas. Chegam os dois filósofos ao mesmo determinismo, mas por vias diferentes, amparados em concepções diversas do conceito de vontade. Consequentemente, responsabilidade e castigo (ainda que necessário para a manutenção da paz através do Estado) têm também origem no hábito e na ilusão da liberdade da vontade. Rée se contrapõe a Kant, quanto à tese da responsabilidade moral aplicada não à ação, mas ao caráter inato.
Ainda no que diz respeito ao remorso, pode-se entendê-lo de dois modos: arrependimento pelo ato cometido (operari) ou pelo caráter (esse) responsável pelo ato. Em ambos a causa deste desconforto moral é o acima mencionado hábito de associação do ajuizamento (bom/mau) com a valoração (louvável/censurável). Isto se dá em vários níveis, de acordo com o indivíduo e sua formação cultural.
No quarto capítulo, Paul Rée critica o “senso de justiça” (retaliação) por também ser fundado na ilusão da liberdade da vontade. Há aí, segundo ele, o esquecimento do sentido originário e legítimo do castigo: como repreensão que visa ao impedimento futuro de más ações. Rée concorda com os preceitos utilitaristas que afirmam que os fins justificam os meios e que de dois males é legítimo a escolha do menor mal: é “racional, bom e louvável”. Mas desde que o fim de fato seja bom. Ele critica aqueles que fizeram mau uso deste preceito.
O quinto capítulo faz uma descrição (guiada pelo utilitarismo e pelo pessimismo inerentes ao ensaio) fenomenológica da vaidade, tão essencial à natureza humana quanto o egoísmo. A vaidade é inata, assim como o egoísmo, e surge como um instinto hereditário. Desejamos inevitavelmente a boa opinião por nos ser agradável, portanto útil. Como resultado, devido ao malogro constante de tal intento, temos na vida muito mais desprazer que prazer. Ou a dor, ou o tédio (quando falta o ímpeto da ambição que impulsiona ao trabalho): eis a vida.
O egoísmo e a vaidade, no entanto, são constantemente acobertados, pois, segundo a máxima utilitarista, é agradável ser considerado bom; e doloroso ser considerado mau: hipocrisia inevitável, sem a qual se tornaria impensável qualquer sociabilidade. “As palavras pacíficas que dois homens trocam entre si são apenas postos avançados dos exércitos de sentimentos hostis acampados nos seus corações”.
Boa parte desse capítulo, em que Rée trata dos sentimentos que estão na base da vaidade, como o orgulho e o ciúme (numa discussão que envolve ilações sobre diferenças de gênero controversas para os dias atuais), são compostos de modo aforismático, o que muito deve ter agradado ao amigo-leitor, Nietzsche. Enfim, é preciso notar a importância da vaidade para a existência do Estado: sem ela, este seria impossível, tendo em vista ser essencial a ambição e sentimento de honra dos governantes, advindos da vaidade.
Quanto ao progresso moral, Rée afirma que tal progresso deveria se dar ou por seleção natural (no entanto se demonstra que não se conservam os povos nos quais predomina o altruísmo); ou pelo hábito, a experiência da frequência do altruísmo (igualmente malogrado, pois ocorrem poucos casos de experiência altruísta, e não se pode aumentá-los pela educação). Entretanto, é possível ainda pensar no progresso moral: pelo patriotismo, que se constitui inicialmente de maneira xenofóbica, mas que evolui aos poucos; através do fomento dos bons costumes; e pelo fato de os homens, no decorrer do tempo, se tornarem domesticáveis.
Rée fecha o ensaio analisando a relação entre bondade e felicidade. Mostra o autor que a despeito de todos os esforços é momentânea e superficial toda satisfação. Tanto o homem bom quanto o homem mau têm seu quinhão de sofrimento, seja pelo infortúnio causado pela compaixão, no caso do primeiro, seja pelo remorso, no caso do segundo. Conclui, ao modo schopenhaueriano, que a vida é uma oscilação entre árduo sofrimento e insuportável tédio. E que o homem, pela complexidade de sua constituição nervosa, é o mais sofrível dos seres. Contudo, a moralidade ainda é tomada como essencial, pois fomenta o bem-estar dos outros.
Referências
GRUPO DE ESTUDOS NIETZSCHE. Sendas e veredas. Disponivel em: <Disponivel em: http://www.gen.fflch.usp.br/sendasveredas >. Acesso em 26/06/2018 [ Links ]
RÈE, PaulA Origem dos Sentimentos Morais. Trad. André Itaparica e Clademir Araldi. São Paulo: Ed. da Unifesp, 2018. [ Links ]
Jarlee Salviano – Professor de filosofia da Universidade Federal da Bahia (UFBA), Salvador, BA, Brasil. E-mail: jarlee.salviano@ufba.br
Borges lector de Nietzsche y Carlyle – SÁNCHEZ (CN)
SÁNCHEZ, Sergio. Borges lector de Nietzsche y Carlyle. 2 ed. Córdoba: Editora de la UNC, 2018. Resenha de: MARSON, Henrique Aparecido. Borges: duas leituras. Cadernos Nietzsche, São Paulo, v.39 n.2 maio/ago. 2018.
Em seu livro Borges lector de Nietzsche y Carlyle (2 ED. Córdoba: Editora de la UNC, 2018), o professor argentino Sergio Sánchez procura perscrutar a interpretação e o juízo de valor que Borges faz do filósofo alemão e do escritor escocês, segundo o contexto histórico em que o escritor do Rio da Prata os lê. O expediente adotado por Sánchez consiste em uma rigorosa exegese bibliográfica, – levada a cabo por meio de uma escrita que alia o rigor à clareza. Tal intuito ilumina aspectos da literatura de Borges porque, bem como seus escritos, as leituras dele são parte ineludível de sua literatura; destaque que o professor da universidade de Córdoba faz no prólogo do livro em consideração. Para tanto, a obra se articula em dois capítulos, respectivamente: um para Nietzsche; outro dedicado a Carlyle.
No capítulo em que Nietzsche é tematizado, Assim falou Zaratustra e o nazismo aparecem como mote. Sánchez desde logo deixa cristalina sua abordagem, que se afasta dos motivos filosóficos que Borges colhe do pensador de Röcken como matéria prima de sua prosa e poesia – pois é, de acordo com ele, uma seara demasiadamente explorada -, para empregar seus esforços em trazer à tona o modo pelo qual Borges leu Nietzsche de acordo com o contexto histórico e, com isso, mostrar o caráter, o valor e influência que os textos nietzschianos assumem na leitura do escritor argentino. O texto revela que Borges leu Nietzsche com atenção, pois em ensaios, resenhas de livros do filósofo para a imprensa, bem como em suas ficções, que são analisados por Sánchez, Borges externa concordâncias e discordâncias com Nietzsche. Por exemplo, critica o estilo profético adotado em Assim falou Zaratustra, porque o filósofo almejaria que sua obra fosse lida como um evangelho, ao passo que elogia a riqueza mental exibida pelo estilo cunhado em aforismo de outros escritos. Não obstante, o cerne da investigação de Sánchez reside no fato de que Borges recusa a associação que é feita entre as ideias de Nietzsche e o nacional-socialismo alemão de Hitler, lançando mão, sobretudo, dos escritos póstumos para refutar ideias antissemitas, racistas e nacionalistas que estariam nos escritos do filósofo e ensejariam a filosofia nietzschiana como precursora do nazismo. Então, o professor Sánchez esclarece que a postura política contra o fascismo, o antiautoritarismo, a refutação de posturas nacionalistas de Borges, sua condenação expressa do nazismo desde os primeiros momentos da ascensão de Hitler repercutiram no modo pelo qual leu e compreendeu Nietzsche. O trabalho do professor Sánchez também evidencia que, para Borges, o nazismo estava condenado à derrota, como se a Alemanha, a partir do nacional-socialismo, cometesse suicídio, galvanizando na história seu posto de perdedora. Além disso, toda e qualquer junção das ideias de Nietzsche ao nazismo seria fruto de uma má leitura do filósofo, como a que o personagem nazista do conto Deutsches Requiem teria feito do Zaratustra: um leitor ideológico, fanático, sem refinamentos irônicos, astutos e distanciados, que não seria capaz de entender a filosofia nietzschiana, principalmente no que concerne à ética, tema precípuo do pensamento de Nietzsche. Segundo Borges, uma ética fortemente calcada no indivíduo, e, por isso mesmo, incompatível com arroubos nacionalistas ou gregários.
A leitura que Borges faz de Carlyle desponta como objeto de investigação no segundo capítulo do livro junto ao tema do ceticismo. De acordo com o que a pesquisa de Sánchez deixa entrever, Borges, a princípio, se deslumbrou com os escritos do autor escocês devido ao seu idealismo. Porém, já mais maduro e distanciado desse primeiro contato, o escritor argentino passa a ter uma avaliação negativa de Carlyle, pois o escocês acabou por se converter numa espécie de personagem de si mesmo, imbuído de teatralidade algo afetada, perfil psicológico repudiado por Borges. A partir disso, Sánchez procura demonstrar como Borges e Carlyle são autores díspares – tal como o dogmático é o contrário do cético – devido às rígidas convicções de Carlyle, uma fé irracional e contumaz, um calvinismo exacerbado, por assim dizer, tudo subscrito por traços patéticos e violentos. Ainda nesse capítulo, considerando uma resenha que Borges escreveu para o jornal La Nacíon, sobre duas obras que versam sobre o totalitarismo (um de Bertrand Russell e outro de H. G. Wells) o tema do nazismo, dos fascismos e a ascendência intelectual desses totalitarismos é posto à baila novamente agora também vinculado à leitura que Borges faz de Carlyle. Em tal resenha, Russell teria visto em Carlyle (ao lado de Fichte) o precursor intelectual de ideias fascistas e nazistas, na medida em que seria ideologicamente irracional e “anticético”, isto é, dogmático. Contudo, Sánchez nota que, apesar de resenhar o ensaio de Russell, Borges deliberadamente deixa de comentar o fato de que Nietzsche aparece, para o filósofo inglês, como o precursor decisivo do nacional-socialismo. Isso ocorre precisamente porque, de acordo com o livro de Sánchez, Borges discordaria de Russel quanto a associar a filosofia de Nietzsche ao nazismo. Para deixar ainda mais nítida a leitura e interpretação borgianas do autor de Sartor Resartus, Sánchez também trabalha a distinção que Borges opera entre Carlyle e Ralph Waldo Emerson, escritor estadunidense que travou amizade com Carlyle. Enquanto este seria, para Borges, um autor romântico, que valoriza o sobre-humano, seus heróis são semideuses, além da supracitada postura dogmática; aquele seria um autor clássico de verve humanista, que retrata seus heróis enquanto homens de fato, com vícios e virtudes, além do que, Emerson cultivava o ceticismo, postura intelectual valorizada por Borges. Inclusive, ao final, Sánchez mostra que o escritor argentino considerou os juízos que Nietzsche emitiu em seus textos acerca de Carlyle e Emerson, detratando o primeiro e elogiando o segundo, em consonância com as leituras de Borges, o que denota que as asseverações de Nietzsche sobre Carlyle e Emerson tenham influenciado o modo pelo qual Borges os valora.
O livro de Sánchez se mostra uma obra bem cunhada, que apesar de tratar de autores diferentes, de ser dividida em dois capítulos, possui unidade e coerência em sua economia interna. Isto se dá devido a Nietzsche perpassar todo o livro, e não apenas no capítulo dedicado a considerá-lo especificamente. Talvez isso seja resultante da pesquisa que o professor Sergio Sánchez desenvolve sobre a filosofia nietzschiana. Soma-se a esse elemento de coerência outro: o contexto histórico do nazismo que acaba por reverberar nas leituras que Borges empreende tanto de Carlyle quanto de Nietzsche, associando o primeiro à ideologia totalitária de Hitler, e eximindo o segundo de ter contribuído para o surgimento do nacional-socialismo. O que, por seu turno, faz com que esta obra tenha especial interesse para os estudiosos do filósofo alemão, sobremaneira no que diz respeito à recepção que o filósofo teve na obra (e consequentemente na leitura) de Borges. Ademais, o livro tem relevância para aqueles que trabalham a literatura de Borges, uma vez que exprime, dentro da miríade de leituras que a obra borgiana abrange, como ele lia Nietzsche e Carlyle, além de deslindar, pode-se dizer, aspectos políticos da produção de Borges, algo tantas vezes negligenciado, às vezes até mesmo pelo próprio escritor argentino.
Referências
SÁNCHEZ, Sergio. Borges lector de Nietzsche y Carlyle. 2. ed. Córdoba: Editora de la UNC, 2018. [ Links ]
SÁNCHEZ, Sergio. Borges lector de Nietzsche y Carlyle. Córdoba: Editorial de la Universidad Nacional de Córdoba, 2014. [ Links ]
SÁNCHEZ, Sergio. Borges lettore di Nietzsche e Carlyle. Traduzione italiana e nota introduttiva di Giuliano Campioni. Pisa: Edizioni ETS, 2014. [ Links ]
Henrique Aparecido Marson – Professor do Instituto Federal de São Paulo (IFSP), São Paulo, SP, Brasil. E-mail: henrique.marson@gmail.com
Dicionário Nietzsche – GEN (CN)
GEN. Dicionário Nietzsche. São Paulo: Edições Loyola, 2016. Resenha de: GRAGNOLINI, Mônica. Cadernos Nietzsche, São Paulo, v.38 n.3 set./dez. 2017.
Celebramos o aparecimento do primeiro dicionário sul-americano da obra de Nietzsche. A particularidade desse dicionário é que remete principalmente às interpretações sobre Nietzsche que tem sido feitas no Brasil, e mais especificamente no âmbito do Grupo de Estudos Nietzsche, criado e dirigido por Scarlett Marton. Com isso, o dicionário é também, ao mesmo tempo, um registro dos modos como tem sido recepcionado Nietzsche em uma parte do âmbito acadêmico brasileiro.
É necessário indicar que no Brasil pululam os nietzschianos, há diferentes grupos de pesquisa e interpretação em distintas universidades, com perspectivas diversas e às vezes antagônicas. A interpretação de Nietzsche, no país irmão, é apaixonante também para estudar o perspectivismo nietzschiano nas formas pelas quais sua obra tem sido recepcionada, o que dá conta do caráter plural de sua filosofia nos modos como é recepcionada. Há muitos “Nietzsches” no Brasil: aqui nos encontramos, nesse dicionário, com um Nietzsche que surge a partir do trabalho de pesquisa iniciado por Scarlett Marton, uma das reconhecidas referências internacionais da obra do pensador, membro do Groupe International de Recherches sur Nietzsche (GIRN). Em 1996 Marton funda “oficialmente” o GEN, e a revista Cadernos Nietzsche. Quem escreve nesse Dicionário as diferentes entradas são seus discípulos e pesquisadores, e, como assinalei antes, as vozes remetem às interpretações nascidas no seio desse grupo de trabalho, que edita sua primeira obra coletiva, afirmando desde o início que um grupo é mais que uma soma de individualidades.
Qual é a peculiaridade do GEN no âmbito dos estudos nietzschianos no Brasil? A introdução ao dicionário se encarrega de indicar o rigor investigativo do grupo: criado em 1989, e oficializado em 1996, o grupo dedicou-se desde o início à leitura das obras de Nietzsche de maneira sistemática e rigorosa. Como se aponta na introdução, Scarlett Marton iniciou o grupo no final dos anos 80, realizando uma série de seminários sobre Assim falava Zaratustra, que se estenderam por cinco anos, dedicados cada um deles, de maneira minuciosa, às partes da obra (incluindo o Prólogo). A partir daquele momento, o grupo começou a trabalhar a obra de Nietzsche com seriedade metodológica, em um Brasil em que, como em outras partes do mundo, Nietzsche não era bem recebido na academia. Era necessário, portanto, criar o “objeto de conhecimento Nietzsche” (p. 19), e estudá-lo de maneira rigorosa, para diferenciar o trabalho de investigação de outras aproximações à sua obra, e “romper com o diletantismo que caracteriza muitas interpretações de Nietzsche” (p. 19). Além disso, o GEN organiza semestralmente os Encontros Nietzsche, nos quais se discutem os trabalhos do grupo.
Os vocábulos estão indicados no original em alemão, e, além disso, estabelecem uma série de reenvios e correlações de um artigo a outro. As entradas são 156, e há 13 outras para a apresentação das obras de Nietzsche. Como se assinala na introdução, existem no Brasil muitas traduções diferentes da obra (não se realizou, como recentemente na Espanha, uma tradução completa da Kritische Studienausgabe), por isso o GEN pretende também oferecer um canon preciso para a tradução dos conceitos. Cada entrada implica uma abordagem genética e conceitual do termo na obra nietzschiana, e uma referência aos diversos modos como o termo é utilizado na obra de Nietzsche. O Dicionário se inicia com algumas páginas dedicadas à vida de Nietzsche, escritas por Scarlett Marton, e na sequência se apresentam as treze entradas dos livros. Marton destaca que Nietzsche não queria ser confundido, e assinala de que maneira diferentes ideologias se apropriaram de seu pensamento (do socialismo ao antissemitismo), fazendo recortes arbitrários de sua obra. Com relação às entradas das obras, assim como ocorre com os conceitos, são escritas por diferentes membros do GEN, e o característico dessas entradas é que a bibliografia indicada só remete às obras do autor do vocábulo, e a outros membros do GEN. Isso responde a essa ideia de rigor antes enunciada, e por isso só especialistas de um tema escrevem sobre esse tema, e remetem ao âmbito de discussão coletiva do GEN.
Como é a estrutura de cada entrada? Por exemplo, Scarlett Marton escreve a entrada “Vontade de potência” [Wille zur Macht] e assinala a primeira aparição do conceito em Assim falava Zaratustra, e a identificação do termo com a ideia de vida nesse momento. Nesse sentido, se vincula com “vontade orgânica”, e é própria de todo ser vivo. Marton assinala sua forma de proceder a partir da resistência a obstáculos, e indica como a Nietzsche interessava, no contexto das ideias científicas da época, tratar de descrever a passagem do inerte ao vital. Assinala, também, como logo após Assim falava Zaratustra começa a elaborar sua teoria das forças, e o conceito se amplia em relação a tudo o que existe, e não apenas ao orgânico. Analisa também como deve ser entendido na expressão o termo “Wille” e como deve compreender-se “Macht”. Assim, interpreta o conceito como tendência de toda força a efetivar-se, criando novas configurações. Indicam-se os textos de Nietzsche nos quais se pode encontrar referências ao tema, direcionando o leitor a outros vocábulos da obra, como “substância”, “hierarquia”, “força” etc., fazendo uma indicação bibliográfica apenas dos textos da própria Marton. Ou seja, as entradas são delimitadas, específicas, e contextualizadoras, e evitam a dispersão em uma bibliografia secundária volumosa, preferindo a especificidade no trabalho com os conceitos.
André Luis Mota Itaparica, Clademir Araldi, Eder Corbanezi, Eduardo Nasser, Emmanuel Salanskis, Fernando de Moraes Barros, Ivo Da Silva Jr., João Evangelista Tude de Melo Neto, Luís Rubira, Márcio José Silveira Lima, Scarlett Marton, Vania Dutra de Azeredo e Wilson Frezzatti Jr. são os autores das entradas do dicionário. Todos são do Brasil, com exceção de Emmanuel Salanskis, da França. O Dicionário Nietzsche pretende dar conta do trabalho de muitos anos do GEN, e do trabalho pioneiro e formador de sua criadora, Scarlett Marton. De alguma maneira, seus discípulos rendem homenagem a sua mestra, tornando patente o trabalho rigoroso de muitos anos em torno da obra de Nietzsche, bem como as impressões da maneira pela qual Scarlett Marton ensinou a ler Nietzsche a distintas gerações de estudantes, tanto no Brasil, como fora do Brasil.
*Resenha [também] publicada na Revista Instantes y Azares, Año XVI, Nros. 17-18, Otoño-Primavera de 2016, Buenos Aires, Argentina, pp. 288-290. Tradução de Márcio José Silveira Lima
Mónica B. Cragnolini – Professora da Universidade de Buenos Aires, Argentina. Correio eletrônico: mcragnolini@gmail.com.
Sobre a utilidade e a desvantagem da história para a vida – NIETZSCHE (CN)
NIETZSCHE, Friedrich. Sobre a utilidade e a desvantagem da história para a vida. Tradução de André Luís Mota Itaparica, São Paulo: Hedra, 2017. Resenha de: JULIÃO, José Nicolao. Cadernos Nietzsche, São Paulo, v.38 n.2 maio/ago. 2017.
O ensaio de Nietzsche Vom Nutzen und Nachteil der Historie für das Leben apareceu ao grande público, em fevereiro de 1874, como a segunda parte de uma ambiciosa obra intitulada Unzeitgemässe Betrachtungen, cuja primeira parte, David Strauss der Bekenner und der Schriftsteller, publicada no ano anterior, havia feito grande sucesso de vendagem, exigindo uma segunda edição, no mesmo ano de sua publicação, sobretudo devido à polêmica matéria enfurecida que o periódico Grenzboten, em sua edição de outubro de 1873 (ano 32, 2º semestre, 2º volume, p. 104-110), com o título “Herr Nietzsche und die deutsche Cultur”, havia lançado contra ela. A mesma audiência, contudo, não alcançou de imediato a segunda das Extemporâneas, retumbando sobre ela um sonoro silêncio1, para depois tornar-se uma das mais conhecidas obras de seu autor e talvez umas das mais influentes no âmbito das Ciências Humanas. Herbert Schnädelbach considera esse ensaio de Nietzsche como o primeiro documento crítico ao Historicismo alemão2; Karl Schlechta diz o seguinte sobre o tratado: “Nele, o ‘Historicismo’ toma consciência dele mesmo de forma assustadora: o diagnóstico do autor foi tão sombrio que foi necessário familiarizar-se com esse estado de risco doentio”3. O filólogo Karl Reinhardt considerou que o Historicismo foi tão depreciado que fica difícil que se possa achar ainda algo a dizer contra ele4. Fora o impacto crítico ou devido a ele, como chama atenção o tradutor André Itaparica, na sua aguda introdução à sua cautelosa tradução, há também o destaque que o ensaio ganhou em obras já consagradas sobre a filosofia de Nietzsche, como nos livros de Karl Jaspers (Nietzsche, Einführung in das Verständnis seines Philosophierens – 1946) e Walter Kaufmann (Nietzsche: Philosopher, Psychologist, Antichrist – 1956), podemos adicionar a essa lista, entre aqueles que reconhecem o valor da Segunda Extemporânea e já se tornaram consagrados, Müller-Lauter (Nietzsche, Seine Philosophie der Gegensätze und die Gegensätze seiner Philosophie – 1971) e Michel Foucault (“Nietzsche, Freud, Marx” – 1967 – e “Nietzsche, la genealogie, l’histoire” – 1971). Itaparica menciona ainda o seminário ministrado por Heidegger, no semestre de inverno de 1938-39, dedicado à Extemporânea II (publicado no volume 46, da edição crítica: Zur Auslegung von Nietzsches II. Unzeitgemässer Betrachtung. In: Martin Heidegger Gesamtausgabe (HG. 46), Frankfurt: Vittorio Klostermann, 2005) para dar visibilidade à dimensão da projeção e fecundidade do texto nietzschiano. Neste assunto, nós nos deteremos um pouco mais para estabelecermos um contraponto à nossa compreensão do texto traduzido impecavelmente por André Itaparica.
No seminário, Heidegger retoma e desenvolve teses já apresentadas, incipientemente, em 1927, no parágrafo 76 de Ser e Tempo, intitulado Der existenziale Ursprung der Historie aus der Geschichtlichkeit des Dasein, nas quais ele mostra a partir de Nietzsche que o homem é essencialmente histórico, entretanto, cabe saber até que ponto a história é útil ou prejudicial à vida, tema central, que deve ser compreendido, como a experiência da vida humana, que só pode ser pensada no interior de uma cultura. No que concerne ao seminário, Heidegger, já na introdução, previne que a concepção ampla e ambígua do projeto lhe garante certa liberdade interpretativa, propondo, em seguida, uma divisão do estudo em três partes: “Grosso modo, o trabalho que nos propomos contém três partes: 1. Introdução à formação conceitual filosófica, 2. mas isto, como leitura e interpretação para um tratado definitivo e, consequentemente, 3. na abordagem da filosofia de Nietzsche.”5 Ele também deixa claro de imediato que não escolheu Nietzsche por moda, mas porque ele foi “o último pensador da história da filosofia ocidental, isto é, da metafísica: pensar o seu pensamento é, ao mesmo tempo, levar a filosofia ocidental em suas linhas básicas ao primeiro patamar do saber”6. Heidegger, embora não se expresse de forma tão clara na escolha da Segunda Extemporânea como tema para o seminário, no entanto, ele sugere que o trabalho lhe apresenta uma oportunidade especial para ilustrar a posição de Nietzsche na história da metafísica. A análise do tratado, para ele, tampouco se limita a uma mera interpretação, mas fornece uma justificação permanente para compreensão da posição de Nietzsche dentro da totalidade da tradição filosófica. O Filósofo da Floresta Negra procede, todavia, em conformidade, no decorrer do seminário, estabelecendo uma diferença entre a consideração científica e pensamento filosófico, ou seja, entre a conceituação científica e filosófica na orientação da análise do conceito de “vida” em Nietzsche. Desse modo, a interpretação é guiada pela hipótese de que “vida” é a leitwort da Segunda Extemporânea, assim como de toda a filosofia de Nietzsche7. Mas, segundo o autor de Ser e Tempo, o conceito de “vida” é ambíguo em Nietzsche, pois significa o ser em sua totalidade e o modo de ser do ser particular, cuja vida é a humana. O ser compreendido como o ser humano, como em toda a tradição filosófica, a metafísica não é superada, porém ratificada. Para Heidegger, o homem continua sendo um animal racional: a única novidade é a ênfase dada à corporalidade, mas que, para ele, não é suficiente para se ir além de Descartes. A concepção do sujeito como ego vivo8 é a justificação como o mais alto representante da vida e da verdade como um erro necessário da vida, que Heidegger atribui a Nietzsche, contudo é válido apenas como conclusão da metafísica moderna, ou como uma (possível) transição para outro começo, mas não como um (real) outro começo9, e é por isso que ele afirma: “A principal questão sobre a Segunda Consideração Extemporânea de Nietzsche não é a desvantagem ou a utilidade da história, mas a compreensão da vida como a realidade básica no sentido de uma biologia cultural ”10. Para ele, Nietzsche não consegue a superação da metafísica nem uma investigação detalhada da história, porque ele não pensou a história da História, isto é, a essência do homem, e a sua relação com a verdade do ser.
Na nossa compreensão, a interpretação esquemática de Heidegger, tão entusiasmadamente defendida pelos heideggerianos, para analisar a história da filosofia a partir da sua Seinsgeschichte, reduzindo-a à história da metafísica, não é satisfatória para a análise da Segunda Extemporânea. Atualmente, na Nietzscheforschung, a interpretação dominante desse ensaio tende a arrefecer justamente a carga metafísica do texto nietzschiano, tão enfatizada por Heidegger, mesmo que ainda sobre ele reverbere teses metafísicas da obra inaugural. Em o Nascimento da Tragédia, Nietzsche havia se posicionado radicalmente crítico em relação à infecundidade criativa do que então chamou de metafísica racional, caracterizada pela crença otimista na capacidade da razão em alcançar um conhecimento objetivo que consolaria o ser humano da sua condição de finitude e fraqueza, e, como alternativa, defendeu também uma “metafísica de artista” em que valoriza os efeitos ilusórios e criativos da arte como forma superior de compreensão do mundo. A repercussão da crítica à metafísica racional na Segunda Extemporânea recai sobre o tratamento caudal científico da historiografia como um rebento moderno da racionalização humana. Portanto, o diagnóstico de que os males da cultura se devem à hipertrofia do sentido histórico apresentado nesse tratado depende da tese peculiar do Nascimento da Tragédia, segundo a qual há na modernidade uma hipertrofia dos impulsos cognitivos que impossibilita uma cultura realmente autêntica e elevada. Por isso, para Nietzsche, os interesses teóricos predominaram sobre quaisquer outros interesses, produzindo, consequentemente, um desequilíbrio vital que ele, em oposição, apresentou como superior o caráter criativo e ilusório da arte. É nesse sentido que ele propõe, na segunda de suas Extemporâneas, uma escrita da história como recriação artística do passado, que pode ser compreendida como a “força plástica”, como alternativa à tendência racionalista, predominante na historiografia alemã de sua época, sem, contudo, recorrer à própria metafísica, como fez na obra inaugural. Argumentando a respeito de como seria possível medir até que ponto é salutar lembrar e em que momento é vital esquecer, Nietzsche descreve o conceito de força plástica, diz ele:
A fim de determinar esse grau e, por meio dele, o limite do que deve ser esquecido, para que o passado não se torne o coveiro do presente, se deveria saber exatamente quão grande é a força plástica de um homem, de um povo, de uma cultura, quero dizer, aquela força que cresce a partir de si mesma, transformando e incorporando o passado e o estranho, curando feridas, restabelecendo o perdido, reconstituindo por si mesma formas arruinadas (HL/Co. Ext. II, KSA 1.251).
Portanto, como capacidade de assimilação e resignação em relação ao passado como perda e alteridade, a força plástica habilita a memória a lembrar e esquecer, na exata medida, sem sobrecarregar-se de lembranças.
Nietzsche está, portanto, na busca de um saber filosófico que não seja nem filosofia da história nem história universal tal como já havia rejeitado Burckhardt nas primeiras linhas de suas Considerações sobre história universal:
Nós nos abstraímos de toda sistemática; não revindicamos nenhuma “ideia de história universal”, contentaremos em registrar nossas percepções e realizar uma série de cortes transversais ao longo da história na maior quantidade possível de direções; nós não oferecemos aqui nenhuma filosofia da história. Esta é um centauro, uma contradictio in adjecto, pois a história que coordena é a negação da filosofia, enquanto a filosofia que subordina é a negação da história.11
Ele busca uma base a partir da qual seja possível um saber que vincule a orientação à ação, pois nem a metafísica e nem a ciência – compreendida como ciência histórica -, podem mais oferecer tal nexo.
A tradução que André Itaparica apresenta de Sobre a utilidade e a desvantagem da história para a vida, recém-publicada pela editora paulista Hedra, ao público de língua portuguesa, sem querer desmerecer as outras, que são meritórias em diversos aspectos, é a mais completa e bem sucedida tradução desse tratado de Nietzsche que nos permitirá um grande avanço, renovando as pesquisas, possibilitando outras compreensões que nos desamarrem das antigas e viciadas interpretações. Elaborada com acribia, a tradução soluciona alguns problemas sintáticos que dificultavam a compreensão semântica de diversas passagens, consolida também o estabelecimento de alguns termos chaves, como, por exemplo, o mais emblemático, Unzeitgemässe, como extemporâneas que era frequentemente traduzido, nas traduções anteriores, como intempestivas e, ainda, nos oferece um grande número de notas esclarecedoras. Sabemos que toda tradução é uma atividade árdua e desgastante, nem sempre reconhecida quando acertada e bastante criticada toda vez que mal executada. A princípio, para traduzir um texto não basta simplesmente transferir as palavras de uma língua para outra, tem de ter a capacidade de interpretar o significado de um texto em uma língua e a produção de outro texto em outra língua, mas que exprima o texto original da forma mais exata possível na língua de destino, mesmo que recaia sobre o tradutor a já repetida, ad nauseam, máxima italiana, em forma de jogo de palavras, que diz “traduttore, traditore” (“tradutor, traidor”), pois todo tradutor teria de trair o texto original para conseguir reescrevê-lo na língua desejada. Entretanto, pode-se garantir que, em se tratando de texto filosófico, a traição ocorrerá a partir do instante em que as ideias do autor do texto original forem distorcidas ou contrariadas no texto traduzido, ou seja, se ao comparar o nível e compreensão dos leitores das duas línguas for observado que há divergência quanto à compreensão das ideias. Nesse sentido, Itaparica não é traditore – como muito em voga, em todos os âmbitos da nossa cultura -, mas um traduttore e isto ocorre devido ser ele um conhecedor das duas línguas em jogo na tradução, o alemão e o português, além de ser um estudioso da filosofia de Nietzsche e, no caso específico do texto traduzido, eu diria, um perito, bastante familiarizado com os termos e temas nietzschianos ali expostos.
1Karl Hillebrand, ex-secretário de Heine, quem Nietzsche cita em EH (Cf. EH/EH. As Extemporâneas, 1, KSA 6. 318), devido a sua resenha favorável à Extemporânea I, publicada no Allegemeine Zeitung Augsburg, número 256-266, setembro de 1873, p. 256-266, publicou, depois, comentários às três primeiras Extemporâneas, na coletânea Zeiten, Völker und Mennschen. Strassburg, 1892, mas escrito em 1874-5. Nada indica que Nietzsche tenha conhecido o teor dos comentários à segunda e à terceira das suas Extemporâneas.
2Cf. Filosofía en Alemania (1831-1933). Trad. Española. Madrid: Ediciones Cátedras, 1991, p. 81.
3Cf. Der Fall Nietzsche: Aufsätze und Vorträge. 2. Auflage. München : Hanser, 1959, p. 44. (“Nietzsches verhältnis zur Historie”).
4Cf. Von Werken und Formen. Godesberg, 1948, p.432,
5HGA 46, 3.
6Cf. HGA 46, 6.
7Cf. HGA 46, 108
8Cf. HGA 46, 142 ss.
9Este seminário é contemporâneo à elaboração da obra Beiträgen zur Philosophie (Vom Ereignis), entre 1936 e 1938, e que só foi publicada postumamente, na qual Heidegger propõe a transição de Ser e Tempo para um “outro começo”, expressão muito utilizada por ele na época.
10HGA 46, 255.
11Cf. Weltgeschichtliche Betrachtungen. 2. Ausgabe. Berlin/Stuttgart: Verlag W. Spmann, 1910, p. 2. Embora, a primeira edição dessa obra seja 1905, trata-se das Vorlesungen de 1870-1871, ministradas em Basel e que Nietzsche havia assistido.
José Nicolao Julião – Professor titular da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, Brasil, Brasil. Pesquisador 2 do CNPq. E-mail: jnjnicolao@gmail.com
Páginas da arte, páginas da vida – DIAS (CN)
DIAS, Rosa. Páginas da arte, páginas da vida. Rio de Janeiro: Mauad X, 2016. Resenha de: GONÇALVES, Alexander. Cadernos Nietzsche, v.38 n.1 São Paulo jan./abr. 2017
O tema da arte atravessa toda a produção bibliográfica de Rosa Dias. Desde o seu Nietzsche e a Música (Rio de Janeiro: Imago, 1994) até Nietzsche, vida como obra de arte (Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2011), a arte tem sido protagonista de uma reflexão que se move sempre no sentido de assumir o compromisso nietzschiano de superar os limites entre pensamento e vida, entre vida e arte. Em Páginas da vida, páginas da arte (Rio de Janeiro: Mauad X, 2016), este compromisso é uma vez mais afirmado e o resultado é uma obra cuja constituição teórica vem sempre acompanhada de um olhar sensível sobre a vida. Assim, os dez capítulos que compõem o livro apresentam a relação entre vida e arte de maneira programática e sob perspectivas teóricas diversas.
Já de início, em Homenagem ao professor Gerd Bornhein, o reconhecimento da autora ao intelectual gaúcho e seu importante legado para a filosofia e para a crítica da arte não está alheio ao sentimento de gratidão da aluna em relação ao mestre e educador, que pelos caminhos da vida diz ter encontrado a arte e que, pela via da arte, passou a pensar a vida.Em Uma filosofia do amor em Cartola, a crítica à atual situação de indiferença da cultura brasileira em relação aos seus “grandes homens”dá ensejo a considerações de notória inspiração nietzschiana acerca da obra de Angenor de Oliveira, o Cartola. Dentre elas, destaco aquela em que Rosa Dias sugere que a poesia e a música do compositor carioca emanam de um sentimento profundo de afirmação do amor, que também é, em última análise, afirmação da dor e do sofrimento, enfim, da própria vida em sua condição trágica. A relação entre arte e sociedade é o objeto dos dois capítulos seguintes, momento em que a autora investiga, com Platão e Aristóteles, o papel que a música desempenha na vida do homem grego.Em Música e tragédia no pensamento de Platão, a autora procura avaliar o intento platônico de provocar profundas transformações no ethos grego tomando como ponto de partida uma revolucionária normatização dos procedimentos musicais da cidade ideal. Já no que diz respeito às idéias musicais de Aristóteles, em A música no pensamento de Aristóteles a autora se ocupa de apresentar, além da função político-pedagógica que a música assume em Aristóteles – e que este herda do mestre ateniense uma nova função de natureza psicológica: a purificação. Assim, ao apontar para o lugar de preponderância que a música ocupa no pensamento e na vida dos helenos, seja no âmbito político-pedagógico da Paidéia platônica, seja no registro psicológico da catarse aristotélica, Rosa Dias põe a nu a indiferença hodierna no que tange a relação entre música e a vida assinalando o abismo interposto entre nós e os antigos. Em “O autor de si mesmo”: Machado de Assis, leitor de Schopenhauer, o ponto de partida da reflexão será a inspirada interpretação machadiana da “metafísica do amor” do filósofo de Danzig. Dias resgata de maneira muito precisa e interessante alguns pontos consoantes às visões de mundo dos dois autores para, a partir daí, demonstrar de que maneira o “grande drama da existência humana”, drama em que o amor é protagonista, é posto em cena no afã de explicitar o pessimismo constitutivo de ambos em relação à felicidade humana e à vida.“Ecos” da filosofia de schopenhaueriana “ressoam” também na obra do escritor francês Marcel Proust. Em Proust: um leitor de Schopenhauer, o esforço da autora consiste em demonstrar a influência do pensador alemão no modo como Proust compreende o processo de criação estética. A busca incansável do narrador proustiano pela matéria de sua literatura; os esforços empregados pelo escritor na tarefa de apreensão e fixação dos signos sensíveis de sua arte; tudo isso é analisado sob a perspectiva da “metafísica do belo” de Schopenhauer e avaliado segundo o modo como este filósofo pensa o processo de apreensão das essências das coisas e a sua reprodução na arte. Os quatro últimos capítulos, todos eles dedicados ao pensamento de Nietzsche, nos oferecem uma visão panorâmica do modo como o filósofo alemão tratou a relação entre a vida e a arte desde suas reflexões juvenis até a constituição de seu pensamento maduro, o que deixa evidente a familiaridade da autora com o tema e com o corpus nietzschiano.Assim, enquanto Metafísica do gênio nas extemporâneas de Nietzsche explora as teses que o jovem Nietzsche apresentou, sobretudo em sua Terceira Extemporânea, em torno da problemática da “estética do gênio”, Do Imaculado Conhecimento: “olhos ébrios de lua” procura investigar na obra madura, de maneira especial no Zaratustra, os desdobramentos desta alegoria contida no título no sentido de reconstituir a crítica que Nietzsche dirige ao conhecimento puro, teórico e abstrato.Na sequência, Arte e vida no pensamento de Nietzsche procura abordar de maneira direta a relação arte e vida. Como já é anunciado nas linhas iniciais, o escopo aqui consiste em explicitar a concepção de vida como obra de arte na obra de Nietzsche. Percebe-se aqui certa insuficiência analítica que talvez resulte da amplitude do corpus escolhido, o que resta à autora dar à questão um tratamento panorâmico tornando inviável qualquer análise mais exaustiva. O confronto entre Nietzsche e Bergson fecha o livro de Rosa Dias. Em A questão da criação em Nietzsche e Bergson, o objetivo consiste em avaliar este confronto a partir do conceito de “criação”, isto é, do modo com que cada um destes filósofos pensou a vida como ato criador e, talvez, como obra de arte.
Fruto de longa reflexão e trabalho duro, Páginas da vida, páginas da arte oferece ao leitor, numa linguagem leve e elegante, uma reflexão sensível e plena de estímulos acerca daquele que talvez seja, para Rosa Dias, o seu tema mais caro: a relação entre vida e arte.
Alexander Gonçalves – Professor da Universidade Estadual do Norte do Paraná. Correio eletrônico: alexandergoncalves@uenp.edu.br
Nietzsche e o espiríto latino – CAMPIONI (CN)
CAMPIONI, Giuliano. Nietzsche e o espiríto latino. São Paulo: Edições Loyola, 2016. Resenha de: BUSELLATO. Cadernos Nietzsche, São Paulo, v.37 n.3 out./dez. 2016.
À díade que parecia inalcançável, ou seja, os nomes de Colli e Montinari, na Europa, se acrescenta cada vez com mais frequência o nome de Campioni, e isso tem as suas razões de ser. Talvez um dos textos mais importantes de Campioni, que chega aos leitores brasileiros através das Edições Loyola na coleção Sendas
& Veredas, é uma valiosa demonstração. Desejado com previdência e acuidade e coordenado por ScarlettMarton, autora de uma “Apresentação à edição brasileira” (p.10-18) muito bem informa- da, traduzido com bom gosto por Vinicius de Andrade, Nietzsche e o espírito latino não apresenta só um estudo que poderá tornar-se referência para muitos pesquisadores que se dedicam ao pensa- mento do filósofo alemão. Esse trabalho contém algo que vai além do que se pode razoavelmente esperar de uma simples monografia. É o exemplo de uma metodologia, de uma relação peculiar, direta e íntima, com as páginas nietzschianas. Um trabalho de escavação, reconstrução e descobertas que oferece, no seu término, não uma figura-Nietzsche (operação sempre empobrecedora e frequente- mente falsificadora), mas o percurso-Nietzsche.
Esse percurso conduz propositalmente para longe das insalubres leituras rápidas, construídas mais por preconceitos, equívocos e exageros e não pela real necessidade de entender o pensamento de Nietzsche, como acontece aos “muitos que fruem esteticamente e em modo imediato do filósofo na busca de mestres absolutos de sapiência ou profetas do nihilismo” (p. 29). O que aqui se desmente é sobretudo a imagem caricatural e difícil de fazer desvanecer do Nietzsche germânico, o fato de fazer-lhe dizer o “Deutschelandüberalles” fazendo-lhe portar chapéus nibelungos e gritar a chegada de um Übermensch de olhos claros e de farda escura, como o próprio autor já se lamentava em Ecce Homo contra aqueles que apostrofava de “doutas bestas”.
Se a contribuição do texto fosse só essa, seria já um mérito, pois mérito é o fato de corrigir um erro de modo definitivo. Mas a demonstração do espírito latino de Nietzsche contra o mito germânico do Volk não se limita a isso. Reunindo idealmente as testemunhas onde o mestre Montinari mesmo tinha interrompido a sua pesquisa, isto é, iniciando a delinear o horizonte provençal e meridional como a melhor contestação do Nietzsche provincial e nacionalista3, Giuliano Campioni não só devolve o real diálogo através do qual se constituiu o pensamento nietzschiano, mas oferece um vasto panorama da cultura dentro da qual tal pensamento toma precisão, espessura e originalidade.
Esse é um outro Nietzsche em relação às interpretações “que só fazem tecer repetidamente uma discutível trama de filosofemas, sem nenhuma referência concreta à realidade da vida intelectual de Nietzsche”4. Nisso Campioni consegue os próprios resultados com aquilo que hoje, graças também aos seus trabalhos, é conhecido como o método da “escola italiana”, uma abordagem histórica (não historicista), que se move sobre um solo duramente filológico como base propedêutica necessária para uma exegese lúcida e fundamentada, com um cuidado especial para as leituras de Nietzsche, as fontes, a sua utilização frequentemente clarificante de aspectos que, deixados de lado, levam à cegueira – e um aguçado amor pelos detalhes que não derivam de uma supervalorização do fútil, mas de uma exigência pela verdade, como mostra a edição das cartas e das obras que Campioni dirigiu, antecipando – muitas vezes – os aparatos alemães e enriquecendo, nas novas edições dos fragmentos, com notas que são verdadeiros mananciais de referências e fontes.
Também nisso Campioni se revela um magistral aluno de Montinari, o qual advertia que o “mundo de Nietzsche – […] é o mundo de suas experiências, dos acontecimentos e das correntes de pensamento de seu tempo, de suas reflexões históricas e críticas, de suas leituras (e que leitor foi Nietzsche!)”5. Isso não significa, como seguidamente receia-se, subtrair originalidade ao pensamento de Nietzsche fazendo dele simplesmente uma mistura das próprias leituras; mas, ao contrário, exatamente olhando para essas leituras é possível medir, com frequência, o grau de audácia que se perderia desconhecendo o preciso terreno de confrontação no qual Nietzsche cultiva o seu pensamento. Um exemplo ulterior disso, da decisiva importância do extratexto, é a necessidade, para poder enfrentar a filosofia de Nietzsche, mais do que aquela de outros autores, de uma “nítida consciência de que só se pode abarcar toda a complexidade do texto saindo dele” (p. 28).
E é saindo do texto, estudando as leituras com as quais real- mente Nietzsche se confrontou, os autores hoje esquecidos que permanecem em suas páginas, emergem dos resultados historio- gráficos e exegéticos por outros lados inatingíveis. Começando com quanto podemos aprender pelo aprofundamento do confronto com Descartes, que a maioria das interpretações considera emblema de um racionalismo contrário ao gosto de Nietzsche, que sustentaria, pelo contrário, um raptus intelectual instintivo e romântico. O que Campioni mostra e demonstra, a partir da citação que o alemão escolhe como epígrafe da própria obra de libertação das metafísicas schopenhaueriana e wagneriana – uma passagem cartesiana extraída do Discour de laméthode que abre Humano, demasiado humano – é um Nietzsche que se confraterniza com um Descartes modelado através de intermediários como Richet, Ribot, Brunetiére e que exalta o equilíbrio, a clareza e o método, entrincheirando-se do lado de um iluminismo da tolerância, adversário dos fanatismos obscurantistas, que tem o seu mais sereno emblema em Voltaire. Um iluminismo que, para Nietzsche, define uma concepção de clássico que se opõe ao romântico, nutrindo-se de uma tradição que se refaz, uma vez mais, ao sol mediterrâneo do humanismo italiano e conduz à sutileza psicológica meridional, desconhecida na Alemanha, por exemplo, de um Stendhal.
A análise da interpretação cartesiana se oferece como possibilidade de desvelamento de um Nietzsche realmente longe do misticismo germânico irracionalista de algumas interpretações que, apesar de antigas, nolensvolens continuam irradiando distorções, como aquelas “mitológicas” de Bertram ou as “heroicas” de Baeumler, mostrando, ao contrário, uma figura moderada, consequente, amante do “piano” e do “adagio” oferecidos pelo Clássico, um Nietzsche para o qual é evidente “a superioridade do século caracterizado pela ‘razão de Descartes'” (p. 75).
O mesmo semblante nietzschiano, marcadamente mais do lado do equilíbrio do que do excesso, é aquele que emerge da aná- lise do confronto com Renan, que dá condições de embrenhar-se numa selva de questões decisivas do pensamento de Nietzsche como aquelas de caráter religioso, político e sociológico. A leitura que ele faz do francês no curso dos anos, revela-se logo de início bem diferente daquela wagneriana, aliás, distante desta à medi- da que o professor de Basiléia acolhe muitas posições críticas do colega Burckhardt, que revela ser para Nietzsche um verdadeiro antídoto crítico ao germânico wagnerismo centrado sobre o autoritarismodo”Gênio-tirano”(esteéumdecisivoaglomeradoconceitualaoqualCampioni,emparceriacomosaudosoSandroBarbera, dedicou um estudo específico, Il geniotiranno. Ragione e dominionell’ideologiadell’Ottocento: Wagner, Nietzsche, Renan, publicado em 1983 e republicado em 2010).
Aparecem nessa via algumas características claras de Nietzsche e muitas vezes esquecidas, como o antibelicismo e o antinacionalismo que considerava a vitória militar como uma imposição bárbara que não tem nada a ver com o espírito e com a cultura, que é a sua mais alta expressão; ou a tentativa de reagir àquele mesmo vazio que se abria diante da profunda crise que a segunda metade do século XIX conheceu, em relação à qual outros filósofos quiseram indicar a resposta no sentido de massificação, abnegação e sacrifício de si mesmos – solução que Nietzsche pressentiu de longe ser uma perigosa trilha que poderia levar exatamente aos horrores do fanatismo sanguinário que o século XX conheceu.
Desse modo, de um Nietzsche sentado à escrivaninha, com a intenção de meditar e a tomar distância em relação às páginas de Renan, e tendo consigo outros textos esclarecedores (Boueget, Bar- bey d’Avrevilly, Anatole France, Dostojevsky em tradução francesa e mediado por autores também franceses), torna-se possível medir a natureza real, a estratégia filosófica à qual é orientado e o significado sintético-conceitual do famigerado Além-do-homem e apanhar com mais clareza os contornos através da comparação com os devas renanianos, semelhantes ao filosofema nietzschiano, mas só superficialmente. Ambos são tentativas de “dar uma solução superior” a uma crise de nihilismoepocal, mas a tentativa de Nietzsche revela ser mais audaz e cautelosa ao mesmo tempo. Audaz porque rejeita qualquer tendência coercitiva que apele a substitutos metafísicos e violentadores (as “sombras de Deus”, temática crucial que em outras obras Campioni teve o mérito de colocar sob a atenção dos intérpretes), mas também cautelosa porque revela ser uma pro- posta antropológica de um tipo de homem que faça do equilíbrio uma preciosa virtude, conforme a afirmação no fragmento sobre o nihilismo europeu, incompreensível de outro modo, no qual lemos:
“Quais são os homens que se revelam então os mais fortes? Os mais moderados [die Mäßigsten], aqueles que não têm necessidade de artigos de fé extremos, aqueles que não só admitem, mas também amam uma boa parte de casualidade, de absurdidade, aqueles que sabem pensar sobre o homem com uma considerável redução do seu valor, sem por isso tornar-se pequenos e fracos” 6 .
Se a imagem do Nietzsche teutônico ainda permanece, isso se deve a alguns elementos (muitas vezes equivocados) que pertencem ao seu período wagneriano, e que já ele mesmo viu-se obrigado ainda em vida a escrever Nietzsche contra Wagner, na enfastiada tentativa de dissipá-los. Campioni adentra-se assim na tentativa de esclarecer os entornos, abandonados em seguida, e as precoces tomadas de distância em relação ao autor de Parsifal. Faz isso se- guindo os vestígios, totalmente preteridos, da literatura secundária, abordando os temas da “irredutível aversão à cultura romana [latina]” (p.162) wagneriana e oferecendo uma contribuição nova e preciosa aos estudos nietzschianos com a análise da interpretação e da relação que o filósofo alemão manteve com o Renascimento.
É exatamente no ato de valorizar o Renascimento, colocado como continuação do Humanismo e antecipação do Iluminismo, que se desenrola grande parte da oposição nietzschiana à cultura alemã, “a aposição do filorromano Nietzsche com Wagner, o Germânico” (p. 201). A essa tomada de posição concorrem autores específicos com os quais Nietzsche tece um relacionamento “complexo que nada tem de passivo” (p. 233) dos quais, entre tantos, Taine, Burckhardt, Stendhal, Bourget, Gebhart. Com eles, reúne e posiciona os representantes de um espírito latino solar capaz de dissipar o nevoeiro do obscurantismo alemão: Petrarca, Boccaccio, Petronio, Michelangelo, CesareBorgia, o abade Galiani e ainda outros. Não só isso, mas da análise dessas figuras torna-se possível também compreender corretamente alguns dos temidos elementos nietzschianos como a Raubthier, o Gewaltmensch ou a relação com Gobineau, libertando o filósofo de uma imagem que, reduzindo-o “a ser tão somente um ‘professor de energia’ ou um profeta da ‘religião da força’ desemboca imediatamente no grotesco e no mau gosto” (p. 234).
Não terminam aqui os resultados que a pesquisa sobre o Nietzsche “latino” consegue trazer à luz, e são tão numerosos e variegados que seria inútil uma tentativa de resumi-los pretendendo a exaustividade. Esses resultados estendem-se desde a descoberta de fontes até o momento pouco investigadas ou ignoradas (por exemplo: Michelet, Richepin, De Custine, Lemaître, Desprez, Diderot etc.), as quais permitem observar e compreender o que acontece nos bastidores do que Nietzsche coloca filosoficamente em cena, em comparações iluminantes com autores importantes e interpretações que fazem emergir em toda a sua riqueza a meditação nietzschiana (Goethe, Byron, Napoleone, Heine…) e que fornecem uma chave preciosa para entrar nas temáticas construtivas desta cena, como o pessimismo, a morte de Deus, os homens superiores do Zaratustra, aos quais são dedicadas análises impressionantes pela lucidez e pela capacidade explicativa.
Com esse texto Campioni não só inverte, sobre incontestáveis bases histórico-filológicas, a figura – canônica no amadorismo (e não só no amadorismo) – do Nietzsche germânico para oferecer-nos, ao invés, um espírito latino que permeia o autor tornando-o mais profundo, policromático, inteligente e inteligível, dotado de uma apaixonante complexidade que aumenta enormemente o pra- zer de estudá-lo – mas demonstra também que o especialismoniet- zschiano exige como própria condição a saída do especialismo. Re- quer o enfrentamento da longa e por vezes fatigante viagem através do Dédalo de avenidas, ruas e ruelas que constituem a topografia da Cultura em sentido autêntico. Demonstra que, para ler correta- mente uma página de Nietzsche, pode ser necessário ler inteiras estantes de bibliotecas. E ensina, enfim, que grandes resultados podem ser conseguidos também seguindo metodologicamente a cautela e deontologicamente a modéstia; aquela mesma requintada e exigente modéstia que Montinari seguia quando dizia de si mesmo querer “ser um bom ‘trabalhador’, como um bom sapateiro faz bons sapatos”7.
Aclamado, por ocasião da sua aparição na França, como algo que entre os estudos nietzschianos revela ser “um acontecimento” (Le Rider); traduzido em alemão e em espanhol, é agora acolhido no Brasil como um estudo que “apresenta uma nova face do autor de Zaratustra; bem mais, torna possível que ele fale outra vez com a própria voz. Haveria maior contribuição para promover o avanço dos estudos nietzschianos?”8
Portanto, é fácil prognosticar ao Nietzsche de Campioni, aqui no Brasil também, uma ampla difusão, como acontece naturalmente aos raros textos capazes de amadurecer nas bases os parâmetros interpretativos com os quais lemos um “clássico”.
Referências
CAMPIONI, G. Il “sentimento del deserto”. Dallepianureslave al vecchio continente. In: F. Nietzsche, Il nichilismoeuropeo. Milano: Adelphi, 2006. [ Links ]
MAZZINO. M. Compitidellaricercanietzscheanaoggi: il confronto di Nietzsche conlaletteraturafrancesedel XIX secolo. In:. CAMPIONI, G. & VENTURELLI, A. La “biblioteca ideale” di Nietzsche. Napoli: Guida Editorial, 1992. [ Links ]
MONTINARI. M. Che cosa ha detto Nietzsche, [1975] , editado por G. Campioni. Adelphi: Milano, 1999. [ Links ]
Notas
2Tradução de Ademir Menin.
3 Cf. o aparato da Edição à seção VII, 1984 e 1986; MAZZINO. M. Compitidellaricercanietzscheanaoggi: il confronto di Nietzsche conlaletteraturafrancesedel XIX secolo. In:. CAMPIONI, G. & VENTURELLI, A. La “biblioteca ideale” di Nietzsche. Napoli: Guida Editorial, 1992, p. 269-282.
4 MONTINARI. M. Che cosa ha detto Nietzsche, [1975], editado por G. Campioni. Adelphi: Milano, 1999, p. 154.
5 Idem.
6Nachlass/FP 5 [71], verão de 1886 – outono de 1887, § 15, datado em 10 junho de 1887 e conhecido como Fragmento de LenzerHeide. Por uma sua interpretação, CAMPIONI, G. Il “sentimento del deserto”. Dallepianureslave al vecchio continente. In: F. Nietzsche, Il nichilismoeuropeo. Milano: Adelphi, 2006, p. 47-60.
7 Carta de M. Montinari a G. Colli, 29 de setembro de 1967.
8 S. Marton, Apresentação à edição brasileira, p. 18.
Stefano Busellato – Pós-doutorando na Universidade do Oeste do Paraná, Unioeste, PR. Correio eletrônico:stefano.buselatto@email.i
Nietzsche e a ontologia do vir-a-ser – NASSER (CN)
NASSER, Eduardo. Nietzsche e a ontologia do vir-a-ser. São Paulo: Edições Loyola, 2015. Resenha de: SALANSKIS, Emmanuel. Cadernos Nietzsche, São Paulo, v.37 n.2 jul./set. 2016
Eduardo Nasser publicou recentemente um livro particularmente estimulante e ambicioso intitulado Nietzsche e a ontologia do vir-a-ser. Fruto de uma tese de doutorado defendida em 2013 (sob o título Epistemologia e ontologia em Nietzsche à luz do problema do tempo), esse trabalho procura retraçar o caminho intelectual que levou Nietzsche a desenvolver uma filosofia do vir-a-ser. Para tanto, o autor recorre ao estudo de fontes, que permite ler as propostas filosóficas de Nietzsche “como respostas para problemas produzidos no contexto intelectual particular de sua época” (p. 25). Mas o livro se esforça para nunca cair numa mera erudição, nem tratar a obra nietzschiana como um mosaico de plágios (p. 26). Eduardo Nasser oferece, antes, uma contextualização impressionante das reflexões de Nietzsche sobre o tempo e o viraser. Destaque especial deve ser dado à análise da refutação da idealidade do tempo na esteira do filósofo russo Afrikan Spir (p. 58-70), bem como à apresentação da teoria dos átomos de tempo, com seus dois “lados” epistemológico e físico (p. 151-153 e p. 173-188, ver abaixo). O título do livro, saliente-se, se justifica por uma tese mais geral que vai além dessas análises específicas. O autor interpreta a filosofia nietzschiana do viraser como uma ontologia, na medida em que “Nietzsche busca no realismo do viraser não somente uma supressão do ser, mas também uma nova forma de recolocar a pergunta pelo ser” (p. 27). À luz dessa “irrupção do ser”, Nietzsche é colocado em perspectiva como um precursor das ontologias antiessencialistas do século XX, especialmente no contexto das chamadas “filosofias do processo” (p. 242-248). Embora eu não compartilhe inteiramente essa leitura ontológica, considero Nietzsche e a ontologia do vir-a-ser como uma contribuição extremamente original e desafiadora para os estudos nietzschianos contemporâneos. Gostaria de resumir algumas passagens essenciais do livro antes de discutir brevemente sua perspectiva geral.
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A primeira análise importante, desenvolvida no capítulo 1, diz respeito à “virada realista” que Eduardo Nasser identifica no pensamento do jovem Nietzsche a partir de 1873. Inicialmente, Nietzsche certamente não se definia como um realista. Sabese que ele defendia um idealismo cultural ligado a pretensões educativas e a uma “metafísica do artista” (p. 30-37). O ponto de partida de Nietzsche e a ontologia do vir-a-ser consiste em mostrar que essa posição era “epistemologicamente [amparada]” pelas leituras neokantianas do jovem Nietzsche: Liebmann, Fischer, Ueberweg, Haym e, sobretudo, FriedrichAlbert Lange (p. 32). Herdeiro dessa tradição transcendental, Nietzsche julgava o conhecimento da “coisa em si” inacessível; enxergava o próprio conceito de coisa em si como “uma categoria oculta“; e concluía, com Lange, que a metafísica não é nada senão uma “intuição poética” (p. 34-35).
Contudo, Eduardo Nasser sustenta que uma “mudança de rumo” advém quando Nietzsche descobre o opus magnum do filosofo russo Afrikan Spir, Denken und Wirklichkeit. O jovem Nietzsche é então exposto à objeção capital de Spir contra a teoria kantiana da idealidade do tempo: contrariamente ao espaço, o tempo não pode ser uma ilusão nem possuir uma realidade simplesmente subjetiva, pois a mera representação de uma sucessão não seria sucessiva e não poderia dar origem à temporalidade de uma sucessão de representações (p. 67). As p. 62-64 fornecem uma excelente contextualização do argumento de Spir na história do kantismo. Depois, o autor bem mostra os sinais de uma incorporação nietzschiana desse argumento. É o raciocínio mobilizado no capítulo XV de A filosofia na idade trágica dos gregos para refutar o eleatismo: ou seja, a postulação por Parmênides, no segundo período de seu pensamento, de um Ser único e imutável, acessível à pura razão, que supostamente tornaria ilusória a nossa experiência sensível de um mundo em viraser (p. 51). Tal ilusão pode ser refutada como autocontraditória. Com efeito, o permanente precisaria ser mutável para suscitar uma aparência de mudança. Nas palavras de Nietzsche: “não se pode negar a realidade da mudança. Se ela for expulsa pela janela afora, volta a entrar pelo buraco da fechadura” (p. 61). Assim, segundo Eduardo Nasser, chega-se a pensar o tempo como “a única propriedade atribuída ao real que sobrevive à inspeção crítica” (p. 240). O que também implica um abandono do idealismo transcendental, enquanto “disfarce usado pelo eleatismo para iludir seus opositores” (p. 70).
Iniciada em 1873, a problematização realista de Nietzsche se manifestaria na obra publicada a partir de Humano, demasiado humano. Estaria subjacente a uma “filosofia histórica” que faz do viraser seu objeto primordial (p. 88-89). Aqui, Eduardo Nasser apresenta uma segunda análise importante. Ele explica que o realismo nietzschiano “requer uma nova perspectiva epistêmica” (p. 95), podendo essa ser caracterizada como um sensualismo (p. 99). O capítulo 2 procura esclarecer o sentido, o interesse e os limites desse sensualismo, sem esquecer de dialogar com comentadores que já abordaram o assunto (como Maudemarie Clark, Mattia Riccardi ou Pietro Gori). Uma distinção elucidativa é feita entre sensualismo e materialismo. Se o primeiro aceita o testemunho dos sentidos enquanto mostram a realidade do vir-a-ser (p. 116), isso não pressupõe “um mundo de coisas, substâncias e átomos”, ao invés do segundo, que vive “à sombra da metafísica” (p. 100). Sendo assim, o sensualismo tem a seu favor “uma consciência filosófica mais apurada” (p. 99). Seria a posição que Nietzsche adotaria enquanto “hipótese regulativa” ou “princípio heurístico” no § 15 de Para além de bem e mal, o que justificaria uma aproximação parcial com o fenomenalismo de Ernst Mach (p. 109-111). Aliás, Eduardo Nasser oferece uma pequena crônica (muito bem-vinda) da aproximação Nietzsche-Mach desde Hans Kleinpeter, discípulo de Mach e admirador de Nietzsche. É verdade que a diferenciação com o materialismo não resolve todos os problemas, o que o autor não dissimula. Por um lado, Nietzsche nem sempre usa a palavra Sensualismus num sentido positivo. O § 14 de Para além de bem e mal fala, por exemplo, do “sensualismo eternamente popular”, que acredita apenas no que “pode ser visto e tocado”, uma atitude fundamentalmente plebeia segundo a axiologia nietzschiana (p. 100). Por outro lado, Eduardo Nasser sugere que Nietzsche não renuncia a buscar causas para as sensações. Ora, isso ultrapassa o âmbito de um “sensualismo monístico”, que excluiria, em princípio, um “conhecimento não sensorial das sensações” (p. 112).
Nietzsche e a ontologia do vir-a-ser desenvolve uma argumentação interessante a favor de uma interpretação sensualista. Parece-me que essa chave de leitura permanece discutível, notadamente por uma razão que o próprio autor indica: o fato de Nietzsche adotar “um tipo de epistemologia evolucionista” (p. 124). A meu ver, num quadro de reflexão evolucionista, a sensação é menos um dado epistemológico primeiro do que uma interpretação herdada do passado orgânico, que tem uma função vital. Isso quer dizer que a sensação pode ser criticada enquanto interpretação. É justamente o que mostra a excelente nota 61 da p. 104, que enumera três fragmentos póstumos de Nietzsche tratando da falsificação visual do mundo efetivo: o nosso olho é “um poeta inconsciente e um lógico” (Nachlass/FP 15 [9] do outono de 1881, KSA 9.637), que não apenas “simplifica o fenômeno” (Nachlass/FP 26 [448] do verão/outono de 1884, KSA 11.269), mas também constrói a coisidade, ao despertar “a diferença entre um agir e um agente” (Nachlass/FP 2 [158] do outono de 1885/outono de 1886, KSA 12.143). Sabemos que essa distinção Thäter/Thun será colocada em questão pela Genealogia da moral. Todavia, será que tem uma sensação por trás da sensação, ou um “mundo fenomenal profundo” do viraser sob o mundo fenomenal superficial da coisidade (p. 125)? Concordo com Eduardo Nasser quando ele evoca o refinamento dos sentidos ao qual Nietzsche nos convida. Também subscrevo a ideia de que tal aperfeiçoamento tem limites necessários (p. 122-134). Eu simplesmente não tenho certeza de que algo “afeta os sentidos originariamente” (p. 133), na medida em que esse “algo” só poderia existir do ponto de vista de uma interpretaçãoapropriação que o põe (ver abaixo).
Uma terceira análise, talvez a mais notável de Nietzsche e a ontologia do vir-a-ser, concerne à teoria dos átomos de tempo do jovem Nietzsche (cap. 2-3). Trata-se de uma teorização “em grande medida concentrada num fragmento de 1873” (p. 151), a famosa nota 26 [12] ilustrada por dois esquemas. O autor decompõe esse questionamento em um “lado epistemológico” (p. 151-153) e um “lado físico” (p. 173-188). Em ambos os casos, estamos em presença da postulação de “unidades mínimas de tempo” (p. 151), mas tal suposição pode ser entendida como a de um mínimo sensorial ou de um mínimo físico, sem que exista necessariamente uma discrepância entre as duas acepções: Eduardo Nasser rejeita as “falsas polêmicas geradas em torno do valor objetivo ou subjetivo” do atomismo temporal (p. 173).
Um primeiro lado desse atomismo é sensorial. A esse respeito, o final do capítulo 2 remete à leitura nietzschiana de Karl Ernst von Baer (p. 144-150). O célebre fisiologista russoalemão acredita identificar uma “medida fundamental do tempo”, o batimento cardíaco (p. 146). Pois observa que a velocidade das pulsações condiciona a percepção do tempo, de modo que um coelho, com sua pulsação “quatro vezes mais veloz que a de um bovino”, “possui uma vida mais veloz” (p. 147). Situada entre essas duas temporalidades, a nossa existência poderia ser radicalmente alterada por uma simples aceleração ou desaceleração cardíaca: o mundo poderia nos parecer quase imutável ou, pelo contrário, profundamente efêmero (p. 147-148). Isso permite conceber a pulsação como uma espécie de átomo temporal, o que leva o jovem Nietzsche a dizer que o atomismo temporal coincide com uma teoria da sensação (p. 153). Contudo, Eduardo Nasser sublinha que o “ponto de sensação” não é exatamente um instante: ele já envolve o vir-a-ser, é mesmo “originariamente equivalente ao vir-a-ser” (p. 152). Assim, von Baer aparece a Nietzsche como um aliado do heraclitismo, leitura idiossincrática que transparece no curso sobre Os filósofos pré-platônicos (p. 146).
Mas o atomismo temporal do jovem Nietzsche também possui uma física, esboçada pelo elíptico fragmento 26 [12]. Para esclarecer esse segundo aspecto, Eduardo Nasser remete a uma outra referência científica do jovem Nietzsche, a física dinamista de Roger Boscovich: “é a partir do dinamismo de Boscovich que Nietzsche chega ao seu conceito de força e, consequentemente, à sua visão de mundo” (p. 168). O interesse de Nietzsche pela física boscovichiana dos pontos dinâmicos é muito bem documentado pelo capítulo 3. Mais uma vez, a interpretação nietzschiana se mostra criativa e radical. Pois Eduardo Nasser mostra que Nietzsche abole toda forma de permanência substancial, contrariamente a Boscovich, que ainda admitia pontos materiais imutáveis na sua Teoria da filosofia natural (p. 181-183). Mas a mais espetacular deformação nietzschiana parece ser uma tradução temporal de Boscovich: “os pontos nietzschianos são temporais, diferenças puras” (p. 181), que acolhem “forças absolutamente mutáveis” (p. 182). Daí o estranho saltacionismo temporal do jovem Nietzsche, ilustrado no segundo diagrama do fragmento 26 [12]: tudo se passa como se ocorresse uma ação à distância entre pontos temporais separados, uma sugestão tanto fascinante quanto enigmática (p. 186).
Poder-se-ia ver essas reflexões como ideias en passant, que Nietzsche nunca desenvolveu seriamente na sua obra posterior. No entanto, Eduardo Nasser atribui grande importância a esse momento teórico precoce: “na teoria dos átomos de tempo encontramos o essencial do que pode ser chamado de a visão de mundo hipotética de Nietzsche” (p. 188). Nietzsche teria permanecido fiel ao núcleo dessa física inicial: a busca de uma esquematização temporal da realidade, baseada na convicção de que “somente a mudança pode explicar a mudança” (p. 183). Novos desdobramentos teriam sido incluídos nessa visão de mundo dinâmica, tais como um princípio de continuidade (p. 188-197) e a própria hipótese da vontade de potência (p. 197-202). Seguindo essa linha interpretativa, Nietzsche e a ontologia do vir-a-ser propõe uma interpretação iconoclasta da vontade de potência como “uma forma de tornar o discurso dinamista […] mais palatável a um público não especializado” (p. 202). Sem dúvida, essa proposta suscitará discussões no contexto da Nietzsche-Forschung.
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Volto agora à noção paradoxal de “ontologia do vir-a-ser”, que dá sua perspectiva geral ao livro. Gostaria de indicar sucintamente em que sentido Eduardo Nasser reabilita uma problemática ontológica, para depois levantar duas dificuldades, num espírito de amizade nietzschiana.
O autor está bem ciente de que Nietzsche rejeita as ontologias tradicionais, aquelas que podem ser chamadas de “essencialistas” (p. 208). A palavra técnica Ontologia é rara no corpus nietzschiano, mas uma de suas ocorrências corresponde a uma crítica implacável de Parmênides (p. 209). É evidente, portanto, que Nietzsche considera o Ser do eleatismo como ilusório: ele dá razão a Heráclito tal como o entende, desde A filosofia na idade trágica dos gregos até Ecce homo (p. 217). Mas outra questão é saber se Nietzsche não teria também uma concepção ontológica positiva, em virtude de uma espécie de “homonímia do ser” (p. 217-227). De fato, é o que Nietzsche e a ontologia do vir-a-ser defende: “O ser enquanto essência, enquanto ousia, não é o verdadeiro ser” (p. 219). Assim entendido, Nietzsche prefiguraria em certa medida o questionamento heideggeriano, pace Heidegger em seu curso sobre Nietzsche. Conhece-se a famosa “diferença ontológica”: Heidegger interpreta a história das metafísicas do ente como a do esquecimento de uma pergunta mais fundamental pelo Ser. Nessa direção pósheideggeriana, Jean Granier é citado como um dos intérpretes que reconheceram a “plausibilidade do problema ontológico em Nietzsche”, em seu livro clássico sobre Le Problème de la vérité dans la philosophie de Nietzsche (p. 19-22).
É certo que Nietzsche pronuncia frases do tipo: “o único tipo de ser é – ” (p. 224). Mas será que isso permite atribuir uma ontologia Nietzsche? Vejo dois problemas. O primeiro é mencionado pelo autor no final do capítulo 4: a dessencialização nietzschiana da ontologia “é também a destruição de toda ontologia”, pelo menos enquanto discurso científico (p. 227). O ser não tem mais um conteúdo essencial suscetível de ser caracterizado por um logos, a não ser que Nietzsche não mantenha seu antiessencialismo de modo coerente (a pergunta poderia ser feita à luz de certas formulações sobre a vontade de potência, como a do fragmento 14 [80] de 1888 citada na p. 227: “a essência mais íntima do ser é vontade de potência”; o eterno retorno também levanta interrogações, como mostra o excurso crítico das p. 227-237). Mas talvez Nietzsche tenha uma segunda objeção ainda mais radical contra o discurso ontológico. No âmbito do seu perspectivismo, ele afirma a nãoexterioridade da aparência em relação ao ser. Não tem o ser de um lado e suas manifestações do outro, o que “é” é sempre visto desde uma outra coisa. Assim, não se pode dizer absolutamente falando que A é B, nem mesmo que A existe em si. Eduardo Nasser cita pelo menos dois textos que vão nesse sentido, os fragmentos 2 [149] de 1885/1886 e 7 [1] de 1886/1887 (p. 219 e p. 224). No fragmento 7 [1], Nietzsche coloca aspas na palavra “fenomenal” [Phänomenale], que se deve distinguir do vocabulário propriamente nietzschiano da aparência [Schein]. De fato, não “tem” em Nietzsche um mundo fenomenal objetivo a ser descrito. Parece-me, nesse sentido, que o desafio filosófico não seria mais procurar um ser, mesmo fenomenal, mas sim elaborar critérios para orientar-se metodologicamente nas aparências.
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Essas observações visavam apenas a prosseguir o diálogo com Eduardo Nasser e a agradecer a ele por este belo livro, que vem enriquecer a coleção Sendas & Veredas do GEN. Produto de um trabalho bibliográfico considerável, Nietzsche e a ontologia do vir-a-ser defende uma interpretação ousada com uma argumentação precisa. Essa obra é uma mina intertextual, que, seguramente, interessará a todos os especialistas de Nietzsche em língua portuguesa.
Emmanuel Salanskis – Doutor em filosofia pela Universidade de Reims, pesquisador no laboratório SPHERE do CNRS e diretor de programa no Collège International de Philosophie, França. Correio eletrônico: emmanuel.salanskis@noos.fr
Nietzsche em chave hispânica – MARTON (CN)
MARTON, Scarlett. Nietzsche em chave hispânica. São Paulo: Edições Loyola, 2015. Resenha de: MOYA, Gloria Luque. Cadernos Nietzsche, v.37 n.1 São Paulo jan./jun. 2016.
O GEN (Grupo de Estudos Nietzsche), por meio de sua coleção Sendas & Veredas, em sua série Recepção, dirigida pela professora Scarlett Marton, com a intenção de abrir novas frentes de discussão, vem publicando uma série de números monográficos sobre a atualidade da investigação acerca de Nietzsche em diferentes países. Trata-se de acolher as distintas linhas interpretativas que na atualidade se estão levando a cabo em diferentes países com a finalidade de promover uma reflexão sobre a singularidade e especificidade de suas leituras sobre os textos de Nietzsche. Assim, por exemplo, já foram publicados os seguintes títulos: Nietzsche na Alemanha; Nietzsche abaixo do Equador: Uma recepção na América do Sul; Nietzsche pensador mediterrâneo: a recepção italiana; Nietzsche, um francês entre os franceses. E agora este volume, que trata de reunir sob o título Nietzsche em chave hispânica uma série de trabalhos de alguns dos investigadores de maior relevo na pesquisa Nietzsche que se tem feito neste momento na Espanha. Os autores que aparecem no livro são quase todos os filósofos que têm promovido na Espanha os estudos sobre F. Nietzsche nas últimas duas décadas, dando um impulso de enorme importância à Nietzsche Forschung, fundando uma Sociedade espanhola de estudos sobre F. Nietzsche (SEDEN), sobre cujos auspícios se criou uma prestigiosa revista, a Estudios Nietzsche (ano 2000). Uma das contribuições mais significativas dessa sociedade, por seu alcance e sua grande utilidade para a investigação, tem sido a tradução para o espanhol, partindo das últimas correções do texto original em alemão, de grande parte dos escritos e da correspondência de F. Nietzsche: Fragmentos Póstumos (4 vols., 2007-2010, Tecnos: dir. Diego Sánchez Meca); Correspondencia (6 vols., 2005-2013, Trotta, dir. Luis Enrique de Santiago Guervós) e Obras Completas (4 vols., 2011-2016, Tecnos, dir. Diego Sánchez Meca). Essa enorme tarefa que realizaram em tão poucos anos presta certamente uma colaboração inestimável para todos aqueles estudiosos de língua hispânica que se dedicam a estudar a vida e a obra de Nietzsche. A importância dessa contribuição se pode compreender e ampliar no primeiro capítulo do livro, que revela a presença de Nietzsche na Espanha nas duas últimas décadas.
As contribuições que aparecem no livro são significativas tanto em termos de autores, ligados à SEDEN, quanto por aquilo que abordam: Marco Parmeggiani e Fernando Fava, “Nietzsche na Espanha”; Francisco Ares Doz, “Alcance e limites da recepção de Nietzsche no contexto acadêmico espanhol (1939-1975)”; Diego Sánchez Meca, “Vontade de potência e interpretação como pressupostos de todo processo orgânico” e “Nietzsche ou a eternidade do tempo”; Luis Enrique de Santiago Guervós, “A dimensao estética do jogo na filosofia de Nietzsche”; Manuel Barrios Casares, “O ‘giro retorico’ de Nietzsche” e “Niilismo e pós-humanidade na cultura contemporânea”; Joan B. Llinares, “A filosofia da linguagem em Nietzsche”; Remedios Ávila Crespo, “A critica de Nietzsche ao romantismo”; Marco Parmegginai, “Nietzsche: o pluralismo e a pós-modernidade”. Com isso, o leitor português e brasileiro têm a seu alcance um material importante para conhecer o trabalho que está sendo feito na Espanha, ao mesmo tempo em que se informam sobre a recepção de Nietzsche nesse país desde 1939. Desse modo se desenha um novo quadro na recepção de Nietzsche na Espanha e se apresentam aos leitores novas linhas de investigação para além daquelas com que trabalham atualmente. É indubitável que os esforços que leva a cabo o grupo GEN de São Paulo em difundir a pesquisa que se realiza em distintos países contribuem para criar um espaço comum para que a investigação de um dos pensadores mais importantes de nossa contemporaneidade tenha esse caráter universal que seguramente possibilitará um trabalho mais produtivo acerca da interpretação da vida e da obra de F. Nietzsche.
* Este texto também será publicado na revista Estudios Nietzsche 16/2016, da Sociedade Espanhola de Estudos sobre Friedrich Nietzsche (SEDEN). Tradução de Márcio José Silveira Lima
Gloria Luque Moya– Professora da Universidade de Málaga, Espanha. Correio eletrônico: glorialm@uma.es
Nietzsche e a arte de decifrar enigmas: treze conferências europeias – MARTON (CN)
MARTON, Scarlett. Nietzsche e a arte de decifrar enigmas: treze conferências europeias. São Paulo: Edições Loyola, 2014. Resenha de: PIMENTA, Olímpio. Cadernos Nietzsche, v.36 n.1 São Paulo jan./jun. 2015.
Tornar legível a obra de Friedrich Nietzsche e, com isso, fazer com que os pensamentos nela expressos possam ser experimentados por quem os lê é um compromisso dos mais altos no que toca a nós, seus estudiosos brasileiros. Afinal, não obstante a ampla difusão de seus livros e ideias, correlata ao amadurecimento dos estudos nietzschianos no país, resta muito ruído em torno da sua recepção, inclusive nos meios acadêmicos. A responsabilidade filosófica do pensador alemão é ainda hoje contestada; também se discute em que medida as principais formulações que compõem a variadíssima paisagem teórica de seus escritos podem ser consideradas filosoficamente consequentes.
As dificuldades se multiplicam ao se ter em conta que os fins visados pela obra, mas também os meios mobilizados para alcançá-los, são muito diferentes dos que se reconhece como aqueles que legitimam uma filosofia. Não há ali uma ordenação conceitual sistemática, não se persegue a verdade nos termos convencionais, se está sempre a uma distância segura de doutrinas constitutivas de uma dogmática. Não parece assim proveitoso ler Nietzsche como um filósofo entre outros, como um filósofo qualquer.
Programaticamente inteiradas disso, as treze conferências que integram este “Nietzsche e a arte de decifrar enigmas” constroem, com grande felicidade, toda uma rede de caminhos alternativos para a frequentação da obra a que se referem. Se seu propósito é priorizar a análise de como ganham vida as proposições que veiculam os assim chamados conteúdos do pensamento nietzschiano, o perspectivismo que anima as investigações em curso se encarrega de viabilizá-lo de forma muito acertada. Pois um dos aspectos mais notáveis do conjunto desses textos, a par da excelente recensão bibliográfica em que se apoiam, é exatamente a fecundidade heurística do manejo de perspectivas que neles se exercita.
Por si só um tour de force, o tratamento de todos os títulos que compõem a obra preparada para a publicação pelo filósofo produz, assim, resultados estimulantes, principalmente em função dos ângulos escolhidos para a sua abordagem. A evidente familiaridade da autora com o corpus nietzschiano e sua fortuna crítica permitiu-lhe circular no âmbito de cada livro e nos intervalos entre eles através de passagens invisíveis a um olhar menos experimentado. Assim, a tematização de quase tudo o que confere interesse ao universo visado é oferecida ao leitor segundo uma inspiração nitidamente afim à que nele vigora. Por meio da exposição clara e da argumentação rigorosa que acompanham as articulações propostas são iluminadas questões cujo entendimento não é propriamente simples, dado seu caráter enigmático. Na intenção de esboçar possíveis roteiros de leitura, sugerimos a seguir algo a respeito do repertório consolidado pelos estudos reunidos no volume.
Para saber a que aspira o projeto filosófico nietzschiano em sua vertente propositiva, o mais recomendado é começar pela leitura dos capítulos 6 e 11, dedicados respectivamente a Assim falava Zaratustra e Crepúsculo dos ídolos. Tendo como norte o problema da transvaloração dos valores, isto é, as perguntas a respeito de se e como uma filosofia afirmativa da existência é viável e pode intervir nos rumos da civilização, estes dois capítulos indicam os elementos centrais para discutir o encaminhamento para elas elaborado pelo filósofo. O horizonte da transvaloração surge, assim, como bastidor mais abrangente para a inscrição da visada geral da obra em sua totalidade, funcionando como ponto de convergência das melhores expectativas que se pode alimentar quanto ao uso autorizado da filosofia de Nietzsche.
Em contrapartida, se se quer perceber sob que condições e em confronto com o quê Nietzsche esgrimiu seu pensamento, cabe examinar as observações feitas nos capítulos 2, 9 e 11 a propósito das Considerações extemporâneas, de O caso Wagner e de O anticristo. Nesta revisão da vertente crítica do projeto nietzschiano, destacam-se a denúncia ao filisteísmo cultural, feição ostensiva da barbárie moderna e sintoma de um tipo de sensibilidade mórbida cujo nome genérico é wagnerianismo; a análise da corrupção dos instintos que domina a psicologia dos homens modernos, genealogicamente vinculada à debilidade afetiva típica de uma espiritualidade educada pelo cristianismo; e por último uma minuciosa restituição das práticas que permitem ao indivíduo manter ou recuperar sua saúde a partir do exercício da leitura.
Para fazer jus à prosa das conferências, assinalemos de passagem que, nelas, os temas vêm à baila longe da forma esquemática que lhes emprestamos aqui. Deve-se considerar sua apresentação como algo mais parecido com a atividade de jogar com um caleidoscópio: embora os mesmos elementos estejam sempre presentes, o que conta para o efeito são as combinações que, nos casos em vista, impressionam muito bem.
Outro grupo de estudos que mantém entre si uma espécie de ar de família é aquele que remete a Humano, demasiado humano, Aurora e A gaia ciência, capítulos 3, 4 e 5. Em comum, partilham a adoção de estratégias mistas de acesso às fontes. Associa-se o cuidado com a letra dos aforismos, patente na restituição muito plausível do encadeamento de determinadas sequências deles, à remissão às influências mediatas e imediatas que atuavam sobre o filósofo à época da redação dos livros.
Quanto a Aurora, a análise se volta para a explicitação das relações entre a epígrafe e as discussões desenvolvidas sob sua égide. Contesta com sucesso alegações posteriores do próprio filósofo a respeito da consumação da transvaloração dos valores, neste livro ainda em processo preparatório. O exame do trecho que vai do anúncio da aliança entre filosofia, história e ciências naturais até o diálogo com a pintura “Transfiguração” de Rafael é deveras fecundo no sentido de estabelecer a contestação mencionada.
Quanto a Humano, demasiado humano, tratou-se de distinguir com precisão as vozes do moralista e do iluminista que nele se ouvem, na esteira da influência de Pascal e Voltaire. O mais curioso, porém, é o arranjo que tornou isso possível. Tomando como fio de ouro o contraste entre duas circunstâncias da condição feminina, as mulheres na órbita doméstica e as mulheres emancipadas, procurou-se aferir a qual dos predecessores caberia remeter o que é dito em certos aforismos, sob a clivagem definida por essas rubricas. O saldo aponta, não sem alguma ambivalência, para um Nietzsche partidário da exclusão feminina do espaço público.
Entretanto, e isto é o que confere um interesse específico ao capítulo, encontra-se também nele uma discussão metodológica assaz desafiadora. Uma vez que diversas declarações de Nietzsche, citadas em conexão com o debate sobre o feminino, parecem pressupor uma base sobretudo biográfica, a autora defende, sem hesitação, que contextualizações dessa natureza não se prestam a iluminar textos filosóficos. Tal posição assegura a Nietzsche o benefício da dúvida em relação ao partido por ele tomado, mas traz consigo um inconveniente ponderável. Afinal, muito do que é demonstrado alhures a favor da vertente construtiva do seu pensamento decorre da admissão do nexo constitutivo entre vivências e reflexão. É certo que, nos exemplos que o capítulo propõe, fica decidido que uma correspondência mecânica entre vida e obra não é um procedimento inteligente, e que tampouco a psicologização de um pensamento ou de uma teoria ajuda a esclarecê-los. Mas isto é pouco diante do grande número de oportunidades em que variações do recurso repudiado são mobilizadas com proveito. De mais a mais, chega a ser muito engraçado, por exemplo, que a solene enunciação cosmológica do eterno retorno apareça temperada pela evocação de certos parentes como principal obstáculo à sua vivência.
Quanto a A gaia ciência, tem-se uma retomada bem sutil da questão do feminino a partir de sua luminosa conexão com a recusa do essencialismo. Seja à moda do realismo positivista, que estipula a existência de fatos naturais evidentes, seja à moda do realismo metafísico, que estipula a existência de verdades eternas evidentes, a idealização de algo como a “mulher em si” deve ser finalmente superada. Em seu lugar, compete prestar atenção aos processos complexos e particulares que ocorrem junto a mulheres em situações e papéis típicos, de modo a que o conhecimento então obtido tenha alguma chance de ser verdadeiro. Aliás, em sendo a verdade mulher, vale estender o procedimento a tudo quanto o que se deseja saber, caso se pretenda ultrapassar as mentiras do saber dogmático. Sob esta luz, talvez faça mais sentido a restrição metodológica manifestada, pois é incrível que um pensador dotado de tamanha perspicácia possa se revelar um pobre misógino.
É digno de registro que, apesar de termos reunido num mesmo grupo os livros do chamado período intermediário, isso não reflete qualquer opção tomada pela obra em tela. Muito ao contrário, os recortes da periodização costumeira são pulverizados pela reflexão que ali se efetua. Embora úteis, de um ponto de vista didático, por demarcarem uma tópica que livra o leitor iniciante da perplexidade, eles são substituídos pela reconstrução genealógica do percurso filosófico do próprio pensador, procedimento muito mais elucidativo.
Nos capítulos 7, 12 e 13 concentram-se ocorrências exemplares do bom uso da implicação entre pensamentos e vivências. Cuidando de esclarecer o modo como Nietzsche propõe uma reformulação dos móveis tradicionais da filosofia em bases experimentais, a investigação sobre Para além de bem e mal firma as vantagens cognitivas e epistêmicas da reflexão atenta à fisiopsicologia. Diante da alegação de uma oposição fundamental entre os valores, própria dos credos hegemônicos no Ocidente, importa menos a obsessão dialética em esgotar as razões a favor e contra sua crença do que investigar a que tipos humanos ela serve. Vê-se na discussão de Nietzsche contra Wagner que são tipos humanos antípodas de Nietzsche, num sentido decisivo: para viver, precisam de forjar crenças estáveis, já que sofrem por suas carências; ao passo que ele deseja criar, à revelia de qualquer fé, por sofrer de modo muito diverso, em função da abundância de interesses, disposições afetivas e recursos que o habitam. Tais colocações suscitam, de direito, a pergunta: mas, afinal, quem é este Nietzsche? Como esclarece a leitura de Ecce homo, não se trata de um sujeito substancial duplicado, como o que responde pelas páginas biográficas do “Discurso do método”, nem tampouco de um eu que dramatiza em si a existência, como o que figura nas “Confissões”. Mais provavelmente, está-se ali às voltas não com um personagem, mas com um topos, um lugar em que se desenrolam toda sorte de vivências, estimuladas pelos mais variados afetos, sob circunstâncias experimentais também proteiformes. Diferentemente do que acontece na seara do dogmatismo, um espetáculo como esse tende a atrair para si os favores da verdade, cumprindo dessa forma inaudita os mais veneráveis desígnios da filosofia.
Tamanha abertura ao que é plural na ordem da investigação demanda uma contrapartida à altura no que diz respeito ao registro e à transmissão do pensamento. Cabe evitar que as ideias convertam-se em dogma, o que só se alcança mediante um uso singular do discurso filosófico. Mais um enigma se esclarece: por fazer parte de um mundo destituído de características cristalizadas, um filósofo precisa de esvaziar sua enunciação de qualquer traço identitário generalizante, o que só se obtém quando se domina a arte de perspectivar os acontecimentos a partir de sua mais enxuta particularização. O texto, então, enquanto comunica um determinado pathos, nada fala da pessoa de seu suposto autor. Ganha o máximo de objetividade na proporção inversa de seu apelo universal. Nessa mesma medida, seleciona seu leitor, evitando que a condição especial das vivências nele tornadas pensamento seja confundida com qualquer lição doutrinal ao alcance de todos.
Os estudos dedicados a O nascimento da tragédia e à Genealogia da moral, capítulos 1 e 8, organizam-se em torno do exame de hipóteses de leitura imanentes relativas às duas obras. Dotados de uma dicção mais marcadamente acadêmica, argumentam, quanto ao primeiro, contra a presença estruturante de uma dialética ascendente no curso do desenvolvimento da exposição; e, quanto ao segundo, contra a impressão de que a exposição teria caráter linear e demonstrativo, constituindo uma espécie de extrato das concepções nietzschianas acerca dos fenômenos morais. Pelas características assinaladas, e também por cuidarem de restituir o principal das posições teóricas expressas pelo filósofo em ambos os livros, funcionam como boas introduções às suas respectivas problemáticas.
Leitor de Scarlett Marton desde a publicação do seminal “Nietzsche: uma filosofia a marteladas” (São Paulo: Brasiliense, 1982), desejo arrematar essa conversa lançando um olhar de sobrevôo ao movimento desenhado por seus escritos mais recentes. Se já havia ficado contente com “Nietzsche, filósofo da suspeita”(São Paulo: Casa da Palavra, 2010), graças à liberdade que se respira ali, considero ter reencontrado agora essa mesma liberdade, acrescida de um elemento novo, que distingue um intérprete original: a invenção.
Olímpio Pimenta Professor da Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP), Ouro Preto, Brasil. E-mail: olimpix@ig.com.br.
Nietzsche contra Darwin – FREZZATTI JÚNIOR (CN)
FREZZATTI JÚNIOR., Wilson Antonio. Nietzsche contra Darwin. São Paulo: Edições Loyola, 2014. 2ª edição ampliada e revista. Resenha de: RIBEIRO, Nuno. Cadernos Nietzsche, v.36 n.2 São Paulo jul./dez. 2015.
A relação entre os pensamentos de Nietzsche e de Darwin é complexa e multifacetada. Se, por um lado, encontramos referências a Darwin e ao darwinismo ao longo dos textos de Nietzsche, por outro lado, essas referências não são isentas de críticas. O livro Nietzsche contra Darwin, de Wilson Frezzatti Jr., publicado em 2014 e correspondente a uma segunda edição revista e ampliada, constitui-se como uma incursão pelas complexas relações entre o pensamento filosófico nietzschiano e os conceitos presentes nos escritos darwinianos. O livro encontra-se dividido em quatro capítulos que são precedidos por uma apresentação à segunda edição e por uma introdução e seguidos de uma conclusão.
Na “Apresentação à segunda edição” Frezzatti Jr. apresentanos as vicissitudes e questionamentos que levaram à redação de Nietzsche contra Darwin. O autor explica-nos que essa obra, publicada pela primeira vez em 2001 na decorrência de uma tese de mestrado defendida na Universidade de São Paulo sob a orientação da Professora Doutora Scarlett Marton, se enquadra no intuito originário de estudar a questão da doença e da saúde em Nietzsche, questionamento esse que conduziu, nas palavras de Frezzatti Júnior, a “investigar a presença de Darwin e do darwinismo na obra nietzschiana”. (p.13) O autor destaca também, antecipando os aspectos desenvolvidos ao longo do livro, que o ponto central das censuras nietzschianas à luta pela existência, seleção natural, seleção sexual e desenvolvimento da moral têm o seu eixo numa divergência entre Nietzsche e Darwin a respeito da concepção da vida. Enquanto para Darwin o impulso básico vital é a conservação, Nietzsche apresenta-nos a vida como um movimento de autossuperação contínua. A “Apresentação à segunda edição” relata ainda a importância do livro Nietzsche contra Darwin para posteriores estudos realizados por Frezzatti Jr. relativos ao papel da biologia na filosofia de Nietzsche, nomeadamente no seu livro A fisiologia de Nietzsche: a superação da dualidade cultura/biologia, publicado em 2006 na sequência do trabalho de doutorado do autor também defendido na Universidade de São Paulo sob a orientação da Professora Doutora Scarlett Marton.
Na “Introdução” ao livro Nietzsche contra Darwin, Frezzatti Jr., passando em revista diversos comentadores do pensamento nietzschiano, discute as múltiplas formas pelas quais se tem filiado o pensamento de Nietzsche ao darwinismo. De acordo com Frezzatti Jr., todas as formas pelas quais se tem filiado o pensamento nietzschiano ao darwinismo partilham de um fundo comum: o carácter genérico da aproximação entre o pensamento de Nietzsche e o de Darwin e a ausência de uma definição aprofundada do que seja o conceito nietzschiano de darwinismo. Com efeito, como nos diz o autor de Nietzsche contra Darwin, o darwinismo “assumiu diversos e vários sentidos conforme o lugar, a época e o autor”. (p.29) Assim, a definição do que seja o “darwinismo” para Nietzsche é uma condição prévia para a compreensão das relações entre Nietzsche e o darwinismo. Frezzatti Junior refere também que outra dificuldade da interpretação das relações entre o pensamento nietzschiano e o darwinismo diz respeito à circunstância de as referências diretas a “Darwin”, ao darwinismo e aos conceitos darwinistas não perfazerem um corpo coeso, sendo que a maioria delas se encontra nos escritos não publicados por Nietzsche. Seguindo a periodização metodológica das obras de Nietzsche apresentada por Marton, o autor refere ainda como facto significativo que mais de metade das referências se encontra no terceiro período da produção filosófica de Nietzsche (1883-1888), o que se constituiria como um indício da importância das considerações relativas ao darwinismo para a consolidação do pensamento maduro nietzschiano. Tecidas essas considerações, a “Introdução” de Nietzsche contra Darwin diz-nos que a discussão dos conceitos que Nietzsche nos apresenta como darwinianos deve ter por base a crítica a dois conceitos: primeiro, a “luta pela existência como conservação” (p.36); segundo, “a seleção natural como mecanismo de progresso da espécie humana”. (p.36)
O Capítulo 1 do livro Nietzsche contra Darwin, intitulado “Darwinismo e darwinismos”, procura fornecer o quadro conceptual a partir do qual se deve entender as considerações de Nietzsche relativas a Darwin e ao darwinismo. O capítulo começa com um esclarecimento relativo ao surgimento do termo “darwinismo”, uma noção que, de acordo com Frezzatti Jr., é mencionada pela primeira vez por Thomas Henry Huxley em Abril de 1860. A sequência do Capítulo 1, partindo de uma contextualização dos antecedentes do evolucionismo e fornecendo um relato do desenvolvimento histórico do “darwinismo”, apresenta alguns dos múltiplos sentidos que o termo darwinismo vai assumindo ao longo do século XIX, dando especial ênfase às noções de darwinismo social e de darwinismo como ideologia dos darwinistas. Frezzatti Jr. assinala também que, apesar de ser possível constatar tanto em Nietzsche como em Darwin a presença de aspectos antimetafísicos semelhantes relativos às ideias dominantes do século XIX (a recusa do criacionismo, do essencialismo, do finalismo e do determinismo newtoniano), porém, esses aspectos dizem respeito a determinações de pensamento muito gerais que não indicam com precisão o que está em causa na especificidade do pensamento de cada um desses pensadores. Assim, é no quadro da compreensão do que Nietzsche entende por darwinismo que o Capítulo 1 de Nietzsche contra Darwin procura fornecer a crítica de Nietzsche a Darwin e ao darwinismo. De acordo com Frezzatti Jr., a crítica de Nietzsche em relação ao darwinismo pode ser sintetizada em duas perguntas, que constituem o mote dos dois capítulos seguintes do livro: “1. Qual é o significado da crítica nietzschiana à luta pela existência de Darwin? 2. Qual é o significado da crítica que Nietzsche faz à seleção natural, seja em relação ao desenvolvimento orgânico, seja em relação ao desenvolvimento da moral?” (p.66)
O Capítulo2 de Nietzsche contra Darwin, intitulado “A crítica de Nietzsche à luta pela existência”, procura fornecer um enquadramento da visão nietzschiana sobre a luta pela existência darwiniana. O eixo central do Capítulo 2 assenta na oposição entre a luta pela vida darwiniana e a vida como autossuperação nietzschiana. De acordo com Frezzatti Jr., embora a noção de luta seja um elemento fundamental tanto no pensamento de Darwin quanto no de Nietzsche, ambos diferem no que concebem como sendo o elemento definidor da noção de luta. Conforme nos diz Frezzatti Jr.: “Ainda que, tanto para o filósofo alemão quanto para o cientista, a vida esteja baseada na luta, esta ocorre por motivos diferentes.” (p.71) Enquanto para Darwin a luta é entendida como luta pela sobrevivência, no sentido da conservação da vida e de produção de descendentes, para Nietzsche a luta ocorre não pela mera conservação da vida, mas antes para afirmação e expansão da força daqueles que combatem. A respeito da noção nietzschiana de luta, Frezzatti Jr. afirma ainda: “A conservação é apenas uma consequência indireta da busca por maior potência pelas forças do organismo: o vencedor desse conflito persiste.” (p.71) Assim, o elemento central da crítica de Nietzsche à luta pela existência de Darwin assenta na crítica que o filósofo alemão faz à noção de conservação subjacente ao pensamento do naturalista inglês. Nietzsche opõe à noção de conservação, como elemento central da luta pela existência, a noção de vontade de potência, como ponto fundamental da definição de luta.
No Capítulo 3 de Nietzsche contra Darwin, intitulado “A vida como superação contra a seleção natural”, Frezzatti Jr. esclarece o significado da crítica que Nietzsche faz à noção de seleção natural. De acordo com o Capítulo 3, a crítica nietzschiana à noção darwiniana de seleção natural tem como alvo a concepção que Darwin apresenta de seleção natural como preservação de variações favoráveis às espécies e recusa de variações desfavoráveis. Para Darwin, a seleção natural consiste na afirmação de que serão selecionadas e transmitidas aos descendentes as características vantajosas que permitem ao indivíduo sobreviver na luta pela vida. É justamente esta ideia da seleção das características vantajosas para a sobrevivência do indivíduo que é rejeitada por Nietzsche. De acordo com Frezzatti Jr., Nietzsche defende que são as características mais frequentes, e não as mais vantajosas, que são transmitidas à geração posterior. Para além disso, outro aspecto fundamental criticado por Nietzsche, que pode ser visto como uma consequência da afirmação darwinista segundo a qual a seleção natural seleciona as características vantajosas, diz respeito à ideia de progresso presente na seleção natural de Darwin. Segundo Frezzatti Junior, “Nietzsche declara que o darwinismo considera os processos evolutivos como progresso: o progresso é uma ‘ideologia darwinista’.” (p.107) O Capítulo 3 de Nietzsche contra Darwin apresenta dois motivos principais subjacentes à crítica nietzschiana da noção de progresso. O primeiro motivo consiste na ideia de que as formas mais elevadas surgidas no seio das espécies sucumbem face à superioridade numérica das outras formas. O segundo motivo assenta na afirmação de que a maior complexidade de uma forma implica a maior probabilidade da sua destruição.
Outro aspecto importante desenvolvido no Capítulo 3 de Nietzsche contra Darwin diz respeito à crítica nietzschiana ao progresso moral defendido por Darwin. Segundo Frezzatti Jr., apesar de a seleção natural darwinista não defender uma estrutura física ideal a ser atingida pelo organismo, o mesmo não acontece no que diz respeito à proposta de Darwin no campo da evolução moral. Segundo Frezzatti Jr., a moral é para Darwin uma qualidade com valor intrínseco. É precisamente neste ponto que Nietzsche se diferencia de Darwin ao pôr em causa, com o método genealógico, o valor dos valores morais. A defesa darwiniana do valor da compaixão, como elemento de conservação das espécies, é para Nietzsche sintoma de decadência, permeada pelo instinto de rebanho que luta apenas pela conservação. A uma moral da conservação de cunho darwiniano Nietzsche antepõe uma moral da criação, entendida como superação dos valores do rebanho e criação de novos valores.
O Capítulo 4 de Nietzsche contra Darwin, intitulado “Nietzsche contra a biologia de sua época: Haeckel, Lamarck e Darwin”, constitui-se como uma novidade na segunda edição desse livro, como clarifica Frezzatti Jr. na “Apresentação à segunda edição”. Esse capítulo encontra-se dividido em duas partes. A primeira parte, intitulada “1. Nietzsche contra Haeckel: aspectos da crítica ao mecanicismo no século XIX”, incide, como o próprio título indica, sobre as críticas que Nietzsche faz às teorias mecanicistas suas contemporâneas. Partindo de uma breve apresentação do desenvolvimento das teorias mecanicistas, com especial ênfase nos princípios mecanicistas subjacentes à filosofia monista de Haeckel, Frezzatti Jr. destaca que a crítica de Nietzsche ao mecanicismo da sua época se sintetiza naquilo que o filósofo alemão denomina de “psicologia grosseira”, a qual, de acordo com o autor de Nietzsche contra Darwin, se apoiaria em duas falsas crenças: em primeiro lugar, a crença na causalidade, isto é, a convicção de que para cada efeito existe algo, um sujeito, que é sua causa; em segundo lugar, a crença na existência de “átomos”, isto é, de unidades últimas e indivisíveis. Estas duas crenças denunciadas por Nietzsche, seriam, de acordo com Frezzatti Jr., subsidiárias dos preconceitos subjacentes à crença no “Eu” considerado como realidade dotada de vontade e unitária. Assim, enquanto a crença na causalidade seria o resultado de uma projeção para o mundo exterior da falsa crença na vontade do sujeito como causa das suas próprias ações, a crença em “átomos” da natureza seria, em contrapartida, resultado da projeção da falsa crença no sujeito como realidade unitária.
A segunda parte, intitulada “2. A construção da oposição entre Lamarck e Darwin e a vinculação de Nietzsche ao eugenismo”, é consagrada à elucidação e desmascaramento de algumas das teses que vinculam o pensamento nietzschiano a teorias eugenistas. Começando com a elucidação dos elementos comuns e de diferenciação entre o lamarckismo e darwinismo, a segunda parte do Capítulo 4 prossegue com a discussão acerca da análise de Claire Richter, na sua obra Nietzsche e as teorias biológicas contemporâneas, relativa à presença das teorias evolutivas no pensamento nietzschiano. De acordo com Frezzatti Jr., Richter defende a presença de um “lamarckismo semi-inconsciente” na obra de Nietzsche, isto é, o autor alemão seria um lamarckista sem o saber, uma vez que não teria lido diretamente as obras de Lamarck (assim como não teria lido também as de Darwin), considerando ao mesmo tempo a impropriedade daqueles que consideram Nietzsche como darwinista. Através de uma detalhada exposição da argumentação de Claire Richter na sua obra Nietzsche e as teorias biológicas contemporâneas, Frezzatti Jr. destaca que a classificação de Nietzsche como lamarckista serve o propósito implícito, presente na obra de Richter, de classificar o pensamento do autor alemão como eugenista, intuito esse que visaria o propósito da própria autora em divulgar ideias associadas ao eugenismo.
Na “Conclusão” de Nietzsche contra Darwin encontramos justamente o desmascaramento da ideia de que o pensamento de Nietzsche seria eugenista. Conforme nos diz Frezzatti Jr.: “Vários excertos da obra do filósofo alemão mostram que sua associação com ideias racistas, antissemitas ou relativas a um ‘arianismo’ ou ‘germanismo’ não passa de um erro grosseiro.” (p.206) Assim, segundo o autor de Nietzsche contra Darwin, os ideais eugenistas de uma raça pura ou superior, seriam do ponto de vista nietzschiano, estratégias de conservação de tipos decadentes. Por outro lado, a ideia de progresso em vista de um tipo ideal fixo que deva ser o ponto culminante do desenvolvimento da humanidade seria igualmente contrária à concepção nietzschiana de vida como autossuperação. O organismo e os seus impulsos, afetos e instintos são movidos pela continua autossuperação, a qual se dá não nível coletivo, mas a nível individual. Desta forma, a proposta eugenista de um tipo fixo a ser alcançado é, segundo Frezzatti Jr., inteiramente contrária ao quadro conceptual presente no pensamento nietzschiano.
Assim, todos os aspectos que temos vindo a expor permitemnos considerar o livro Nietzsche contra Darwin, na sua segunda edição revista e ampliada, como um importante contributo não só para os estudos relativos às relações entre Nietzsche e a tradição darwinista, mas também para elucidação de algumas das mais importantes conexões entre o pensamento nietzschiano e a biologia, abrindo o caminho para futuras investigações, debates e questionamentos sobre essas temáticas.
Nuno Ribeiro – Doutor em filosofia pela Universidade Nova de Lisboa. Atualmente realiza pós-doutorado na Universidade Federal de São Carlos (UFSCAR). Endereço eletrônico: nuno.f.ribeiro@sapo.pt.
Nietzsche | UFSB/Unifesp | 1996
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Espaço aberto para o confronto de interpretações, os Cadernos Nietzsche pretendem veicular artigos que se dedicam a explorar as ideias do filósofo ou desvendar a trama dos seus conceitos, escritos que se consagram à influência por ele exercida ou à repercussão de sua obra, estudos que comparam o tratamento por ele dado a alguns temas com os de outros autores, textos que se detêm na análise de problemas específicos ou no exame de questões precisas, trabalhos que se empenham em avaliar enquanto um todo a atualidade do pensamento nietzschiano.
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