Posts com a Tag ‘Cadernos do Tempo Presente (CTP)’
Chile despertó: lecturas desde la Historia del estalido social de octubre | P. Artaza, A. Candina, J. Esteve, M. Folchi, S. Grez, C. Guerrero, J. L. Martínez, M. Matus, C. Peñaoza, C. Sanhueza e J. M. Zavala
Chile despertó | Imagem: Contacto Digital
Publicada pela Universidad de Chile, editada por Mauricio Folchi e organizada em onze artigos produzidos por historiadores do Departamento de Ciências Históricas, a obra coletiva “Chile despertó: Lecturas desde la Historia del estallido social de octubre” buscou uma leitura de diversos ângulos dos movimentos que estouraram em outubro de 2019 no Chile e sua consequente crise política. Se durante os anos 1990 o Chile se encontrava permeado por conflitos e mobilizações sociais, a passagem para o século XXI trouxe todo um novo cenário político acompanhado pela reorganização do movimento estudantil secundário, durante a Revolução Pinguina de 2006, e universitário durante as marchas estudantis multitudinárias de 2011. Assim, como todo um contexto de diversas reformas para uma superação de “resquícios autoritários”, a exemplo da reforma constitucional de 2005 e a do sistema eleitoral em 2015. Como, por fim, acompanhado da emergência de uma nova coalizão de centro-esquerda, a Frente Ampla, sendo assim, o quadro amplo de inserção dos movimentos de 2019 parte de um largo cenário, tanto de reativação da sociedade civil, como de renovação política.II De maneira, que a Frente Ampla representou uma novidade pelo seu respectivo rompimento do cenário dominado por um antigo duopólio partidário.III
Estes movimentos espontâneos foram, segundo o editor e autor Mauricio Folchi, a maior mobilização das últimas décadas, os quais se materializaram na recuperação da figura dos cabildos em meio a uma população demandante de participação política. Tendo novas tecnologias sido a base para as suas convocações. Tais manifestações integraram uma proposição para um novo pacto social, de maneira, a serem mais do que um simples acúmulo de mal-estar de décadas. Antes, são produto da insatisfação carregada desde a Constituição de 1980, e das leituras de um Chile que parece nunca ter tido uma constituição, de fato, democrática. Tal crise, de modo geral, não se trata de apenas uma série de demandas sociais não atendidas, antes, são produtos da incapacidade de receber e processar tais demandas por parte do Estado. Leia Mais
Andar às voltas com o belo é andar às voltas com Deus. A relação de Dom Helder com as artes | N. D. de A. Cabral, L. Pina Neta
Este livro apresenta uma abordagem acerca da trajetória de inserção cultural de Dom Helder Câmara (1909 – 1999) em diversas áreas, traços esses que o destacou como liderança religiosa com forte participação no debate político nacional e internacional, levando-o a ser declarado oficialmente como o Patrono Brasileiro dos Direitos Humanos (2017). Os estudos que embasam esta publicação destacam aspectos de sua aproximação com o teatro e a literatura, ainda quando jovem na sua cidade natal, Fortaleza – CE, na década de 1920. Enfatiza seu gosto pelo campo da música, no Rio de Janeiro (1936); da literatura, da poesia, do rádio e até mesmo do cinema, em Recife, na condição de Arcebispo de Olinda e Recife (1964 – 1985). Trata-se de uma obra composta de doze artigos, organizada por Newton Cabral e Lucy Pina Neta, a partir de estudos realizados por docentes da Ciência da Religião e/ou da História, originados de seis instituições de ensino superior no Brasil (UNICAP, UPE, UFRG, UFSE, UFRPE e UP). Leia Mais
Governo Bolsonaro: neofascismo e autocracia burguesa no Brasil | Marcelo Badaró Mattos
O ano é 2020. O cenário é assombroso. A pandemia provocada pela disseminação do Coronavírus, vírus causador da COVID-19, fez do Brasil seu epicentro, deixando a população atônita perante o crescente quantitativo de mortes e a ausência de medidas de contenção do avanço da doença. É nesse contexto que Marcelo Badaró de Mattos, professor titular do Departamento de História do Brasil, da Universidade Federal Fluminense, finaliza seu livro intitulado Governo Bolsonaro: neofascismo e autocracia burguesa no Brasil, lançado pela Usina Editorial. Discute o processo que levou Jair Messias Bolsonaro à presidência da República Federativa do Brasil, em 2018, bem como os primeiros anos de seu governo, empreendendo uma análise crítica da situação política do país. Parte do fascismo histórico a fim de compreender a ideologia propagada pelo seu governo. À época do seu lançamento, mais de 30 mil mortes II eram contabilizadas no país, ao mesmo tempo em que o Presidente Jair Bolsonaro classificava a doença como uma gripezinha e afirmava eu não sou coveiro, frases constantemente declaradas por Bolsonaro ao ser questionado quanto a medidas mais efetivas em combate à disseminação da Covid-19. Leia Mais
A democracia na América: sentimentos e opiniões. De uma profusão de sentimentos e opiniões que o estado social democrático fez nascer entre os americanos – TOCQUEVILLE (CTP)
TOCQUEVILLE, A. de. A democracia na América: sentimentos e opiniões. De uma profusão de sentimentos e opiniões que o estado social democrático fez nascer entre os americanos. São Paulo: Martins Fontes, 2004. Resenha de: SOUZA, Clotildes Farias de. Associativismo voluntário, uma categoria central no pensamento de Alexis de Tocqueville. Cadernos do Tempo Presente, São Cristóvão, n. 17, p. 79-82, set./out. 2014.
A noção de associativismo voluntário foi apresentada por Alexis de Tocqueville2 na célebre obra “A Democracia na América”, escrita no ano de 1832, quando o autor retornara à França, depois de nove meses de estadia nos Estados Unidos da América em busca de informações sobre o sistema prisional e sobre a realidade política e cultural daquele país.3 Em que pese a importância da totalidade da obra para compreensão das idéias tocquevilianas sobre a democracia e os princípios de igualdade e liberdade inerentes que determinam o desenvolvimento sócio-político dos países europeus em comparação com os Estados Unidos da América, salienta-se aqui as idéias acerca do associativismo voluntário a partir do segundo volume da clássica obra.
Membro da nobreza francesa, Alexis de Tocqueville nasceu em Paris em 1805 e tinha menos de trinta anos quando escreveu o texto que marcaria a sua trajetória intelectual, ainda profundamente focado nas observações realizadas sobre a vida americana. O primeiro volume da sua principal obra foi publicado em 1835, com o subtítulo “leis e costumes”, contendo muitas impressões e interpretações acerca das diferenças constatadas entre o modelo norte-americano de sociedade e os padrões aristocráticos europeus.4 O segundo volume de “A Democracia na América” é de 1840 e tem como subtítulo “sentimentos e opiniões”; nele o autor reflete mais a própria natureza da democracia como modelo político, tratando do associativismo voluntário especificamente.
O associativismo voluntário ocupa lugar especial no segundo volume do livro que se apresenta dividido em quatro partes. A primeira parte trata da “Influência da democracia no movimento intelectual dos Estados Unidos” e a segunda parte é dedicada ao estudo de “A influência da democracia sobre os sentimentos dos americanos”. A terceira parte do livro aborda a “Influência da democracia sobre os costumes propriamente ditos” e a quarta parte trata “Da influência que as ideias e os sentimentos democráticos exercem sobre a sociedade política”. Encontra-se na segunda parte do livro o tema do associativismo, desenvolvido em quatro capítulos intitulados: 1. Como os americanos combatem o individualismo por meio de instituições livres; 2. Do uso que os americanos fazem da associação na vida civil; 3. Da relação entre as associações e os jornais; 4. Relações entre associações civis e associações políticas. Na quarta parte do livro ainda é encontrado um capítulo diretamente voltado ao tema, intitulado “A igualdade dá naturalmente aos homens o gosto pelas instituições livres”.
O conteúdo do livro evidencia o fato do associativismo voluntário ser uma noção central em Tocqueville, caracterizada como a força da democracia pelas oportunidades políticas que gera para os cidadãos reunidos em torno de um interesse geral. O espírito do associativismo expressa a liberdade política dos americanos que participam efetivamente do processo de elaboração das leis e da sua aplicação, organizados em instituições livres criadas na sociedade civil e voltadas para tomada de decisão sobre as questões banais do cotidiano e as mais relevantes questões da nação. Trata-se de uma tradição, de um hábito ou simplesmente de uma crença capaz de politizar a sociedade civil, tão importante quanto à legislação e mais importante que as condições geográficas favoráveis a democracia norte-americana.
Os americanos de todas as idades, de todas as condições, de todos os espíritos, se unem sem cessar. Não apenas têm associações comerciais e industriais de que todos participam, mas possuem além dessas mil outras: religiosas, morais, graves, fúteis, muito gerais e muito particulares, imensas e minúsculas; os americanos se associam para dar festas, fundar seminários, construir albergues, erguer igrejas, difundir livros, enviar missionários aos antípodas; criam dessa maneira hospitais, prisões, escolas. Enfim, sempre que se trata de pôr em evidência uma verdade ou desenvolver um sentimento com o apoio de um grande exemplo, eles se associam.5
A força das associações voluntárias no dia a dia da vida americana chega a ser uma lei mais extensiva que a do Estado aos olhos tocquevillianos; é a lei do autogoverno que orienta os americanos no sentido da conquista dos próprios objetivos. É a primeira lei da democracia que faz o povo americano sentir a coisa pública como sua e de todos, assim como a defender a igualdade porque assim os homens permanecem ou se tornam civilizados.
Quando os cidadãos são forçados a se ocupar dos negócios públicos, são necessariamente tirados do meio de seus interesses individuais e arrancados, de tempo em tempo, à visão de si mesmos. Quando o público governa, não há homem que não sinta o preço da benemerência pública e que não procure cativá-la, atraindo a estima e a afeição daqueles em meio dos quais tem de viver.6
Do movimento associativista fazem parte as associações políticas com a importante função de ensinar os homens a agirem cooperativamente em vista do bem-comum, gratuitamente, sem comprometimento do patrimônio particular. As associações políticas são instituições que cumprem a função de “[…] grandes escolas gratuitas, onde todos os cidadãos aprendem a teoria geral das associações”.7 Às sociedades políticas impõem-se limites para garantia da paz e do respeito às leis, dado o perigo da liberdade à democracia; ao direito dos cidadãos de se reunirem não pode haver restrições. Não há motivos para temer as sociedades políticas porque ao tempo em que exercem controle são também controladas pela própria sociedade civil que está subordinada a centralização governamental do Estado, ainda que livre da burocratização da administração pública. Em geral, nas associações políticas são renovados os sentimentos e as idéias tão necessários ao desenvolvimento humano; a liberdade e a civilização são garantidas em tais instituições porque a união dos membros que se encontravam separados inibe o individualismo ameaçador imposto pela igualdade de condições.
As instituições livres que os habitantes dos Estados Unidos possuem e os direitos políticos de que fazem tanto uso recordam sem cessar, e de mil maneiras, a cada cidadão, que ele vive em sociedade. Trazem a todo instante seu espírito à idéia de que o dever, tanto quanto o interesse dos homens, é tornarem-se úteis a seus semelhantes e como não vê nenhum motivo particular para odiá-los, já que nunca é nem seu escravo nem seu amo, seu coração se inclina facilmente para a benevolência.8 Justamente na capacidade de congregação reside a força de uma associação porque ali se consegue manter a relação de reciprocidade entre os homens tão necessária à democracia. Ali está o potencial de comunicação entre os membros da sociedade porque há instrumentos que representam as instituições e são criados para o exercício da liberdade de expressão; instrumentos como os jornais, por exemplo, os quais proporcionam a fala de uma só vez a todos aqueles que não se vêem ou se juntam diariamente, transmitindo simultaneamente os sentimentos ou ideais que estariam dispersos em cada individuo.
Acerca do associativismo voluntário de Alexis de Tocqueville resta afirmar que é uma categoria de análise bastante profícua para se pensar a cultura norte-americana e também outras formas de organização social e institucional em contextos históricos variados. É uma noção útil aos estudos comparados de modelos internacionais que foram apropriados pelos brasileiros, inclusive de modelos educacionais cujas representações históricas e culturais requerem observações específicas para reconhecimento e compreensão das analogias e diferenças existentes entre os diferentes fenômenos analisados.
Notas
2 TOCQUEVILLE, A. de. A democracia na América: sentimentos e opiniões. De uma profusão de sentimentos e opiniões que o estado social democrático fez nascer entre os americanos. São Paulo: Martins Fontes, 2004.
3 BASTOS, M. H. C. ARRIADA, E. A democracia na América, de Alexis de Tocqueville: uma leitura para a história da educação. Revista Educação Unisinos, 11(1), n. 1, p. 5-14, jan.-abr. 2007. Disponível em <http://www.ebah.com.br/content/ABAAAAmWoAI/a-democracia-na-america-alexis-tocqueville-leitura-a-historia-educacao>. Acesso em: 10 de fevereiro de 2012.
4 BEIRED, J. L. B. Tocqueville, Sarmiento e Alberdi: três visões sobre a democracia nas Américas. Revista História [online], vol.22, n.2, p. 59-78, 2003. Disponível em: http://www.scielo.br/pdf/rsocp/n15/a06n15.pdf. Acesso em: 17 de julho de 2014.
6TOCQUEVILLE, A. de. A democracia na América: sentimentos e opiniões. De uma profusão de sentimentos e opiniões que o estado social democrático fez nascer entre os americanos. São Paulo: Martins Fontes, 2004, p. 131.
6 Idem, p. 124.
7 Idem, p. 143.
8 Idem, p. 129.
Referências
TOCQUEVILLE, A. de. A democracia na América: sentimentos e opiniões. De uma profusão de sentimentos e opiniões que o estado social democrático fez nascer entre os americanos. São Paulo: Martins Fontes, 2004.
BASTOS, M. H. C. ARRIADA, E. A democracia na América, de Alexis de Tocqueville: uma leitura para a história da educação. Revista Educação Unisinos, 11(1), n. 1, p. 5-14, jan.-abr. 2007.
BEIRED, J. L. B. Tocqueville, Sarmiento e Alberdi: três visões sobre a democracia nas Américas. Revista História [online], vol.22, n.2, p. 59-78, 2003. Disponível em: http://www.scielo.br/pdf/rsocp/n15/a06n15.pdf. Acesso em: 17 de julho de 2014.
Clotildes Farias de Sousa – Mestre em Educação pela Universidade Federal de Sergipe-UFS. Coordenadora Pedagógica do Centro de Educação Superior a Distância – UFS. E-mail: clotildesfs@gmail.com.
A atuação de Joel Silveira na imprensa carioca (1937-1944) – FERRARI (CTP)
FERRARI, Danilo Wenseslau. A atuação de Joel Silveira na imprensa carioca (1937-1944). São Paulo: Cultura Acadêmica, 2012. Resenha de: LIMA, Cleverton Barros de. Atuação de Joel Silveira na imprensa carioca entre 1937 a 1944. Cadernos do Tempo Presente, São Cristóvão, n. 16, p. 76-79, mai./jul. 2014.
O reconhecimento da maestria jornalística do escritor Joel Silveira é algo notório, desde que escreveu, em 1943, a reportagem “Granfinos em São Paulo” para as páginas da revista Diretrizes. Com estilo apurado, pelos anos de escrita jornalística e literária, o autor de Onda Raivosa, título do primeiro livro de contos publicado em 1939, construiu uma marca inconfundível na forma de escrever para a imprensa.
A respeito desta rica produção de Joel Silveira, Danilo Ferrari debate nas 260 páginas do livro A atuação de Joel Silveira na imprensa carioca (1937-1944). Na realidade, a obra é fruto de um trabalho de mestrado com o mesmo título, desenvolvido programa de pós-graduação em História na Universidade Estadual Paulista (UNESP), Campus de Assis, em 2011. A obra também é um marco importante na historiografia sobre Joel Silveira, visto que, os poucos estudos são da área de comunicação social e letras.
O enfoque central desta investigação historiográfica é a profissionalização de Joel Silveira na imprensa carioca entre os anos de 1937 a 1944. Sendo assim, o autor recorreu principalmente aos dois periódicos, Dom Casmurro e Diretrizes, no qual o sergipano trabalhou, inclusive, na condição de diretor. Nestes anos de trabalho profissional nos jornais cariocas, Joel Silveira tornou-se um autor celebrado por seu estilo enxuto, mas evidentemente sofisticado. Reconhecido, inclusive, por Graciliano Ramos, o escritor mais admirado por Silveira, como expresso no seu livro de memórias, Na Fogueira (1998).
Assim, nos três capítulos de seu livro, Danilo Ferrari debate a respeito das nuances de um escritor que procurou seu espaço na imprensa da capital federal com obstinação e zelo de escritor. No primeiro capítulo do livro, o foco do trabalho é a biografia de Joel Silveira, seguida por um debate sobre sua obra memorialística. Neste tocante, o historiador utiliza a estratégia de compreender a autoimagem deste escritor nos diversos relatos em que se coloca como testemunha dos acontecimentos históricos. A primeira parte deste capítulo, se restringe a tratar Joel Silveira com a imagem publica vigente: o escritor que saiu do nordeste para buscar o sonho de tornar-se escritor. Não é sensato discordar desta linha de raciocínio, parte dela embasada na pena de Joel Silveira. Mas, ela é parcial, visto que o sergipano já possuía uma caminhada como escritor, pouco explorado na parte biográfica deste livro e pela historiografia.
Lembro ao leitor que Joel Silveira escreveu seu primeiro ensaio, a respeito do professor de sociologia do Atheneu Pedro II (Aracaju), Florentino Menezes, em 1934; dois anos depois, ele publicou pelo Grêmio Clodomir Silva, a novela vencedora do premio literário deste grêmio, intitulada Desespero; ainda deste momento de formação, o autor foi diretor do jornal A voz do Ateneu, órgão criado pelos alunos do “Grêmio Clodomir Silva”. São todas, experiências inegáveis do jovem escritor Joel Silveira, atraído pela reflexão política, e, sobretudo, pela literatura. Aliás, ao chegar ao Rio de Janeiro, em 1937, ele republicou a novela Desespero, uma declaração de sua paixão pela arte literária, tratada por ele de forma concomitante ao jornalismo. A propósito, essa novela, traz um debate interessante a respeito da condição do sertanejo fustigado pelas constantes secas o que decerto foi escrita em diálogo com romances como, Os Corumbas (1933), do escritor também sergipano, Amando Fontes.
No mais, Danilo Ferrari conclui o primeiro capítulo com um levantamento importante das obras de Joel Silveira e, em sequência, trabalha neste sumário bibliográfico, a produção memorialística. Excetuando-se os dois textos que citei, isto é, o ensaio de 1934 e a novela de 1936, o autor elenca as demais obras de Silveira, no período entre 1939 a 2004. De certo, um recurso imprescindível para os estudos sobre Joel Silveira, visto que, sumariza um quadro maior dos interesses intelectuais durante os mais de sessenta anos de atividade intelectual.
Com base no debate sobre as “escritas autorreferenciais”, Ferrari observa a construção da imagem de Silveira como parte de uma “disputa pela representação legítima de um passado” II·. Então, os embates entre Joel Silveira e outros intelectuais envolvidos na imprensa, como Carlos Lacerda, Samuel Wainer, Rivadavia de Souza e Edmar Morel, são parte da leitura que o historiador empreende em sua pesquisa. Ao que indica, a imagem sugerida neste estudo, parte dos jogos de poder para definir os lugares ocupados durante o período ditatorial, quando os atores utilizam da memória como ferramenta de construção da imagem pública.
No segundo capítulo, intitulado, “Nasce um jornalista: a experiência em Dom Casmurro”, o autor aprofunda seu olhar a respeito do trabalho de Silveira neste importante jornal opositor do Estado Novo. O Dom Casmurro tornou-se um veículo expressivo, desde os primeiros números, naquele fatídico ano de 1937. Fundado por dois conhecidos escritores, Brício de Abreu e Álvaro Moreyra, o jornal trouxe um profícuo debate a respeito da cultura brasileira, com forte ênfase na política inscrita nas questões estéticas. Mesmo ao afirmar-se contrário através do seu primeiro editorial, o Dom Casmurro, entrou na vida cultural brasileira, como forma de inscrever-se politicamente, como bem discutiu Ferrari. A longevidade desse periódico que remonta o período do Estado Novo, bem como, o jornal Diretrizes, sinaliza para a força do debate político que ali transcorria.
Joel Silveira aparece nas páginas do Dom Casmurro ainda em 1937, recém-chegado de Aracaju, e inicia sua participação como jornalista na redação. Ele aproveitou para inserir-se numa ampla rede de intelectuais que colaboravam neste jornal, que de certa forma dava espaço ao campo literário. Na realidade, a promoção intelectual de Joel Silveira, deveu-se, sobretudo, a um espaço de aperfeiçoamento de sua linguagem nos anos em que passou neste jornal; ele escreveu em diversos gêneros literários, como conto, crônicas, poesias, nas várias secções do periódico, sempre utilizando a seu favor o tom confessional, que marcou toda sua trajetória. Essa tática foi utilizada para analisar personagens históricos como Maria Antonieta, por exemplo, num intuito de trazer ao debate político a punição num período censório. Infelizmente, Ferrari pensa nos personagens utilizados por Joel Silveira nos artigos, nestes termos: “o conjunto desses artigos não possuía um objetivo com contornos definidos” III. Na sua acepção, os textos tratavam somente de uma estratégia de encontrar um espaço no jornal. É permissível pensar também que, Joel Silveira além de referendar o importante biografo de Maria Antonieta, Stefan Zweig, utilizou-a para denunciar a atitude impiedosa com os revoltosos. O certo é que, Silveira não escrevia nenhum texto sem uma resoluta estratégia política, no caso da rainha, o problema apontado para época foi à frivolidade. Ou seja, a escrita de perfis por Joel Silveira transita por um ato politico por excelência; entendendo assim, toda a escrita,IV como escrita política.
No último capítulo, intitulado, “Nasce um repórter: a atuação em Diretrizes”, Danilo Ferrari concluiu sua análise ao pensar o tempo de trabalho de Joel Silveira na revista Diretrizes. Antes, ele traz um apanhado interessante sobre esse periódico, ao discutir o papel político deste órgão inicialmente pró Vargas. Dirigido por Azedo Amaral e Samuel Wainer, o jornal, que saiu em abril de 1938, tornou-se espaço de trabalho de Joel Silveira no final de 1940. Apesar de sua vertente autoritária, na pessoa de Azedo Amaral, Diretrizes não manteve um discurso acolhedor das ingerências do Estado Novo. Entre os muitos colaboradores deste periódico, estavam os que não concordavam com a política de repressão, como “Graciliano Ramos, Gilberto Freyre, Rachel de Queiroz, Artur Ramos, Augusto Frederico Schmidt, Cassiano Ricardo, Sérgio Milliet, Manuel Bandeira, José Lins do Rego entre outros” V.
A mudança de Joel Silveira da revista Dom Casmurro para Diretrizes enquadra-se no momento de afirmação como repórter, segundo Danilo Ferrari. Neste novo espaço, Silveira escreveu uma das reportagens mais célebres do jornalismo brasileiro em 1943; “Granfinos em São Paulo”, chegou ao público como uma reportagem bem humorada dos ricos paulistanos e das figuras que mantinham a sociedade de luxo: os operários fabris. Nestas, e em outras reportagens de Joel Silveira, o elemento que traz o debate é a relação entre reportagem e ficção. Neste contexto, o historiador faz menção ao conceito de reportagem ao refletir, por exemplo, as contribuições de Paulo BarretoVI, o João do Rio.
De fato, nas primeiras décadas do século XX, o autor de A Alma encantadora das Ruas (1914-1917) delineou uma busca do repórter pelo ritmo frenético da rua. Apesar disso, é preciso considerar que a tradição do literato envolvido com jornalismo tem uma longa história no jornalismo inglês, quando pensamos em Charles Dickens, ao sair às ruas de Londres perseguindo as diversas ocupações da cidade. O uso das ferramentas literárias nas reportagens não denotou, desde Dickens, numa falta de rigor objetivo e factual; as imbricações de linguagens estiveram no fazer jornalístico, como em outros campos do pensamento. No século XIX, as ruas de Londres e Paris propiciaram na multidão, o espetáculo da pobrezaVII sem precedentes na história. Pensemos, por exemplo, em Jack London, quando se imiscuiu entre os moradores de ruas em Londres e escreveu o aclamado O povo do abismo (1903). Ou até, George Orwerll com os seus relatos sobre a experiência de mergulhar na pobreza extrema nos anos 1920, em Paris e Londres. Todos esses exemplos asseguram o caráter de proximidade entre o escritor e a reportagem e do uso das ferramentas literárias nestes relatos. Por isso, acredito que é necessário transpor as barreiras geográficas e perceber esse movimento de construção de um gênero difuso, pouco ortodoxo.
Com este estudo importante sobre a trajetória de Joel Silveira, a historiografia deixa os receios de trabalhar um autor não consagrado pelo cânon literário; é possível observar, então, novos sopros nos estudos de autores pouco celebrados. A contribuição desta leitura alarga a amplitude dos objetos de pesquisas, pois, problematiza uma percepção míope da trajetória deste escritor. O livro, então, debate sobre autoimagem, mas, sobretudo, nas memórias que Silveira escreveu como estratégia de endossar sua inserção profissional como repórter e, em sequência, recontar sua versão de um tempo passado e vivido, nesta era do testemunho.
Notas
2 FERRARI, Danilo Wenseslau. A atuação de Joel Silveira na imprensa carioca (1937-1944). São Paulo: Cultura Acadêmica, 2012. p.40.
3 FERRARI, Danilo Wenseslau. A atuação de Joel Silveira na imprensa carioca (1937-1944). São Paulo: Cultura Acadêmica, 2012. p. 81.
4 RANCIÈRE, Jacques. Políticas da escrita. Tradução de Raquel Ramalhete. Rio de Janeiro: Editora 34, 1995.
5 FERRARI, Danilo Wenseslau. A atuação de Joel Silveira na imprensa carioca (1937-1944). São Paulo: Cultura Acadêmica, 2012, p.144.
6 CAMILOTTI, Virgínia C. João do Rio: ideias sem lugar. Uberlândia: EDUFU, 2008.
7 BRESCIANI, Maria Stella Martins. Londres e Paris no século XIX. O espetáculo da pobreza.10ª. Reimpressão. São Paulo: Brasiliense, 2004.
Referências
BRESCIANI, Maria Stella Martins. Londres e Paris no século XIX: O espetáculo da pobreza. 10ª. Reimpressão. São Paulo: Brasiliense, 2004.
CAMILOTTI, Virgínia C. João do Rio: ideias sem lugar. Uberlândia: EDUFU, 2008.
FERRARI, Danilo Wenseslau. A atuação de Joel Silveira na imprensa carioca (1937-1944). São Paulo: Cultura Acadêmica, 2012.
FONTES, Amando. Os Corumbas. Rio de Janeiro: Schmidt, 1933.
LONDON, Jack. O Povo do Abismo. Tradução de Ana Barradas. Lisboa: Antígona, 2002.
RANCIÈRE, Jacques. Políticas da escrita. Tradução de Raquel Ramalhete. Rio de Janeiro: Editora 34, 1995.
RIO, João do. A Alma encantadora das ruas. (Org.) Raul Antelo, São Paulo: Companhia das Letras, 2008.
SILVEIRA, Joel. Desespero. Novela. Aracaju, 1936.
SILVEIRA, Joel. Florentino Menezes: ensaio. Aracaju: Ávila, 1934.
SILVEIRA, Joel. Onda raivosa. Contos. Rio de Janeiro: Editora Guairá. 1939.
SILVEIRA, Joel. Na Fogueira: Memórias. Rio de Janeiro: Mauad, 1998.
ORWELL, George. Na pior em Paris e Londres. Tradução de Pedro Maia Soares. São Paulo: Companhia das Letras, 2006.
ZWEIG, Stefan. Maria Antonieta. Retrato de uma mulher comum. Tradução de Irene Aron. Rio Janeiro: Zahar Editor, 2013.
Cleverton Barros de Lima – Mestre e doutorando em História pela UNICAMP, na área Política, Memória e Cidade. Bolsista FAPESP, e-mail: cleverton.lima@gmail.com.
O sentido da luta contra o africanismo eurocentrista – OBENGA (CTP)
BITTENCOURT, Silvia. A cozinha venenosa. Um jornal contra Hitler. São Paulo: Três Estrelas, 2013. Resenha de: AGUIAR, Fábio Fiore. Münchener Post: o Periódico que Combateu o Nazismo. Cadernos do Tempo Presente, São Cristóvão, n. 16, p. 80-82, maio/julho 2014.
Este livro de Silvia Bittencourt abre caminho para uma reflexão sobre a resistência alemã na imprensa contra o regime nazista. O livro trata do periódico Münchener Post, que durante as décadas de 20 e 30 do século XX combateu Hitler e seus correligionários durante a ascensão do regime nazista.
A autora conheceu o Münchener Post por meio do livro do jornalista Ron Rosenbaum, intitulado Para entender Hitler. Ela afirma que nesta obra, Rosenbaum faz um desafio para que algum alemão narre à história daqueles homens do Post. Ela aceita o desafio. Jornalista brasileira, mas morando a mais de 20 anos na Alemanha, Silvia Bittencourt realiza uma grande pesquisa nos arquivos do Münchener Post, e o resultado é o agradável livro A Cozinha Venenosa.
Em sua introdução, a autora chama atenção para o fato de ser uma história desconhecida, nunca relatada na história do jornalismo, sendo seu livro uma obra pioneira sobre os anos de resistência do Münchener Post ao regime nazista. A autora mostra que “a maioria dos netos e bisnetos dos redatores, colaboradores e advogados do jornal sabe muito pouco da atividade audaciosa, arriscada e persistente de seus avôs e bisavôsII”. Tal fato torna a pesquisa de Bittencourt ainda mais importante, pois muda a memória ou lacuna de esquecimento que se tinha sobre a resistência alemã em relação à ascensão nazista.
As décadas de 1920 e 1930 foram marcadas pela instabilidade política do pós-guerra, sendo uma época de radicalizações políticas, terreno em que Hitler e o NSDAP (Partido Nacional Socialista dos Trabalhadores Alemães) encontrariam espaço para difundir suas ideias de ódio e seu antissemitismo. No entanto, ao contrário do que se sabia até o lançamento deste livro, o partido nazista encontraria forte resistência na imprensa, pela parte do jornal de esquerda, vinculado ao partido social-democrata, o Münchener Post.
Era um jornal local, circulava na cidade de Munique, tendo uma tiragem modesta. No início da década de 1920, chegou em sua melhor fase, “a rodar tiragens de 60 mil exemplares, com 12 páginas diárias. O Crash de 1929, entretanto, pôs tudo a perderIII”. O jornal foi empastelado, destruído pelos nazistas por duas vezes, na última, em 1933, após a tomada de poder pelos nazistas foi fechado de vez.
O Post foi o primeiro jornal a alertar sobre o perigo do discurso antissemita de Hitler e do NSDAP, e logo o elegeu como principal adversário político a ser derrotado. O Post estava ligado ao partido social-democrata, representando em suas páginas a luta e as bandeiras do partido. Da mesma forma, contudo, o partido nazista também utilizava a imprensa para divulgar seu programa de governo, através do periódico Völkischer Beobachter. Quando a SA (tropa de assalto nazista) destruiu a sede do Münchener Post, o jornal de Hitler noticiava: “A cozinha venenosa na Altheimer Eck foi demolidaIV”. Cabe dizer que o jornalismo deste tempo se difere em muito do praticado atualmente, que mesmo sendo influenciado por patrocinadores, não serve como plataforma política de um partido, ou ao menos não deveria.
Adolf Hitler se referia ao Münchener Post como Münchener Pest, ou “a cozinha venenosa”. “Cozinhar, no jargão da imprensa, é reescrever um texto já publicado. No caso do Post, Hitler dizia que o jornal preparava seus textos com venenoV”. E o Post era realmente sensacionalista, em uma época de extremos o mais importante é vencer o inimigo, os meios para isso não precisam ser os mais corretos. Assim, o Post publicava matérias sem realmente ter certeza de sua fonte de informação, de maneira sensacionalista o importante era flechar o golpe. Um caso citado por Bittencourt foi o ataque do Münchener Post a sexualidade do comandante da SA Ernst Röhm. Era de conhecimento geral que o líder das tropas de assalto nazista era homossexual, contudo não se haviam provas. No entanto chegaram às mãos do Münchener Post cartas que provavam a homossexualidade de Röhm. O Post se viu em um dilema, “era oficialmente a favor da descriminalização do homossexualismo. Para os jornalistas da Altheimer Eck, no entanto, a tentação de atingir uma das figuras mais próximas de Hitler falou mais alto do que o dilema moralVI”.
Após a tomada de poder pelos nazistas o Münchener Post foi destruído, e seus editores presos. Alguns conseguiram fugir da Alemanha e o regime nazista finalmente detinha exclusividade na divulgação de notícias. De acordo com Bittencourt, “até o final de 1936, entre quinhentas e seiscentas publicações desapareceram no país, fechadas pela horda nazistaVII”.
O livro traz um conjunto de fotografias da época e uma coletânea de algumas matérias publicadas pelo Post. Apresenta boa escrita, certamente uma leitura interessante e agradável.
O debate sobre a imprensa durante a Segunda Guerra é de interesse geral, assim como a obra de Silvia Bittencourt. Sua pesquisa pode clarear nosso presente, trazendo ao público uma história que ficou desconhecida, mas que sobremaneira não deveria. Atualmente não há no antigo prédio do Münchener Post uma placa ou homenagem aos jornalistas daquele jornal. O livro de Silvia Bittencourt vem fazer justiça àqueles homens que lutaram contra o regime nazista, um monumento em homenagem aos jornalistas do Münchener Post. É o tipo de história que vale a pena ser contada, que move o presente, e não só faz justiça aos jornalistas deste periódico, como acrescenta linhas de resistência à história alemã contra o regime nazista. “Quem passeia hoje pela Altheimer Eck, distraído, está desfrutando da herança deixada por aqueles homens, que nunca perderam a esperança na construção de uma Alemanha livre e pacífica”.8
Notas
2 BITTENCOURT, Silvia. A cozinha venenosa. Um jornal contra Hitler. São Paulo: Três Estrelas, 2013, pp. 9.
3 Ibidem, p. 16.
4 Ibidem, p. 144.
5 Ibidem, p. 13.
6 Ibidem, p. 232.
7 Ibidem, p. 238.
8 Ibidem, p. 308.
Referência
BITTENCOURT, Silvia. A cozinha venenosa. Um jornal contra Hitler. São Paulo: Três Estrelas, 2013.
Fábio Fiore de Aguiar – Mestrando em História pela UEL. Bolsista da CAPES.
A sombra do ditador: memórias políticas do Chile sob Pinochet – MUÑOZ (CTP)
MUÑOZ, Heraldo. A sombra do ditador: memórias políticas do Chile sob Pinochet. Tradução: Renato Aguiar. Rio de Janeiro: Zahar, 2010. Resenha de: MOURA, Lyyse Moraes. A sombra do ditador: memórias políticas do chile sob Pinochet. Cadernos do Tempo Presente, São Cristóvão, n. 14, p. 85-88, out./dez. 2013.
Augusto Pinochet é um dos políticos sul-americanos mais conhecidos no mundo. Durante 17 anos, o general chileno governou uma ditadura sangrenta, responsável por cerca de 40 mil vítimas de prisão, tortura, assassinato ou desaparecimento. Esse personagem, contudo, também é reconhecido como aquele que impôs o neoliberalismo ao Chile, elevandoo a uma das nações mais desenvolvidas da América Latina.
Embora ele seja considerado por muitos um símbolo de tirania e crueldade, devido aos resultados econômicos que obteve, alguns o veem como o líder que, apesar do governo tirânico, recuperou a economia chilena e lançou as bases do crescimento e da modernização.
Diante disso, cabe a seguinte pergunta: Pinochet foi realmente necessário ao desenvolvimento do Chile? O livro A sombra do ditador, de Heraldo Muñoz, se propôs a responder esse questionamento e investigar o impacto de Pinochet na história contemporânea, analisando os vários significados que a figura desse ditador evoca. Muñoz vivenciou o processo que levou Pinochet ao poder e participou da resistência à ditadura, sendo um dos fundadores do movimento que reestabeleceu a democracia no Chile em 1990. Por essa razão, a obra entrelaça as memórias políticas do autor a um amplo material de pesquisa, como documentos secretos americanos e chilenos, e entrevistas com as principais figuras envolvidas na história do Chile nas últimas décadas.
O livro inicia narrando os acontecimentos de 11 de setembro de 1973, dia do golpe de Estado que derrubou o presidente Salvador Allende, e vai até a eleição de Michelle Bachalet em 2006. Muñoz aborda episódios marcantes da época, como o atentado à vida de Pinochet, a criação da Dina (Directión de Inteligencia Nacional), a Operação Condor, e os assassinatos do general Carlos Prats em Buenos Aires e de Orlando Letelier em Washington.
O autor relata como Pinochet aderiu ao golpe “no último minuto” e rapidamente ascendeu ao poder supremo, criando uma ditadura pessoal e transformando a polícia secreta em um aparato repressor e violento que perseguia os oponentes políticos do ditador. Ele também descreve os processos que resultaram na implementação de um novo modelo econômico no Chile, desenvolvido pelos chamados “Chicago Boys” – economistas neoliberais chilenos que tinham estudado com o economista norte-americano Milton Friedman, na Universidade de Chicago. Segundo Muñoz, sem esse modelo econômico inovador, Pinochet seria “um capítulo menor na história dos ditadores militares latinoamericanos”.
II Além de narrar acontecimentos que marcaram a época, Muñoz analisa o papel dos Estados Unidos no golpe e na manutenção da ditadura Pinochet. De acordo o autor, Richard Nixon e Henry Kinssinger tornaram-se figuras extremamente vinculadas a Pinochet e ao Chile. Ambos dedicaram tempo e recursos à erradicação do que percebiam como “ameaças comunistas” nas Américas e apoiaram o ditador chileno em sua gestão. As relações entre Estados Unidos e Chile abalaram-se quando a polícia secreta chilena assassinou o antigo ministro de Salvador Allende, Orlando Letelier, nas ruas de Washington. Além desse fato, com o enfraquecimento da União Soviética, o ditador chileno tornou-se cada vez menos necessário aos interesses do governo norte-americano.
Ainda nesse contexto, o autor destaca que o regime Pinochet reflete a história das relações entre os Estados Unidos e a América Latina, e com o que outrora foi denominado Terceiro Mundo. Ferdinando Marcos nas Filipinas, Manuel Noriega no Panamá, Anastácio Somoza na Nicarágua, foram todos – assim como Pinochet – em algum momento apoiados pelos Estados Unidos, mas depois abandonados ou combatidos pelo governo norteamericano.
III Após analisar o desenvolvimento alcançando pelo Chile, através do plano econômico dos “Chicago Boys”, Eraldo Muñoz descrever as execuções, torturas e desaparecimentos que se tornaram a marca registrada do regime Pinochet: Havia, por exemplo “o submarino”, em que o prisioneiro era afundado num tanque de água cheio de excrementos e amônia até começar a afogar-se; a parrilha (grelha elétrica), na qual uma vítima nua e ensopada era amarrada à estrutura metálica de um colchão de molas enquanto lhe davam choques na boca, nos ouvidos e nos órgãos sexuais (…) Dedos e unhas foram extraídos com alicates; ratos foram introduzidos nas vaginas de mulheres. Muitas mulheres foram brutalmente estupradas; mulheres grávidas eram torturadas e mortas; outros prisioneiros eram obrigados a jogar roleta russa, sofrer privação de sono e de comida, passar por execuções simuladas e muito mais.IV Centenas morreram, em particular durante as primeiras semanas e meses após o golpe. Campos de concentração foram abertos em todo o Chile: Chacabuco, Pisagua, Quiriquinas, ilha Dawson, Ritoque, Tejas Verdes, Londres 38, Villa Grimaldi, José Domingos Cañas, Academia de Guerra Aérea e Escuela de Caballería de Quillota são somente alguns dos lugares onde os chilenos foram presos, torturados e assassinados.V Além dos atos violentos cometidos durante a ditadura, os partidos políticos foram totalmente banidos, e todos os demais partidos foram postos “em recesso”. O congresso nacional foi fechado, as eleições suspensas indefinidamente e os registros eleitorais destruídos. No início de 1974, cerca de 50% dos jornalistas chilenos estavam desempregados.
Dos 11 jornais que existiam no período do golpe, apenas 4 permaneceram. As estações de rádio esquerdistas foram bombardeadas ou fechadas pelos militares.VI Nos anos 1980, os movimentos de resistência contra a ditadura começaram a sair da clandestinidade e a desenvolver atividades abertas. Participante da luta pela democracia, Muñoz aponta que houve divergências sobre a melhor estratégia para derrubar o regime Pinochet. O Partido Comunista optou pela luta armada – alguns integrantes do partido até tentaram matar o ditador –, enquanto os demais grupos adotaram como estratégia a participação no plebiscito de 1988, em que Pinochet foi candidato único numa votação decisiva entre “sim” – confirmando a permanência do general por mais 8 anos no poder – e “não” – defendendo o fim de sua gestão. A surpreendente vitória do “não” anunciou o encerramento do domínio do ditador.
Em 1990, a democracia foi reestabelecida no Chile. Pinochet, entretanto, permaneceu na direção do exército e, em seguida, tornou-se senador vitalício no Congresso Nacional. Em outubro de 1998, o ditador foi preso em Londres, em decorrência de um mandado expedido por um juiz espanhol. Por motivos de saúde, as autoridades britânicas permitiram que ele retornasse ao Chile em 2000. Nesse mesmo ano, o general foi acusado pela lei chilena e posto em prisão domiciliar.
Pinochet faleceu em dezembro de 2006. Embora fosse processado sob diversas acusações e estivesse sob prisão domiciliar quando morreu, jamais foi declarado culpado e sentenciado por seus crimes. Nas palavras de Muñoz, o ditador “tirou pela vantagem dos direitos a ele garantidos pelo processo legal – direitos que foram negados às suas vítimas – e adiou indefinidamente o dia do ajuste de contas”.VII Muñoz encerra sua obra respondendo ao questionamento inicial: Pinochet foi realmente necessário? Para o autor, não. A repressão e a violência sistemática contra oponentes políticos não era inevitável. Em um contexto democrático, as reformas econômicas de Pinochet certamente sofreriam a oposição de sindicatos trabalhistas, partidos políticos e membros do congresso. Entretanto, sua implementação – mesmo sob regime autoritário – não exigia o assassinato de milhares de dissidentes, tortura e desaparecimento de prisioneiros políticos. O regime de Pinochet não foi um mal necessário.
O autor nega a premissa de que o desempenho econômico do general compensa seus “excessos”. Ele defende, ainda, que o Chile não precisaria passar por uma ditadura para ter alcançado o seu atual nível de prosperidade e, nesse sentido, cita o exemplo de países latinoamericanos que passaram por crises econômicas nos anos 1980 e decidiram estabelecer reformas econômicas radicais, num contexto razoavelmente democrático.
A sombra do ditador expõe as diversas faces da ditadura Pinochet, e permite ao público conhecer as entranhas do regime militar chileno. Ao articular a trajetória política do autor à documentação sobre a época, a obra contribui para o conhecimento do processo de transição da ditadura à democracia no Chile. O livro é recomendado a todo aquele que se interesse em conhecer a complexidade desse período.
Notas
2 MUÑOZ, Heraldo. A sombra do ditador: memórias políticas do Chile sob Pinochet. Tradução: Renato Aguiar. Rio de Janeiro: Zahar, 2010, p. 09.
3 MUÑOZ, Heraldo. Op. cit., p. 359.
4 MUÑOZ, Heraldo. Op. cit., p. 65.
5 MUÑOZ, Heraldo. Op. cit., p. 65.
6 MUÑOZ, Heraldo. Op. cit., p. 71.
7 MUÑOZ, Heraldo. Op. cit., p. 348.
Referências
MUÑOZ, Heraldo. A sombra do ditador: memórias políticas do Chile sob Pinochet. Tradução: Renato Aguiar. Rio de Janeiro: Zahar, 2010.
Luyse Moraes Moura – Bolsista PIBIC/CNPq. Graduanda em História/UFS. Integrante do Grupo de Estudos do Tempo Presente. E-mail: luyse@getempo.org. Orientador: Prof. Dr. Dilton Cândido Santos Maynard (DHI/UFS).
White Power Music
SHEKHOVTSOV, Anton; JACKSON, Paul (Orgs.). White Power Music: Scenes of extreme-right cultural resistance. Northampton: RNM Publications, 2012. Resenha de: OLIVEIRA, Pedro Carvalho. A extrema-direita faz barulho: música, fascismos e intolerância no recente cenário europeu. Cadernos do Tempo Presente, São Cristóvão, n. 14, p. 81-84, out./dez. 2013.
Em 06 de agosto de 2012, o ex-militar norte-americano Wade Michael Page, então com 40 anos, entrou um templo Sikh na pequena cidade de Oak Creek, em Winscosin, munido de uma submetralhadora, com a única intenção de ferir os fieis que praticavam seus rituais religiosos naquela manhã de domingo. O resultado foi a morte de 8 pessoas, incluindo um policial e o próprio Page, que cometera suicídio. Naquele mesmo ano os Estados Unidos já havia se chocado com dois crimes semelhantes: os massacres da escola primária de Sandy Hook, em 14 de dezembro, e de Aurora, no Colorado, em 20 de julho. No entanto, o crime cometido por Wade Michael Page levantou no país novos questionamentos, além do já tradicional debate sobre as armas.
No mesmo dia em que o fato ocorreu, o The New York Times publicou uma matéria intitulada “Winscosin killer fed and was fueled by hate-driven music”II (ou “o assassino de Winscosin alimentava e era alimentado por músicas guiadas pelo ódio”).
A chamada Hate Music, a qual Page era adepto por meio do White Rock, passou a ganhar destaque junto ao crime, não sendo representada apenas como um mero detalhe, mas como um relevante motivador da intolerância praticada por ele. Tratam-se de gêneros musicais voltados ao ódio ao Outro, a tudo e todos que não se aproximam do ideal de raça e sociedade que as bandas, em sua maioria composta por skinheads fascistas, defendem.
Mas o que é este grande rótulo musical chamado Hate Music e, principalmente, seu mais ativo subgênero, o White Rock? Estas questões são exploradas a fundo no livro “White Power Music: Scenes of extreme-right cultural resistance”, publicado em 2012 e organizado pelo historiador Paul Jackson e pelo cientista político Anton Shekhovtsov, através da RNM Publications. Sua produção independente é resultado de trabalhos realizados pelo “Radicalism and New-Media Research Group”III (“Grupo de pesquisas em radicalismo e novas mídias”), da University of Northampton, na Inglaterra, e compila nove artigos dedicados às “músicas de ódio”.
Trata-se de uma publicação inédita no Brasil, cujo acesso está limitado aos próprios sites do grupo e de seus colaboradores, podendo ser adquirido pelo valor de 12 libras (aproximadamente R$44,00). Ela faz parte da série “Mapping the Far-Right”, cujo objetivo é realizar um mapeamento de ações da extrema-direita na Europa, de onde são provenientes todos os autores que colaboram com o livro. Neste caso, é o rock fascista que ganha destaque em artigos que abordam sua presença em diferentes países: Alemanha, França, Suécia, Grécia, Hungria, Romênia e República Tcheca. Há também a presença de textos que não necessariamente abordam os cenários musicais, mas os personagens do White Rock, a simbologia, debates sobre gêneros nos círculos fascistas e a participação a importância da informática para os músicos.
É Anton Shekhovtsov que, em sua introdução, faz uma síntese do que é o White Rock, como surgiu e por que é um objeto tão importante para compreender a existência dos fascismos na Europa atualmente. Com isto, o leitor desavisado situa-se no tema que será explorado repetidas vezes. Embora certos aspectos sejam abordados muitas vezes no decorrer do livro por diferentes autores, há variadas visões sobre uma ou outra conceituação, diferentes formas de abordagem e possibilidades múltiplas de questionamentos, que acabam realizando uma rede de informações.
Por exemplo, embora alguns textos, como o livro “Diário de um skinhead: Um infiltrado no movimento neonazista”, do jornalista espanhol Antonio Salas, afirmem que o White Rock possui uma relação de troca entre músicos e partidos de extremadireita, onde jovens são recrutados aos partidos pelas músicas e os partidos financiam as bandas, a socióloga Chiara Pierobon apresenta sistematicamente evidências que comprovam esta relação. Ela afirma, graças a uma metodologia específica, apresentando tabelas com resultados numéricos de pesquisas, que em meio à crise das organizações de extrema-direita na Alemanha, a música é vista como um elemento agregador central.
O White Rock age, portanto, como um instrumento ideológico e de socialização. Neste sentido, estamos acostumados a pensar que as bandas são meros fantoches para os partidos, detentores do patrocínio que será utilizado em seu benefício, como se estivesse contratando um serviço. Mas o historiador francês Nicolas Lebourg e seu colega Dominique Sistach, tentam provar o contrário quando afirmam que os grupos políticos “Nouvelle Resistance” e “Unité Radicale” passaram a usar em adesivos e panfletos um símbolo que representava a banda “Fraction”.
Um dos artigos que mais chama a atenção é escrito pela socióloga grega Sofia Tipaldou, abordando a presença do subgênero na Grécia atualmente, diante de um cenário de crise onde a participação política ativa do “Aurora Dourada”, partido explicitamente neonazista, vem sendo observado com preocupação. Ela afirma que a música vem sendo cada vez mais difundida entre os parceiros do partido e explorada como mecanismo político. Isto revela o papel da música não como forma de entretenimento, mas um agente em nome das causas fascistas. Esta faceta evidencia-se na frase que acompanha a logo do selo musical Black Sun Rising Records, usado pela autora pala ilustrar este pensamento: “Algum dia eles desejarão que nós estejamos fazendo apenas música”.
Respeitando suas metodologias, suas ciências e pesquisas específicas, os autores concordam que o White Rock é um tipo de música que exalta as ideologias e práticas fascistas, buscando uma doutrinação de seus ouvintes por meio de suas bandas. Mais do que isto: evoca seus ouvintes a realizarem atos de violência intolerante contra todos que se mostram contrários às suas visões de mundo, ou diferentes dos indivíduos que integrariam suas “sociedades perfeitas”. Todo este pensamento é confirmado por Paul Jackson, ao fim do livro. Ele estabelece que o principal objetivo do livro é expor diferentes propostas de abordagem deste que é um tema importante para compreender os fascismos no Tempo Presente.
A música como meio de comunicação e propaganda entre os fascistas de hoje é sempre uma questão levantada por autores que exploram seus principais consumidores, os skinheads. A diferença apresentada neste livro é que a música é um elemento central, abordado com minúcia pelos colaboradores. Estes, por sua vez, não recebem detalhamentos importantes que normalmente são incluídos em outros livros, como as áreas em que atuam ou outras contribuições que já realizaram, sendo necessário recorrer aos seus currículos para conseguir estas informações.
Os textos que compõem “White Power Music: Scenes of extreme-right cultural resistance” oferecem novas análises sobre as mudanças nos fenômenos fascistas da atualidade por meio da música. Nos mostram que este subgênero preserva narrativas ultranacionalistas e racistas, recrutando jovens às causas políticas envolvidas com os fascismos. Além disto, o White Rock evoca confrontos urbanos onde a violência ao Outro é levada às últimas consequências.
Referências
SHEKHOVTSOV, Anton; JACKSON, Paul (Orgs.). White Power Music: Scenes of extreme-right cultural resistance. RNM Publications: Northampton, 2012.
Pedro Carvalho Oliveira – Graduado em História pela Universidade Federal de Sergipe. Integrante do Grupo de Estudos do Tempo Presente (GET/CNPq/UFS).
A Segunda Guerra Mundial: História e estratégias – MASSON (CTP)
MASSON, Philippe. A Segunda Guerra Mundial: História e estratégias. São Paulo: Contexto, 2011. Entre operações e táticas: mais uma história sobre a Segunda Guerra Mundial. Resenha de ASSIS, Raquel Anne Lima. Cadernos do Tempo Presente, São Cristóvão, n. 13, p. 76-78, jul./set. 2013.
Rock and Roll: Uma História Social – FRIEDLANDER (CTP)
FRIEDLANDER, Paul. Rock and Roll: Uma História Social. Tradução de A. Costa. 4 ed, Rio de Janeiro: Record, 2006. 485pp. Resenha de: ROCHEDO, Aline. Um olhar sobre o livro, Rock and Roll: Uma História Social. Cadernos do Tempo Presente, São Cristóvão, n. 13, p. 71 – 75, jul./set. 2013.
Para os estudiosos, os curiosos e os apaixonados por música, em especial o rock, apresento o livro que pode ser considerado uma odisseia sociomusical do “rock and roll”. O autor, Paul FriedlanderII, nos relata os primeiros trinta anos da música pop/rock e apresenta os vários estilos musicais oriundos da mesma matriz rítmica. São dezenove capítulos que narram o processo de consolidação do gênero, assim como as peculiaridades dos artistas e lugares por onde engendrou o rock. Tais capítulos apresentam a narrativa histórica do rock a partir do “blues rural” seguido pelo desenvolvimento do “blues urbano”, do “gospel” e do “jump band jazz” no início do século XX, até a chamada “new wave” nos anos 1980.
A narrativa do livro propõe que os estilos musicais oriundos do rock passaram por ciclos de vida. A princípio, estilos emergentes procuram forma e configuração em um processo que pode ser chamado de formulação. Em seguida, os artistas incorporam elementos disponíveis de fontes próximas de sua realidade. Nessa perspectiva, os novos estilos tendem a surgir e existir em um nível regional, desconhecidos de um público maior, antes de explodir em um conhecimento de massa. Tal dinâmica foi percebida nas quatro principais explosões do rock: rock clássico, a invasão inglesa, o hard rock e o punk.
Segundo o autor, os principais marcos identificáveis da história do rock internacional são divididos em cinco momentos: primeiro, de 1954-1955, com a explosão de rock and roll clássico; segundo, entre 1963-1964 com a invasão inglesa; terceiro, 1967-1972, conhecido como a era de ouro (o amadurecimento sincrônico de artistas de vários gêneros, incluindo a primeira invasão inglesa e a ascensão dos reis da guitarra); quarto, de1968-1969 com a explosão hard rock; e quinto, de 1975-1977 com a explosão punk.
O trajeto proposto no livro inicia-se nos anos 1940-1950 quando rock surge como gênero musical de origem negra. Os estilos que influenciaram o “rhythm and blues” e, consequentemente, o rock and roll foram: o “blues” no qual as letras falavam de adversidade, conflitos e, ocasionalmente, celebrações; o “gospel”, nos diálogos de chamado e resposta, originários dos cantos africanos aos quais também inspirou gestos livres durante as apresentações e o “jump band jazz”, estilo que emergiu no rastro do fim da era das grandes bandas no final da Segunda Guerra Mundial. Essa fusão tornouse, posteriormente, a base para a primeira era do rock, o rock and roll clássico.
A visão de mundo do “rhythm and blues” era mais otimista do que a do estilo predecessor, o blues da época da depressão, embora ainda tivesse raízes profundas na liberdade e nas experiências de vida real. Como seu público, os roqueiros clássicos vislumbraram uma válvula de escape musical e emocional. O humor esteve presente como elemento que diferenciou o gênero, numa mensagem aparentemente inofensiva como nas canções de Chuck Berry, Eddie Cochran, Carls Perkins, Little Richard, o que também corroborou para definir sua identidade. Sendo um gênero da música negra, embora se identifique elementos europeus, esses pioneiros do rock forjaram uma fusão de estilos. Assim, apareceram duas gerações distintas: “artistas predominantemente negros, que ficaram populares antes de 1956; e o grupo branco com raízes country e liderados por Elvis, que levou o gênero ao sucesso comercial”.III Nos anos 1950, principalmente por sua origem negra, uma forte pressão foi exercida contra o rock por líderes religiosos, órgãos oficiais e interesses de gravadoras junto à indústria fonográfica. A campanha desenvolvida por meio de uma parcela da sociedade como pais, pastores, professores, ressoava a antipatia ao gênero, no qual os artistas eram caracterizados delinquentes juvenis, preguiçosos e indolentes. As gravadoras, por sua vez, tinham grandes interesses na queda do rock and roll e do “doowop”( um estilo de música vocal), pois nestes estilos elas tinham pouco poder de ação.
Durante praticamente os anos de 1953-1955, essa prática teve o efeito de obscurecer as versões negras originais. Devido a pressão em recusar o rock, houve uma espécie de enfraquecimento, como se o gênero perdesse a popularidade e a força, principalmente por não aceitarem a integração racial.
Nos anos 1960 a música popular negra estava dividida em dois estilos bem diferentes e distintos: o “soul”, o som abrasador, forte e relevante de Memphis e a “Motown”, o som elegante, dançante e mais popular de Detroit. Ambos tinham origem no “gospel”, “doo-wop” e no “rhythm and blues”, mas cada um construiu de forma diferente suas músicas, a partir dessas influências. Poucas músicas do repertório soul eram destinadas ao movimento pelos direitos civis dos negros que estava em curso. No entanto, a música foi adotada pela comunidade negra como símbolo e referência: “A „soul music‟ ajudou a criar a atmosfera na qual o orgulho negro cresceu”.IV O estilo que emergiu no início dos anos 1960 e adentrou os anos 1970, deixou importante legado para a geração seguinte envolvida com funk.
Enquanto os últimos acordes do rock clássico ecoavam na cena musical americana, a juventude inglesa nos anos 1960 começava a se apropriar de um novo ritmo, uma fusão entre o rock clássico, rockabilly, blues e pop, que posteriormente acabou retornando aos Estados Unidos. Tal fusão se tornou o gênero de maior sucesso comercial e de crítica da história da música popular. Tanto a música quanto a sua travessia pelo Atlântico foram chamados de “invasão inglesa”. Assim, os Beatles trilharam um caminho que não havia sido explorado antes. Admiradores dos astros Chuck Berry e Elvis Presley, o quarteto mais famoso da Inglaterra, registrou o rock inglês a seu modo.
No primeiro período da explosão Beatles as letras remetiam ao universo juvenil da sensibilidade adolescente nas relações de amizade e namoro. Posteriormente, o grupo adquire um perfil amadurecido com letras e músicas mais elaboradas mostrando uma visão de mundo crítica. Criando uma linguagem musical própria, a banda influenciou o comportamento juvenil de sua época conquistando fãs em todas as partes do mundo.
Outro importante grupo, os Rolling Stones ao lado dos Beatles, protagonizou a chamada “invasão britânica” que projetou os artistas ingleses nas paradas dos EUA.
Entre 1965 e 1970 várias bandas foram formadas, fermentando a mistura de folk-rock. No período, Bob Dylan, jovem estadunidense, configurou o rock ao seu estilo. A música folk sempre foi uma parte importante da tradição musical americana, e as canções de protesto, histórias pessoais ligadas aos eventos sociais correntes, são partes essenciais de sua herança. Embora Dylan não tenha protagonizado inovações na stética musical, suas letras, extremamente conscientes, poéticas e profundas influenciaram a utilização do rock como meio de contestação.
No final dos anos 1970, importantes tendências econômicas e artísticas estavam afetando o modo pelo qual a música era criada e vendida. Gravadoras e programas de rádio davam pouca chance a talentos desconhecidos, apostando somente nos artistas já consagrados. O público, cansado das mesmas músicas e do aumento do preço dos discos, começou a reagir. Assim, o surgimento da tecnologia da fita cassete, essa que permitira a gravação caseira, aliado a outras variáveis econômicas e a perda do interesse do consumidor, causou uma queda nas vendas de discos. Foi neste contexto, economicamente orientado e controlado que explodiu o estilo simples, primário e contestador chamado punk-rock.
Os grupos punks de jovens ingleses revoltados berravam letras polêmicas sobre cultura e política com um rock simplista e distorcido. Embora o punk nunca tenha se tornado um gênero comercial viável, o seu foco nas mazelas da sociedade passou a ser um dos seus elementos mais copiados. Os grupos punks anglo-americanos, como Sex Pistols e The Ramones, desprezavam o apuro técnico-formal da música utilizando poucos e fáceis acordes. Os punks acreditavam numa arte crua que atingisse o público e mexesse com suas emoções. Para os artistas envolvidos no processo de consolidação desta vertente do rock, toda interpretação do mundo devia passar pela perspectiva punk.
Durante a década de 1980, o panorama do pop/rock estava repleto de numerosos estilos diferentes. A influência punk na nova música (chamada de new wave) estava apenas florescendo nas rádios, mas em poucos anos proliferou e invadiu a mídia. O ingrediente chave do sucesso da “new wave” era a ligação da música com o vídeo, uma dinâmica que foi institucionalizada com o nascimento da MTV( Music Television). A MTV apresentava a seus espectadores uma série de músicos da „new wave‟. Os artistas mais ecléticos eram os que mais produziam vídeos. Muitos críticos tinham a impressão de que os videoclipes reforçavam tendências negativas que ainda corriam na sociedade.
Alguns ainda achavam que quando uma música virava vídeo, a consequência era a perda da música, pois a imagem e o estilo prevaleciam.
Ainda nos anos 1980, a música aumentou o debate de temas como política, economia, e justiça social. Artistas e promotores de shows escolheram ligar estas causas a grandes eventos de forma a divulgar questões políticas, levantar fundos, envolver mais artistas e ajudar a promover os negócios do rock. De 1985 a 1990, os megaeventos promoveram causas e debates progressistas. Estas ações angariaram recursos e mostraram ao público que alguns astros não tinham medo de tomar posições públicas sobre assuntos políticos e sociais. Um resultado visível dessa mobilização foi o fato da Anistia Internacional ter recebido mais de duzentos mil novos membros depois das turnês. Outras organizações também perceberam o aumento no interesse pelo ativismo.
Assim, o envolvimento de artistas foi o fator diferencial: “ele expôs seus fãs a importantes debates estimulando-os a pensar e agir”.V Entretanto, também era perceptível que a indústria da música tomava decisões baseadas no mercado, favorável às poderosas corporações multinacionais: “as principais corporações multinacionais que controlam a música são politicamente conservadoras e preferem homogeneizar a música e neutralizar qualquer tipo de conteúdo cultural ou político polêmico”.
Ademais os debates sociais, econômicos e políticos no entorno do rock, a leitura nos proporciona acompanhar a trajetória do gênero que cresceu em diversos países acompanhado por um público jovem e entusiasmado, adequado às peculiaridades regionais. O autor foi cuidadoso em mostrar a diversidade de biografias de bandas e artistas destes trinta anos de rock, como Chuck Berry, Little Richard, Lee Lewis, Elvis Presley, The Beatles, Jemi Hendrix, Bob Dylan, The Clash, Led Zepplin dentre outros.
O primeiro e o último capítulo destoam dos outros, pois são norteadores para uma análise didática denominada pelo autor como “Janela do Rock”. Letras, músicas, ritmos, artistas, atitudes e contexto sociais são considerados para a compreensão do gênero e propriamente das composições. Para Friedlander, a análise de uma música e sua letra deve considerar a história pessoal do artista, a relação da música com a sociedade no contexto da época, os padrões e valores contemporâneos e ainda atentar para o fato de que cada ouvinte interpreta a canção de maneira diferente, dependendo de sua própria experiência de vida.
Em um primeiro momento, a música é recebida de forma intuitiva e contém uma rica variedade de conhecimento e sentimento sem o processo de pensamento lógico que nos acompanha e ao qual geralmente chamamos de entendimento. Na forma analítica, o ouvinte passa a ter condições de realizar julgamentos próprios sobre a natureza das músicas, sua qualidade e diferenciação em relação a outras músicas e seu contexto social. E deste ponto, procurar por conta própria mais informações sobre a música e o artista. Por exemplo, nos anos 1950, a crítica à sociedade era indireta, sutil e não fazia qualquer menção de um ataque aos valores conservadores dominantes. Esta constatação, no entanto, pode ser equivocada porque muitos elementos de rebeldia eram encontrados fora das letras, nas apresentações e performance dos artistas.
O rock é fusão da música negra de resistência e protesto com influências europeias que ultrapassou as diferenças raciais e sociais. A história social do rock é marcada pela política conservadora da guerra fria, rigorosos códigos morais e sexuais.
Registra uma transmissão de mensagens, implícitas e explícitas, relatos, símbolos de rebeldia, mudança social e sentimentos. Talvez por isso, cada época possua aqueles artistas cujos movimentos e aparência no palco são, predominantemente, gestos de desafio. A mensagem alcança lugares que não estão, necessariamente, ligados à política e esta mensagem pode gerir mudanças e ir mais longe do que se pode supor.
Notas
2 Paul Friedlander é Professor na Universidade do Oregon de História do Rock e membro da Associação Internacional para o estudo da Música Popular. Foi diretor-assistente do Conservatório de Música da Universidade do Pacífico, na Califórnia.
3 FRIEDLANDER, Paul. Rock and Roll: Uma História Social. Tradução de A. Costa. 4º ed, RJ: Record, 2006. P.47
4 FRIEDLANDER, op. cit.p.241
5 Idem.p.376
6 dem.p.407
Referências
FRIEDLANDER, PAUL. Rock and Roll: Uma História Social. Tradução de A. Costa. 4 ed, Rio de Janeiro: Record, 2006. 485pp.
Aline Rochedo –
Mestre em História Social pela Universidade Federal Fluminense. Pesquisadora dos anos 1980, no âmbito da política, economia e sociedade, tendo o BRock e Culturas Juvenis como norteadores. Atua na área de Cultura, História e Comunicação, principalmente nos seguintes temas: Música brasileira, Rock, Juventudes, Identidade e Memória.
Neocolonial, Modernismo e Preservação do patrimônio no debate cultural dos anos 1920 no Brasil – PINHEIRO (CTP)
PINHEIRO, Maria Lucia Bressan. Neocolonial, Modernismo e Preservação do patrimônio no debate cultural dos anos 1920 no Brasil. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo: FAPESP, 2011. Resenha de: MELO, Sabrina Fernandes. Nexos entre o modernismo e o neocolonial nas primeiras manifestações preservacionistas da década de 1920. Cadernos do Tempo Presente, São Cristóvão, n. 12 – 10 de junho de 2013.
Em seu mais recente trabalho Maria Lúcia Bressan Pinheiro – professora da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo (USP) e pesquisadora de temas relacionados às cidades, à arquitetura e ao patrimônio cultural – aborda questões pouco discutidas ou até mesmo negligenciadas no campo da arquitetura e da história.
O livro Neocolonial, Modernismo e Preservação do patrimônio no debate cultural dos anos 1920 no Brasil, publicado pela editora da USP em 2011, é fruto de indagações antigas da pesquisadora. Tais questionamentos se direcionavam para o neocolonial e suas particularidades como estilo arquitetônico e como movimento cultural, promotor de desdobramentos importantes para lançar bases e promover debates sobre a questão patrimonial brasileira.
A obra de Maria Lucia Bressan tem como objetivo central promover uma ligação entre o modernismo brasileiro, os debates sobre o patrimônio cultural e o neocolonial, onde o denominador comum destas três categorias seria a década de 1920.
Um dos grandes problemas encontrados na historiografia e nas pesquisas sobre esses três temas é a separação e o tratamento individualizado direcionado a cada um deles. A autora defende que eles deveriam ser entendidos em conjunto, por estarem intrinsecamente relacionados.
Todo o livro é direcionado na tentativa de estabelecer um diálogo entre as três categorias que dão título à obra. Nesta perspectiva, o neocolonialismo é visto como a primeira iniciativa, em arquitetura, de valorização das raízes brasileiras e de busca de uma identidade nacional. Maria Lucia Bressan vai à contramão dos paradigmas colocados acerca da arquitetura neocolonial ao apontar novos caminhos conceituais e metodológicos para o entendimento deste estilo arquitetônico no contexto sociocultural dos anos vinte.
Uma das dificuldades enfrentadas pela autora, durante a pesquisa, foi a coleta de bibliografia sobre o tema abordado. Tal constatação foi verificada antes mesmo da escrita do livro, durante seu cotidiano em sala de aula, e, na busca por referências a serem utilizadas nas disciplinas ministradas por ela. Buscando preencher lacunas deixadas pela historiografia, foram utilizadas inúmeras fontes. Estas transitam entre conferências, palestras, cartas, esboços arquitetônicos, imagens, jornais, revistas, plantas de construções etc. fontes mais citadas são as conferências proferidas pelo arquiteto português Ricardo Severo em 1914 na Sociedade de Cultura Artística de São Paulo e em 1917 no Grêmio da Escola Politécnica de São Paulo, a Revista de Architetura no Brasil (1921- 1926) e a Revista Ilustração Brasileira, uma das primeiras revista ilustradas do país.
Maria Lucia recorre às fontes por meio de citações e transcrições de parte destes documentos. Tal metodologia promove uma aproximação do leitor com a fonte e por outro lado, compromete a fluidez do texto, aspecto ressaltado pela própria autora no decorrer da introdução de sua obra.
Estruturado em sete capítulos, que não seguem uma ordem cronológica, mas transitam entre as três frentes de pesquisa propostas, a obra consegue estabelecer uma comunicação teórica, metodológica e contextual entre neocolonial, modernismo e patrimônio. A comunicação entre os capítulos é feita pela retomada de discussões associadas às fontes já trabalhadas.
No primeiro capítulo, O Pequeno Passado Colonial, a autora articulou as ideias do arquiteto Ricardo Severo ao pensamento de John Ruskin, uma das mais importantes figuras do panorama cultural oitocentista inglês, além de ser considerado como um dos precursores da noção de preservação do patrimônio cultural na Inglaterra.
Através das palestras proferidas por Ricardo Severo – marco inaugural do Movimento Neocolonial no Brasil – a autora traça um detalhado percurso intelectual de Severo e Mario de Andrade ambos afinados com as propostas de cunho patrimonial defendidas pelo inglês Ruskin e inclinados a estabelecer parâmetros próprios para a formação de uma identidade arquitetônica nacional.
As aproximações e afinidades entre arquitetos e intelectuais brasileiros e estrangeiros continuam no decorrer do segundo capítulo, nomeado Severo, Mário e a Emergência de São Paulo no Cenário Nacional. No entanto, como pano de fundo para o aprofundamento desta discussão, Bressan Pinheiro utiliza o contexto da emergência de São Paulo no cenário nacional.
Durante as primeiras décadas do século XX, São Paulo passava por uma fase de efervescência urbana, iniciada pela produção do café e fomentada pelo crescimento da industrialização advindo da Segunda Guerra Mundial. Neste sentido, intelectuais como Mario de Andrade, Angyone Costa, Plínio Cavalcanti, dentre outros, encontraram um contexto propício para a publicação de manifestos, textos e artigos em diferentes periódicos relacionados à arquitetura da cidade de São Paulo e de outras regiões do país.
Em O Neocolonial e a Exposição de 1922, a autora nos traz uma discussão sobre a influência da comemoração do centenário da Independência em 1922, ocorrida no Rio de Janeiro para a divulgação e para discussão do estilo neocolonial. Apesar da Semana de Arte Moderna de 1922, em São Paulo, ter contado com um espaço para mostra arquitetônica, foi na Exposição do Centenário que o neocolonial ganhou um lugar de destaque.
T0a1l 3ê nfase ocorreu pela construção de pavilhões em estilo neocolonial e pela defesa de sua utilização para formação de uma identidade arquitetônica brasileira, calcada na arquitetura portuguesa. Entretanto, instaurava-se aí um paradoxo. No momento da Exposição de 1922 e do debate direcionado a preservação das edificações de origem portuguesa – consideradas como base para o desenvolvimento da arquitetura nacional – ocorria a demolição da região do Morro do Castelo, região considerada como espaço fundador da cidade do Rio de Janeiro, além de abrigar inúmeras edificações erguidas no período colonial.
Em O Neocolonial e o Ensino de Arquitetura, são traçadas aproximações e diferenças entre a arquitetura neocolonial praticada no Rio de Janeiro, daquela utilizada em São Paulo. Partindo destes apontamentos a autora analisa a inserção dessa nova tendência arquitetônica na Escola Politécnica de São Paulo com o curso de engenheiro arquiteto e no curso de arquitetura da Escola de Belas Artes do Rio de Janeiro.
O quinto e sexto capítulos denominados, respectivamente, Lucio Costa e o Neocolonial e Mario de Andrade: Entre o Modernismo e Tradição, dedicaram-se a problematizar as ligações entre o neocolonial e o modernismo através dos nomes que compõem os títulos dos capítulos: Lucio Costa e Mario de Andrade. Neste momento, a autora reafirma sua proposta inicial, a de estabelecer um diálogo entre o modernismo, o neocolonial e o patrimônio. Parte da trajetória intelectual destes dois personagens é usada para compor o cenário em que figurou o diálogo entre essas três frentes de análise.
No último capítulo, intitulado O pensamento preservacionista no Brasil na Década de 1920, a figura de Mario de Andrade foi associada às ideias de preservação do patrimônio nacional. Tais ideias se associavam tanto ao processo de evasão das obras de arte e o papel da Igreja nesta evasão, quanto às iniciativas direcionadas a valorização da arquitetura brasileira por meio da criação de museus nacionais, da elaboração de inventários de arquitetura colonial e das inspetorias estaduais de monumentos nacionais, sendo a primeira delas criada na Bahia em 1927.
O que se apresenta em Neocolonial, Modernismo e Preservação do patrimônio no debate cultural dos anos 1920 no Brasil é um intenso trabalho de pesquisa e uma profícua contribuição para as discussões sobre o patrimônio edificado. Destarte, a contribuição dessa obra se encontra na abordagem inovadora, onde os nexos entre modernismo e Neocolonial culminaram nas primeiras manifestações preservacionistas da década de 1920.
As múltiplas e contraditórias abordagens acerca das ações preservacionistas no contexto da década de 1920, associadas à questão da identidade nacional, revelaram-se como um conhecimento indispensável para o entendimento do patrimônio edificado e das políticas públicas de patrimônio e bens culturais no viés contemporâneo.
Referências
PINHEIRO, Maria Lucia Bressan. Neocolonial, Modernismo e Preservação do patrimônio no debate cultural dos anos 1920 no Brasil. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo: FAPESP, 2011.
Sabrina Fernandes Melo – Mestranda vinculada ao Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal de Santa Catarina (PPGH – UFSC), integrante da linha de pesquisa Arte, Memória e Patrimônio e bolsista CAPES. E-mail: sabrina.fmelo@gmail.com.
Le monde vu de la plus extrême droite: Du fascisme au nationalisme-révolutionnaire – LEBOURG (CTP)
LEBOURG, Nicolas. Le monde vu de la plus extrême droite: Du fascisme au nationalisme-révolutionnaire. [?]: Presses Universitaires de Perpignan, Collection Etudes, France, 2010. Resenha de: ANDRADE, Guilherme Franco de. Cadernos do Tempo Presente, São Cristóvão, n. 12 – 10 de junho de 2013.
Nicolas Lebourg é um historiador da Universidade de Perpignan, na França. Um dos seus principais campos de pesquisa é sobre a Extrema Direita europeia, principalmente o partido francês Frente Nacional. Em suas pesquisas o historiador francês procura analisar a ideologia política pertencente aos grupos radicais, ideologia chamada por ele de “Nacionalismo Revolucionário” francês. Conhecido e estimado na França pela qualidade do seu trabalho e por outros pesquisadores na história de facções políticas. Nicolas também é conhecido por seu blog (http://tempspresents.wordpress.com) e por seus artigos em revistas e periodicos especializados. Em sua dissertação de mestrado, Lebourg escreveu sobre François Duprat, fundador da Frente Nacional. E em sua tese de doutoradoII ele pesquisou sobre o Nacionalismo Revolucionário.
Seu primeiro livro, “O Mundo visto da mais extrema-direita, do fascismo ao nacionalismo revolucionário”, foi publicado em dezembro de 2010 pela editora Presses Universitaires de Perpignan, que finalmente permite ao público ter acesso aos seus escritos.
Em sua introdução, Nicolas Lebourg explica como o fracasso político da direita francesa, na tentativa de manter a Argélia como seu território, durante a Guerra da Argélia, desmobilizou a identidade política radical, antes apoiada nas concepções de Vichy. Segundo o autor “a humilhação do fracasso da Argélia Francesa” levou a direita radical francesa a buscar um novo caminho político, que fosse significativo do ponto de vista da prática, relacionado à militancia dessa nova ideologia, quanto no aparato ideológico.
Dessas mudanças surgiram duas correntes ideológicas, segundo o autor “duas correntes nasceram desse esforço, a Nova Direita e o nacionalismo-revolucionário. Elas vêm de uma matriz comum”. Então, no decorrer de seu livro, em 250 páginas, o autor procura mostrar como essas correntes de forma dialética se influenciaram com o passar dos anos.
Como essas ideologias marcaram limites ideológicos e exerceram rupturas necessárias no pensamento político. Ambas influenciando-se, nunca longe uma da outra, mas sempre separadas.
Ao longo das páginas, o historiador procura enfatizar as oscilações ideológicas, assim como dos avanços e dos recuos das sete estruturas que formaram o movimento Nacionalismo Revolucionário de 1960 até 2002. Sendo as 7 estruturas: a Europa Jovem (Jeune Europe) , A Organização Luta do Povo (l’Organisation lutte du peuple), Os Grupos Nacionalistas Revolucionários de Base (les Groupes nationalistes-révolutionnaires de base), o Movimento Nacionalista Revolucionário (le Mouvement nationaliste révolutionnaire), Terceira Via (Troisième voie), Nova Resistência e Unidade Radical (Nouvelle résistance et Unité radicale) e o grupo de ação politica internacional A Frente Europeia de Libertação (le Front européen de libération).
No livro o autor procura mostrar que mesmo os grupos pequenos, que podem parecer inexpressivos do ponto de vista eleitoral, não chegando efetivamente a cargos políticos, esses grupos podem ter muita influência do ponto de vista ideológico, mesmo que alguns desses grupos sejam compostos por 200, 300 militantes. Questionado sobre a importância de pesquisar até os menores grupos do Nacionalismo Revolucionário, o autor responde dizendo: “dentro do sistema político competitivo, pequenos grupos descobrem sua importância em seu trabalho de “vigia” e de provedor de conceitos e elementos discursivos para as estruturas populistas que, por sua vez, acessam o espaço da mídia.”.
O autor explica que os nacionalistas revolucionários forneceram a Frente Nacional muitas das suas idéias principais como o antiamericanismo e política restritiva à imigração.
É, provavelmente, nas páginas dedicadas à transformação da Frente Nacional de um partido anticomunista para um partido xenófobo e contrário a imigração na França, que este livro é definitivamente o mais interessante. Nicolas Lebourg conta como François Duprat, então líder dos grupos nacionalistas revolucionários de base, impôs este tema e forçou Jean Marie Le Pen e outros frentistas que não acreditavam na sua idéia. Foi ele quem conceituou a noção de “nacionalismo revolucionário”, uma atualização do “movimento fascista”. No início da FN, são seus grupos nacionalistas revolucionários a ala mais radical do partido. Mas isso não impede que influencie fortemente a linha de discurso do partido e que se tornou a marca de um partido social de extrema direita.
Nicolas Lebourg acredita que o nacionalismo revolucionário morreu em 2002 com a dissolução da unidade radical. Sobre este ponto só podemos discordar dele, porque ainda há sites, revistas e organizações que pretendem seguir a Unidade radical. A capacidade de produção ideológica permanece intacta e a imaginação deles é ainda grande. É bem possível que ainda seja nas mentes dos seus líderes que irão desenvolver-se “conceitos e elementos discursivos” que aparecerão amanhã no movimento nacional e popular.
Desde o início, os movimentos fascistas experimentam uma margem que se diz “socialista e europeia”. Muitas vezes derrotados nas campanhas eleitorais, não foi possível desfrutar do poder. No entanto, conseguiu inventar discursos e idéias para a construção de uma Europa nacionalista. Estes têm contribuído para a formação da propaganda dos Estados fascistas depois de 1942, com destaque para a construção de uma “Nova Ordem Europeia”.
Após a Segunda Guerra Mundial, e, particularmente, com a fase de descolonização, e pós 1968, o neofascismo foi reimplantando esses elementos no contexto do que é chamado de nacionalismo revolucionário.
Tendo deixado a unidade europeia na expectativa, esses fascistas trabalham para o estabelecimento de uma ação e uma ideologia internacional. Eles, portanto, participam em muitas áreas políticas, nacionais e internacionais, e realizam táticas diferentes de um para o outro. Este livro é baseado principalmente em documentos inéditos: arquivos internos dos movimentos neofascistas, revistas produzidas por esses grupos nas décadas de 60, 70 e 80, e também compostos por vários dossies e documentos das policias.
Notas
2 Tradução do título ”O Mundo visto da mais extrema-direita, do fascismo ao nacionalismo revolucionário”.
Referências
LEBOURG, Nicolas. Le monde vu de la plus extrême droite : Du fascisme au nationalisme-révolutionnaire. Presses Universitaires de Perpignan, Collection Etudes, France, 2010.
Guilherme Franco de Andrade – Mestrando no Programa de Pós Graduação em História, Poder e Práticas Sociais da Universidade Estadual do Oeste do Paraná – Unioeste, Campus Marechal Cândido Rondon. Sob orientação do Prof. Dr. Gilberto Grassi Calil.
La construcción del conocimiento histórico: enseñanza, narración y identidades – CARRETERO (CTP)
CARRETERO, Mario. La construcción del conocimiento histórico: enseñanza, narración y identidades. Buenos Aires: Paidós, 2010. Resenha de: BARBOSA, Lúcia Falcão; ALPHEN, Floor van. O saber histórico e escolar nas obras de Mario Carretero: entretecendo ensino e aprendizagem. Cadernos do Tempo Presente, São Cristóvão, n. 11 – 10 de março de 2013.
Introdução3
Essa resenha busca analisar, em obras publicadas por Mario Carretero, e suas equipes de investigação na FLACSO/Argentina e na Universidade Autônoma de Madri, não publicadas no Brasil, como o debate sobre o ensino de história se entretece com os estudos mais recentes sobre aprendizagem. Nesse debate, a história escolar aparece como um espaço aberto à discussão das identidades sociais, num momento em que a participação dos cidadãos na sociedade contemporânea está sofrendo modificações radicais em consequência das mudanças nas formas de organização social, econômica e política. O ensino de história não pode estar à margem do desafio de formar novas gerações para participação ativa na vida pública. Dessa forma, as vivências do tempo e espaço, na sociedade do século XXI, e as formas de narração do eu e do outro são pensadas a partir da psicologia da aprendizagem, que reflete sobre as explicações e o raciocínio das pessoas quando enfrentam problemas históricos, buscando oferecer subsídios para as novas práticas do saber histórico escolar.
Nesse sentido, segundo Carretero e Kriger, os desafios atuais do ensino de história estão cada vez menos circunscritos ao que ocorre dentro da escola: práticas em salas de aula, diretrizes curriculares ou livros didáticos4. Isso porque, no mundo contemporâneo, a história escolar tem sido cada vez mais o palco central de lutas identitárias e conflitos políticos.
Entretanto, para os autores, o interesse pela função política da história escolar teria crescido de forma desproporcional em relação ao interesse pedagógico, resultando numa série de usos incorretos do passado5. O que os leva a reavaliar a vigência de uma história escolar instituída há quase dois séculos como ferramenta para formação de cidadãos nacionais. A gênese do vínculo entre história e identidade nacional faria com que o ensino de história oscilasse entre ideais filosóficos “ilustrados e universalistas” ou “românticos particularistas”: “Es sabido que desde su origen la escuela estatal se desempeñó como un agente clave en la distribución y legitimación no solo de conocimientos, sino también de identidades nacionales, como se transluce en la incorporación de la historia como contenido obligatorio en todos los niveles educativos y con especial énfasis en los primeros ciclos de escolarización durante el siglo XIX. En una primera etapa los objetivos romántico-societales se impusieron notablemente sobre los ilustradodisciplinares, respondiendo a la necesidad del estado de „inventar‟ la nación.”6 E apesar dos objetivos identitários, ao longo do século XX, terem perdido sua legitimidade, isso não implica que tenham perdido sua força profunda. Um forte indício seria a permanência das práticas de efemérides pátrias na escola – um dispositivo identitário concebido pelos projetos de educação patriótica que formulam “narrativas comuns do passado” e não propriamente “história”: “ellas comienzan a practicarse en la socialización primária de los alumnos, generando su adhesión emocional a significantes que seguirán presentes a lo largo de todo el proceso de aprendizaje”.7
Sua equipe de pesquisa tem se dedicado, sobretudo, a investigar os sinais desse dispositivo no plano cognitivo dos estudantes, indícios que aparecem em suas narrativas como um obstáculo para o desenvolvimento da compreensão histórica e para capacidade de interpretarem significativamente o presente, inibindo sua formação como cidadãos políticos.
Pois o conceito de nação promovido pelas efemérides é ontológico, territorial e opera como fundamento e como destino. Pois essa foi a ferramenta usada pelo Estado para difundir e inculcar entre seus cidadãos sua disposição de permanência que se espraia em direção ao passado e ao futuro míticos; um poder simbólico que nos brinda a todos uma origem e um destino e outorga um sentido familiar à nossa existência.8
Seus efeitos cognitivos seriam a criação de uma hipertrofia identitária9 que estabelece um nós que tende a esgotar-se e encerrar-se em seu círculo: a comunidade nacional.10 Um efeito não apenas causado pelas práticas de efemérides pátrias nas escolas, bem como por determinados vieses dos livros didáticos, os silêncios dos professores, um currículo oculto, ou ainda pela imposição de uma língua em particular.
O ensino de história e o processo de globalização
Para Carretero e Kriger, desde a queda do muro de Berlim, o ensino de história é chamado a formar uma cidadania que atenda à emergente sociedade global, promovendo um imaginário mais pluralista e intercultural.11 Diante do processo de globalização, que erode a centralidade dos Estados Nacionais como fonte única de legitimação identitária, a escola – herdeira histórica da função de formar a identidade e salvaguardar o patrimônio nacional – se põe em debate: afinal, qual deve ser a função da escola em um contexto que põe em crise a autoridade estatal? Entretanto, para Carretero e Borreli, o mais importante nesse momento de resignificação do rol estatal é aproveitar as possibilidades que se abrem para novas maneiras de conceber o ensino de história.12 Entre elas, poder pensar um ensino de história nacional aberto a outro nós que considera o outro – próximo ou longínquo, familiar ou estranho – alguém com quem se comparte um sentido de humanidade.13 Um ensino de história que integre múltiplas narrativas históricas (histórias e identidades) que por muito tempo permaneceram marginais ao relato oficial em decorrência da racionalidade uniformizadora do Estado.
Essa multiplicidade, longe de ser interpretada como uma cacofonia que deva ser reduzida a uma linha monódica, é a garantia do dinamismo cultural: ao mesmo tempo um direito social, cultural e político. A questão seria como tratar o dissenso através de uma gestão democrática dos conflitos.14 E esse poderia ser considerado outro desafio atual para o ensino de história: formar as novas gerações para atuação ativa na vida pública na qual as formas de participação estão sofrendo modificações. A estrutura sociopolítica do espaço público está em processo de transformação que parte do Estado Nacional (âmbito tradicional de participação política) e se move em direção a uma macroestrutura que se descentraliza.15
Segundo Carretero e Kriger, isso muda totalmente as regras e o jogo da prática escolar, sobretudo no âmbito da história.16 Precisamente nesse momento de transição, a escola, entre outras instituições, deve reposicionar-se e encontrar novas funções e sentidos. Na medida em que a história escolar se transforma em um espaço aberto onde se discutem as identidades sociais (sem deixar de funcionar como uma instituição oficial do Estado), ela ocupa um lugar estratégico na mediação dos conflitos atuais.17 O que nos leva a algumas questões: é possível ensinar uma história tão desarraigada ou uma história tão fluida como as identidades fluidas que parecem caracterizar esse novo tempo? É possível relacionar o ensino de história com ideias que escapam às soberanias firmemente instituídas, mas que constituem o mesmo horizonte geral sobre o qual se plantaram as bandeiras nacionais?18
Considerações finais: ensinar e aprender
Carretero, Castorina e Levinasxix propõem que no ensino temos que levar em conta o uso de conceitos históricos e os diferentes sentidos que têm como base o conhecimento prévio e as experiências culturais dos alunos. Ou seja, temos que considerar os processos de identificação e de memória coletiva. Algumas conceitualizações interessadas, vinculadas à identidade, podem gerar resistência à aprendizagem de uma história crítica e disciplinar.
Então, refletir sobre conceitos históricos e seus sentidos ajuda a buscar novas perguntas e respostas no passado em vez de celebrar ou justificar um passado glorioso. Para desenvolver melhor uma consciência histórica nos alunos, os autores sugerem uma lógica de viajante: “Pensar históricamente, por ende, no es meramente incorporar información, sino internalizar y entrenarse en una lógica de viajero que permita aproximarse al ayer tanto a través de sentimientos de cercanía, vinculados con la necesidad de pertenencia al grupo, como de extrañamiento, vinculados con la necesidad de extender los límites del mundo. Pensar históricamente significa poder „navegar‟ entre lo particular y lo universal, entre lo familiar y lo ajeno, entre lo tradicional y lo nuevo, entre la herencia y el proyecto. Porque una enseñanza acerca del pasado que solo reconozca su proximidad estará sesgada por la proyección del proprio presente, regida por el apremio de la identificación y encerrada en su mismidad. E inversamente, una que solo perciba su alteridad no permitirá establecer nexos sustantivos con el presente, sino que se limitará a ofrecernos una postal exótica pero inaccesible a nuestra experiencia vital. En suma: para construir una „mirada‟histórica, es preciso que estas dos dimensiones entren en juego para organizar significativamente las relaciones entre el pasado y el presente conformando agentes sociales y no pasivos espectadores del mundo”.20
Oferecer ao estudante as ferramentas para refletir criticamente sobre o passado, para muitos investigadores da aprendizagem, é a melhor proposta educativa. Entretanto, é provável que várias representações sociais e maneiras de pensar historicamente sigam coexistindo, e que a identificação ou a memória coletiva resistirão às (novas) práticas de ensino.
Contextualizar uma perspectiva entre várias se torna então o verdadeiro desafio. Para isso, não é necessário substituir um conhecimento histórico por outro ou considerar um saber superior a outro. A oposição entre memória coletiva e história disciplinar não é tão absoluta: uma pode servir para balancear a outra e tratar de evitar uma grande narrativa, perigosa, e abrir-se para uma diversidade de perspectivas.21 Para a aprendizagem, seria necessária uma didática que mostrasse o caráter específico das fontes de memórias e posicioná-las entre outras fontes possíveis. Identificação não necessariamente leva ao nacionalismo, mas também à compaixão e, possivelmente, à compreensão.
Notas
2, CONICET, Argentina.
3 Trabalho apresentado no encontro “Perspectivas para o Ensino de História”, UNICAMP, 2012.
4 CARRETERO, M., KRIGER, M. In Mário CARRETERO e Antonio CASTORINA, 2010. Pp. 55-80
5 CARRETERO, M., KRIGER, M, 2010: 57
6 CARRETERO, M., KRIGER, M, 2010: 60
7 CARRETERO, M., KRIGER, M, 2010: 64
8 SHAW, Calos Martinez. In CARRETERO, M., VOSS, J.F, 2004. Pp. 25-46.
9 CARRETERO, M., KRIGER, M, 2010: 77
10 RUIZ SILVA, A., CARRETERO, In CARRETERO, 2010. Pp. 29-54.
11 CARRETERO, KRIGER, 2010: 61
12 CARRETERO, M., BORRELLI, M. In CARRETERO, 2010. Pp.101-130
13 SHAW, 2004:45
14 ROSA RIVEIRO, Alberto. In CARRETERO, VOSS, 2004. Pp. 47-70
15 ROSA, 2004: 47/48
16 CARRETERO, M., KRIGER, M. In CARRETERO e VOSS, 2004. Pp. 71-98
17 CARRETERO e KRIGER, 2004:93.
18 CARRETERO e KRIGER, 2004: 72
19 CARRETERO, CASTORINA & LEVINAS, 2012.
20 CARRETERO, KRIGER, 2010. P. 59
21 VAN ALPHEN,& ASENSIO, In CARRETERO, M. ASENSIO, M., & RODRÍGUEZ-MONEO, M (Comps.), 2012. Pp. 347-359.
Referências
CARRETERO, Mario. La construcción del conocimiento histórico: enseñanza, narración y identidades. Buenos Aires: Paidós, 2010 CARRETERO, M., BORRELLI, M. La historia recenté en la escuela: propuestas para pensar historicametne In CARRETERO, Mario. La construcción del conocimiento histórico: enseñanza, narración y identidades. Buenos Aires: Paidós, 2010.
CARRETERO, M., CASTORINA, J. A., & LEVINAS, L. Conceptual change and historical narratives about the nation. A theoretical and empirical approach. In VOSNIADOU, S. (Ed.) (In press) International Handbook of Research on Conceptual Change. Second Edition. New York, Routledge. Aguardando publicação, 2012
CARRETERO, M., KRIGER, M. ¿Forjar patriotas o educar cosmopolitas? El pasado y el presente de la historia escolar en un mundo global. In CARRETERO, M., y VOSS, J. Aprender y pensar la historia. Buenos Aires: Amorrortu, 2004 CARRETERO, M., KRIGER, M. Enseñanza de la historia e identidad nacional a través de las efemérides escolares. In CARRETERO, M and CASTORINA, J.A. La construcción del conocimiento histórico. Buenos Aires: Paidos, 2010 ROSA RIVEIRO, Alberto. Memoria, historia e identidad. Una reflexión sobre el papel de la enseñanza de la historia en el desarrollo de la ciudadanía. In CARRETERO, M., VOSS, J.F. Aprender y pensar la historia. Buenos Aires: Amorrortu, 2004.
RUIZ SILVA, A., CARRETERO, M. Ética, narración y aprendizaje de la historia nacional. In CARRETERO, Mario. La construcción del conocimiento histórico: enseñanza, narración y identidades. Buenos Aires: Paidós, 2010.
SHAW, Calos Martinez. La historia total y sus enemigos en la enseñanza actual. In CARRETERO, M., VOSS, J.F. Aprender y pensar la historia. Buenos Aires: Amorrortu, 2004.
VAN ALPHEN, F. & ASENSIO, M. The complex construction of identity representations and the future of history education. In CARRETERO, M. ASENSIO, M., & RODRÍGUEZMONEO, M (Comps.). History Education and the Construction of National Identities. Charlotte, NC: Information Age Publishing, 2012.
Lúcia Falcão Barbosa – Professora Doutora Adjunto II da Universidade Federal Rural de Pernambuco, Departamento de História. Trabalho realizado com bolsa de estágio pós-doutoral CAPES.
Floor van Alphen – Doutoranda em Desarollo, Aprendizaje y Educación da Universidad Autónoma de Madrid, Facultad de Psícología. Pesquisadora da Facultad Latinoamericana de Ciencias Sociales, Argentina: Área de Educación. Bolsista de doutorado.
História regional para a escolarização básica no Brasil: o texto didático em questão (2006-2009) – FREITAS (CTP)
FREITAS, Itamar. História regional para a escolarização básica no Brasil: o texto didático em questão (2006-2009). São Cristóvão: Editora da UFS, 2009. Resenha de: SILVA, Talita Emily Fontes da. Como estão os Nossos Livros Didáticos de História Regional? Cadernos do Tempo Presente, São Cristóvão, n.10, dez. 2012.
Novos Domínios da História – CARDOSO; VAINFAS (CTP)
CARDOSO, Ciro Flamarion; VAINFAS, Ronaldo. Novos Domínios da História. Rio de Janeiro: Elsevier, 2012. Resenha de: MOURA, Luyse Moraes. Novos Domínios da História, de Ciro Flamarion Cardoso e Ronaldo Vainfas. Cadernos do Tempo Presente, São Cristóvão, n. 10 – 10 de dezembro de 2012.
Publicado pela primeira vez em 1997, Domínios da História tornou-se uma obra de referência para os profissionais da área de história e das demais ciências humanas e sociais. O livro foi organizado por Ciro Flamarion Cardoso – Professor Titular de História Antiga e Medieval da Universidade Federal Fluminense (UFF) – e Ronaldo Vainfas – Professor Titular de História Moderna da Universidade Federal Fluminense (UFF) –, e contou com a colaboração de numerosos autores, resultando na compilação de diversos ensaios sobre teoria e metodologia da História.
Porém, mesmo com a contribuição de vários autores, o livro não contemplou alguns temas e aspectos da disciplina histórica e, em razão disso, os mesmos organizadores decidiram preparar um novo volume com características semelhantes às do primeiro. Novos Domínios da História foi lançado em 2012, pela Editora Elsevier, com o propósito de complementar a obra publicada em 1997.
Neste novo livro, que também contou com a participação de diversos autores, novos campos da História foram explorados a exemplo da “História do Tempo Presente”, tema de Márcia Menendes Motta. Em seu texto, Motta discute as relações entre História, memória e tempo presente; e comenta sobre o surgimento e consolidação da História do Tempo Presente. Entretanto, ao mencionar os trabalhos desenvolvidos no Brasil inseridos neste novo campo disciplinar, a autora restringe as produções do Laboratório do Tempo Presente (UFRJ) à temáticas relacionadas apenas à América do Sul. Além disso, sua exposição exclui a possibilidade de pesquisas sobre a HTP desenvolvidas em outras regiões do país, que não o Sudeste. Nesse sentido, Motta não menciona, por exemplo, os trabalhos do Grupo de Estudos do Tempo presente (UFS).
Assim como a “História do Tempo Presente”, a “Nova História Militar”, apresentada por Luiz Carlos Soares e Ronaldo Vainfas; e a “Micro-história”, tema de Henrique Espada Lima, também são abordadas nesta obra. Tais autores analisaram as proposições dessas novas áreas de conhecimento e apontaram os principais desafios que a elas se impõem.
Além dos novos territórios explorados, o livro também apresenta algumas exposições sobre domínios da história bastante tradicionais que, nas últimas décadas, passaram por um processo de renovação. São os casos da “Nova História Política”, tema de Sônia Mendonça, Virginia Fontes e Ciro F. Cardoso; da “Biografia Histórica”, tema de Benito Shmidt; e da “História das Relações Internacionais”, abordada por Estevão R. Martins. Nestes capítulos, foram avaliados os avanços que cada um desses campos pôde alcançar ao longo dos últimos anos.
Algumas temáticas apresentadas no livro anterior foram atualizadas, passando a compor, também, o presente volume. Dentre as quais, podemos citar as relações entre “História e Antropologia”, tema de Maria Regina C. de Almeida; e a “História dos Movimentos Sociais”, campo que vem despertando nos últimos anos um crescente interesse entre os pesquisadores, e que foi abordado no livro por Hebe Matos. Uma outra temática também foi retomada nesta obra: os usos da informática no ofício do historiador. No capítulo “História e Informática”, Célia Tavares reflete sobre o impacto das novas tecnologias para a produção e divulgação do conhecimento científico.
Diferindo da edição de 1997, Novos Domínios da História apresenta abordagens mais profundas sobre certos campos da história, como “História e Cultura Material”, tema da contribuição de Marcelo Rede; “História e Imagem”, temática de Ulpiano de Menezes; “História e Fotografia”, abordada por Ana Mauad e Marcos Brum Lopes; “História e Cinema”, tema de Alexandre Valim; e “História e Textualidade”, tema de Ciro F. Cardoso. De acordo com os organizadores, esses domínios ganharam uma maior notoriedade no livro devido aos avanços e à especialização que vêm alcançando nas últimas décadas.
A “História Oral”, tema que não esteve presente no livro anterior, também ganhou espaço neste novo volume. Em seu ensaio, Marieta de Moraes Ferreira evidencia que a história oral, apesar de ter sido alvo de críticas de muitos historiadores nos anos 1960 e 1970, tornou-se no século XXI uma metodologia fundamental nas pesquisas realizadas no Brasil, sobretudo, nas relacionadas a temáticas contemporâneas.
Em Novos Domínios da História a introdução e a conclusão desempenham a função de equilibrar as discussões apresentadas ao longo dos capítulos. A introdução, escrita por Ciro F. Cardoso, apresenta os problemas específicos da epistemologia das ciências sociais e humanas, e discorre sobre as três modalidades básicas do conhecimento histórico: o reconstrucionismo, o construcionismo e o desconstrucionismo. A conclusão, elaborada por Ronaldo Vainfas, dialoga com a introdução, analisando os “novos domínios” da história apresentados no livro a partir da tipologia epistemológica desenvolvida por Ciro F. Cardoso na parte inicial da obra.
Como bem indicam os organizadores no prefácio do livro, nos dias atuais a história apresenta uma grande diversidade de abordagens, temas e conceitos. Sendo assim, Novos Domínios da História, ao oferecer um panorama amplo e atualizado dos domínios da história – novos e antigos –, torna-se extremamente útil aos estudiosos e profissionais da história, podendo interessar também aos que atuam nas demais ciências humanas e sociais.
Referências
CARDOSO, Ciro Flamarion; VAINFAS, Ronaldo. Novos Domínios da História. Rio de Janeiro: Elsevier, 2012.
Luyse Moraes Moura – Graduanda em História/UFS. Bolsista PIBIC/CNP sob orientação do Prof. Dr. Dilton Cândido Santos Maynard. Integrante do Grupo de Estudos do Tempo Presente. E-mail: luyse@getempo.org.
O Direito ao Passado – Uma Discussão Necessária à Formação do Profissional de História – OLIVEIRA (CTP)
OLIVEIRA, Margarida Maria Dias de. O Direito ao Passado – Uma Discussão Necessária à Formação do Profissional de História. Aracaju: Editora UFS, 2011. 302p. Resenha de: SILVA, Karla Karine de Jesus. “O Direito ao Passado”: Considerações de Margarida de Oliveira Sobre o Ensino de História. Cadernos do Tempo Presente, São Cristóvão, n. 10 – 10 de dezembro de 2012.
Margarida Maria Dias de Oliveira é professora Associada do Departamento de História da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN). Foi representante de História na Comissão Técnica do Programa Nacional do Livro Didático – PNLD 2007, 2008, 2010, 2011e 2013. É coordenadora da Coleção Ensino de História da EDUFRN que conta, atualmente, com seis volumes.
Publicado em 2011, o livro O direito ao passado – uma discussão necessária à formação do profissional de História discute o ensino de história como objeto da pesquisa histórica. Em 302 páginas, analisa a formação do pesquisador e do professor de história e a educação brasileira, tomando como referência alguns estudiosos da temática, os Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN), a LDB, o livro didático, além de artigos publicados na Revista Brasileira de História e a posição da ANPUH neste sentido.
O livro é composto de três capítulos. O primeiro, intitulado O ensino de história como objeto de pesquisa no Brasil (p.37-116) apresenta como o ensino de historia foi ganhando espaço nas academias como objeto de pesquisa. Embora a proporção seja pequena em relação a outras temáticas, estudos importantes já foram desenvolvidos nesta área e gradativamente o interesse por investigações sobre história e educação vem ganhando espaço. Oliveira fez um levantamento dos artigos publicados na Revista Brasileira de História entre 1981 e 2002, traçando um demonstrativo em que compara a proporção dos textos que tem o ensino de história como objeto de investigação, e os textos que contemplam outras temáticas.
No capítulo dois, Matrizes teóricas francesas e cópias brasileiras no ensino de história (p.117-161), a autora realiza pertinentes considerações sobre a estrutura e composição dos Parâmetros Curriculares Nacionais de História, seus embates políticos e acadêmicos com a ANPUH, e as ideias trazidas pelos PCN para o ensino de História. O terceiro capítulo, A construção de referenciais para o ensino de História: limites e avanços (p.163-232) discorre sobre as contribuições e limites apresentados pela ANPUH quanto às definições sobre o ensino de História, o conteúdo prescrito pelos PCN e os usos do passado.
Oliveira explica que a iniciativa em desenvolver uma pesquisa sobre o ensino de História partiu primeiramente de questionamentos sobre a formação do profissional de história. O professor e o pesquisador muitas vezes são tratados de forma desconectada. Durante sua atuação como professora do ensino fundamental e do ensino médio, a autora percebeu que as necessidades dos alunos, suas inquietudes e desinformação histórica – quando e onde aconteceu, quais personagens vivenciaram o fato que se pretende interpretar etc. – e a dificuldade destes compreenderem a importância em se aprender história, advém principalmente de problemas internos ao conhecimento histórico e seu ensino (o que e como ensinar). Conforme a obra, a graduação em história enfatiza a pesquisa e acaba formando professores despreparados para a sala de aula. Essa discussão, durante muito tempo esteve a cargo dos cursos de pós-graduação em educação e poucos profissionais de história debruçaram-se sobre isso.
O ensino de história como objeto de pesquisa é recente. O interesse da academia e da ANPUH por pesquisas neste campo começaram especialmente a partir dos anos 1970. Passam então a fazer parte das reflexões, análises e pesquisa, de forma mais profunda, entre os licenciados e bacharéis de História, preocupações com a formação do professor, do ensino de História e seus correlatos. Em 1977, a ANPUH promove discussões sobre a inserção no seu quadro de sócios de professores de história de outros níveis do ensino, além dos professores universitários que eram os que fundamentalmente compunham a Associação (p.48).
A Revista Brasileira de História, uma “vitrine nacional desse crescimento”, como afirma Oliveira, contribuiu para um olhar mais aguçado sobre o ensino de história e a pesquisa sobre ele. Significativos artigos e estudos foram publicados a partir de 1980. Porém, este número foi consideravelmente menor em relação a outros temas em história. Dos cinquenta e sete textos publicados entre 1981 a 2002, trinta e sete foram de instituições paulistas (p.65). Isso evidencia a defasagem nos estudos em outras instituições no Brasil neste período.
A inserção dos professores de história dos demais níveis de educação no quadro de sócios da ANPUH contribuiu para um olhar mais significativo das pesquisas sobre história e educação. Na assembleia geral, ocorrida no XIII Simpósio da ANPUH em Curitiba, ficou estabelecido que “todos os Simpósios deveriam ter cursos com o tema escolhido para o evento e seu tratamento nos ensinos fundamental e médio” (p.71). Oliveira lembra que pela primeira vez os artigos relacionados ao ensino de História não foram relegados a uma seção separada do periódico, mas apresentados com o mesmo peso que os demais.
Em “O direito ao passado…” o livro didático e os PCN receberam atenção particular nesta obra. Sobre o primeiro, a autora afirma que deve haver pesquisas mais profundas sobre ele. O mesmo funciona como um expositor da história ensinada ao aluno e, portanto, precisa considerar tanto os conteúdos, quanto a faixa etária e a forma como o conhecimento é transmitido em suas páginas. O passado construído e transmitido deve ser questionado: “qual o passado a que todo cidadão tem direito?” (p.87). Apesar de o livro didático conter inúmeras falhas, muitas delas decorrentes inclusive da própria forma como o ensino de história deve ser ministrado, conforme orientado no PCN para o ensino de História, e devido a isso ser alvo de muitas críticas dos profissionais de ensino e pesquisa, a maioria delas bem fundamentadas, Kazumi Monaka lembra que “estão olhando restritivamente o produto quando se deveria questionar a sociedade que está demandando este produto” (p.114).
Esta demanda vem principalmente do que é normatizado nos Parâmetros Curriculares de Ensino de História. Oliveira observa que a base teórica dos PCNH é francesa, mas que pouco se detém nas sugestões dos autores no qual se norteiam. Marc Ferro, Jaques Le Goff, Michel de Certeau, apenas para se mencionar alguns listados em sua bibliografia, defendem uma história narrativa e cronológica para ensinar história a crianças e adolescentes. A história temática, a história nova, só seria introduzida a partir do ensino médio. Segundo estes, não há maturidade suficiente para se compreender uma história temática quando se é ainda muito jovem. Crianças e adolescentes da primeira fase precisam localizar-se no tempo e espaço, possibilitado pela narrativa histórica. Um dos problemas é que os PCNH têm estes autores como norteadores, mas propõem uma história temática, que é refletida no livro didático, nos projetos político pedagógicos das escolas e nas aulas dos professores (p.139-160).
Nesta obra Margarida Oliveira convida os leitores a reflexão. Sua pesquisa lança um debate sobre a Revista Brasileira de História (RBH), a ANPUH, os PCN, o livro didático, a formação do professor e do pesquisador de história e o papel destes elementos na educação. A análise desse material mostrou que há neles uma ausência de debates profundos sobre a formação do cidadão brasileiro.
Apesar do “progresso” que a ANPUH e a RBH fizeram ao conceder espaço ao ensino de história, ainda há muito que avançar. O ensino ainda é visto por muitos profissionais de pesquisa em história, como questão menor ou pensado como prerrogativa exclusiva das áreas de pedagogia e psicologia educacional. Os PCN e o livro didático devem contribuir para a formação de um cidadão capaz de compreender, interpretar e atuar em seu mundo. Em suma, é urgente se “estabelecer parâmetros para um roteiro e dimensioná-lo” no que se refere ao o ensino de história, que nos “oferece” um passado a que todos temos direito.
Referências
OLIVEIRA, Margarida Maria Dias de. O Direito ao Passado – Uma Discussão Necessária à Formação do Profissional de História. Aracaju: Editora UFS, 2011. 302p.
Karla Karine de Jesus Silva – Formada em História pela Universidade Federal de Sergipe. Mestranda pelo Programa de Pós-Graduação em História da UFS.
História, Neofascismos e Intolerância: reflexões sobre o Tempo Presente | Dilton Cândido Santos Maynard
MAYNARD, Dilton Cândido Santos (org.). História, Neofascismos e Intolerância: reflexões sobre o Tempo Presente. Rio de Janeiro: Editora Multifoco, 2012. p. 31-32. Resenha de: VIEIRA, Irlan Mark Elias. História, Neofascismos e Intolerância: Reflexões sobre o Tempo Presente. Cadernos do Tempo Presente, São Cristóvão, n. 10 – 10 de dezembro de 2012.
A obra em estudo é um trabalho de cerca de 2 anos que o GET (Grupo de Estudos do Tempo Presente) vem fazendo através do mapeamento e discursões de sítios eletrônicos de caráter racista, xenófobo e neonazista, oferecendo a seus leitores um farto material de estudo sobre o problema da intolerância contra judeus, nordestinos, homossexuais, negros e latinos, cada dia mais frequente na web.
Em seu primeiro capítulo, os autores Maynard e Lucchesi fazem uma analise da ação de ativistas e simpatizantes dos ideais fascistas, que utilizam a internet para difundir o preconceito e a intolerância gratuita. Para isto, os autores demonstram como os ativistas (lobos solitários) acabaram conhecidos como internautas engajados na utilização das redes sociais para propagarem ódio e intolerância ao outro. Leia Mais
Bolívia: Passos das Revoluções – CHAVES et. al (CTP)
CHAVES, Daniel Santiago; SÁ, Miguel de; ARAÚJO, Rafael. Bolívia: Passos das Revoluções. Niterói: Muiraquitã, 2009. Resenha de: ANDRADE, Carolline Acioli Oliveira. Bolívia: Passos das Revoluções. Cadernos do Tempo Presente, São Cristóvão, n.10, 10 dez. 2012.
O doce veneno da noite: prostituição e cotidiano em Campina Grande (1930-1950) – NASCIMENTO (CTP)
NASCIMENTO, Uelba Alexandre do. O doce veneno da noite: prostituição e cotidiano em Campina Grande (1930-1950). Campina Grande: Editora da UFCG, 2008. Resenha de CRUZ, Débora Souza. O difícil cotidiano das mulheres de “vida fácil” em Campina Grande (1930-1950). Cadernos do Tempo Presente, São Cristóvão, n.10, dez. 2012.
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A era da ilusão: a diplomacia nuclear em tempos traiçoeiros – ELBERADEI (CTP)
ELBARADEI, Mohamed. A era da ilusão: a diplomacia nuclear em tempos traiçoeiros. São Paulo: Leya, 2011. Resenha de: ARIAS NETO, José Miguel. É Possível um Mundo sem Armas Nucleares? Cadernos do Tempo Presente, São Cristóvão, n. 05 – 05 de outubro de 2012.
“Para que então a amaldiçoada fadiga que Deus deu ao gênero humano como tarefa diária durante a sua curta vida? Para que a carga sob a qual cada um vai abrindo o seu caminho para a sepultura? E ninguém foi interpelado sobre se sim ou não desejava carregar com ela, se queria ter nascido neste lugar, nesta época e neste ambiente. Sim, porque já que a maior parte dos males que afligem os homens deriva deles próprios, das suas leis e governos deficientes, da arrogância dos opressores e de uma quase inevitável fraqueza de governantes e governados, que destino foi esse que submeteu o homem ao jugo de sua própria espécie, à fraca ou louca arbitrariedade do seu semelhante?” Johann Gottfried Herder. Idéias para a Filosofia da História da Humanidade. (1784-1791)
“Deve, portanto, instaurar-se o estado de paz; pois a omissão de hostilidades não é ainda a garantia da paz e se um vizinho não proporciona segurança a outro ( o que só pode acontecer num estado legal) cada um pode considerar como inimigo a quem lhe exigiu tal segurança. Immanuel Kant. A paz perpétua. (1795-1796).
O livro de Mohamed Elbaradei é extraordinário. A começar pelo título, cujo original em inglês The age of deception, traduzido elegantemente para o português como A era da ilusão.
Tanto o original como a tradução induzem à uma reflexão. O leitor deve atentar para o fato de que deception não é uma decepção no sentido trivialmente atribuído à palavra, assim como também o termo ilusão pode induzir ao engano se entendido como engano ou confusão. De fato o termo ilusão é perfeitamente intercambiável com deception na medida em que seja entendido como “manobra astuciosa para enganar ou iludir”, também como registra o Houaiss: promessa de prazer, felicidade, durabilidade etc. que se revela decepcionante, dolorosa ou efêmera; esperança vã; decepção, desilusão.Esta compreensão é fundamental para que de imediato se saiba que o livro é uma obra que busca despertar uma centelha de esperança na nossa contemporaneidade. Esperança no diálogo e não na força, na autoridade moral e não na imposição arbitrária. É uma obra digna de um Nobel da Paz, ao autor à IAEA (Agência Internacional de Energia Atômica) concedido em 2005. A vida e o livro de Mohamed dão uma resposta às indagações de Herder: ele, assim como nós, não foi interpelado sobre se desejava ou não nascer neste tempo, no lugar e no ambiente em que veio ao mundo. Mas ele tomou, durante sua curta vida, a tarefa diária de construiruma paz cosmopolita.
Daí o título que é denúncia sobre a “arte de iludir”, e sobre a “ilusão” e, neste caso sim, o engano, que Elbaradei aponta exaustivamente, em se acreditar que é possível um mundo sem armas nucleares mantendo-se o status quo atual, no qual os países detentores de armamentos procuram impedir, por meio da astúcia, irmã maligna da prepotênciaII, que os não detentores desenvolvam seus programas, inclusive para fins pacíficos. Em última instância, trata-se de um livro que analisa a questão do ponto de vista das relações de poder.
Assim, o título do livro possui um duplo sentido que indica o direcionamento da crítica encetada pelo autor e, ao mesmo tempo, a inabalável crença de que um mundo com programas nucleares pacíficos só existirá a partir do diálogo, da negociação franca, da superação das desconfianças mútuas, e da renúncia a um mundo dividido assimetricamente.
O livro é dividido em doze capítulos, além de introdução e conclusão. Em cada um dos capítulos é analisado um “caso” de atuação da IAEA em situações de conflito sobre o desenvolvimento de programas nucleares. No conjunto o livro abarca os últimos vinte anos, havendo alguns recuos até os anos oitenta que funcionam mais ou menos à guisa de notas explicativas. Os casos analisados são o do Iraque após a primeira e durante a segunda guerras do Golfo; a Coréia do Norte, dos primórdios do programa nuclear até às detonações de bombas nucleares; o caso da Líbia; da descoberta da rede clandestina de A.Q. Khan e finalmente o caso do Irã é abordado em quatro capítulos, dos primórdios do programa à sabotagem do Acordo Irã-Turquia- Brasil. Há ainda um capítulo no qual é narrada a premiação com o Nobel e os desdobramentos desta na atuação da agência e do próprio Mohamed.
A astúcia, quando desempenhando o papel de irmã maligna da prepotência, não é aquela que afirmava Hobbes ser a alternativa para os mais fracos defenderem-se dos mais fortes, ao contrário, como Mohamed bem a caracteriza, é a utilização, com base na potência ou projeção da força, dos critérios de dois pesos e duas medidas, tema que intitula um dos mais inquietantes capítulos do livro. De fato, pensando nos EUA e no Reino Unido, Elbaradei aponta os seguintes desdobramentos na política internacional do final dos anos oitenta aos nossos dias: a) apesar da destruição pela IAEA do programa nuclear do Iraque e apesar desta não encontrar vestígios de armas de destruição em massa (informação que hoje se tem seguramente) se faz uma guerra destrutiva para depor o regime; b) pressiona-se a Coréia do Norte, mas quando esta faz seu primeiro teste com um artefato nuclear, faz-se um acordo; c) Também se é tolerante com a Índia, Paquistão e Israel – países não signatários do TNP; d) adota-se, na administração Bush e Blair, como explica o autor, o mantra “nenhuma centrífuga funcionando no Irã”, a despeito do fato deste ser signatário do referido acordo, e por isto mesmo, possuir o direito de desenvolver programa nuclear com fins pacíficos e, finalmente, e) o mau exemplo das potencias nucleares em não apenas manter, mas incrementar seus arsenais nucleares, quando, de acordo com os dispositivos do TNP deveriam estar destruindo-as.
Além disso, os EUA, o Reino Unido e Israel procuraram e obtiveram estrondoso sucesso em sabotar todas as iniciativas que a IAEA sob a batuta de Elbaradei, tomou no sentido de estabelecer um protocolo adicional de inspeções com o Irã, aproveitando-se do clima de desconfiança em relação a este último por parte do mundo ocidental. Esse processo de sabotagem continua inclusive na censurável e vergonhosa atitude dos EUA e do Conselho de Segurança da ONU em dinamitar o acordo Brasil-Turquia-Irã em 2010.
Enganar-se-ia, porém, quem apressadamente pensar que Elbaradei adota uma narrativa do tipo “mocinho-bandido”, invertendo os termos destas, fazendo dos EUA , do Reino Unido ou de Israel “um outro eixo do mal”, por exemplo. De fato, Elbaradei não economiza críticas ao Iraque, à Coréia do Norte ou ao Irã, demonstrando como estes regimes muito fizeram para provocar a “desconfiança” do ocidente, atitude que forneceu às potências nucleares que dominam o Conselho de Segurança da ONU, os argumentos – verdadeiros e falsos – para desenvolverem esta política, aparentemente insana. Digo aparentemente, pois o livro de Elbaradei é ilustrativo quanto a esta questão também e não permite nenhuma ilusão.
Para discutir este problema é preciso levar em consideração três questões fundamentais nas Relações Internacionais, com aquele interesse cosmpolita Herderiano-Kantiano: a História, a Cultura e a Política.
Comecemos com a História e façamos aqui uma junção de Herder com Kant, mesmo que para desgosto de ambos os filósofos. Herder, discípulo de Kant, tinha uma perspectiva de História fundada na tragédia e não na dialética, o que bem caracteriza o romantismo alemão e seus seguidores, especialmente Leopold Von Ranke que cunhou a famosa e mal entendida frase wie es eigentlich gwesen ist, isto é a História tal qual se passou. Ranke aqui só retoma Herder quando este afirma que a História deve ser a ciência do que é, e não do que deveria ser, afirmação que o segundo faz contra as formulações ético-teleológias de Kant e o primeiro contra as de Hegel. Mas se Ranke recusa a idéia de uma finalidade moral na história – recusa que é compartilhada por Fustel de CoulangesIII – é porque refuta a idéia de uma história mestra da vida, com seu cortejo de exemplos e prescrições morais. Como conseqüência – de grandes implicações para os estudos históricos – não há um destino dado apriori a ser cumprido pela humanidade. Por outro lado, a história tem um sentido conferido pelo historiador em seu trabalho artístico de reconstrução do conhecimento a partir de seu presente.
É a busca rankeana pelos “nexos causais” que permitirão a formulação de “totalidades significativas” na história. Essas aparecem- e aqui se reata com a filosofia de Hegel -como a realização do espírito no mundo, como aquilo que essencialmente é, e o trabalho do historiador é olhar com olhos imparciais – pelo lado da ciência – e reconstituir o conhecimento através da escrita – pelo lado da arte.
Esta perspectiva tem uma grande importância em nossos dias, na medida em que, tanto Herder, quanto posteriormente Ranke, insistem em que olhemos as questões de um ponto de vista “neutro, imparcial” como fundamento da busca de uma verdade possível, mesmo que fragmentada. A utilidade destas formulações reside no fato de que devemos ter, em nosso modo de ver as coisas, certa dose, do que a antropologia do século XX denominou “relativismo”. Ou, retomando as formulações de um dos mais antigos historiadores e de um “especialista em história da guerra”, procurar compreender os negócios humanos como Heródoto, que afirmava em sua História: “Ao escrever a sua História, Herodoto de Halicarnasso teve em mira evitar que os vestígios das ações praticadas pelos homens se apagassem com o tempo e que as grandes e maravilhosas explorações dos Gregos assim como a dos bárbarospermanecessem ignoradas; desejava ainda, sobretudo, expor os motivos que os levaram a fazer guerra uns aos outros”.IV É esta dose certa de relativismo que possibilita a Elbaradei fazer uma contundente crítica do que ele chama de “diplomacia nuclear”, com seus teatros, simulações e dissimulações que tem jogado o mundo em uma tensão sem fim e originado atos da mais completa barbárie quando se constata o sofrimento inominável a que é submetida nesse processo a população mais vulnerável. As guerras, tensões, os bloqueios e sanções são os exemplos de como essa diplomacia tem moído carne humana num liquidificador que não desliga. Igualmente criminosos e responsáveis, desse ponto de vista, são os governos de todos os países envolvidos nessa “diplomacia” nuclear, deletéria para a vida humana. São todos igualmente culpados: dos EUA à Coréia, passando por Israel, Iraque, Irã, inclusive aqueles que pecam pela omissão, pelo silêncio.
Eis as coisas como são. No entanto, aqui também residem, em parte, alguns dos limites desse “relativismo ético”. A questão é: as coisas poderiam e deveriam ser diferentes¿
Torna-se necessário, então, retomar a questão da historicidade das relações políticas e culturais no Ocidente. E aí encontramos a junção de Herder, Ranke e Kant. De fato, se os dois primeiros recusavam a idéia de uma finalidade última da História, uma escatologia moral (Endzweck) e, portanto, de ações pautadas segundo “imperativos categóricos”, não deixaram de se impressionar com as perspectivas ético-cosmopolitas das ações humanas e com a crítica da razão que tanta água jogou no moinho do romantismo.
Com Kant, compreendemos que a razão cartesiana é parcialmente burra, ou seja, que há um sem-número de fenômenos que ela não pode compreender. Ora, estes fenômenos, são aqueles nos quais românticos vão buscar o entendimento para a vida dos homens: sentimentos, impressões, tradições, costumes, ou seja, “o espírito do tempo” residiria nestes fenômenos e não no formalismo das instituições, leis, etc. Em outras palavras, Kant afirma na primeira proposição da sua Ideia de História Universal que se prescindirmos de uma doutrina teleológica “ não teremos uma natureza regulada por leis, e sim um jogo sem finalidade da natureza, e uma indeterminação desconsoladora toma o lugar do fio condutor da razão”.V É exatamente no campo da indeterminação que os românticos vão apostar. Se, para eles, as coisas são como são também é possível que as coisas sejam diferentes, não a partir de uma perspectiva racional de soma zero, mas sim como produto das tensões em que emoções e sentimentos não fiquem de fora. Em suma, a razão pode até ajudar, mas não é tudo e ao se insistir apenas em um conjunto prescritivos de normas jurídicas a coisa não vai dar certo. Isto é, o que os românticos recusam na postura iluminista é o seu caráter prescritivo que tende ao autoritarismo na medida em que diagnostica o real como erro, a partir da formulação teleológica do que deveria ser. O conhecimento, assim concebido, torna-se, como teorizaram os frankfurtianos, apenas uma racionalidade instrumental, dominadora e totalitária. Assim, enunciada uma suposta “verdade”, o que dela difere é colocada no registro da ignorância e do atraso. O etnocentrismo ocidental aglutina a este pensamento equívoco, um argumento moral também equívoco: isto é, que as potencias ocidentais são “mais racionais”, mais adiantadas, e, por isto mesmo, “mais responsáveis” que os “subdesenvolvidos” e “atrasados”. Após o 11 de setembro este argumento se transmutou na falácia do denominado “choque de civilizações”. Elbaradei descarta tudo istoVI e remete à idéia e à prática do diálogo.
Este diálogo, é como gostaria de conceitualizar aqui, um diálogo amplo, no qual intervêm diferenças culturais e sentimentos que não podem ser desprezados. Aliás, em sua ótica – que talvez consiga visualizar a nós do ocidente melhor por ser egípcio – este desprezo tem colocado todas as tentativas de acordos a perder. Inúmeras vezes aponta em seu livro que os norte-americanos não sabem como falar com os iraquianos, e como isto seria fundamental – saber falar – para que as coisas funcionassem bem. Em suma é necessário conhecer e respeitar o outro – respeito que é uma característica fundamental de “civilização”, entendida esta não nos termos do século XIX, mas em seu sentido ampliado no XXI, isto é, um conceito que envolve as noções de cultura (conhecimento), tecnologia e educação (fraternidade e compaixão – o tratamento dispensado ao outro).
Elbaradei leva essas concepções às suas últimas conseqüências. Em um relato emocionante, fala de seus filhos: “ Meu filho e minha filha não se importam com aspectos como cor, raça e nacionalidade. Não vêem nenhuma diferença entre seus amigos Noriko, Mafupo, Justin, Saulo e Hussam ….[ E falando da escolha feita pela filha observa] Laila reunia forças para me apresentar ao homem que ela amava. Ela sabia que, de alguma maneira, minha expectativa era que ela se casasse com um egípcio. Mas na condição de alguém que observa diariamente os efeitos desastrosos da desconfiança cultural abençoei-a pela escolha feita.” VII Tratava-se, no caso, de um jovem britânico. Mas não é só no plano privado e pessoal que se vislumbram estas atitudes. Apesar de todas as campanhas contra a IAEA e contra ele pessoalmente feitas pela imprensa americana, sempre ao sabor dos interesses dos governos daquele país, Elbaradei remete-se com carinho àquele país, quando então a administração Obama ainda parecia realizar esforços para superar a questão iraniana: “Minha última visita aos Estados Unidos como diretor geral da AIEA foi absolutamente diferente de tudo o que eu havia vivido nos últimos oito anos. Em Washington, tive uma série exaustiva de reuniões (…). Para onde quer que me virasse, encontrava expressões de agradecimento. Eu sabia que estava em casa nos Estados Unidos.”VIII Esta busca de um diálogo ampliado – que vai além da pura prescrição jurídica – não exclui esta última. De fato, Elbaradei compreende que as relações internacionais se pautam pela história – confundida muitas vezes com memórias de ressentimentos e desentendimentos culturais – por um diálogo marcado pela desconfiança e por poderes assimétricos e por políticas desiguais e injustas e pelas normatizações jurídicas – um norte da conversa, por assim dizer, mas que são insuficientes frente aos estragos causados pelo ressentimento, pela desconfiança e pelas imposições de força.
É possível modificar este estado de coisas¿ Não só é possível como é imprescindível, uma vez que a questão nuclear é um dos universais do tempo presente. E foi este universal, anunciado pelas cores infernais da destruição, enunciada no leste e no oeste pela sabedoria dos antigos.
Diante do resultado do teste de Trinity, na manhã de 16 de julho de 1945, quando o jornalista Willaim Laurence exclamou: “Prometeu rompeu os grilhões e trouxe à Terra um novo fogo” e Oppenheimer recitou o Bhagavad Gita: “Agora eu me transformei na Morte, o destruidor de mundos”, a humanidade passou a formar uma comunidade de destino: ou remamos juntos ou naufragamos juntos também.
Estar no mundo implica em tentar construir uma esfera pública de exercício da liberdade, mas a liberdade só pode ser exercida entre os iguais e, neste sentido, ela contraria a soberania absoluta, a mônada liberal, isto é, só haverá uma esfera pública global com a redução da soberania. Como observa Hannah ARENDT “A famosa soberania dos organismos políticos sempre foi uma ilusão, a qual, além do mais, só pode ser mantida pelos meios de violência, isto é, com meios essencialmente não-políticos. Sob condições humanas, que são determinadas pelo fato de que não é o homem, mas são os homens que vivem sobre a terra, liberdade e soberania conservam tão pouca identidade que nem mesmo podem existir simultaneamente. Onde os homens aspiram ser soberanos, como indivíduos ou como grupos organizados, devem se submeter à opressão da vontade, seja esta a vontade individual com a qual obrigo a mim mesmo, seja a „vontade geral‟ de um grupo organizado. Se os homens desejam ser livres, é precisamente à soberania que devem renunciar”.IX Elbaradei retoma, assim, o coro das universais preocupações, juntando sua voz às de Oppenheimer, Einstein, Szilard, entre outros, que desde 1946, anunciaram: um mundo ou nenhum.X Estes cientistas ancoraram naquela época, como Elbaradei hoje, as esperanças de um mundo sem armas nucleares nos mais generosos impulsos, sentimentos e argumentos racionais, isto é, no cosmopolitismo produzido pelo Romantismo e pelo Iluminismo. Como observa Tzvetan Todorov: “A abordagem cosmopolita não abole as diferenças, mas conferelhes um quadro comum e um estatuto de igualdade de direitos”.XI É um truísmo afirmar que os estudiosos da História, das Ciências Políticas e das Relações Internacionais devam ler Elbaradei. O que é importante frisar é que qualquer cidadão com um interesse desinteressado pelas questões humanas pode e deve ler Elbaradei para compreender que as relações entre ciência, tecnologia e política podem produzir um mundo instável, mas que isto não é, de modo algum, inevitável. Afinal, ciência, tecnologia e política são fundamentalmente produtos de ações humanas que dependem de nossas escolhas. Elbaradei fez a dele.
Notas
2 HERDER In GARDNER, 1984: 53
3 HARTOG, François. O século XIX e a História: o caso Fustel de Coulanges. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 2003.
4 HERODOTO. História. São Paulo: Tecnoprint, s/d: 31.
5 KANT, Immanuel. Idéia de uma história universal de um ponto de vista cosmopolita. São Paulo: Brasiliense, 1986: 11.
6 Para uma crítica da idéia do “choque de civilizações” o último livro de Tzvetan Todorov é de leitura fundamental. Ver no conjunto de referências deste texto.
7 P. 239
8 P. 350
9 2001: 213
10 Trata-se do nome de um relatório público sobre o pleno significado da bomba atômica, republicado em 2008, e que se encontra nas referências deste texto. 9 2010: 209
Referências
ARENDT, Hannah. Entre o passado e o futuro. São Paulo: Perspectiva, 2001.
ELBARADEI, Mohamed. A era da ilusão: a diplomacia nuclear em tempos traiçoeiros. São Paulo: Leya, 2011.
HARTOG, François. O século XIX e a História: o caso Fustel de Coulanges. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 2003.
HERDER, J. G. Idéias para a filosofia da história da humanidade. In GARDNER, Patrick. Teorias da História.Lisboa, Calouste Gulbenkian, 1984, p. 41-59.
HERODOTO. História. São Paulo: Tecnoprint, s/d.
KANT, Immanuel. Idéia de uma história universal de um ponto de vista cosmopolita. São Paulo: Brasiliense, 1986.
MASTERS, Dexter e WAY, Katharine. Um mundo ou nenhum: um relatório público sobre o significado da bomba atômica. São Paulo: Paz e Terra, 2008.
RANKE, Leopold Von. Da unidade essencial dos povos romanos e germânicos e de sua comum evolução. In HOLANDA, Sérgio B. (Org.). História: Ranke. São Paulo: Ática, 1979, p. 65-79
___________________. O conceito de História Universal. In MARTINS, Estevão de Rezende ( Org.). A história pensada. São Paulo: Contexto, 2010, p. 202-215.
SMITH, P. D. Os homens do fim do mundo: o verdadeiro Dr. Fantástico e o sonho da arma total. São Paulo: Companhia das Letras, 2008.] TODOROV, Tzvetan. O medo dos bárbaros: para além do choque de civilizações. Petrópolis: Vozes, 2010.
José Miguel Arias Neto – Pós Doutor em Estudos Estratégicos pela Universidade Federal Fluminense (2011). É professor associado de História Contemporânea no curso de Graduação em História e Docente do Programa de Pós-Graduação em História Social da Universidade Estadual de Londrina. Tem experiência na área de História, com ênfase em História Moderna e Contemporânea, atuando principalmente nos temas: política, representações, militares, marinha. É coordenador dos Grupos de Pesquisa: Estudos Políticos e Militares Contemporâneos e de Estudos Culturais e Mídia.
Barbudos, sujos e fatigados: soldados brasileiros na Segunda Guerra Mundial – MAXIMIANO (CTP)
MAXIMIANO, César Campiani. Barbudos, sujos e fatigados: soldados brasileiros na Segunda Guerra Mundial. São Paulo: Grua, 2010. Resenha de: OLIVEIRA, Marlíbia Raquel de. A saga da FEB em Barbudos, sujos e fatigados. Cadernos do Tempo Presente, São Cristóvão, n. 08 – 08 de julho 2012.
Desde a década de 1980 o historiador paulista César Campiani Maximiano vem realizando pesquisas sobre a participação brasileira na Segunda Guerra Mundial (1939-1945). Um interesse surgido da dificuldade em encontrar leituras sobre o tema naquela época, somado ao subjetivismo de ter em sua família um veterano dessa guerra. Maximiano tornou-se professor pela PUC/SP e é doutor em História pela USP. Atualmente leciona História Contemporânea e História das Relações Internacionais em universidades públicas e privadas. É também membro do Núcleo de Estudos de Política, História e Cultura (POLITHICULT) da PUC/SP. Entre as obras do autor podemos citar Onde Estão nossos Heróis?, de 1995, Irmãos de Armas, de 2005,The Brazilian Expeditionary Force, de 2011. Além dessas obras, escreveu vários artigos sobre história militar para periódicos brasileiros, americanos, britânicos e italianos. Nesta resenha, analisaremos a penúltima obra de Maximiano, Barbudos, sujos e fatigados: soldados brasileiros na Segunda Guerra Mundial, de 2010.
Barbudos, sujos e fatigados, obra cujo título explicita características físicas comuns em soldados atuantes no front de uma guerra, traz em suas páginas um vasto acervo de fontes históricas,adquiridas durante mais de uma década de estudo. São fotos, entrevistas, trechos de jornais, correspondências, documentos oficiais, livro de memórias, diários, entre outros. Esse material foi consultado em arquivos nacionais e internacionais, em instituições de memória da Segunda Guerra e/ou cedidos cordialmente por ex combatentes da Força Expedicionária Brasileira (FEB), importantes colaboradores, hoje quase todos já mortos.
Dividido em sete capítulos, o livro possui ainda epílogo, apêndice, sendo demarcado por vários subtítulos e notas, mas com uma linguagem acessível. A obra retrata com detalhes a atuação dos expedicionários brasileiros enviados a Europa para lutar ao lado dos aliados durante a Segunda Guerra Mundial, de modo especial, a rotina experienciada pelos combatentes dos Regimentos de Infantaria, seguidos por unidades de reconhecimento e observadores avançados de artilharia. A escolha de soldados de linha de frente é justificada a partir do pressuposto que: “Os homens alocados nessas funções são os que geralmente vivenciaram as situações de maior risco e que foram mais profundamente marcados pelas percepções registradas na guerra.” (p.24).
No decorrer da narrativa são discutidas problemáticas pertinentes a respeito de relações estabelecidas pelos combatentes brasileiros, e situações comuns vividas no dia a dia do conflito, no pré e no pós-guerra. Inicialmente é descrita a formação da Força Expedicionária Brasileira (FEB) em 1943, após a entrada do Brasil no conflito mundial, as dificuldades impostas ao então Ministro da Guerra Eurico Gaspar Dutra e o chefe do Estado-maior do Exército Pedro Aurélio de Góis Monteiro para organizar a tropa, assim como a precariedade do treinamento oferecido aqueles jovens, que quase unanimemente não possuíam qualquer experiência militar.
Em solo italiano os recrutas ficaram admirados frente ao poderio do equipamento militar americano e alemão. Receberam dos nossos “irmãos do norte” instruções sobre armadilhas, o combate e o manejo de armas. De todo modo, a inexperiência logo seria substituída pela forma prática de aprendizagem, o campo de batalha. Nele os febianos foram batizados com sangue. Precisaram criar antipatia, enfrentar o inimigo “tedesco”, como ficou conhecido entre brasileiros e italianos os alemães, o frio europeu, o perigo e a lama das trincheiras, buracos, os Foxholes, onde ficavam vigiando o terreno, as precárias condições de higiene, ferimentos, o cansaço de meses sem dormir direito, a monotonia da solidão e do barulho ininterrupto. Como se não bastasse, tiveram ainda que vencer o próprio inimigo psicológico, o sentimento de culpa, impotência, e o terrível medo da morte. Infelizmente, os expedicionários se viram obrigados a conviver com essa dura realidade e suas vítimas, muitas vezes desamparadas nos campos de cada nova e constante batalha.
Adiante, Maximiano descreve a relação de camaradagem entre militares brasileiros e americanos, traduzida principalmente em vestuário, cigarros e alimentação. Aponta paradoxos do governo Vargas, e defende a ideia que houve uma ajuda mútua entre as duas nações não só no campo político-econômico, mas principalmente no social. Ousa quando afirma a hipótese de que o movimento dos direitos civis dos negros americanos tomou como referência para sua luta o Exército brasileiro e sua não segregação racial, diferente daquela extremamente arraigada no Exército norte-americano. No caso do Brasil, segundo o autor, a participação do país no conflito mundial e o reconhecimento da sociedade dos motivos pelos quais se lutava representaram o fim do Estado Novo.
A obra oferece contribuições ao estudo de uma temática que por longos anos ficou restrita ao interesse de um pequeno grupo de pesquisadores, colecionadores, veteranos e seus familiares.
A participação dos brasileiros na Segunda Guerra Mundial parece não estar na memória coletiva do país, quando do contrário, muitas vezes é abordada de modo pejorativo, irônico. Com o objetivo de amenizar esta realidade, César Campiani se empenhou na desmistificação de estereótipos sobre a FEB amplamente difundidos no Brasil, tais como a falsa idéia de que seus membros “viajaram para a Europa a passeio”, eram todos “analfabetos, raquíticos e desdentados”, protagonizavam “lindos romances” com as italianas, e o “jeitinho brasileiro” foi o responsável pelo bom desempenho da tropa durante os combates. Através de documentação e relatos de expedicionários comprovou-se que tais afirmações não possuem fundamento, tabelas e relatórios descrevem o bom estado de saúde dos nossos rapazes, maioria provenientes das cidades do sul e sudeste do país. O expressivo número de correspondências e jornais confeccionados pelos regimentos, a título de ilustração,“…E a Cobra Fumou!”e o“Cruzeiro do Sul”, são provas de que sabiam ler. Quanto aos momentos de lazer, estes eram raríssimos, assim como o contato com o sexo oposto, além disso, as particularidades culturais brasileiros tão enaltecidas pelos ufanistas patriotas, por vezes prejudicaram o combatente que insistia em aplicar métodos de crença popular ao invés de seguir as recomendações da medicina, já bastante avançada no período. Um exemplo claro para tal conjuntura seria o caso do “pé de trincheira”, moléstia comum aos combatentes durante o inverno, e que atingiu severamente a tropa brasileira em comparação a outras (p.176-177).
Outros fatores apresentam-se como positivos, como o excelente trabalho realizado com as variadas fontes, convidando o leitor a todo instante a entender a história por meio de diferentes narradores. O cuidado com a utilização da História oral. As entrevistas apresentadas em fragmentos nos permitindo compreender como era para o soldado o universo da guerra, sem dúvida muito mais cruel e violento do que aquele criado pelo cinema holywoodiano.
Terminado o conflito, veio a difícil readaptação a sociedade civil, e a tentativa de superação dos traumas, os planos assistencialistas nem sempre concedidos pelo governo, a revolta, o silenciar do assunto. Uma situação constrangedora, injusta com milhares de brasileiros que deixaram seus lares em nome da pátria e após cumprir seu papel foram colocados de lado e não tiveram seus sacrifícios minimamente reconhecidos. Assim, reunindo registros diversos, oferecendo uma abordagem que procura atualizar o debate e estabelece uma proposta de linguagem visando um leitor não-especialista, a obra Barbudos, sujos e fatigados torna-se essencial e prazerosa para os estudiosos desse marcante conflito ocorrido o século XX.
Notas
* Esta resenha integra atividades desenvolvidas com o apoio Edital CNPq/CAPES Nº 07/2011.
Referência
MAXIMIANO, César Campiani. Barbudos, sujos e fatigados: soldados brasileiros na Segunda Guerra Mundial. São Paulo: Grua, 2010.
Marlíbia Raquel de Oliveira – Graduanda em História pela Universidade Federal de Sergipe Bolsista do Programa de Educação Tutorial – PET/História/UFS Integrante do Grupo de Estudos do Tempo Presente – GET/CNPq/UFS E-mail: marlibia@getempo.org Orientador: Prof. Drº. Dilton C. Santos Maynard (DHI-UFS).
White Noise: Inside the International Nazi Skinhead Scene – LOWLES (CTP)
LOWLES, Nick; SILVER, Steave. (Ed). White Noise: Inside the International Nazi Skinhead Scene. Londres: Searchlight, 1998. Resenha de: OLIVEIRA, Pedro Carvalho. Barulho, cabeças raspadas e raiva: neonazismo e música em White Noise, de Nick Lowles e Steve Silver. Cadernos do Tempo Presente, São Cristóvão, n. 08 – 08 de julho 2012.
Se observarmos como, no século XX, a juventude se manifestou, perceberemos que em cada um de seus movimentos houve uma trilha sonora. Nos anos 1950, o surgimento do rock’n’roll com Chuck Berry, Elvis Presley e Little Richard, entre outros, evocava o direito de ser jovem, de se divertir e esquecer o conflito político entre capitalismo e socialismo no auge da Guerra Fria (1945-1991), ditando uma nova forma de se comportar. Nos anos 1960, este mesmo rock tentava combater com palavras e acordes tudo que estava errado: a guerra do Vietnã (1965-1975), o conservadorismo e o autoritarismo. Nos anos 1970, o punk rock voltava ao princípio, às mesmas bases do rock’n’roll cinquentista e eliminava a preocupação política, atrelado a uma espécie de niilismo lírico, conformado com uma guerra nuclear iminente que nunca aconteceu, embora mais tarde tenha ganhado feições de contestação.
Por gritar a liberdade e o direito de ser, de expor seus sentimentos, suas angústias, suas vontades, o rock tornou-se o porta-voz dos anseios da juventude de maneira que são eles os principais consumidores do mercado cultural ligado a este gênero. Uma cultura que não está apenas restrita aos discos, mas também a camisetas e acessórios de suas bandas favoritas, ou com os lemas preferidos de contestação ao stablishment. Entretanto, a história dos movimentos jovens em todo o mundo nos enganou, de certa forma, ao nos fazer pensar de maneira ingênua que a revolta da juventude era apenas contra os símbolos da repressão, contra o que era visto como antiquado, excessivamente autoritário e conservador. Ledo engano.
O livro White Noise – Inside de international nazi skinhead scene (Searchlight: Londres, 1998) vem para nos mostrar exatamente o contrário. Editado por Nick Lowles e Steve Silver, ativistas de uma das maiores organizações anti-fascistas da Inglaterra, a Searchlight, o livro expõe em suas 89 páginas as principais características dos movimentos neonazistas ingleses, por meio da organização musical. Seus principais traços, os esquemas mundiais de distribuição e a forma como a música neonazista é um grande atrativo para jovens que, insatisfeitos, aceitam atacar inimigos que, a princípio, não são os seus, mas que logo acabam se tornando.
Se no final dos anos 1970 e início dos anos 1980 os punks não acreditavam num futuro, como bradava Johnny Rotten, vocalista da lendária banda inglesa Sex Pistols, parte dos skinheads britânicos, influenciados por partidos de extrema-direita como o National Front e o British Movement, principalmente, acreditavam que havia sim um futuro. Mas, este estava em medidas políticas e sociais tomadas no passado. Para eles, nem o capitalismo norte-americano e nem o socialismo soviético pareciam alternativas interessantes para seus anseios. Os protestos que faziam em suas músicas eram contra ambos, mas a favor de uma doutrina fascista, do racismo e da intolerância, edificado por Adolf Hitler na Alemanha e que deveria ser seguido como exemplo em todo o mundo.
É exatamente disso que o livro trata: os aspectos dessa música e toda a ideologia em torno dela, sua presença entre os jovens como forma de propaganda e exaltação da memória nazistas, além da forma como este tipo de música está articulado. As organizações, como a Blood & Honour, os selos musicais como o alemão Rock-O-Rama e o francês Rebelle Européens; as lojas de artigos, como a inglesa Cutdown; a divulgação, por meio de zines e revistas como a própria Blood & Honour. A música nazista, ou “música de ódio”, é retratada de maneira profunda pelos organizadores da obra, a fim de que seja chamada a atenção da Europa para o mal que representa este gênero entre a juventude.
Trata-se, segundo o livro, de um mercado que foi crescendo no submundo da Inglaterra, até atingir outras regiões do continente europeu. Os lançamentos em CDs eram, em sua grande maioria, clandestinos e caseiros, possuindo um aspecto artesanal, como algo realizado às escondidas. O mesmo ocorria com os shows, os quais o público só conhecia o local de apresentação das bandas poucas horas antes do evento, a fim de que a polícia ou os manifestantes anti-fascistas não interferissem. A divulgação era realizada de maneira independente, no boca a boca, ou por meio dos fanzines, espécies de panfletos em forma de pequena revista, normalmente fotocopiado ou impresso em casa. Trata-se de uma espécie de clube, restrito a brancos, nacionalistas e nacional-socialistas, indivíduos supostamente puros e cientes de seu papel na sociedade: limpá-la do que consideravam diferente. Mesmo que o livro possua uma vasta quantidade de informações pertinentes sobre os movimentos skinheads neonazistas e seu envolvimento com a música (sendo este um ponto para observar o seu relacionamento também com as políticas de extrema-direita na Europa), devemos nos debruçar de maneira crítica sobre ele. Por ter sido produzido e distribuído por uma organização concentrada em denunciar grupos intolerantes, a Searchlight, a obra possui um caráter de denúncia que não se apóia claramente em informações que impeçam a existência de alguns deslizes. Por exemplo, desde o início seus autores e colaboradores se preocupam em defender que os skinheads, neonazistas ou não, são um grupo que possui a intolerância em suas bases, ditando modelos de masculinidade e de comportamento, os quais não admitiam divergências. Segundo o livro, embora os skinheads tenham se alinhado à música jamaicana, como ao ska e ao reggae, e tenha se identificado com a cultura dos imigrantes caribenhos, o racismo era algo intrínseco à sua cultura, aproveitando-se muito mais dos ritmos musicais do que o que o povo jamaicano tinha a lhes oferecer.
Este tipo de declaração não agradaria ao jornalista escocês George Marshall, autor do livro “Espírito de 69 – A bíblia do skinhead”, talvez a mais completa obra a respeito do tema já escrita. Nela, Marshall aborda a cultura skinhead, o seu surgimento, suas principais características, suas ramificações, seus gostos musicais e as diferenças entre os skinheads neonazistas e os chamados trad skins, ou skins tradicionais. Estes segundos, de acordo com Marshall, possuem afinidades indiscutíveis com os negros, são declaradamente anti-racistas, embora, admite o autor e também skinhead, a violência tenha feito parte daquele estilo de vida. Entretanto, há capítulos em sua obra dedicados à forma como, por meio da música, os skinheads tentaram se desvincular do rótulo de neonazistas, quando os primeiros começaram a surgir no fim dos anos 1970.
Mesmo que Marshall tenha sido um skinhead, nos permitindo pensar que sua afetividade com o grupo não lhe permitiria difamá-lo ou simplesmente admitir certos problemas (o que, de fato, ele acaba fazendo), ele não é o único a escrever sobre os skinheads afastando-os da ideia de serem todos neonazistas ou racistas. Antonio Salas, pseudônimo do jornalista espanhol que esteve, durante um ano, infiltrado no movimento skinhead neonazista espanhol, o que rendeu o livro “Diário de um skinhead – Um infiltrado no movimento neonazista”, não parece ter adquirido qualquer tipo de empatia pelos jovens nacional-socialistas com quem teve contato. Ainda assim, é claro em sua obra que o surgimento de ideias de extrema-direita entre estes grupos ocorreria muitos anos depois de sua maturação, num momento em que, inclusive, o movimento parecia estar decadente.
O importante neste livro, e isto é mostrado de maneira bem organizada e detalhada, é podermos compreender a estrutura das organizações musicais neonazistas, o interesse dos jovens pelo gênero e o modo como estes podem ser comparados aos hippies dos anos 1960 e aos punks já nos anos 1980, muito embora os repugne: a música é uma saída, um meio de protestar e de tentar conversar, de expressar e de legitimar sua identidade. A diferença é que enquanto hippies pregavam a paz e os punks pregavam o anarquismo, os skinheads neonazistas pregavam o direito de gritar o ódio contra negros, homossexuais, judeus, comunistas, prostitutas, todos aqueles que acreditam serem uma mancha para a sociedade que integram. Uma situação preocupante e alarmante, que o livro não apenas denuncia, mas também explica.
Apesar de se restringir à Europa, White Noise nos introduz neste que aparenta cada vez mais ser um elemento intrínseco aos skinheads neonazistas: seu envolvimento com a música. O não muito grande, porém significativo mercado nacional-socialista não está mais restrito à Carnaby Street, onde existia a Cutdown, nem tampouco aos shows para 30, 40 pessoas organizados pela Skrewdriver e o Blood & Honour. Com a chegada da Internet, ele ganhou lojas virtuais que enviam seus produtos para todos os lugares do mundo. Criaram ambientes virtuais onde divulgam suas ideias e são capazes de se organizar mais efetivamente, através de fóruns e salas de bate-papo. Hoje, estamos a dois ou três cliques do ressurgimento de um ideal violento e intolerante. Ideal este que tem soldados, uniformes e hinos.
Referências
CAMUS, Jean-Yves. Skinheads. In: MEDERIOS, Sabrina Evangelista; SILVA, Francisco Carlos Teixeira da; VIANA, Alexander Martins. Dicionário crítico do pensamento da direita: idéias, instituições e personagens. Rio de Janeiro: FAPERJ/Mauad, 2000. p. 417-419.
LÉVY, Pierre. Cibercultura. Tradução de Carlos Irineu da Costa. São Paulo: Ed. 34, 1999. LOWLES, Nick; SILVER, Steve. White noise: Inside the international nazi skinhead scene. Londres: Searchlight, 1998.
MARSHALL, George. Espírito de 69 – A bíblia do skinhead. Tradução de Glauco Mattoso. São Paulo: Trama Editorial, 1993. SALAS, Antonio. Diário de um skinhead – Um infiltrado no movimento neonazista. Tradução de Magda Lopes. São Paulo: Planeta, 2006,
Pedro Carvalho Oliveira – Graduando em História pela Universidade Federal de Sergipe Integrante do Grupo de Estudos do Tempo Presente (CNPq/UFS) Bolsista do Programa de Educação Tutorial (PET História/UFS) Orientador: Prof. Dr. Dilton Cândido Santos Maynard (DHI/UFS).
Relações Brasil-Estados Unidos: séculos XX e XXI – MUNHOZ; TEIXEIRA DA SILVA (CTP)
MUNHOZ, Sidnei J.; TEIXEIRA DA SILVA, Francisco Carlos. (Orgs.). Relações Brasil-Estados Unidos: séculos XX e XXI. Maringá: Eduem, 2011. Resenha de: PEREIRA JÚNIOR, Edson José Perosa. Relações Brasil-Estados Unidos: Séculos XX e XXI, de Sidnei Munhoz e Francisco Teixeira da Silva. Cadernos do Tempo Presente, n. 07 – 07 de abril de 2012.
Em Relações Brasil-Estados Unidos: séculos XX e XXI, os organizadores Sidnei J. Munhoz e Francisco Carlos Teixeira da Silva reuniram textos de diferentes autores sobre as relações entre Brasil e Estados Unidos, traçando uma perspectiva histórica no relacionamento desses dois gigantes. O livro foca as relações Brasil-EUA durante o século XX e início do XXI, apontando para as perspectivas desse novo século. Desnecessário apontar a importância dos Estados Unidos para o Brasil ao longo desse período, sendo o maior parceiro comercial do Brasil até muito recentemente, além de haverem sido aliados durante a Segunda Guerra Mundial e a Guerra Fria. Todavia, isso não significou que o Brasil foi submisso aos interesses dos EUA; os dois países vivenciaram períodos de intensa cooperação (como a Segunda Guerra Mundial e o governo Castello Branco, por exemplo) e períodos de mais afastamento e tensões (governo Goulart e governo Geisel, por exemplo).
No capítulo introdutório, Sidnei J. Munhoz destaca a instabilidade do sistema internacional causado pelos atentados de 11 de setembro de 2001, e a reação estadunidense subsequente, destacando dessa forma a atualidade e relevância do tema tratado pelo livro. Aponta também a ascensão do Brasil como potência regional, e possivelmente mundial, nos últimos anos. Isso é fundamental para entendermos como podem ser configuradas as relações Brasil-EUA daqui para frente. Exposto o cenário internacional mais recente, Munhoz sintetiza cada capítulo do livro. A obra se divide em duas partes. A Parte I possui oito capítulos que trazem a abordagem histórica, ordenada de forma razoavelmente cronológica. A Parte II, em seus cinco capítulos, faz um corte transversal sobre as relações entre os dois países tratando de temas mais específicos como Cultura, Direitos Humanos, segurança e defesa.
No capítulo 1, Brasil e Estados Unidos: dois séculos de relacionamento, Frank D. McCann parte de uma perspectiva de longa duração no relacionamento entre os dois países, por isso mesmo McCann dá uma nova dimensão a esse relacionamento, destacando que os momentos de tensões e conflitos foram mais frequentes do que se costuma supor. Traçando o início da cooperação mais intensa entre os dois países, durante a gestão do Barão do Rio Branco no afirma que o Brasil desenvolveu sua Política Externa no sentido de se aliar com os EUA nas grandes questões internacionais da época, esperando que os EUA por sua vez apoiassem o Brasil em seus litígios sul-americanos. Era regra do serviço diplomático brasileiro não se reunir com mais de um país sul americano, para evitar que os países de língua espanhola conspirassem contra o Brasil. Essa regra inspirou uma aliança não escrita com os EUA. Os interesses do Brasil e dos EUA parecem haver sido perfeitamente compatíveis enquanto o Brasil foi um país eminentemente agrário, entretanto quando o país passou a exportar mais manufaturados do que produtos agrícolas as relações entre os dois países passaram a ser menos compatíveis com o interesse da cada país, havia e há de fato uma rivalidade emergente. McCann aponta também como Washington foi responsável por diversos desentendimentos desnecessários entre os dois países.
No capítulo seguinte, intitulado Estados Unidos: ‘farol’ e ‘polícia’ da América Latina, Mariana Martins Villaça foca o relacionamento entre os EUA e os países latino-americanos.
Havia duas tendências diferentes para o desenvolvimento da América Latina. Os EUA insistiam na importância de os países latino-americanos abrirem os seus mercados para os produtos e capitais estadunidenses; por outro lado a ONU, representada pelo Cepal, insistia na importância de se desenvolver uma indústria nacional nesses países, por meio da substituição de importações, o que exigia protecionismo e política cambial apropriada. Os Estados Unidos exerceram e ainda exercem sua hegemonia sobre o hemisfério, servindo de ‘farol’ para muitos países da região, como um modelo a ser seguido, mas também sendo o ‘policial’ da região, utilizando-se da sua força militar contra os países que saíssem do eixo, ou desagradassem Washington.
No Capítulo 3, A Participação Conjunta de Brasileiros e Norte-americanos na Segunda Guerra Mundial, Frank McCann e Francisco Ferraz discorrem sobre a participação brasileira na Segunda Guerra Mundial e a aliança com os EUA, sendo esse o período de maior aproximação entre os dois países. Os Estados Unidos orientados pela Política de Boa Vizinhança, evitavam atritos e tensões com os países latinos, utilizando-se mais do soft power para atrair os países latino-americanos para sua órbita de influência, alinhando-se contra os países do Eixo. O chanceler Osvaldo Aranha tendo consciência da fragilidade econômica e militar do Brasil indicava que o país deveria se aliar com os estadunidenses na busca de seus interesses, mesmo sabendo que essa aliança poderia ser perigosa, pois deixava o Brasil muito dependente dos Estados Unidos.
No capítulo Na Gênese da Guerra Fria: os EUA e a repressão ao comunismo no Brasil, Sidnei Munhoz aborda o início da Guerra Fria e suas consequências para o Brasil. Houve com o fim da Segunda Guerra Mundial, tentativas democratizantes na América Latina, mas que foram obstadas com o limiar da Guerra Fria, devido ao medo do comunismo. O anticomunismo serviu de álibi para a repressão dos mais diversos movimentos sociais, bem como na repressão do Partido Comunista Brasileiro. O governo Dutra foi altamente repressor, sendo um retrocesso no processo de abertura política depois do fim do Estado Novo; a cassação dos partidos comunistas pela América Latina se deu em muitos países e teve significativa influência dos EUA nesse processo. Assim, apesar do conservadorismo das elites locais, não se pode negar a influência dos EUA na repressão ao comunismo e aos movimentos sociais no Brasil e em toda a América Latina daquele período.
No capítulo, O Populismo e as Relações Brasil-EUA (1945-1964): a dialética do alinhamento e da autonomia, Paulo Vizentini percorre o período entre o fim do Estado Novo e o golpe militar. O governo Vargas oscilou em sua Política Externa, hora cedendo aos interesses estadunidenses, hora assumindo uma postura mais independente; o ano de 1952 foi marcado por essas oscilações, pois o Brasil denunciou a remessa irregular de lucros para o exterior e assinou o acordo de cooperação militar com os EUA. As próprias necessidades de desenvolvimento interno brasileiro faziam com que o país buscasse uma postura mais assertiva e autônoma para com os EUA, culminando nos governos Jânio Quadros e João Goulart, com o que ficou conhecido como Política Externa Independente (PEI).
No capítulo seguinte, A Relações Brasil-EUA durante o Regime Militar (1964-1985), Vizentini aborda as relações entre os dois países durante a Ditadura Militar. Distanciando-se das visões estereotipadas de que o Regime Militar foi completamente submisso aos interesses estadunidenses, o autor aponta para os desentendimentos entre os dois países. O regime militar tinha um projeto desenvolvimentista, que o colocou em rota de colisão com os EUA.
Ainda que no governo Castello Branco tenha havido uma maior afinidade com os Estados Unidos (em grande parte devido ao suporte que os EUA deram ao golpe), já no governo Costa e Silva começam a aparecer divergências entre os dois países. O governo Geisel foi o ponto máximo de afastamento entre os dois países, o Pragmatismo Responsável retomava vários princípios da PEI.
O capítulo 7 trada As Relações Brasil-Estados Unidos durante os governos FHC. Paulo Roberto de Almeida destaca como FHC introduziu um novo elemento no relacionamento entre os dois países despolitizando os conflitos que eventualmente surgem, centrados em questões comerciais, e estabelecendo o bom relacionamento com os EUA como norma.
Certamente a simpatia entre os dois governantes, FHC e Bill Clinton, contribui para o bom relacionamento entre as duas nações e foi, provavelmente, fundamental no apoio que o Brasil recebeu dos Estados Unidos por conta da crise financeira de 1998, que ameaçava a estabilidade recém conquistada pelo Plano Real. Entretanto depois dos atentados de 11 de setembro os EUA passaram a assumir uma postura mais unilateral (devido também ao governo neoconservador de George W. Bush) e provocou significativo deterioramento no relacionamento econômico entre o Brasil e os Estados Unidos.
No capítulo 8, A Política Externa do Governo Luís Inácio Lula da Silva e as Relações com os Estados Unidos da América, Ricardo Pereira Cabral aborda um dos dois temas mais contemporâneos do livro. As relações exteriores brasileiras se caracterizaram pelo pragmatismo, especialmente em relação com os EUA. Além disso, o governo Lula deu especial enfoque para as relações sul-sul, como forma de contrabalançar a hegemonia política, econômica e militar dos países desenvolvidos. Podemos perceber elementos de continuidade e ruptura em relação ao governo anterior. Continuidade no enfoque multilateral e nos compromissos assumidos pelo Brasil mundo afora e ruptura no sentido de insistir em certos temas na agenda internacional, como o combate a fome. A crise econômica de 2008 que se arrasta até hoje, demonstrou a força do mercado interno brasileiro e a solidez da economia brasileira mesmo em um cenário de crise como esse. Isso contribui para fortalecer a imagem do Brasil no exterior e para que novos fóruns e grupos de discussões e tomadas de decisões, como o BRICS, G-20 e IBAS, se fortalecessem.
O capítulo 9, As Relações Militares entre o Brasil e os Estados Unidos no Século XX, inicia a Parte II do livro. Nesse capítulo, Sonny Davis aborda a relação entre os dois países sob o ponto de vista militar; as fases de cooperação e de divergências entre Brasil e EUA nesse campo. O relacionamento entre o Brasil e os EUA cresceu lentamente até a Segunda Guerra Mundial, acelerando-se a partir daí; os dois países desenvolveram íntimos laços econômicos e militares, o Brasil esperava que a aliança com os Estados Unidos ajudasse em sua busca por desenvolvimento econômico e militar, enquanto os EUA entendiam que o Brasil seria seu leal aliando em assuntos internacionais. A Segunda Guerra Mundial foi um momento histórico único para as relações entre o Brasil e os Estados Unidos, passado esse momento, as relações entre os dois países passou por uma reorientação em que a América Latina e o Brasil perderam importância dentro da nova conjuntura da Guerra Fria. Apesar das divergências, há que se destacar que a cooperação militar entre Brasil e EUA foi intensa, comparada com as relações militares dos Estados Unidos com outros países da América Latina.
No capítulo seguinte, Da Boa Vizinhança à Cortina de Ferro: política e cinema nas relações Brasil-EUA em meados do século XX, Alexandre Valim faz um recorte específico na análise das relações entre Brasil e EUA; destacando o uso político do cinema (e da indústria do entretenimento de modo geral) e demonstrando como entretenimento e propaganda política estão imbricados. Para Valim, a Política de Boa Vizinhança não representou a liquidação dos objetivos imperialistas dos EUA na América Latina, mas apenas a sua reformulação em métodos mais criativos e, por que não, mais eficazes. Ou seja, a Política de Boa Vizinhança significou que os EUA se utilizaram mais do chamado Soft Power (Cinema, Propaganda, etc.). Com o alvorecer da Guerra Fria, o anticomunismo tornou-se exacerbado e isso foi propagando dos EUA para o resto do planeta, por meio do cinema. Dessa forma, nesses dois momentos, antes e depois da Segunda Guerra Mundial o cinema foi um recurso importante nas formas de dominação que os EUA utilizavam na América Latina e no mundo. Não se pode negligenciar esse aspecto quando se aborda o relacionamento entre os dois países.
No capítulo 11, Internacionalismo Trabalhista: o envolvimento dos Estados Unidos nos sindicatos brasileiros, 1945-1964, Clifford Welch destaca um ponto pouco explorado nas relações entre Brasil e EUA. No período que antecedeu o Golpe Militar, foi ativa a participação e interferência dos EUA em sindicatos brasileiros como forma de pressionar os governos populistas do período. Os Estados Unidos visavam ‘‘educar’’ os sindicatos brasileiros na forma como tratavam os trabalhadores e afastá-los do comunismo, ou seja, objetivavam controlar as relações de trabalho de forma a evitar as perturbações por meio de greves, mantendo a produtividade e a estabilidade. Após 1962, todavia, os Estados Unidos passaram a pressionar diretamente os militares para que tomassem o poder, de tal maneira que os sindicatos perderam importância.
No capítulo 12, Opondo-se à Ditadura nos Estados Unidos: direitos humanos e a Organização dos Estados Americanos, James Green demonstra a importância dos movimentos de combate a Ditadura Militar brasileira nos EUA, e como eles foram importantes para trazer à baila a questão nos Direitos Humanos em todo o mundo no final dos anos 1970. A Ditadura brasileira procurou passar a impressão de que não havia presos políticos no Brasil, mas apenas terroristas, que por seus crimes estavam presos. A pressão internacional em torno da tortura fez que a ditadura tentasse desmentir as acusações que pairavam sobre ela. Esses movimentos de defesa dos Direitos Humanos atuavam também na OEA como forma de pressionar essa organização para que tomasse medidas contra países que violavam as normas internacionais.
O autor defende que esses grupos que atuavam nos EUA, incomodaram realmente a Ditadura Militar brasileira, causando constrangimento para os militares, que eram acusados de tortura; especialmente num momento em que o regime tencionava liberalizar-se.
Por fim, no último capítulo, As dimensões de Segurança e Defesa nas Relações entre o Brasil e os Estados Unidos em face do 11 de Setembro de 2001, Francisco Carlos Teixeira da Silva, versa sobre um tema bem atual nas relações Brasil-EUA. O autor discorre sobre a pressão que o governo brasileiro sofreu dos Estados Unidos logo após os atentados de 11 de setembro para que reforçasse o monitoramento da Tríplice Fronteira (entre Brasil, Argentina e Paraguai) em Foz do Iguaçu. O governo estadunidense alegava que a Tríplice Fronteira era um foco terrorista e que abrigava células da Al-Qaeda e de outros grupos terroristas. Para Teixeira da Silva esse temor dos EUA era infundado, pois não aviam provas suficientes de que a Tríplice Fronteira abrigasse células terroristas. Essa ação reflete o unilateralismo dos Estados Unidos, governados por George W. Bush. O governo brasileiro foi pego de surpresa na balbúrdia causada pelos atentados de 11 de setembro e não soube muito bem como reagir face à pressão estadunidense, faltando maior articulação entre os órgãos de defesa e inteligência.
Destarte, o livro é de suma importância para os estudantes da área, pois é um livro atual escrito por profissionais e pesquisadores das relações Brasil-Estados Unidos. É um livro abrangente e de fôlego, abordando diversos aspectos no relacionamento entre os dois países (trata inclusive aspectos pouco explorados em outras obras). Em face da importância econômica, cultural, tecnológica e política que os Estados Unidos tiveram e ainda tem para com o Brasil ainda há muitos trabalhos para serem feitos sobre essa temática e esse livro vem para complementar a atualizar o conhecimento sobre as relações entre esses dois países. O livro não é escrito numa linguagem excessivamente acadêmica e pode muito bem ser lido pelo grande público, mesmo os pouco familiarizados com o tema. Por haver sido escrito por diferentes autores do Brasil e dos EUA, a qualidade e a forma dos capítulos variam significativamente, entretanto os organizadores conseguiram manter um padrão na qualidade dos textos. Finalmente, pode-se dizer que o livro desmistifica alguns clichês a respeito do relacionamento entre Brasil e Estados Unidos, tanto aqueles que mostram as relações como perfeitamente harmônicas quanto aqueles que apresentam o Brasil como completamente submisso aos desígnios dos EUA.
Referências
MUNHOZ, Sidnei J.; TEIXEIRA DA SILVA, Francisco Carlos. (Orgs.). Relações Brasil-Estados Unidos: séculos XX e XXI. Maringá, PR: Eduem, 2011.
Edson José Perosa Junior – Graduado em história pela Universidade Estadual de Maringá (UEM), 2011. Mestrando do Programa de Pósgraduação em História Comparada (PPGHC-UFRJ).
Cansaço, a longa estação – PERICÁS (CTP)
PERICÁS, Luiz Bernardo. Cansaço, a longa estação. São Paulo: Boitempo, 2012. Resenha de: RUBBO, Deni Ireneu Alfaro. Punaré e Baraúna na Terra do Sol. Cadernos do Tempo Presente, n. 07 – 07 de abril de 2012.
Cada suspiro é um gole de vida de que a gente se desfaz.
Juan Rulfo
Luiz Bernardo Pericás é um escritor que dispensa apresentações. Apesar da pouca idade, seus diversos livros e artigos no Brasil e no exterior têm tornado um dos principais historiadores brasileiros marxistas da atualidade, com estudos sobre a obra de personalidades políticas intrigantes do cenário latino-americano como Che Guevara e José Carlos Mariátegui assim como, uma análise majestosa sobre o fenômeno do cangaço. E como se não bastasse, paralelamente, o autor tem acumulado em sua trajetória diversas obras de cunho literário, não menos instigantes que suas pesquisas. Em tempos de profissionalização e especialização, ser historiador e romancista, ao mesmo tempo, é seguir um caminho diferente do habitual, fora do compasso – e por isso mesmo faz que seja algo tão interessante e desafiador.
Não há dúvida que para aqueles que puxarem o livro e lerem as primeiras páginas de Cansaço, a longa estação, o novo romance do autor, rapidamente serão seduzidos em não parar, absorvidos integralmente por duas apaixonantes estórias de encontros e desencontros no sertão onde o tempo é uma “lentidão insana”. Todavia, se por um acaso o leitor conseguir resistir ao charme poético desse romance, ao encanto dos dois personagens, mesmo assim devera preparar-se para realizar a leitura de uma sentada só, como estratégia. Afinal, como enunciava o rebelde Walter Benjamin, “nem todos os livros se leem da mesma maneira”; e romances, por exemplo, “existem para serem devorados”. Como se pode perceber, trata-se de realçar uma estratégia da incorporação: “lê-los é uma volúpia da incorporação. Não é empatia.
O leitor não se coloca na posição do herói, mas se incorpora ao que sucede desde”.2
O romance é dividido em duas partes: a história de Punaré e de João Baraúna. Ambos em busca de um amor: Cecília (ou Cecica). A linguagem do livro, embora encontre um palavreado excêntrico, fruto do sertão “adusto e delirante”, paradoxalmente, não interrompe o rolar das linhas. Ao final da trama, a sensação é de que as palavras “estranhas”, ou pelo menos a imensa maioria, são fatalmente familiarizadas pelo fluxo da história narrada e pelas imagens que se vai facilmente criando. De qualquer modo, o leitor terá em mãos um glossário no final do livro para eventuais consultas, mas vale a pena mesmo seguir a orientação de Flávio Aguiar que assina a orelha do livro: “a melhor experiência é deixar-se levar pela música áspera e dissonante das palavras reunidas num fraseado melódico ao mesmo tempo fluido e truncado. Como, de resto, é a vida no sertão”.
Punaré. Cabloco silencioso, mas que “em cada artéria, fluía sangue quente”, trabalha duro todo dia na enxada para ajudar os pais, precocemente envelhecidos. O que ainda o motiva viver é a paixão pela rapariga Cecília. Porém, é uma paixão dividida com outro cabloco: João Baraúna. Existe uma tensão psicológica constante, como se em qualquer momento Punaré fosse emboscado pela vingança Baraúna, já que uma peleja de facão fez com que o primeiro atingisse com um punhal a face do segundo.
A paixão por Cicica divide o espaço emocional de Baraúna para com Deodoro (o boi) e Corisco (o cachorro). Como no afamado Vidas Secas de Graciliano Ramos, em que a cachorra baleia assume uma posição humana, ambos, cachorro e boi “serviam como vínculo ao mundo real, dois seres de pouca carne e muito osso, que, como ele, se agarravam a qualquer coisa para continuar vivos e de pé”.3
O desejo de fazer seu próprio destino, pedir a moça em casamento, apesar da circunstância infeliz, desfavorável e improvável, faz com que Baraúna escolha ir embora da casa de seus pais, carregando consigo os dois amigos. Depois de uma visita ao índio e ancião Simão, “o mago das matas”, “o homem santo”, e antes de finalmente chegar à casa de sua amada, o cachorro e a ovelha morrem durante o caminho, por motivos diferentes, transtornando o personagem.
João Baraúna. Assim como o primeiro personagem de que o leitor já está sintonizado, Baraúna “fazia tudo sozinho, vida de solitário”. A reputação de bandido, de assassino, de “cavaleiro do apocalipse”, não fazia o menor sentido, era “tudo mal-entendido”. Na verdade, a feiura desde menino o fez um sujeito desprezado, desrespeitado, achincalhado…
Na idade adulta, Baraúna trabalhava para o coronel Borges, “maioral e senhor da região”, e por ali que conhece e se encanta por Cecília, e que teve desde então reciprocidade. Não obstante, assim como Punaré, que teve suas melhores e únicas companhias mortas de maneira trágica, Baraúna tem o mesmo destino: o pai assassinado. Em transe,“começaria a partir daí seu vagabundear incessante: não haveria retorno…”.
Depois de vingar-se da morte de seu pai, matando os capangas, visita o mesmo ancião Simão, e, finalmente, parte para “sequestrar” a filha de Manuel, que se deixa levar espontaneamente em nome da aventura.
Na verdade, o sertão, ambiente do romance por excelência é mais uma circunstância do que qualquer outra coisa. A centralidade do livro talvez gravite com mais potência no amor e na solidão, na esperança e melancolia que vivenciam os personagens desse enigmático triângulo amoroso. O amor por Ceci é uma tentativa desesperada de livrar-se da solidão. No mesmo esteio, as figuras com que Punaré e Baraúna tiveram mais sensibilidade emocional e afetiva, ao morrerem, proporcionam um poço terrível de angústia e lamentação para os nossos personagens: o choro explosivo é o de desespero da solidão, do cansaço da exploração e opressão que não passa.
O princípio motor dos três personagens é o princípio da esperança e o sonho acordado daquilo que ainda-não-existe (noch-nicht-sein), de que falava Ernst Bloch. Sabemos que na enquete sobre o amor que o movimento surrealista maravilhosamente realizou outrora, uma das perguntas dizia: “Você acredita na vitória do amor admirável sobre a vida sórdida ou da vida sórdida sobre o amor admirável?”. Na terra do sol, do sertão sem mar, o amor não é admiração, mas a redenção de uma longa estação.
Notas
2 Walter Benjamin, 1995: 275.
3 Luiz Bernardo Pericás, 2012:21.
Referências
BENJAMIM, Walter. Rua de mão única. São Paulo: Brasiliense, 1995.
BLOCH, Ernst. O princípio da esperança. Rio de Janeiro: UFRJ, 2005.
PERICÁS, Luiz Bernardo. Cansaço, a longa estação. São Paulo: Boitempo, 2012.
Deni Ireneu Alfaro Rubbo – Mestrando do Programa de Pós-Graduação de Sociologia da Universidade de São Paulo (PPGS/USP) e bolsista CNPq.
Cypherpunks: liberdade e o futuro da internet – ASSANGE et. al (CTP)
ASSANGE, Julian et alli. Cypherpunks: liberdade e o futuro da internet. Trad. Cristina Yamagami. [São Paulo]: Boitempo Editorial, 2013. Resenha de: MAYNARD, Dilton Cândido. Cypherpunks: o futuro da Internet segundo Julian Assange. Cadernos do Tempo Presente, São Cristóvão, n. 11 – 10 de março de 2012.
“A internet, nossa maior ferramenta de emancipação, está sendo transformada no mais perigoso facilitador do totalitarismo que já vimos. A internet é uma ameaça à civilização humana” (p.25). O alerta é disparado pelo jornalista, ativista, hacker e, atualmente refugiado político, Julian Assange em seu livro sobre os perigos enfrentados pela rede mundial de computadores. Nome mais conhecido da organização Wikileaks, o australiano foi um dos responsáveis pela criação do portal que desde 2006 tem se dedicado a divulgar documentos sigilosos de governos e corporações, sempre exigindo transparência dos poderosos do planeta. O livro Cypherpunks: liberdade e o futuro da internet (Boitempo Editorial, 2013), se destaca inicialmente por dois textos que não constam no original e, para o público nacional, serão importantes chaves de leitura.
O primeiro destaque é a apresentação assinada por Natalia Viana, jornalista que colaborou no caso “Cablegate”, quando mais de 250 mil documentos diplomáticos norteamericanos foram disponibilizados pelo Wikileaks. Viana ajuda a situar o problema dos embates travados pelo Wikileaks, decifra algumas das opções da Assange, tornando o livro mais compreensível para o leitor pouco habituado com os embates do inquieto hacker. A outra peça importante é o prefácio para os leitores da América Latina assinado pelo autor. Marcadamente panfletário, o texto de Assange anuncia os perigos da internet, comemora a quebra da hegemonia norte-americana, aponta as tentativas de desmonte de governos na América do Sul e alerta sobre os riscos que a liberdade sofre com o controle infraestrutural da internet por uma só potência.
O livro está dividido em 11 capítulos. Em cada um deles, com exceção do primeiro, Julian Assange realiza um debate com três colaboradores: Jérémie Zimmermann, Jacob Appelbaum e Andy Müller-Maguhn. O primeiro deles, Zimmermann, é co-fundador do “La Quadrature du Net”, organização de defesa do direito ao anonimato on-line; Appelbaum é membro do “Chaos Computer Club” (CCC) de Berlim, conhecida organização hacker, desenvolvedor de softwares, entre eles do Tor, sistema on-line anônimo para burlar a censura na internet. O último, Müller-Maguhn, também é membro e porta-voz do CCC, além de cofundador da “European Digital Rights” (Edri), organização não-governamental defensora dos direitos humanos na era digital.
Em meio aos debates do quarteto, ora tensos, ora bem-humorados, duas palavras ocupam o centro das atenções: liberdade e criptografia. Para Assange e seus parceiros, a liberdade nunca esteve tão ameaçada quanto em nossos dias. As empresas de vigilância em massa, as frequentes invasões de dados pessoais ou interdições repentinas de contas bancárias evidenciam o ataque que os grupos mais poderosos do planeta realizam ao direito de ir e vir e à liberdade de expressão. Por outro lado, a criptografia surge para estes ciberativistas como a melhor resposta à opressão. Através dela, seria possível democratizar um recurso de poder antes apenas disponível ao poder estatal: “Criando nosso próprio software contra o Estado e disseminando-o amplamente, liberamos e democratizamos a criptografia, em uma luta verdadeiramente revolucionária, travada nas fronteiras da nova internet” (p.22). Vem deste fascínio com a criptografia o termo que batiza o livro tanto em sua versão em português quanto no original, “cypherpunk”, uma derivação de “cipher”, a escrita cifrada, cuja prática denominada criptografia compreende uma comunicação em códigos secretos. Surgidos nos anos 1990 em listas de discussão da internet, os cypherpunks acreditam na criptografia como mecanismo para provocar mudanças sociais e políticas.
Para Julian Assange, ele mesmo um dos primeiros colaboradores da lista cypherpunk, o controle desta tecnologia é a última trincheira na luta pela preservação de direitos e contra o avanço do que ele considera uma espécie de neototalitarismo: “Enquanto Estados munidos de armas nucleares podem impor uma violência sem limites a milhões de indivíduos, uma criptografia robusta significa que um Estado, mesmo exercendo tal violência ilimitada, não tem como violar a determinação de indivíduos de manter segredos inacessíveis a ele” (p.28).
Quando se refere aos perigos que a liberdade tem vivenciado, Assange lembra dos argumentos em torno dos “Quatro Cavaleiros do Infoapocalipse”: a pornografia infantil, a lavagem de dinheiro, a guerra contra o narcotráfico e o terrorismo são contribuintes poderosos no discurso pelo controle da rede. Graças aos quatro cavaleiros, sem que um debate maior seja realizado, se esboçam projetos de leis como a SOPA ou Stop Online Piracy Act (Lei de Combate à Pirataria On-line) e a PIPA ou Protect Intellectual Property Act (Lei de Prevenção a Ameaças On-line Reais à Criatividade Econômica e de Roubo de Propriedade Intelectual). Ambas as propostas revelam, por um lado, as pretensões de controlar a rede e, por outro, evidenciam a emergência de uma oposição global. Até o Google já se manifestou contrário aos projetos, fato que evidenciou a existência de um poderoso lobby em torno da internet.
E se há embates pelo controle da rede, o domínio da sua infraestrutura se torna fundamental. Hardwares e backbones, se devidamente conquistados, podem ser poderosos aliados. Daí o pessimismo de Assange: “A natureza platônica da internet, das ideias, e dos fluxos de informações, é degradada por suas origens físicas. Ela se fundamenta em cabos de fibra óptica que cruzam oceanos, satélites girando sobre a nossa cabeça, servidores abrigados em edifícios, de Nova York a Nairóbi” (p.26).
Países como China, Irã e Rússia têm sido duramente criticados por todo o aparato criado para o monitoramento das atividades na internet. Porém, Assange e amigos chamam a atenção para o fato de que mesmo empenho de monitoramento existente no “grande firewall da China” pode ser observado por agências de inteligência norte-americanas. A grande diferença é que, ao concentrar as bases de grandes corporações como Visa, Mastercard, Google e Facebook, os EUA não precisam de muito esforço para arrancar as informações. A maioria das pessoas, de bom grado, já está fazendo isto. É o que acontece ao alimentarmos nossas contas do Facebook: “a cada vez que você faz o login com o número do IP, tudo é armazenado, cada clique, cada horário, e também o número de vezes que você visitou uma página, e assim por diante” (p.75).
Ao mesmo tempo, é válido lembrar que, como explica Assange, os caminhos da internet para a América Latina passam necessariamente pelos Estados Unidos e sua infraestrutura. Na prática isto significa que um fluxo intenso de informações atravessa diariamente território norteamericano e pode ser verificado sem que haja qualquer problema legal. A CIA e demais agências não necessitam de autorização prévia para vigiar estrangeiros.
Para o hacker australiano, a vigilância na internet se tornou um problema geopolítico tão importante quanto aquele relativo ao controle do petróleo: “a próxima grande alavanca no jogo geopolítico serão os dados resultantes da vigilância: a vida privada de milhões de inocentes” (p.20). O ciberativista concebe a militarização do ciberespaço como um grave problema a ser enfrentado. O avanço da vigilância sobre a rede, o seu uso militar, torna a experiência de usar a internet algo semelhante a adentrar uma zona militarizada: “É como ter um soldado embaixo da cama”, explica (p.53).
A próxima batalha entre as potências pode ter no ciberespaço o seu locus mais estratégico. Como mostram os recentes ataques com “drones”, os usos da rede mundial de computadores para provocar danos aos inimigos tem sido um expediente recorrente de potências como os Estados Unidos ou a Rússia. Ao lermos sobre tanto controle, vigilância cotidiana intensa, crescente e quase imperceptível, é impossível não lembrar George Orwell e o seu “1984”. Apesar disto, Cypherpunk é encerrado de um modo até certo ponto otimista.
Contudo, o radicalismo provoca distorções em certas propostas do grupo, algumas análises findam superficiais. A argumentação de que apenas o “insider”, o hacker que se viu “cara a cara com o inimigo” (p.25) tem a autoridade para falar do assunto é um argumento ingênuo. Seria algo tão absurdo quanto acreditar que para prescrever o correto tratamento a um câncer, é preciso antes contraí-lo. Assange e seus parceiros são excelentes quando falam da criptografia, das vantagens que ela oferece ao ativismo em nosso século, dos perigos de depositarmos 800 megabytes da nossa vida privada nas mãos de Mark Zuckerberg, o jovem Czar do Facebook, para que ele possa fazer dela o que bem quiser. Porém, algumas das análises históricas são precipitadas e há preocupantes simplificações nos argumentos sobre as consequências da quebra do anonimato em documentos de Estado, pois elas precisam, sim, ser seriamente pensadas. Neste último caso, não se trata de defender os poderosos, mas de evitar que os fracos ou os inocentes, mencionados em seus registros, sofram as consequências no lugar daqueles que podem se esconder atrás dos cargos, da segurança privada, dos advogados e das cifras acumuladas de maneira nem sempre honesta.
A leitura desta obra certamente agradará a sociólogos, analistas políticos, historiadores, comunicólogos, antropólogos e aos estudiosos das relações internacionais. Mas cabe ressaltar: Cypherpunks não é uma análise política. É mais que um manifesto. É uma convocação ao combate, um anúncio de que os hackers não estão dispostos a deixar Estados e megacorporações, os pretensos controladores da rede mundial de computadores, em paz. Segundo eles, haverá uma guerra pela internet. E você, de que lado estará?
Nota
Dilton Cândido S. Maynard – Doutor em História pela Universidade Federal de Pernambuco. Pós-Doutor em História pela Universidade Federal do Rio de Janeiro. Professor do Programa de Pós-Graduação em História UFS. Programa de Pós-Graduação em História Comparada UFRJ. Pesquisador FAPITEC. Coordena o Grupo de Estudos do Tempo Presente. É autor de Escritos Sobre História e Internet. Rio de Janeiro: Multifoco, 2011. dilton@getempo.org.
Referências
ASSANGE, Julian et alli. Cypherpunks: liberdade e o futuro da internet. Trad. Cristina Yamagami. [São Paulo]: Boitempo Editorial, 2013.
WikiLeaks: a guerra de Julian Assange contra os Segredos de Estado – ASSANGE (CTP)
ASSANGE, Julian. WikiLeaks: a guerra de Julian Assange contra os Segredos de Estado. [?]:Editora Verus, 2011, 336 p. Resenha de: CRUZ, Carole Ferreira da. Ciberativismo planetário: Revelações Sobre a Parceria Entre o WikiLeaks e a Mídia Internacional. Cadernos do Tempo Presente, n. 07 – 07 de janeiro de 2012.
Mais de meio milhão de documentos confidenciais reunidos numa gigantesca base de dados que revelou ao mundo os bastidores da diplomacia mundial e os detalhes das obscuras guerras do Afeganistão e do Iraque, no maior vazamento de informações confidenciais da história da humanidade. Esse é o conteúdo central do livro WikiLeaks: a guerra de Julian Assange contra os Segredos de Estado (Editora Verus, 2011, 336 páginas), escrito pelos repórteres investigativos do jornal britânico The Guardian, David Leigh e Luke Harding.
A divulgação dos arquivos secretos produzidos pelo Departamento de Estado e o Exército norte-americanos é resultado de uma complexa parceria entre o WikiLeaks – organização que usa a Internet para denunciar práticas corruptas e abusivas de governos, empresas e instituições – e cinco veículos de credibilidade internacional: os jornais The Guardian, The New York Times, Le Monde, El País e a revista alemã Der Spiegel. Mais tarde, outros entraram no acordo para fazer uma cobertura localizada dos conteúdos dos telegramas diplomáticos, como a Folha de São Paulo e O Globo.
O livro é na verdade uma grande reportagem, embora levemente romanceada. Ancorado na linguagem jornalística clássica, se propõe a contar como os segredos governamentais envolvendo a maior superpotência do planeta tornaram-se públicos, mas sem deixar de contextualizar os fatos antecedentes e os desdobramentos de um dos maiores furos jornalísticos de todos os tempos. No decorrer da narrativa, ganham destaque duas figuras centrais: o criador do WikiLeaks, Julian Assange – um misto de hacker, jornalista e ciberativistaII – , e o soldado inconformista Bradlley Manning, suspeito de ter vazado os documentos.
Os primeiros vazamentos foram sobre os diários de guerra do Afeganistão e do Iraque, mas o melhor estaria por vir em novembro de 2010: a divulgação dos cerca de 250 mil telegramas diplomáticos, que se fossem impressos corresponderiam a uma biblioteca com 2 mil livros – algo impensável de analisar, contextualizar e editar sem os recursos da tecnologia digital. A correspondência oficial oferece um mosaico da política do início do século XXI e expõe, sob a ótica estadunidense, crimes, corrupção, pressões, conspirações, negociatas e toda sorte de situações nada éticas e muito constrangedoras envolvendo países dos cinco continentes.
No rol das revelações mais contundentes estão a ordem dos EUA para que seus funcionários espionassem a ONU e a definição da Rússia como um “estado mafioso”, vinculado a atividades como tráfico de armas, lavagem de dinheiro, enriquecimento pessoal, subornos e desvios de dinheiro, com conexões no governo do então presidente da Itália, Silvio Berlusconi. Foram citadas ainda estruturas corruptas no Sudão e atividades criminosas envolvendo grandes corporações, como a gigante do petróleo Shell, que teria infiltrados no governo nigeriano para coletar informações privilegiadas de atividades oficiais.
Como se não bastasse o fato de deixar os Estados Unidos em situação delicada perante a comunidade internacional, tais revelações provocaram a queda dos embaixadores na Líbia e no Turcomenistão e, segundo tese levantada pelos repórteres do The Guardian, teriam ajudado a insuflar os levantes populares que culminaram com a Primavera Árabe. A revolta popular que varreu parte do Oriente Médio e da África começou no final de 2010 na Tunísia – logo depois que o WikiLeaks vazou telegramas sobre a corrupção no regime -, e culminou com a queda do presidente Ben Ali.
Reação americana O site foi taxado de “organização terrorista estrangeira” e alguns segmentos da direita conservadora americana pediram a morte de Assange. Pressões externas levaram o WikiLeaks a sofrer um boicote de empresas como Bank of America, MasterCard e Amazon, com fechamento de contas e domínios, impedimento de movimentações financeiras e remoção de servidores. Numa das passagens de maior adrenalina, foram descritos sucessivos ataques de serviços de inteligência contra a organização – que resistiu devido à proliferação das redes espelho (cópias com outro endereço). A contraofensiva veio pelas mãos do Anonymous, uma popular rede hacktivistaIII que coordenou ataques contra quem aderiu ao boicote.
Entre a divulgação dos telegramas e a repercussão no mundo, o livro dá uma pausa para esclarecer os detalhes sobre uma controversa acusação de assédio sexual que Assange sofreu na Suécia – que o fez ficar desde então em prisão domiciliar na Inglaterra e travar uma luta nos tribunais para evitar sua extradição. Outro aspecto levantado diz respeito ao posicionamento contraditório americano sobre liberdade de informação na era da Internet. Em janeiro de 2010 a secretária de Estado Hillary Clinton fez um discurso ressaltando o potencial das publicações digitais para a transparência e a democracia mundial.
Onze meses depois, surpreendida pela divulgação dos documentos confidenciais, voltou atrás ao afirmar que aquilo era “não apenas um ataque aos interesses da política estrangeira dos Estados Unidos, mas um ataque à comunidade internacional”. E é justamente esse potencial libertador e democratizador da Internet que chama a atenção para um novo tipo de ativismo político, construído na apropriação de ferramentas com uma interface cada vez mais simples, acessível e de baixo custo.
A ascensão vertiginosa do WikiLeaks é mais um sintoma das profundas transformações na sociedade num mundo cada vez mais interconectado. Mais do que nunca, a tecnologia digital baliza as práticas sociopolíticas. “Os movimentos sociais do século XXI, ações coletivas que visam a transformação de valores e instituições da sociedade, manifestam-se na e pela Internet”. (CASTELLS, 2003, p. 115). As cidades e instituições ampliam-se para o ciberespaço, que surge como um “espaço de comunicação aberto pela interconexão mundial dos computadores” e constitui “um objeto comum, dinâmico, construído, ou pelo menos alimentado, por todos que o utilizam” (LÉVY, 1996, p. 128).
Surge a possibilidade de quebrar o monopólio da grande mídia na divulgação da informação, fortalecer os veículos alternativos e ajudar a forjar uma opinião pública organizada em espaços virtuais “multi-mídias”. Nesses espaços, as “produções se dão de forma articulada e cooperativa, cujo produto final é exibido de forma pública e livre, para públicos específicos, que ao mesmo tempo são mídias para outros públicos”, onde “não só os usuários podem conectar qualquer informação antiga que esteja na rede com uma atual; como eles podem determinar o alcance de uma informação atual, replicando-a por diferentes interfaces (ANTOUN & MALINI, 2010, p. 7).
Diários de guerra O que mais impressiona nos diários de guerra é que esses relatos escritos no calor da batalha ajudam a contar a história oculta de um conflito obscurantista e polêmico. Embora os governos dos EUA e da Inglaterra tenham adotado a estratégia de não revelar o número de baixas e minimizar os incidentes envolvendo civis, os relatórios vazados serviram de base para o levantamento de organizações independentes, como a ONG Iraq Body Count.
Acredita-se que pelo menos 108.501 inocentes tenham sido mortos em solo iraquiano até 2010. As estatísticas oficiais dão conta de apenas 66.081, número considerado sub-dimensionado por várias razões, entre as quais o fato de vários mortos terem entrado para os registros como “combatentes inimigos”. O maior exemplo são os dois jornalistas da Reuters que aparecem num vídeo sendo atingidos pela artilharia do helicóptero Ah-64 Apache, culminando com a morte de 12 pessoas, sendo duas crianças – uma das primeiras revelações do WikiLeaks antes do grande vazamento.
A estrutura de funcionamento da organização é outro aspecto notável que faz dela praticamente indestrutível e completamente imune a ataques legais ou cibernéticos em qualquer jurisdição. De acordo com Leigh e Harding, os laptops do WikiLeaks têm criptografia em nível militar e são algemados em computadores remotos sobre seu controle.
Criou-se assim uma curiosa “organização móvel que podia ser empacotada e desempacotada em questão de horas”. No livro-reportagem, os diários de guerra do Iraque serviram ainda por mostrar ao mundo uma incômoda contradição: o aumento vertiginoso das torturas realizadas após a deposição de Saddam Hussein. Esse dado fez cair por terra o discurso de que as forças de coalizão iriam salvar o Iraque das atrocidades cometidas durante a sangrenta ditadura no país. A omissão das tropas americanas diante da barbárie conduzida pelas autoridades iraquianas durante a ocupação foi o estopim para encorajar o soldado e analista de inteligência Bradley Manning a vazar os documentos secretos.
Apresentado logo no segundo capítulo, o jovem servia no Iraque na época em que teve acesso aos arquivos confidenciais. Descrito como inteligente e politizado, influenciado pela cultura hacker de Boston, não tardou a passar por uma crescente desilusão com o Exército e a política externa americana. Seu inconformismo se exacerbou a medida que as contradições da guerra ficavam mais evidentes. Depois de oito meses preso na base de Quântico, na Virgínia, onde teria passado por tortura e maus tratos, foi transferido para o Kansas. Está sendo acusado por um tribunal militar de “conluio com o inimigo”, antes do julgamento no qual pode ser condenado à prisão perpétua.
Personagem enigmático O enigmático Julian Assange é definido como o pioneiro no uso da tecnologia digital para desafiar estados autoritários e corruptos. Suas habilidades como hacker e criptógrafo, desenvolvidas ainda na adolescência, o possibilitaram criar métodos para publicar segredos mundiais sem correr o risco de ataques legais ou tecnológicos. A infância errante na Austrália, motivada por uma mãe rebelde, o obrigou a mudar de escola 37 vezes e a aprender a ser seu próprio professor. A educação familiar incomum talvez explique alguns traços da sua personalidade, apontada como imprevisível e intempestiva.
O livro joga um turbilhão de informações para que o próprio leitor descubra quem é o criador do WikiLeaks – justaposição do termo wiki, em referência à idéia de colaboração digital da Wikipédia, e leak, que significa vazar, em inglês. Messias das novas mídias ou ciberterrorista? Idealista da informação e dos vazamentos em massa ou vaidoso enrustido e anarquista digital em busca de popularidade? Cada um terá um painel completo desde a criação da organização, em 2006, até os surpreendentes acontecimentos que se seguiram para tentar tirar suas próprias conclusões.
Os autores fazem valiosas reflexões sobre os impactos da Internet no jornalismo. Algumas tendências sobre o futuro da profissão foram apresentadas em diversos capítulos, como o desenvolvimento de suportes para pesquisar e apresentar uma base de dados com um volume gigantesco de arquivos. Nas páginas finais, são analisadas a repercussão das matérias e o enfoque de cada veículo sobre o vazamento – algo só comparável aos Papéis do Pentágono: documentos sigilosos sobre a Guerra do Vietnã revelados em 1971. Ao final, há um apêndice de quase 100 páginas com os telegramas diplomáticos mais importantes, devidamente comentados.
Após a passagem do furacão WikiLeaks, as autoridades dos EUA começaram dedicar mais atenção ao ciberespaço. Políticos americanos propõem uma reengenharia da Internet para interferir na estrutura não-hierárquica da rede, de modo a promover a ascensão de um pólo centralizador do fluxo informacional. “Com o vazamento dos telegramas, a exibição de vídeos comprometedores, os uploads de dossiês sobre os rumos supostamente secretos das relações internacionais, a sensação de espanto é quase inevitável. Porém, há também uma histeria, existe uma interpretação belicista perigosamente alimentada. Há um medo politicamente proveitoso”. (MAYNARD, 2011, p. 141).
No mundo digital globalizado, estão postas novas condições de sustentação de uma sociedade com sede de transparência, em que a informação nunca foi tão valiosa e acessível ao cidadão comum. O ciberativismo está aos poucos redefinindo a forma de fazer política, as relações internacionais, o jornalismo e o exercício da cidadania. A cooperação digital e os vazamentos em massa parecem apontar para um modelo inédito de mobilização que encontra eco entre todos aqueles que buscam uma causa para apoiar. Os ativistas da informação chegaram e nada será com antes.
Notas
2 Ativista cuja ação política se utiliza da apropriação das novas tecnologias na intenção de propor formas de protesto a partir do ciberespaço (GONÇALVES, 2008), não restringindo, no entanto, as ações a essa esfera de atividade.
3 Hackers que exercem o ativismo político na internet ao usar suas habilidades de programação em ações eletrônicas diretas para promover a mudança social.
Referências
ANTOUN, H.; MALINI, F., Ontologia da liberdade na rede: as multi-mídias e os dilemas da narrativa coletiva dos acontecimentos, In: XIX Encontro da Compôs, Rio de Janeiro. Anais. Rio de Janeiro, 2010.
CASTELLS, Manuel. A galáxia da internet: reflexões sobre a internet, os negócios e a sociedade. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2003.
CASTELLS, Manuel. A ciberguerra do WikiLeaks. Disponível em:http://www.observatoriodaimprensa.com.br/news/view/a_ciberguerra_do_wikileaks
GONÇALVES, F.; BARRETO, C.; PASSOS, K., Media activism networking in Brazil: the emergence of new sociabilities and forms of resistance in the internet, In: Internet Research 9.0: Rethinking community, rethinking place, University of Copenhagen, 2008.
LÉVY, Pierre. O que é o virtual. São Paulo: Ed. 34, 1996b.
LEIGH, David; HARDING, Luke. WikiLeaks: a guerra de Julian Assange contra os Segredos de Estado.Campinhas (SP): Verus, 2011.
MAYNARD, D. C. S.. Quem tem medo do WikiLeaks. In: Escritos sobre História e Internet. Rio de Janeiro: Fapitec/Multifoco, 2011.
Carole Ferreira da Cruz – Mestranda em Comunicação pela Universidade Federal de Sergipe, com formação em jornalismo e pósgraduação em História Contemporânea e em Jornalismo e Crítica Cultural pela Universidade Federal de Pernambuco. Editora dos Cadernos do Tempo Presente,(CTP/UFS) e integrante do Grupo de Estudos do Tempo Presente (GET/CNPq/UFS).
Ascensão e queda do Terceiro Reich, vol. II: O começo do fim (1939-1945) – SHIRER (CTP)
SHIRER, William L. Ascensão e queda do Terceiro Reich, vol. II: O começo do fim (1939-1945). Tradução Pedro Pomar e Leônidas Gontijo de Carvalho. Rio de Janeiro: Agir, 2008. Resenha de: SHIRER, William L. Os Bastidores do Terceiro Reich. Cadernos do Tempo Presente, São Cristóvão, n. 06–06 de janeiro de 2012.
A obra Ascensão e queda do Terceiro Reich foi publicada em 1960 e tem como autor o jornalista internacional e historiador William L. Shirer (1904-1993). Nascido em Chicago, Shirer trabalhou realizando reportagens sobre o nazismo para CBS e a Universal News Service e fazendo cobertura sobre a queda do Terceiro Reich como correspondente de guerra. É autor de alguns romances e livros de não-ficção, entre eles, Berlin Diary (1941) e The Collapse of the Third Republic (1969). Suas pesquisas para a realização do livro Ascensão e queda do Terceiro Reich começaram em 1925, quando foi para Alemanha e o escreveu em cinco anos e meio. O trabalho foi divido em dois livros: Ascensão e queda do Terceiro Reich Vol. 1: Triunfo e cosolidação1933-1939 e Ascensão e queda do Terceiro Reich Vol. 2: O começo do fim 1939-1945. Se no primeiro o autor focaliza a ascensão e consolidação do nazismo na Alemanha entre 1933-1939, a segunda obra, a ser aqui resenhada, se preocupa com tramas vividas pelo Terceiro Reich na Segunda Guerra Mundial (1939-1945).
Em “O começo do fim”, o autor relata os principais fatos da Segunda Guerra Mundial (1939-1945) no que se direciona na ação dos alemães. Suas observações são feitas com base no que ocorria nos bastidores, ou seja, as principais decisões e ações dos governantes e generais dos Terceiro Reich, principalmente o ditador Adolf Hitler. Assim, ele intercala as medidas da cúpula do Partido Nacional-socialista e as conseqüências dessas no campo de batalha e nos países derrotados como também nos vencedores. Shirer usa como fontes os arquivos dos nazistas apreendidos depois do conflito, tais como documentos secretos, telegramas, memorandos, diários, mensagens, entre outros, como também depoimentos nos julgamentos de Nuremberg depois do conflito.
Primeiramente, há uma narração das vitórias da Alemanha no Ocidente, mostrando como a tática de Adolf Hitler e seus generais fora um sucesso para conquistar a Polônia, a Dinamarca, Noruega, Holanda, Bélgica e França. Observa-se também que nesse primeiro momento houve a preocupação de Hitler em lutar apenas na frente Ocidental, para isso muita das vezes se sujeitou as exigências da União Soviética como aliada. Porém, já com a Itália foi o inverso, pois, esse país muitas das vezes acabou ofuscado pelas vitórias dos nazistas, até mesmo nas conferências, quando o ditador alemão quase sempre dominava a fala em relação a Mussolini.
Diante de tantas vitórias alemãs a Inglaterra acabou ficando isolada e Adolf Hitler acreditava veemente que a guerra no Ocidente já estava ganha. Assim, desejou fazer um acordo de paz com Churchill para dominar completamente o Ocidente e depois se preocupar em derrotar os soviéticos, afinal, lutar em duas frentes não seria nem um pouco vantajoso. Porém, o primeiro-ministro britânico não aceitou as exigências do Nacional-socialista, em consequência, Hitler resolveu invadir a Inglaterra e ainda tentou convencer ao mundo de que a paz não foi estabelecida por culpa de Churchill.
Todavia, para desembarcar na Inglaterra os alemães precisavam passar pelo mar, pois sua maior força era terrestre. Na marinha e nos ares os britânicos mantinham a supremacia. Assim, a Alemanha não atingiu seu objetivo de invadir a Grã-Bretanha. Em seguida, Hitler comete um dos seus maiores erros, decide atacar a URSS dividindo seu exército em duas frentes. Tal decisão já tinha sido tomada muito antes, enquanto fazia acordos com os soviéticos, inclusive já estava até preparando suas estratégias, mas matinha em segredo, até mesmo de seu aliado Mussolini, mostrando assim, como a Itália esteve de lado dos planos nazistas. A princípio teve sucesso em sua invasão, porém, o inverno rigoroso da Rússia os fez recuar.
Em 1941 começou seu conflito contra os EUA e, assim, a Alemanha cometeu outro erro. Adolf Hitler não queria esse conflito até que o Leste fosse conquistado, mesmo que subestimasse a força americana. Porém, os japoneses jogaram com os nazistas e atacaram Pearl Harbor, logo, o Führer esteve obrigado a declarar guerra aos estadunidenses. Assim, a guerra que estava quase ganha para os nazistas mudou de curso, pois, a partir desse ano começa o fim do Terceiro Reich com sucessivas derrotas. Muitas dessas perdas foram graças à mente doentia do ditador nazista, que não aceitava recuar, deixando suas tropas serem liquidadas, mesmo com tantas sugestões de seus generais.
Outras medidas abordadas no livro são as atrocidades que os nazistas, através da SS com Himmler ao comando, cometeram contra judeus, prisioneiros de guerra, principalmente os russos e povos conquistados, com mais perversidades contra os do Leste. Foram milhões exterminados através de fuzilamentos cometidos pelos Einsatzgruppe, campos de concentração e câmeras de gás, além de experiências médicas e coleções de peles. Cometeram Cadernos do Tempo Presente, São Cristóvão, n. 06–06 de janeiro de 2012.
Cidade Universitária Prof. José Aloísio de Campos, Rodovia Marechal Rondon, s/nº, sala 06 do CECH-DHI, Bairro Jardim Rosa Elze, São Cristóvão – SE, CEP: 49.000-000, Fone: (79) 3043-6349. E-mail: caderno@getempo.org ainda pilhagem e saques nos países derrotados e trabalhos forçados. Essas barbaridades foram alimentadas pela ideologia que Hitler pregava da superioridade do povo ariano e que os demais, considerados como desprezíveis, deveriam ser exterminados.
Primeiramente entrou em ação Einsatzgruppe nos fuzilamentos de milhares de vítimas. Mesmo assim, os nazistas queriam exterminar de uma vez por todas os judeus e os russos iniciando o genocídio, principalmente dos primeiros, através das câmeras de gás. Inclusive mulheres e crianças, as quais Himmler proibia que fossem fuziladas para que morressem apenas com o envenenamento. Tais pessoas eram levadas aos campos sem saber o que as esperava. Algumas ainda eram vítimas de experiências médicas grotescas. Houve diminuição de mortes quando se necessitou de mão-de-obra escrava.
Finalmente a ofensiva dos Aliados avança cada vez mais e a Alemanha sofre sucessivas derrotas. É vencida na África, na Rússia, na Normandia, além da queda de Mussolini. Muitos dos governantes alemães sabiam que as condições para seu país eram cada vez desfavoráveis, mas Hitler ainda acreditava que venceria e em nome da honra não poderia recuar. Para piorar a situação a maioria dos militares mantinha severa lealdade a seu Führer e cumpria suas ordens doentias, que levariam ao fim do Terceiro Reich. Poucos pretendiam tirar o ditador do poder e os que tentaram tiveram seus planos fracassados, seja pela falta de competência como pela má sorte.
Os últimos dias de Adolf Hitler e o Terceiro Reich foram em Berlim no subsolo da Chancelaria, acreditando fielmente que a culpa de seu fim foi graças às traições. Ao final, muitos revolveram deixar sua lealdade de lado e se salvarem. O estado mental do líder nazista chegou a um ponto de desejar que toda a Alemanha fosse destruída já que ele também seria como, por exemplo, ordenou que se destruíssem as fábricas do país. Por fim, os soviéticos dominaram completamente a capital da Alemanha e o ditador alemão suicidou-se.
Um dos grandes pontos positivos dessa obra é que o autor trabalha as fontes colocando o leitor em contato com elas, através de transcrições de alguns fragmentos de tais documentos. Assim, Shirer comprova suas interpretações com passagens das próprias falas dos principais personagens do Terceiro Reich. Outro aspecto importante é a narração dos principais fatos como consequências das ações dos governantes, ou seja, como se tramava os bastidores do governo alemão em relação à Segunda Guerra Mundial.
Porém, o autor predominantemente coloca a culpa das atrocidades nazistas em Adolf Hitler e seus militares e esquece que o povo alemão foi conivente e apoiou o Partido Nacional-socialista. É claro que esses governantes foram os grandes responsáveis, mas é necessário observar que os próprios alemães mantinham severa lealdade ao Führer e nada fizeram para acabar com o extermínio. Portanto, faltou observar o comportamento da sociedade alemã frente aos acontecimentos trágicos de mortes e sofrimentos.
Por fim, observa-se que este livro é essencial para professores, alunos e pesquisadores da Segunda Guerra Mundial. Tanto para estudos direcionados ao governo alemão como qualquer outro que pretende realizar pesquisas relacionadas a diversos aspectos do conflito mundial. Essa obra oferece um panorama geral sobre o tema, sendo importante para se conhecer o plano de fundo de trabalhos direcionados à Guerra de 1939-1945.
Nota
Referências
SHIRER, William L. Ascensão e queda do Terceiro Reich, vol. II: O começo do fim (1939-1945). Tradução Pedro Pomar e Leônidas Gontijo de Carvalho. Rio de Janeiro: Agir, 2008.
Raquel Anne Lima de Assis – Graduanda em História pela Universidade Federal de Sergipe. Bolsista PIBITI/FAPITEC do Projeto Portal Segunda Guerra:aspectos do cotidiano em Aracaju. Integrante do Grupo de Estudo Presente (GET/CNPq). E-mail: raquel@getempo.orgOrientador: Prof.Dr. Dilton Cândido S. Maynard.
A construção social dos regimes autoritários – Brasil e América Latina; África e Ásia; e Europa – ROLLEMBERG; VIZ QUADRAT (CTP)
ROLLEMBERG, Denise; VIZ QUADRAT, Samantha (Org). A construção social dos regimes autoritários – Brasil e América Latina; África e Ásia; e Europa. [Rio de Janeiro]: Civilização Brasileira, 606 p. Resenha de TEIXEIRA DA SILVA, Francisco Carlos. A Construção Social dos Regimes Autoritários. Cadernos do Tempo Presente, São Cristóvão, n. 06 – 06 de janeiro de 2012.
A Civilização Brasileira e as pesquisadoras Denise Rollemberg e Samantha Viz Quadrat, ambas do Núcleo de Estudos Contemporâneos/NEC, da UFF, apresentam-nos uma volumosa e imprescindível coletânea de trabalhos sobre os chamados “regimes autoritários”. Trata-se de uma coleção II de amplíssima e necessária abrangência, composta de três volumes — “Brasil e América Latina”, “África e Ásia” e “Europa” —, todos acompanhados de um ensaio introdutório bastante informado e que já nos apresenta os pontos centrais do trabalho.
Para as organizadoras, cabe a superação de teses tradicionais de explicação das ditaduras, quase sempre centradas em conceitos fossilizados ou “combatentes” da Guerra Fria, tais como “populismo” e “totalitarismo”. Na crítica contra tais esquemas simplificadores, as autoras propõem-se a discutir uma nova abordagem composta por teses inovadoras: a ambivalência entre sociedade e Estado nas ditaduras; a busca do consenso por parte dos ditadores e de suas instituições; o papel dos intelectuais como ponte entre regimes autoritários e população.
No seu conjunto , em especial no volume sobre “Brasil e América Latina”, brotam análises de extrema riqueza e variedade, comprovando que, mesmo sob ditaduras, a maioria das pessoas busca projetos e estratégias de convívio, de realização pessoal e profissional, ao lado de mecanismos de sobrevivência que, no limite, implicam conviver, dialogar, colaborar ou fingir não ver “o rinoceronte no quarto ao lado”, como na expressão de Eugene Ionesco.
Neste sentido destacam-se os ensaios primorosos de Marcos Napolitano e das próprias Denise Rollemberg e Samantha Quadrat, além de Daniel Aarão Reis, que inovou nos estudos de regimes ditatoriais ao estudar o período de 1964-1985 no Brasil. Vários outros pontos são ainda de suma importância, incluindo aí — em tempos de debate sobre a nossa recém-criada Comissão da Verdade — a questão da pronta, e quase total, conversão de todos à democracia no imediato período pós-ditaduras. Trata-se, neste caso, da construção de memórias regeneradoras, capazes de promover “esquecimento”, “perdão” ou “passar currículos a limpo”. Neste sentido, o belo ensaio sobre o “pensar-duplo” na França pós-ocupação alemã, no volume “Europa”, serviria de modelo para entender boa parte do processo de democratização no Brasil pós-1985 e da oposição em face da Comissão da Verdade.
Todo esse debate encontra-se exemplarmente discutido no ensaio introdutório, de ambas as autoras. Este é imprescindível para o projeto da coleção ao identificar e explicitar os principais eixos do debate historiográfico (e político, pela própria natureza do texto) que se apresentarão nos ensaios subsequentes. Lamento apenas que o mesmo ensaio seja repetido em cada volume. Mesmo imaginando que se possa comprar cada livro individualmente, caberia indubitavelmente assinalar as características e vicissitudes das ditaduras em cada um dos continentes, suas especificidades e os “espelhos” buscados.
A questão e a natureza dos regimes de “apartheid” — que atingiram a África do Sul, Zimbábue/Rodésia e Namíbia —, por exemplo, estão ausentes, não se discutindo suas possibilidades de construção enquanto ditaduras de forte conteúdo racialista e social, malgrado a imensa literatura sul-africana. Da mesma forma, a questão das classes sociais e de seus interesses — exagerada e de forma mecanicista — tratada na historiografia marxista dos anos de 1945-1980 ficam relegadas. Talvez fosse o caso de se retornar, agora sem a ganga de um marxismo oficial, ao debate sobre empresariado, burocracia de Estado e classes sociais nas ditaduras.
Temos ainda uma outra discordância quando, à pagina 13 do ensaio, as autoras descartam o estudo das ditaduras varguistas de 1930-1934 e de 1937-1945, em razão dos “estudos estarem bem desenvolvidos”. Não creio que seja este o caso. Há, isto sim, uma abundante literatura sobre o período. Contudo, na ótica inovadora proposta pelas organizadoras — expressa, por exemplo, nos textos de Angela Castro, do CPDOC/FGV, Jorge Ferreira, da UFF e Maria Helena Capelato, da USP — falta muito a ser feito numa história das instituições ditatoriais no Brasil.
A aplicação das riquíssimas hipóteses propostas no ensaio introdutório da coleção implicaria no (re)estudo de áreas fundamentais para a compreensão do varguismo ditatorial, como instituições políticas e constitucionais, os órgãos de governo, o processo de decisão política, a burocracia e sua construção profissional, clubes de futebol, associações carnavalescas, as igrejas e o Estado Novo, entre outros. Talvez seja esta uma nova tarefa.
No seu conjunto a coleção apresenta artigos de autores brasileiros e estrangeiros de pouco acesso ou mesmo desconhecidos do público brasileiro. Assim, a presença de grandes nomes Pierre Laborie, Robert Gellately e Francisco Sevillano Calero — só em relação com as ditaduras europeias — enriquece imensamente o trabalho e o torna imprescindível. Da mesma forma, estudiosos latino-americanos, africanos e árabes tornam a coleção um recurso de grande valor para os alunos dos mais diversos cursos das áreas de ciências humanas e sociais.
As temáticas apresentadas — e que devem servir de exemplo de abordagens para futuros trabalhos brasileiros — são inovadoras e comprovam a estreita relação entre sociedade e Estado em regimes ditatoriais. A visão heroicizada, pós-ditatorial, de uma sociedade civil vitimada pelo Estado, em que um grupo era constituído de “heróis da resistência”, enquanto outro era de “colaboradores”, não mais se sustenta. Eis aqui, ao meu alvitre, a principal contribuição da coleção. Da leitura inicial do ensaio emerge uma situação de ambivalência, de busca de condições de (bem)viver ou sobreviver sob as ditaduras. Daí emergem também a delação, a participação e o consentimento na aniquilação física, cívica ou mental do outro como um dado “normal” nos regimes ditatoriais. Em quase todos os casos a maioria poderia dizer, em sua defesa, que eram temas estranhos às suas vidas. Da mesma forma, a capacidade de sedução — e de sua resposta, o consentimento — é elemento central da análise proposta, de forma rigorosa e rica, pelas organizadoras. Em suma, as ditaduras, para nosso horror e reflexão, constroem-se, conforme Rollemberg e Quadrat, na naturalidade da sociedade humana. Creio que tais conclusões, por mais duras que sejam, são uma nova e fértil via de trabalho.
Aberto o caminho, podemos acreditar que novos trabalhos — como as inúmeras teses que ambas orientam — caminharão em direção a uma História mais nuançada, mais real e também mais humana.
Notas
2 A construção social dos regimes autoritários— Brasil e América Latina; África e Ásia; e Europa, coleção organizada por Denise Rollemberg e Samantha Viz Quadrat. Editora Civilização Brasileira, 606 páginas (“Brasil e América Latina”, R$ 69,90); 392 páginas (“África e Ásia”, R$ 59,90); e 309 páginas (“Europa”, R$ 49,90).
Francisco Carlos Teixeira da Silva – Nascido em 1954, Rio de Janeiro, bolsista de produtividade CNPq. Graduação e Licenciatura em História pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (1976), Especialização em História (UFF, 1979), Mestrado em História do Brasil pela Universidade Federal Fluminense (1980), Magister in Geschichtewissenschaft (Freie Universität, Berlin, 1983), Doutorado em História Social pela Universidade de Berlin/UFF (1990) e Pós-doutorado pela Universidade Técnica de Berlin e USP (1999/2000) e pela Universidade Livre de Berlin, 2011/12; Professor Titular de História Moderna e Contemporânea, da Universidade do Brasil/UFRJ, de 1993 até 2012 ). Professor Emérito da ECEME, Professor de Estratégia e Relações Internacionais da EGN e |Professor Conferencista da ESG. Autor de vários trabalhos de História Social no Brasil, com foco no desenvolvimento agrário e nas origens da pobreza no país, e de relações internacionais, conflitos e negociações. Principais teses:Mestrado: A Formação Social da Miséria, 1980; Doutorado: A Morfologia da Escassez, 1990; Tese de Titular: O Concerto Europeu e o Pensamento Conservador, UFRJ, 1993. Alguns dos trabalhos publicados: História Geral do Brasil (Coord. de Maria Yedda Linhares); Domínios da História (Coord. de Ciro Cardoso e Ronaldo Vainfas); Mundo Rural e Política (com o CPDA/UFRRJ); História e Imagem (Tempo Presente, Rio, 1997); Mutações do Trabalho (SENAC, Rio, 2000-); História da Agricultura Brasileira (Brasiliense, São Paulo, 1985); Sociedade Feudal (Brasiliense, São Paulo, 1990); Terra Prometida (com Maria Yedda Linhares, Campus, Rio, 2001) e Memória Social dos Esportes (organizador, v. 1 e v. 2, Mauad, Rio, 2004 e 2006). Em História das Relações Internacionais destacam-se os seguintes trabalhos: Conflitos e das Guerras: O Século Sombrio (Elsevier, São Paulo, 2005), Enciclopédia de Guerras e Revoluções do Século XX (Mauad, Rio, 2005); História do Século XX (Record, sob coord. de Daniel Aarão Reis et alii); Corporativismo em Português (Coord. de Francisco Martinho, Lisboa/Rio, 2008); Ordens e Pacis (Coord. de Alexander Zhebit, Mauad, 2008); Os Impérios na História (obra coletiva sobre a crise dos grandes estados, São Paulo, Campus, 2009); Neoterrorismo (com Alexander Zhebit, Grama, Rio, 2009). Organizador de O Brasil na Segunda Guerra Mundial (Rio, Multifoco, 2011) e Terrorismo na América do Sul (Rio, Multifoco, 2011 ) e Relações Brasil-Estados Unidos (com Sidnei Munhoz, Maringá, EDUEM, 2011). É professor-conferencista da Escola Superior de Guerra na área de Segurança Internacional e da ECEME em Estratégia Internacional. Articulista do Jornal das Dez, Globo News e consultor de várias empresas na área de relações internacionais. Foi Assessor da Presidência da Finep (2008-2010) e Membro dos Comitês Pro-Sul e Pro-África do CNPq. É também Professor Emérito da Escola de Comando e Estado-Maior do Exército brasileiro, detentor da Medalha do Pacificador, a Ordem de Tamandaré e do Medalha Amigo da Marinha e Cavaleiro da Ordem do Mérito Naval. Professor Convidado de “Ambientes e Cenários do Século XXI” da FDC.
O Futuro da Inovação – Usando as Teorias da Inovação Para Prever Mudanças no Mercado – CHRISTENSEN et al (CTP)
CHRISTENSEN, Clayton M.; SCOTT D. Anthony, ROTH, Erik A. O Futuro da Inovação – Usando as Teorias da Inovação Para Prever Mudanças no Mercado. Rio de Janeiro: Campus/Elsevier, 2007. Resenha de: RIBEIRO, Daniel Santiago Chaves. O Futuro da Inovação – Usando as Teorias da Inovação Para Prever. Cadernos do Tempo Presente, São Cristóvão, n. 06–06 de janeiro de 2012.
Tido como revolucionário na administração de empresas, o consultor Clayton Christensen, ph.D. em Economia e professor de Harvard, juntamente com os seus assessores diretos, avisa: não há formula mágica para o sucesso neste livro,2 e não há caminho simples para o que ele considera o elemento central de sobrevivência das grandes companhias no mercado globalizado: a inovação. A aplicação de novas ideias com sucesso – bem como o convívio dos outros elementos no contexto o qual o processo irrompe – é fundamental para a gestão perspicaz em futuro mais próximo, ou seja, o tempo presente. E estar preparado para quando as oportunidades ou intempéries surgirem, é tão significante quanto O mote que sugere a abordagem do autor norte-americano indica – seja no incentivo às oportunidades ousadas ou apoio à sobrevivência – formas mais inteligentes e eficazes de se relacionar com as mudanças e inovações do mercado. Esse comportamento decorre, invariavelmente, de relevo apropriado de teorias e conceitos adequados e funcionais ao invés do recolhimento de dados sistematicamente compilados e indicadores obsoletos que, via de regra, só se tornam confiáveis depois de consumada a transformação – isso quando não são sempre tidos como “escassos”. É a figura do rabo que abanaria o cachorro: as características explicativas e sintomáticas da realidade são tidas como um problema insolúvel e interminável.
Consequentemente, quando nos agarramos ao pragmatismo ilusório, as tendências não são compreendidas, o tempo de resposta se torna reduzido, a margem de manobra asfixiada e a gestão se vê comprometida. Tão perigoso quanto, ainda, é se agarrar na âncora do procedimento-padrão como salvaguarda furado, perdendo a dimensão do aprendizado histórico fundamental para reconhecer as lições do passado. Como dizem os próprios autores, mais importante do que correr atrás da bola, é correr na direção da bola.
Configura-se, no sentido de responder a algumas dessas questões, um esforço analítico de grande utilidade, reforçada com linguagem objetiva e simples, cujo diálogo flui com diversas expectativas disciplinares. Seja estrategista, empresário, diretor-executivo, acadêmico ou qualquer outro tipo de leitor que se depare com a necessidade de interagir dialeticamente com o que é novo, sem dúvida terá bom espaço de reflexão no trabalho de Christensen, Anthony e Roth. Discutindo precisamente a inovação como processo, os autores destacam que o grande desafio é saber distinguir o que é ruído do que é sinal do novo em um momento histórico cuja informação é abundante, quase sempre como uma avalanche no instável contexto que dá significado a essa informação.
Quando essa distinção já se consolida no texto, o binômio fundamental para compreender o trabalho surge de forma clara, como a chave inovadora de Christensen: a inovação disruptiva e a inovação sustentadora. Alguns traços tornam o primeiro tipo de inovação mais relevante ao nosso comentário – o que não necessariamente descarta a importância da segunda.
A inovação disruptiva, ou “disruptive innovation” é um termo que surge do conceito de “tecnologia disruptiva”, forjado por Christensen e Bower em 1995 na revista Harvard Business Review. Naquele momento, a inovação ainda não possuía o destaque prioritário do atual período, mas já se mostrava francamente incontornável na formulação de políticas públicas e de planejamentos estratégicos privados. Além disso, Christensen compreendeu que a inovação na gestão estratégica e desenvolvimento de modelo de negócios vêm antes da implementação tecnológica, o que sem dúvida deve ser bem observado nesse sentido.
Em termos gerais, a inovação disruptiva seria uma inovação decorrente de uma transformação ou introdução tecnológica diretamente relacionada a um serviço, produto ou mercado específico, que é/são reformulados (ou forjados) de modo a se reconhecer novos consumidores, inesperados ou simplesmente não considerados pelo mainstream em vigência. No seu par conceitual gêmeo – muitas vezes de difícil distinção -, a “inovação sustentadora” seria fundamentalmente o tipo de inovação que possibilita a satisfação imediata dos clientes em face de complexos problemas anteriores, a otimização da gestão dentro dos padrões estabelecidos ou a redução de custos e preços. Com franqueza, o autor afirma que a segunda é tão importante quanto a primeira, sendo muitas vezes lucrativa, estratégica e inclusive mais frequente. No entanto, a contrariedade evasiva e encabulada em relação à disrupção seria um erro tolo cometido por várias empresas, deixando de lado janelas de oportunidade, a mera sobrevivência ou a ingrata surpresa da derrota.
Além da telecomunicação (que, sem trocadilho infame, é o principal caso em debate, o fio condutor da explanação), os autores situam as assimetrias de recursos, processo e valores como a espinha dorsal da compreensão das transformações futuras, bem como da fricção entre empresas líderes e empresas emergentes. Enquanto capacitação e motivação são importantes índices primários de análise de mercado e cenários de transformação, é tão necessário quanto reconhecer as facilidades e oportunidades propiciadas por empresas baseadas em modelos de negócios de diferente natureza, ou ainda com franca disparidade nas suas proporções corporativas. Mesmo que essas assimetrias sejam não necessariamente o determinante básico para a detecção da disrupção, geralmente a valoração, míope ou clarividente, de determinadas grandes empresas é categórica para o futuro próximo em aceleração franca.
Conforme já apontou Christensen em várias declarações públicas à revistas e jornais, o Brasil é um país com diversas oportunidades onde paira o não-consumo apto para o salto da inovação disruptiva. A tenacidade absorvente dos quadros técnicos e acadêmicos, por sua vez abalizada por uma legislação que caminha objetivamente ao incentivo, é fundamental para um ambiente inovador no âmbito nacional. Ao contrário de uma expectativa primária, em princípio Christensen não é contrário à regulação, citando a experiência do DARPA norte- americano (Agência de Projetos e Pesquisa em Defesa Avançada) como caso de sucesso. Pelo contrário, a preparação para o start-up e o relacionamento com a inovação deve considerar objetivamente o relacionamento e a detecção inteligente sobre forças não-mercadológicas como sindicatos, padrões setoriais, normas culturais, estágio de desenvolvimento tecnológico e infraestrutura sobre propriedade intelectual, entre outros elementos.
Se observarmos atentamente a condição cada vez mais próspera do Brasil enquanto país emergente, com as políticas dos últimos governos em sintonia com empresas em franca internacionalização, é impreterível adequar os modelos de negócios a big wave da inovação. Não necessariamente a inovação disruptiva é temerária. Sem mesmice, sem mecanicismo ou rotinas envelhecidas, é preciso estar atento às transformações que acontecem nas margens do sistema, aparentemente fora do alcance do topo da cadeia. O distanciamento pode gerar a calcificação desses topos de cadeia gerencial, afastando o novo e tornando-se obsoletas no seu modelo de gestão. É necessário, nessa leitura, saber conviver com a inovação e a disrupção de forma a desenvolver redes capacitadas com valor a gerir as transformações setoriais e recriar os mercados.
Notas
2 Clayton M. Christensen, Scott D. Anthony, Erik A. Roth. O Futuro da Inovação – Usando as Teorias da Inovação Para Prever Mudanças no Mercado.Rio de Janeiro: Campus/Elsevier, 2007.
Referência
CHRISTENSEN Clayton M., SCOTT D. Anthony, ROTH Erik A. O Futuro da Inovação – Usando as Teorias da Inovação Para Prever Mudanças no Mercado. Rio de Janeiro: Campus/Elsevier, 2007.
Daniel Santiago Chaves Ribeiro – Professor de História Contemporânea da empresa Universidade Federal do Amapá.
A Idade Média no cinema – MACEDO; MONGELLI (CTP)
MACEDO, José Rivair; MONGELLI, Lênia Márcia. (Org.). A Idade Média no cinema. São Paulo: Ateliê Editorial, 2009. Resenha de; PRATA, Rafael Costa. A Idade Média no Cinema, de José Rivair Macedo e Lênia Márcia Mongelli. Cadernos do Tempo Presente, São Cristóvão, n. 05 – 05 de outubro de 2011.
Em 28 de dezembro de 1895, os irmãos Lumiere projetavam no porão de um salão de café em Paris, seus primeiros rolos de filmes compostos por imagens do cotidiano da sociedade francesa de outrora. Pouco tempo depois, em 1899, George Meliès, encenava “para a câmera cenas históricas recentes, como em L´affaire Dreyfus”.2 Conforme Rosenstone:
Os primeiros filmes históricos dramáticos não eram concebidos como investigações serias a respeito do significado dos acontecimentos passados. Eram momentos nacionais breves, muitas vezes não mais do que encenações teatrais que a platéia facilmente reconheceria (…).3
Contudo, “no final da década de 1910, houve o surgimento de uma outra tradição de filmes históricos que não hesitam em fazer perguntas e apresentar interpretações serias sobre o significado do passado”.4 Com isso, o Cinema começa a ganhar força, suscitando assim intensos debates envolvendo a apropriação do conhecimento histórico produzido pelo saber erudito por parte do campo cinematográfico.
Esses debates, em grande parte surgiam em decorrência de que o Cinema até então era visto pelo saber erudito como uma arte voltada às camadas populares, um entretenimento pueril despossuído de qualquer tipo de responsabilidade metodológica e histórica. Nascido nos porões de um café em Paris e reduzida a um publico muitas vezes formado pela classe operaria, o Cinema amargou por muito tempo ter de levar esse fardo adiante.
Esse muro foi sendo lentamente derrubado quando a partir da terceira geração dos Annales, historiadores como Pierre Nora e Marc Ferro, imbuídos da necessária defesa do alargamento das fontes históricas, criaram “um clima que permitiu que os acadêmicos passassem a levar a cultura popular mais a serio e começassem a observar mais de perto a relação entre filme e conhecimento histórico”.5 Não obstante, será então curiosamente o período histórico convenientemente denominado como Idade Média, marcado por uma gama de preconceitos e legendas negras edificadas historicamente pelos humanistas e posteriormente pelos iluministas do século XVIII, esta, a “Idade das Trevas” ou “Longa Noite de Mil anos”, o momento histórico mais procurado para as ambientações cinematográficas.
Procurando refletir como se dá tais relações, é que a obra “A Idade Média no Cinema” aparece com grande importância dentro do polêmico e conturbado cenário das relações entre o Cinema e os seus usos do saber histórico. Lançada em 2009 pelo Ateliê editorial, e de organização dos medievalistas, José Rivair de Macedo (UFRGS) e Lênia Márcia Mongelli (USP), tal obra nasceu curiosamente como fruto de inúmeras palestras, congressos e seminários realizados a partir do primeiro semestre do ano de 2001, quando, encabeçadas pela ABREM,6 foram realizadas em todo o país, lotando universidades, e outros centros de estudo, sempre levando daqueles locais, a certeza de que seria necessário se aventurar mais ainda sobre a temática a fim de responder aos inúmeros questionamentos que daqueles ambientes emergiam em profusão.
Partindo destas premissas, a obra então nos leva a uma importante reflexão acerca das representações incidentes sobre o Medievo no campo cinematográfico, principalmente quando “o que está em discussão é a necessária distinção entre uma Idade Média propriamente histórica, objeto de estudo dos medievalistas, e uma Idade Média vista em retrospectiva, isto é, uma certa idéia do passado medieval visto pela posteridade”.7 A proposta metodológica é a mais sensata possível, haja vista que todos os articulistas ao desviarem o seu olhar a estas apropriações cinematográficas, não procuram esquecer-se da linguagem, das subjetividades e objetivos, que são próprios ao Cinema, que devem ser entendidos, para se evitar os eternos choques entre ambos os campos.
Não é de se surpreender, portanto, que grandes obras de reconstituição histórica, feitas com consultoria de renomados historiadores, acabam sendo repudiadas por estes mesmos durante sua produção por diversos motivos apontados. Tal situação pode ser vista com clareza a partir de dois paradigmas clássicos ocorridos durante as filmagens da película de destaque, “O Nome da Rosa”, quando o renomado medievalista Jacques Le Goff, convidado para atuar como consultor histórico, acabou abandonando seu ofício durante a produção do filme e pediu para não ter seu nome posto nos créditos da obra, ao discordar em absoluto das decisões tomadas pelo cineasta Jacques Annaud durante o andamento da produção fílmica. Outro caso talvez mais significativo do que pode resultar tais choques, aconteceu durante a produção do filme “O Retorno de Martin Guerre”, no ano de 1982, quando a também consultora histórica contratada para a obra, a historiadora Natalie Zemon Davis, também discordara da recriação feita pelo cineasta Daniel Vigne, e indo mais além, em 1987, cinco anos após então, lança uma obra homônima ao filme, onde demostra toda a sua insatisfação e as diferenças de leituras ocorridas entre ela e o cineasta.
Em geral, A Idade Média que acaba aparecendo nas telas do Cinema, não é mais do que um mero espelho das angustias, sofrimentos e desejos da contemporaneidade, que encontram numa Idade Média sonhada ou fantasiosa, campo propicio como subterfugio ou como fuga da realidade. Um Medievo de Bruxas, de princesas e cavaleiros encantados e envoltos na mais pura magia do amor cortês e da coragem, cavalgando em meio aos perigos de uma floresta onde residem magos e outras figuras estranhas. O Medievo será “inapelavelmente, a Idade Média do fantástico e da religião, do Graal e do amor, das grandes guerras e das heroínas como Joana D`arc”.8 Daí é que:
É no âmbito da Medievalidade [conceito cunhado pelo mesmo e de fundamental importância no decorrer da obra], e não da historicidade medieval, que o cinema alusivo a Idade Média deve ser pensado.9 (…) As motivações da Medievalidade encontram-se estreitamente ligadas aos problemas atuais: os dilemas éticos do herói, a fidelidade aos princípios morais do individuo em relação ao grupo, a prevalência do bem sobre o mal.10
Sobre o aspecto temporal e temático: Áreas ou períodos da Idade Média aparecem com maior frequência no cinema do século XX. Não seria demais insistir no fato de que, comparativamente, os temas medievais que mais interessam aos cineastas digam respeito aos séculos posteriores ao XI, poucos filmes tendo abordado a Alta Idade Média (séculos V – X). Enquanto determinados temas (como a peste, as Cruzadas, os Vikings, as guerras, as querelas dinásticas) e determinados personagens (como Joana D´arc, Robin Hood, Henrique V, o Rei Arthur) são reiteradamente retratados, a partir de diversos ângulos ou pontos de vista.XI Para concluir, além destas e outras reflexões, esta significativa obra nos traz ainda seis ensaios independentes, que procuram manter a coesão ideológica sobre filmes renomados ambientados na Idade Média, procurando discutir como tais obras constroem e se utilizam deste tão procurado Medievo.
“A Idade Média no Cinema”é uma obra fundamental e que consegue contribuir em muito para o estudo da relação Cinema – História, demonstrando como o bom relacionamento entre os campos não precisa ser necessariamente uma utópica relação amorosa, mas uma compreensão de suas particulares dimensões, construções simbólicas e signos, que respeitadas, podem e muito contribuir para a construção do conhecimento histórico em todas as suas dimensões.
Notas
2 ROSENSTONE, Robert. A História nos filmes, os filmes na História, São Paulo: Paz e Terra, 2010. p.27.
3 Idem, p.29.
4 Idem.
5 Idem, p.40-41.
6 ABREM – Associação brasileira de estudos medievais.
7 MACEDO, José Rivair. Introdução – Cinema e Idade Média: perspectivas de abordagem. In: MACEDO, José Rivair; MONGELLI, Lênia Márcia. (Org.). A Idade Média no cinema. São Paulo: Ateliê Editorial, 2009. p.14.
8 PEREIRA, Nilton Mullet. Imagens da Idade Média na Cultura escolar. AEDOS, vol.2, No. 2, 2009, p.4.
9 MACEDO, José Rivair. Introdução – Cinema e Idade Média: perspectivas de abordagem. In: MACEDO, José Rivair; MONGELLI, Lênia Márcia. (Org.). A Idade Média no cinema. São Paulo: Ateliê Editorial, 2009. p.18.
10 Idem, p.47.
11 Idem, p.46-47.
Referência
MACEDO, José Rivair ; MONGELLI, L. M. (Orgs.) . A Idade Média no Cinema. 1ªed. São Paulo: Ateliê Editorial, 2009. v. 01. 268 p .
Rafael Costa Prata – Graduando em História pela Universidade Federal de Sergipe. E-mail: rafaelcostaprata@hotmail.com.
Populares na cidade: vivência de trabalho e de lazer – SOUZA (CTP)
SOUZA, Antonio Clarindo Barbosa de (org). Populares na cidade: vivência de trabalho e de lazer. João Pessoa: Ideia, 2011. Resenha de: CRUZ, Débora Souza. Cidades: Experiências e Relatos sob a Ótica dos Populares. Cadernos do Tempo Presente, São Cristóvão, n. 05 – 05 de outubro de 2011.
A obra denominada Populares na cidade: vivência de trabalho e de lazer reúne sete textos de diferentes autores que convidam o leitor para uma viagem que tem como pontos de paradas algumas cidades brasileiras. Ao passar por cada cidade, algumas experiências são relatadas e resgatadas por personagens que até então eram anônimos e marginalizados na historiografia.
São seis cidades que foram escolhidas para o roteiro de viagem: Belém, Teresina, Fortaleza, Paraíba, Aracaju e Belo Horizonte. Ao abordar cada uma delas, percebemos a variedade de fontes e abordagens teórico metodológicas que foram escolhidas por cada um dos seus autores. As fontes utilizadas vão desde os relatos orais de memória, até as jornalísticas, literárias e policiais.
A primeira parada se dá em Belém, mais especificadamente no Asilo Pão de Santo Antônio. É neste local que diversas experiências de vida, principalmente no que se refere ao mundo do trabalho, são relembradas por seus moradores, reconstruindo uma Belém ainda nos meados do século XX. Neste período, a modernização estava em voga e a cidade buscava a todo custo o seu embelezamento. Diante deste quadro e da tentativa de buscar a ordem e a civilização, alguns trabalhadores ambulantes como quitandeiras, garapeiros e aguadeiros, incomodavam aos “homens civilizados” que viam tais trabalhos como anti-higiênicos. Era o caso, por exemplo, da utilização de fontes e chafarizes públicos pelas lavadeiras. Tais profissionais pobres, se viram intimidados de continuarem desenvolvendo seu exercício devido ao rigoroso Código de Posturas que foi imposto pelo governo, no qual tais trabalhadores chegavam a ser considerados como “vagabundos”.
Entretanto, mais importante do que percebermos o motivo que estava por trás para o estabelecimento do código, devemos nos atentar para a importância de tais trabalhadores. A presença de aguadeiros e lavadeiras nos revela a escassez da cidade de Belém no serviço de distribuição de água. As quitandeiras e outros vendedores ambulantes nos mostra a falta de estabelecimentos comerciais. Além disso, a permanência da atuação de tais personagens não só eram relevantes para os belenenses, mas também representaram uma resistência ao projeto modernizador.
Ainda escolhendo a oralidade como principal suporte e o recorte temporal na segunda metade da década de 1980, a próxima parada é a cidade de Teresina, agora sendo apresentada segundo os relatos de Antonio Sales, vulgo Pintinho. Este trabalhou em construções civis, organizou cordões, bailes, blocos carnavalescos e até times. Desta forma, Pintinho chegou a ocupar um lugar relevante em sua cidade, neste caso, Teresina. Além de suas funções desempenhadas, que nos atenta também para as mudanças urbanas e arquitetônicas que estavam passando a cidade, algumas passagens de sua vida como a dificuldade de frequentar os cinemas devido ao pouco poder aquisitivo e o tempo em que trabalhou como carregador de água, nos mostra muito além de uma experiência individual, mas como funcionava toda a urbe que estava ao seu redor.
Deixando o nosso narrador Antonio Sales, partimos de Teresina e nos direcionamos à Fortaleza. Agora, iremos identificar como tal cidade era colocada na imprensa e literatura. Ao escolher, principalmente a literatura como fonte, neste caso em destaque os romances Mississipi e Aldeota, temos a chance de nos deparar com detalhes ricos sobre o cotidiano dos fortalezenses. Entre eles podemos destacar os momentos de divertimento como os banhos de mar, a precariedade não só no sistema de iluminação, mas também na raridade de uma água de boa qualidade e entre outros aspectos que foram observados graças a união entre fonte tradicional, como o jornal e a literatura.
A quarta parada ocorre em Campina Grande nos anos de 1970, guiada pelas histórias de homens e mulheres considerados infames pelos relatos jornalísticos e policiais. Eram as prostitutas, bêbados, pequenos larápios, loucos, enfim, pessoas simples e desafortunadas que acabavam sendo alvos da discriminação, rejeição e controle social. É com base em uma investigação dos pequenos fatos e das experiências destes populares vistas por uma outra ótica, que tais personagens serão valorizados. Entretanto, além da observação sobre algumas caracterizações negativas, o autor destaca que assim como as lavadeiras se fizeram presentes em Belém, na cidade de Campina Grande, a permanência destes populares também foi uma forma de burlar algumas normas como o policiamento dos mesmos e a luta “por uma vida menos infame” (SOUZA, 2011, p. 106).
Saindo de Campina Grande chegamos em Aracaju do século XX e também observamos algumas transformações e traços da modernidade, tendo como indícios os primeiros cinemas e automóveis que apareceram na capital sergipana. Entretanto, mesmo com a presença de tais elementos considerados modernos , os aracajuanos não tiveram seu cotidiano bruscamente modificado. Enquanto os automóveis transformavam o ritmo da cidade, estes eram obrigados a conviver com os bondes a tração animal. Não diferente ocorria nas salas de cinemas, onde nem sempre o ambiente que representava o moderno, acolhia frequentadores com “bons modos”. Tal atitude é compreendida como uma reação do relacionamento dos aracajuanos com os novos hábitos.
Entretanto, a preocupação não se restringia apenas aos hábitos existentes na época, mas aos novos padrões de beleza que tanto eram difundidos não só pelo comércio, mas por intelectuais, políticos e higienistas. Nas décadas de 1930 e 1940, houve o forte incentivo ao aperfeiçoamento racial. Entre tais estímulos destacamos o futebol, alguns eventos como os Jogos de Verão e as Olimpíadas Sergipanas. Ao passear por Aracaju do século XX, observamos os primeiros passos de uma cidade que queria a todo custo deixar de lado suas características provincianas, além das interferências desempenhadas pelo governo nos espaços de lazer pela busca de um “corpo ideal”.
A última cidade visitada é Belo Horizonte, que assim como as anteriores relatadas, também almejava deixar pra trás os traços coloniais e investir no embelezamento da urbe. Entre algumas medidas está o levantamento de obras públicas, ganhando destaque a Praça 7 de Setembro. Através desta praça, percebemos que os espaços construídos não eram direcionados ao “populacho. Na cidade mineira observamos claramente a delimitação do público, mas que nunca deixou de ser uma extensão do espaço privado, seja das classes baixas ou altas.
Referência
Débora Souza Cruz – Graduanda em História pela Universidade Federal de Sergipe. Integrante do Programa de Educação Tutorial (PET/História /UFS). E-mail: debora@getempo.org.
O 18 Brumário de Luís Bonaparte – MARX (CTP)
MARX, Karl. O 18 Brumário de Luís Bonaparte. São Paulo: Boitempo, 2011. Tradução Nélio Schneider. Resenha de: MAZA, Fábio. O 18 Brumário de Luís Bonaparte de Karl Marx Cadernos do Tempo Presente, São Cristóvão, n. 04 – 04 de julho de 2011.
A Boitempo Editorial tem se esmerado em reeditar as obras de Marx e Engels. Através da Coleção Marx-Engels, vem apresentando ao leitor brasileiro uma série de escritos traduzidos diretamente do alemão. Além de títulos que já se encontravam disponíveis em língua portuguesa, a Boitempo publicou textos como Sobre o suicídio2 inédito no Brasil. Agora traz seu décimo título, “a célebre análise de Marx sobre o processo que levou da Revolução de 1848 para o golpe de Estado de 1851 na França”.3 De fato, O 18 de Brumário de Luís Bonaparte é um livro notável e obteve uma fortuna nas ciências sociais que poucas obras ousaram conquistar.4 As razões dessa ventura se devem a vários fatores de difícil síntese em uma resenha. Contudo ao reler o 18 Brumário percebe-se que a obra não perdeu força e pode jogar luz sobre os limites da representação política parlamentar. Como isso não quero retornar a uma anacrônica classificação do tipo “democracia burguesa”, expediente utilizado ainda por certa esquerda esquizofrênica reduzida a guetos. Mesmo assim, não se pode deixar de se ater aos acontecimentos que tem sacudido o norte da África e o Oriente Médio e perceber a forte demanda por democracia em vários países da região. Ou ainda, os acontecimentos da Grécia e Espanha que vem questionando as estruturas formais da democracia e exigindo ampliação dos mecanismos democráticos das decisões políticas e econômicas. Seja em Madri, Barcelona ou Atenas o que está em jogo é uma ampliação da democracia para além do revezamento entre partidos conservadores ou socialdemocratas no poder.
É claro que a realidade que Marx analisou tem muito pouco haver com o que acontece em nossa época. Em primeiro lugar por que a constituição de organizações diversas que fazem parte das democracias ocidentais hodiernas não existia à época de Marx ou estavam por se constituir. Depois Marx deixa claro em sua análise sagaz e detalhada que no período de 1848 a 1851 todas as armas forjadas pela burguesia contra o feudalismo começavam a se voltar contra ela. Assim se expressa o autor a respeito dos mecanismos democráticos na República Parlamentarista sobre o domínio burguês: Ela [a burguesia] compreendeu que todas as assim chamadas liberdades civis e todos os órgãos progressistas atacavam e ameaçavam a sua dominação classista a um só tempo na base social e no topo político, ou seja, que haviam se tornados “socialistas”.5 Esse trecho mais do que apontar a faceta caricatural que a burguesia assumia nesse instante de sua história, introduz-nos em um tema dos mais caros ao livro. Na descrição, quase cronológica dos acontecimentos entre 1848 a 1851, Marx aponta de como cada classe ou fracção de classe se apoio nos ombros dos seus antecessores para em seguida trai-los em causa própria. O único sujeito social golpeado por todos teria sido o proletariado. Em seguida a pequena-burguesia democrática via-se superada pelos republicanos burgueses e esses acutilados pelo Partido da Ordem. Assim, afirma Marx que ao se apoiar nos “ombros” do Partido da Ordem, esse ao encolhê-los deixa os republicanos burgueses se estatelado no chão.
Essa descrição, aqui bastante resumida, não dá conta do grau de complexidade do jogo político e dos conflitos sociais envolvidos no período e os quais Marx analisa com maestria. O autor pondera a cada passo as alianças que são feita e desfeitas em várias oportunidades. Assim se a pequena burguesia democrática abando o proletariado a sua própria sorte nas jornadas de junho de 1848, quase dois anos depois buscará seu apoio para as eleições complementares de 10 de março de 1850. Por sua vez com a vitória dos candidatos social-democratas na mesma eleição, Bonaparte “se viu novamente confrontado com a Revolução” e não lhe restou alternativa a não ser se curvar diante do Partido da Ordem.
Em todos esses casos – cujos exemplos são reduzidos aqui devido ao espaço – Marx analisa a incapacidade dos diversos grupos de tomarem o poder em suas mãos. Como uma linguagem ácida e irônica Marx aponta a “covardia” da pequena-burguesia, dos republicanos liberais e mesmo do Parido da Ordem de estenderem o controle do poder político a toda a sociedade. Esse tipo de situação pavimentou o caminho para que um aventureiro tomasse em definitivo o controle político em suas mãos.
Aqui temos, portanto, o quadro que permitiria a construção de um conceito caro para as Ciências Sociais: o Bonapartismo. O conceito nos remete a uma “manifestação extrema daquilo que, em escritos marxistas recente sobre o Estado foi chamado de „autonomia relativa‟…”6 Uma forma de governo que desautoriza o poder legislativo no Estado democrático e que “efetua a subordinação de todo o poder ao executivo”.7 Mas essa descrição não nos autoriza a concluir a natureza mais profunda desse fenômeno. O bonapartismo é antes de tudo “produto de uma situação em que a classe dominante da sociedade capitalista já não é capaz de manter seu domínio por meio constitucionais e parlamentar.”8 Não se trata de um conceito abstrato, mas fruto de uma análise balizada “no calor dos acontecimentos”. O 18 Brumário será a primeira tentativa de “aplicar” os “fundamentos praxiológicos da concepção materialista da história” à “fenômenos sócias concretos”9 Marx tem plena consciência dos limites históricos impostos tanto ao proletariado quanto à burguesia e nesse sentido vislumbra no conflito de classes o motor que levaria Bonaparte ao golpe de estado.
[…] ao tachar de heresia “socialista” aquilo que antes enaltecera como “liberal”, a burguesia confessa que seu próprio interesse demanda que seja afastada do projeto de governar a si própria; que, para estabelecer a tranquilidade no país, sobretudo o seu Parlamento de burgueses devia ser silenciado; que, para preservar o seu poder intacto, o seu poder político devia ser desmantelado; que os burgueses privados só poderiam continuar a explorar as demais classes e desfrutar sem percalços a propriedade, a família, a religião e a ordem se sua classe fosse condenada à mesma nulidade política que todas as demais classes.10 Portanto, diante do perigo da Revolução, da ameaça ao seu poder social, a burguesia abre mão do poder político. É assim que o Estado parece emergir como autônomo, como “mediador ostensivo.”11 A independência do Estado não poder ser vista como algo “suspenso no ar”. Sua autonomia é “pura aparência, se se atentar para o conteúdo concreto da política por ele levada a efeito.”12 Em todo o relato de Marx ele recheia seu texto como desfile de personagens políticas que servindo outros grupos sociais e em particular o Partido da Ordem, após o golpe de Bonaparte passaram a servir ao seu governo. Além disso, alguns autores nos fazem lembrar que a ditadura de Bonaparte teria se assentado no campesinato da pequena propriedade (Miliband; Pistone; Marcuse).A edição da Boitempo traz uma novidade impar. Trata-se de um prólogo assinado por Herbert Marcuse escrito para edição de 1965 do 18 Brumário em Frankfurt.13 Sua publicação pela primeira vez no Brasil permite um enriquecimento analítico da obra Marx a luz das reflexões de um autor do século XX e que viveu os percalços do fascismo e da guerra.
Marcuse faz diversas considerações sobre os acontecimentos do golpe de Bonaparte, mas irei me ater a um aspecto de sua análise que me parece muito rico, pois leva-nos a perceber que Marx conhecia muito bem os limites do proletariado no tempo da Revolução de 1848. Também nos esclarece quanto ao estilo da escrita presente em o 18 Brumário. Marcuse acredita que Marx tinha plena consciência da derrota e, portanto o “desespero” faz “parte da teoria e da sua esperança.”14 Peço licença ao leitor para citar a saborosa passagem em que Marcuse defende a tese explicitada no trecho acima: […] contra a vontade de quem a escreveu, a obra se torna alta literatura. A linguagem torna-se conceito da realidade, o qual, mediante a ironia, resiste ao horror dos eventos. Diante da realidade, nenhuma fraseologia, nenhum clichê- nem mesmo os do socialismo […] o escárnio e a sátira constituem a aparência real da sua verdade […] estupidez, ganância, baixaria e brutalidade que perfaz a política deixa a seriedade sem fala.15 Como discordar de Marcuse se justamente Marx faz desfilar em seu texto um cortejo fantasmagórico de personagem que se apresentam como caricaturas de um passado mais “glorioso”. Como não aceitar que a linguagem de Marx é irônica e por isso mesmo, como ácido, dissolve manobras políticas e personagens desnudando suas figuras esquálidas. O estilo de Marx – alta literatura – é marca indelével nessa obra. Como não concordar com Marcuse quando Marx, ao tratar de Ledru-Rollin – um montagnard que se refugia no exterior – descreve sua situação assim: “na distancia, sua figura arrebatada do chão da ação parecia aumentar de tamanho na mesma proporção em que o nível da Revolução baixava […]”.16 Cabe por fim falar de alguns aspectos problemáticos na presente edição da Boitempo. Além de erros de grafia, há graves falhas nas notas que acompanham o texto. Em resenha para a revista Carta Capital17 Pompeu apontou, por exemplo, a nota na página 18 que nos remete para 70 que simplesmente não existe, pois a última nota é 69. Mas também podemos observar vários outras incorreções. A nota 20 da página 55 indica a nota 9 da página 34 quando na verdade deveria ser nota 8, enquanto na mesma página 55 a nota 21 nos remete a nota 1 quando deveria ser a nota 9. Os exemplos poderiam se multiplicar. Assim, tamanho descuido com a edição pode induzir o leitor desavisado a erros e prejudicar a compreensão de muitos fatos que dão suportes as análise de Marx.
Notas
2 MARX, Karl. Sobre o suicídio. Tradução Rubens Enderle e Francisco Fontanella. Boitempo Editorial, São Paulo, 2006.
3 http://www.boitempo.com/livro_completo.php?isbn=978-85-7559-171-0
4 IANNI, Octavio. Apresentação. O 18 Brumário e Cartas a Kugelmann, Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2002. 7ª edição.
5 MARX, Karl. O 18 Brumário de Luís Bonaparte – tradução nélio schneider. São Paulo: Boitempo, 2011, p. 80
6 MILIBAND, Ralph. Bonapartismo. Dicionário do Pensamento Marxista. Tom Bottomore. Jorge Zahar Editor, Rio de Janeiro, 1997, p.35.
7 PISTONE, Sergio. Bonapartismo. Dicionário de Política. Noberto Bobbio. Editora Universidade de Brasília. Brasília. DF. 1992.p 118.
8 MILIBAND,Ralph, Op.cit.
9 BRAGA, Ruy. O 18 Brumário de Luís Bonaparte. Karl Marx. São Paulo: Boitempo, 2011.
10 O 18 Brumário de Luís Bonaparte. Karl Marx – tradução nélio schneider. São Paulo: Boitempo, 2011, p. 81
11 MILIBAND, Ralph, Op.cit
12 PISTONE, Sergio, Op.cit
13 Na verdade trata-se de um epílogo da edição alemã de 1965 e que na presente edição da Boitempo passa ser prólogo.
14 MARCUSE, Herbet. Prólogo. O 18 Brumário de Luís Bonaparte. Karl Marx. São Paulo: Boitempo, 2011, p.13
15 MARCUSE, Herbet. Prólogo. O 18 Brumário de Luís Bonaparte. Karl Marx. São Paulo: Boitempo, 2011. p. 13
16 MARX, Karl. Op.cit.p 68 17 POMPEU, Renato. O escrito e o lido. Carta Capital. nº 647, 25 de maio de 2011.
Fabio Maza – Doutor em Ciências: História Social pela Universidade de São Paulo. Professor do Departamento de História da Universidade Federal de Sergipe. E-mail: fabiomaza@uol.com.br
Voz na luz: psicanálise e cinema – GUIMARÃES (CTP)
GUIMARÃES, Dinara Machado. Voz na luz: psicanálise e cinema. Rio de Janeiro: Garamond, 2005. 185 p. Resenha de: NASCIMENTO, Cristhianne Lopes. Voz na Luz: Psicanálise e Cinema de Dinara Machado Guimarães. Cadernos do Tempo Presente, São Cristóvão, n. 04 – 04 de julho de 2011.
A psicanalista Dinara Guimarães propõe uma ideia inovadora ao investigar o cinema a partir da voz. Por o cinema ser uma arte sempre associada ao olhar, este livro amplia a concepção dos recursos sonoros e vocais das produções cinematográficas quando relacionados com a psicanálise. E esta particularidade já se apresenta no Prefácio quando o cineasta Cacá Diegues define que “a voz deste livro é a voz que o cineasta escuta”.2 Em sua obra, O vazio iluminado, a autora trabalha o olhar no cinema sustentado pela ideia de um vazio que também dá passagem para a criação da concepção voz na luz. Assim, como existia uma separação entre olhar e vê em sua primeira obra, esta traz como foco uma separação entre a voz e aquilo que se diz.
Desse modo, Dinara Guimarães nos apresenta “o cinema como uma arte que materializa uma voz moral na consciência humana”.3 E, com isso, permite uma análise do processo de criação tendo como base a teoria da psicanálise e a teoria do cinema. Para tanto, a autora divide sua obra em duas partes compostas por várias sequências: a primeira é o início da passagem do olhar para a voz (a) sonora; a voz de supereu de Sigmund Freud; a voz como objeto de pulsação invocante de Jacques Lacan; a voz na triangulação entre as categorias do Real, do Simbólico e do Imaginário; e a segunda parte consolida o encontro entre o cinema e a psicanálise assumindo o cinema como voz (a) sonora, uma voz silenciosa passando deste o surrealismo francês, os movimentos de vanguarda americana experimental, nouvelle vague francesa, neorrealismo italiano, até o cinema brasileiro e cinema contemporâneo. Por fim, as considerações finais que ressaltam o caminho percorrido e a voz transpassável pela tela desviada que ainda é seu grande enigma.
No primeiro plano já encontramos uma nomenclatura alternativa utilizada pela autora: a classificação cinema mudo e falado da abordagem tradicional é denominada por cinema silencioso e sonoro, e, ambos são detentores de voz. Isso quer dizer que o cinema mudo possui uma voz silenciosa. E, por isso, “o cinema combina a voz e a presença invisível do enunciador”.4 A partir desta assertiva, Dinara Guimarães define os princípios psicanalíticos que lhe é fundamental – o objeto a e o objeto da pulsão de ouvir, invocante – para chegar à construção do objeto e do método. Tendo como referencial Lacan e Freud, respectivamente. Logo, o cinema é construído pela voz (a) sonora por ser uma arte basicamente de representação de imagem. A voz, caracteristicamente errante, ao converter-se na fala cerca o lugar vazio, o vácuo de onde surge a voz ou o inverso disto, a voz silenciosa. Ou seja, o cinema tem uma voz silenciosa que ressoa por se tratar de outra dimensão da voz, a dimensão do instante de escutar. Por isso, segundo a autora, o cinema é chamado de “voz na luz”.
Nesse momento, a autora nos expõe os vários mecanismos de invenção criativa dos artistas sem nenhuma intenção de interpretá-los. Para tanto, percorre o campo teórico da psicanálise através da decupagem de três registros: o Real incorporado à ordem do “impossível” lógico; o Simbólico como uma lei ordenadora da estrutura que é a linguagem; e o Imaginário como registro das representações mediado por esta lei ordenadora. Onde cada um deles ganha três dimensões que articulam sobre um vazio que Lacan deposita os objetos a e, um dos objetos de desejo nomeado por ele, é a voz.
Dinara Guimarães destaca o pouco momento em que Freud compara a voz com a instância moral do supereu (ou superego) que seria uma voz da consciência ou a, também, chamada consciência moral. Já as abordagens de Lacan são bem exploradas por ela. Sua abordagem da voz se dá no desejo do sujeito e no desejo do Outro, portanto, um lugar dos significantes, marcado pelo registro Real. Então, Lacan é o primeiro a conceituar a voz como um objeto e “constrói o objeto a para marcar o ponto de escape da simbolização na estrutura de linguagem”.5 Pois, para ele o Real pode ser trabalhado excluído do Imaginário e do Simbólico e, consequentemente, enfatiza a ação criadora da palavra. E passa a evidenciar o Real como pura ausência, porém, o objeto a é o ponto de convergência entre o Real, o Simbólico e o Imaginário, determinando o lugar vazio estruturante da voz. Ao definir esta linha argumentativa, a autora desfila exemplos para demonstrar a escuta do cinema que ultrapassa a sonoridade acústica da tela para atingir a liberdade de uma voz que ecoa além da imagem.
Finalizando a primeira parte, Dinara Guimarães nos apresenta o conceito de voz acusmática presente em Michel Chion. A voz humana, segundo ele, é parcial e direcional, mas ouvimos de todos os lados despertando os sentidos a partir da orelha. Por isso, uma voz acusmática seria o som que se escuta sem saber de onde vêm. Produzida em um espaço extra-campo, mas não significa fora do filme. A voz ressoa pela “presença suposta”, quer dizer que é de alguém presente „fora-de-cena‟.
Na segunda parte, a autora define voz (a) sonora e voz sonora e depois a representação moral da voz (a) sonora em algumas projeções cinematográficas. A interface cinema e psicanálise se dá, para a autora, no encontro entre a psicanálise in-tensão e a psicanálise ex-tensão e, assim, constrói-se a voz iluminada. Para desvelar esta voz, é necessário escandir a voz (a) sonora, pois, ao destacar, separar a voz ela surge como objeto-causa do desejo. Dessa maneira, o sujeito se encontra como objeto e se faz voz, pois esta voz localizada dentro e fora do campo auditivo constituindo-se em Outro. Dinara Guimarães, então, apenas relaciona com o cinema a abordagem da voz do desejo do Outro que Lacan trabalha em relação à literatura.
Outro ponto, escandido pela autora, é a relação entre a voz e o olhar. “A voz e o olhar se opõem. A voz ressoa à distância da imagem, e o olhar fixa a imagem”.6 E a lógica de operação da fantasia tem relação com o enquadramento do olhar e da voz na tela por que o sujeito encena para ver e ouvir a realidade da sua subjetividade.
Com isso, a autora se distancia cada vez mais dos pensamentos tradicionais que compreendem a voz no sentido de um conjunto de sons emitidos pelo aparelho fonador. Restringindo a voz ao âmbito da percepção auditiva proposta pela fonoaudiologia e pela psicologia da Gestalt. E, também, o cinema sonoro limita-se a ter um único recurso técnico, a voz.
E esses conceitos estão presentes nas novas propostas artísticas do cinema vanguardista para, com isso, tentar atingir um novo sentido. Pois, a autora coloca a voz na luz do cinema como a reflexão da consciência moral, a instância crítica e vigilante. É uma voz que traz consigo um ideal estético preenchido por várias vozes escutadas por todos os lados e sentidos. David Wark Griffith, Fritz Lang, Alfred Hitchcock, Luis Buñuel, Maya Deren, Alain Resnais, Roberto Rossellini, Federico Fellini, Jean-Luc Godard, Carlos Reichenbach, Cacá Diegues, Krzystof Kieslowski, Luc Besson e outros são as vozes da moralidade destacada pela autora corroborando com os ideais apresentados ao longo de sua obra.
O cinema só se constrói enquanto voz pelo prazer de escutar pelas vozes do desejo. A escuta do cinema traz à luz a voz do comando de presença invisível, pois, cinema é voz: a voz distante da fonte sonoro-vocal, a voz da memória, a voz do espectro sonoro, a voz fantasmática, a voz inspiradora e a voz paranóica. Finalizando, a autora afirma que o que se escuta no cinema é a voz do silêncio. Assim, como um escrito, a voz entoa ao espectador uma linguagem, portanto, vinda do interior, silenciosa, dita em pensamentos ou vinda do exterior, invisível, ela antecipará o olhar. Pois, estará em algum lugar e em lugar nenhum, possível de ser vista e escutada, mas sempre fadada a errar.
Com esta conclusão, Dinara Guimarães, nos proporciona uma sobrecarga de conceitos da teoria da psicanálise, mas por vários momentos nos fica devendo maiores esclarecimento a cerca da teoria do cinema. Porque ao desfilar suas várias vozes (a) sonoras nas projeções cinematográficas encontramos termos do cinema extremamente técnicos que impossibilitam a interface desejada entre cinema e psicanálise com maior clareza. Embora, consiga falar com enorme poder dessas duas “ciências”.
Referência
GUIMARÃES, Dinara Machado. Voz na luz: psicanálise e cinema. Rio de Janeiro: Garamond, 2005. 185 p.
Notas
2 p. 07
3 p. 15
4 p. 17.
5 p. 33.
6 p. 67.
Cristhianne Lopes do Nascimento – Mestranda em História pela Pontifícia Universidade Católica de Goiás – PUC/GO
O livro didático de história: políticas educacionais, pesquisas e ensino / Margarida Maria D. Oliveira e Maria Inês S. Stamatto
“cada livro é escolha e recortes, produções possíveis, inventários que ganham visibilidade”.
Em 1998, um grupo de pesquisadores brasileiros e estrangeiros se reuniu na Universidade de São Paulo para a realização do primeiro Encontro Nacional Perspectivas do Ensino de História – ENPEH. Dando continuidade à iniciativa, a ANPUH/RN, junto ao Grupo de Trabalho Nacional de História e Educação, promoveu em 2007 a sexta edição do evento o qual deu origem à obra: “O livro didático de história: políticas educacionais, pesquisa e ensino”.2 Resultado da Conferência de Abertura e dos trabalhos produzidos para as Mesas Redondas do evento, o livro é iniciado pelo artigo da professora Margarida Maria Dias de Oliveira, uma de suas organizadoras. Oliveira aborda a atuação das políticas educacionais no ensino de história ao analisar as diretrizes ideológicas que norteiam a elaboração dos Parâmetros Curriculares Nacionais. Estas são intimamente ligadas aos princípios dos Annales e da História Cultural trazendo, muitas vezes, um ideário de mudança como sinônimo de melhora. Entretanto, a autora ressalta os possíveis perigos das “mudanças”, de modo que os Parâmetros Curriculares Nacionais por si só não garantem uma melhora no ensino e na elaboração dos livros didáticos, ocorrendo por vezes apenas a camuflagem destes para atingir a exigências de conteúdo e forma advindas, como nos mostra Dércio Gatti Júnior, de um processo avaliativo empreendido pelo PNLD – Programa Nacional do Livro Didático.
Outra organizadora do livro é Maria Inês Sucupira Stamatto, que busca demonstrar em seu trabalho quais efeitos o PNLD acarretou sobre o livro didático, especialmente na área de história. As novas teorias pedagógicas e curriculares do final do século XX optam por abordagens direcionadas para uma sociedade multicultural, que possibilitem o pensamento reflexivo e participativo do aluno. Entretanto, para que este modelo educacional tenha sucesso, é necessária a atuação consciente dos profissionais da educação. É nesse sentido que as reflexões levantadas por Itamar de Oliveira, Aldeni Santos, André Menezes e Elisângela Santos buscam investiga em Sergipe a concepção que os professores tem a respeito do Guia de Livros Didáticos. As críticas agudas ao material revelaram falta de conhecimento e de uso, chegando a confundi-lo, por vezes, com o catálogo de publicação das editoras. A denúncia a este despreparo também é ressaltada no trabalho de Isaíde Timbó, que considera este fato como uma conseqüência da formação curricular inadequada, de modo que para a autora o currículo é uma construção social e cultural que necessita ser questionado, interpretado e atualizado.
Outra coisa a ser questionada é o processo seletivo do PNLD, que assim como a escolha dos professores, não está isento de receber influências do marketing das editoras. Isso é significativo no sentido de se atentar para o jogo de interesses e negociações que está por trás da escolha de uma coleção didática em detrimento de outra. Pensando nisso, Luís Cerri e Ângela Ferreira demonstram que muitas vezes bastam alguns ajustes de forma, a utilização de novos termos e a inclusão de determinados elementos dito inovadores para que coleções tradicionais permaneçam na concorrência sob o mesmo patamar de outras que realmente trazem inovações em suas propostas.
Também avaliados nesse processo, mas não inclusos nas coleções, estão os livros regionais de história. Estas obras vêm sendo objeto de pesquisa dos interessados em compreender sua relação com a identidade local. É o caso da professora Marta Margarida Lima ao observar que apesar dos trabalhos acadêmicos estarem cada vez mais voltados às novas vertentes teóricas, ainda é notório o predomínio do caráter tradicionalista, pouco dado a trabalhar a multiplicidade dos sujeitos. Além disso, no que concerne à distribuição destas obras, Flávia Caimi nota a precariedade com que elas chegam às escolas e que, apesar de um crescimento, ainda é insuficiente a produção e os investimentos em história local. Mesmo com essas dificuldades, professores como Sônia Nikitiuk defendem o uso da história regional como eixo curricular, formador de consciência histórica e ponto de partida para estudos mais remotos no tempo e no espaço.
O livro didático configura-se, portanto, como resultado de recortes, disputas de interesses e de políticas educacionais elaboradas pelo Governo conforme o projeto de educação pensado para o país, e é ainda a principal ferramenta usada pelo professor em sala de aula. Apesar da frequência de obras com abordagens tradicionalistas, tem-se notado um grande interesse para que ocorra a atualização não só das coleções didáticas, como também das estratégias de ensino-aprendizagem, do currículo e consequentemente da própria formação dos professores.
Nesse sentido, o trabalho destes pesquisadores ao desenvolver esta obra torna-se significativo tanto para professores, na medida em que trás questionamento acerca da própria vivência em sala de aula, estimulando-os a repensar suas práticas educacionais; como também para estudos introdutórios de pesquisadores interessados na área da Educação e do Ensino de História no Brasil, por trazer reflexões acerca das diversas articulações e negociações que estão por trás da avaliação e do consumo de coleções didáticas em nosso país.
Referências
CAINELLI, Marlene Rosa; OLIVEIRA, Almir Félix Batista de; OLIVEIRA, Margarida Maria Dias de. (Org.). Ensino de História: múltiplos ensinos em múltiplos espaços. Natal, RN: EDFURN, 2008.
OLIVEIRA, Margarida Maria Dias de; STMATTO, Maria Inês Sucupira (Org.). O livro didático de história: políticas educacionais, pesquisas e ensino. Natal, RN: EDFURN, 2007.
Sitografia <http://portal.mec.gov.br/index.php?option=com_content&view=article&id=12391&Itemid= 668>. Acesso em 14 de junho de 2010 às 11h13min.
Ivanilson B. Oliveira – Graduanda em História pela Universidade Federal de Sergipe (UFS). Integrante do Grupo de Estudos do Tempo Presente (GET). E-mail: mislene_srn@hotmail.com Orientador: Prof. Dr. Dilton Cândido Santos Maynard 2 OLIVEIRA, Margarida Maria Dias de; STMATTO, Maria Inês Sucupira (Org.). O livro didático de história: políticas educacionais, pesquisas e ensino. Natal, RN: EDFURN, 2007. 208p.
OLIVEIRA, Margarida Maria Dias de; STAMATTO, Maria Inês Sucupira (Org.). O livro didático de história: políticas educacionais, pesquisas e ensino. Natal, RN: EDFURN, 2007. Resenha de: OLIVEIRA, Ivanilson. Entre Inovações e Continuidades: O Livro Didático e o PNLD. Cadernos do Tempo Presente, São Cristóvão, n. 4, jul. 2011. Consultar publicação original
A Invenção dos Direitos Humanos: uma história – HUNT (CTP)
HUNT, Lynn. A Invenção dos Direitos Humanos: uma história. Tradução Rosaura Eichenberg. São Paulo: Companhia das Letras, 2009. Resenha de: MOURA, Luyse Moraes. A Invenção dos Direitos Humanos: uma História de Lynn Hunt. Cadernos do Tempo Presente, São Cristóvão, n. 03 – 03 de abril de 2011.
Os direitos humanos constituem fundamentos essenciais para o exercício da universalidade, assim como valores que asseguram as liberdades individuais, sendo, por isso, considerados inquestionáveis. Entretanto, a nossa percepção do que são esses direitos e a quais indivíduos estão direcionados muda constantemente. Ao contrário do que muitos imaginam, os direitos humanos não podem ser plenamente definidos, na medida em que permanecem sujeitos à discussão e passíveis de transformações contínuas.
Estudos sobre essa temática despertam o interesse de diversos pesquisadores e configuram uma área em franco desenvolvimento, resultando na produção e publicação de um grande número de obras. Para reproduzir o longo processo histórico que originou as ideias e práticas desses direitos, a consagrada historiadora norte-americana Lynn Hunt, autora do livro A Invenção dos Direitos Humanos: uma história, baseou-se em três documentos fundamentais: a Declaração de Independência dos Estados Unidos (1776), a Declaração de Direitos do Homem e do Cidadão surgida na Revolução Francesa (1789) e a Declaração Universal dos Direitos Humanos publicada oficialmente pelas Nações Unidas (1948).
Ao narrar a fascinante saga dos direitos humanos, Lynn Hunt articula os conhecimentos da filosofia à crônica dos eventos políticos e à história do cotidiano e, dessa maneira, não apresenta os direitos humanos tão somente como uma doutrina formulada em documentos, mas principalmente como um conjunto de convicções sobre como são as pessoas e como elas distinguem o certo e o errado.
Diferindo de quase tudo que já foi mencionado a respeito do assunto, a autora argumenta que a evolução dos direitos humanos e o surgimento de noções básicas como a liberdade de expressão, a tolerância religiosa e a inviolabilidade dos corpos são frutos de mudanças nas práticas de vida e de novas experiências individuais, que vão desde visitas à exposições públicas de imagens à leitura de romances epistolares sobre o amor.
Na visão de Hunt, o papel exercido pelos romances epistolares nesse processo evolutivo foi de crucial importância, visto que suas narrativas apresentavam a ideia de que todos os indivíduos eram essencialmente semelhantes, em razão de suas emoções íntimas. Os romances incitavam o sentimento de empatia entre os leitores, pois à medida que se identificavam com os personagens, tornavam-se mais compreensivos em relação a terceiros, em vez de apenas centrados em si mesmos. E nesse sentido, “os direitos humanos só puderam florescer quando as pessoas aprenderam a pensar nos outros como seus iguais, como seus semelhantes em algum modo fundamental”. (p.58) A difusão da empatia contribuiu decisivamente para o estabelecimento de princípios (direitos) que regeriam uma nova ordem política e social. Entretanto, o sentimento de compreensão, por si só, não era suficiente para impulsionar tão grandes mudanças. Era preciso que houvesse, também, um novo interesse pelo corpo humano, ou seja, uma percepção da separação e do autocontrole dos corpos. Quando se atribuiu aos corpos um valor mais positivo, no sentido de se tornarem mais individualizados, a violação desses corpos despertou reações negativas. A tortura, por exemplo, foi abolida como consequência do surgimento de uma nova estrutura, “na qual os indivíduos eram donos de seus corpos, tinham direitos relativos à individualidade e à inviolabilidade desses corpos, e reconheciam em outras pessoas as mesmas paixões, sentimentos e simpatias que viam em si mesmos”. (p.112) Em sua obra, Hunt também observa que os direitos são comumente apresentados em uma declaração devido ao poder inerente a uma afirmação formal e pública de confirmar as mudanças que ocorreram em uma sociedade. Além de assinalar as transformações na atitudes e comportamentos gerais, as declarações de direitos de 1776 e 1789 se destacaram ao criar panoramas políticos inovadores, onde os governos eram justificados pela garantia dos direitos universais.
Utilizando-se de uma narrativa elegante e envolvente, a historiadora narra os eventos políticos e sociais que desembocaram no surgimento das declarações de direitos dos Estados Unidos e da França, permitindo ao leitor observar que, enquanto os norte-americanos seguiram uma tradição particularista dos direitos humanos, priorizando os direitos específicos de um povo ou tradição nacional, os franceses adotaram a versão universalista, que pretendia assegurar os direitos inalienáveis de todos os homens. A autora ressalta que mesmo em meio às diferenças, o exemplo americano influenciou significativamente na elaboração dos Direitos do Homem e do Cidadão, tendo em vista que a Declaração de Independência firmou entre a população francesa o senso de que o seu governo também poderia ser estabelecido sobre novos fundamentos, tornando assim mais fácil o emprego dos direitos humanos.
As declarações emprestavam maior urgência a determinados assuntos, como o direito das minorias religiosas ou daqueles que não tinham propriedade, e propunham novas questões sobre grupos, até então não cogitadas, como as mulheres e os escravos. À medida que essas questões eram anunciadas, tornava-se evidente que conceder direitos a alguns grupos(aos protestantes, por exemplo) era mais aceitável do que concedê-los a outros (às mulheres). Entretanto, a propagação dos direitos humanos tornou a manutenção da escravidão e da subserviência da mulher ao homem mais difíceis. Ainda que fossem considerados por muitos inadmissíveis ou indiscutíveis, os direitos civis das mulheres começaram a ser conquistados e a abolição da escravatura converteu-se em realidade.
Lynn Hunt chama a atenção do leitor para a longa lacuna na história dos direitos humanos, de sua enunciação inicial nas revoluções americana e francesa até a Declaração Universal promulgada pelas Nações Unidas em 1948. Segundo a autora, a ascensão do nacionalismo transformou a discussão dos direitos humanos e os tornou dependentes da autodeterminação nacional. Ao tornar-se cada vez mais fechado e defensivo, o nacionalismo assumiu uma postura xenófoba e racista, e a partir desse momento os debates sobre os direitos universais do homem diminuíram consideravelmente.
O mundo assistiu ao crescimento alarmante de inúmeras formas de sexismo, antissemitismo e racismo. O desrespeito e o desprezo pelos direitos humanos resultaram em atos de uma barbaridade sem igual. As atrocidades cometidas durante as duas grandes guerras, não só evidenciaram isso, mas também impeliram os indivíduos a pressionar as autoridades no intuito de restabelecer o cumprimento universal dos direitos humanos e das liberdades fundamentais a todos. A Declaração Universal dos Direitos Humanos foi aprovada como resposta à humanidade que clamava por mudanças, constituindo apenas o primeiro passo de um processo extremamente tenso e conflituoso que persiste até os dias de hoje.
Em A Invenção do Direitos Humanos, a reflexão iniciada pela autora revela-se extremamente pertinente. Ainda hoje, constatamos em muitas sociedades práticas de racismo, tortura, desvalorização da mulher, escravidão e intolerância religiosa. Os mesmos veículos de comunicação que tornaram possível que mais pessoas sintam empatia por indivíduos que vivem em lugares distantes e realidades diferentes, anunciam a todo momento o total desrespeito do homem para com ele próprio e para com seus semelhantes. Tudo isso justifica e confirma o discurso de Hunt de que os direitos humanos ainda precisam ser resgatados.
Nesse sentido, o livro possibilita ao leitor constatar que o descaso para com direitos é fruto de uma humanidade que, apesar de caracterizada pela diferença, não aprendeu a lidar com a experiência da alteridade.
A Invenção dos Direitos Humanos é um relato singular que revela o quão paradoxal é a noção dos direitos humanos. Afinal, ao mesmo tempo em que propôs resguardar os valores mais preciosos da pessoa humana, como solidariedade, igualdade e fraternidade, estimulou o crescimento de fanáticas e intolerantes ideologias da diferença. Uma obra de estilo literário e caráter científico, que propicia uma ampla reflexão sobre o futuro dos direitos humanos, e que através de uma fascinante história mostrou que essa bandeira é defendida principalmente pelos sentimentos e convicções de indivíduos, e não pela morosidade e distanciamento de estruturas políticas.
Referência
HUNT, Lynn. A Invenção dos Direitos Humanos: uma história. Tradução Rosaura Eichenberg. São Paulo: Companhia das Letras, 2009.
Luyse Moraes Moura – Bolsista PIBIC/FAPITEC. Graduanda em História/UFS. Integrante do Grupo de Estudos do Tempo Presente. Email:luyse@getempo.org. Orientador: Prof. Dr. Dilton Cândido Santos Maynard (DHI/UFS). Este texto resulta das atividades do Projeto “A cibercultura e suas apropriações pela nova extrema-direita sul-americana”, apoiado pela FAPITEC/SE através do edital 10/2009.
Futebolidade: história do futebol e modernidade na cidade de Belo Jardim – SILVA (CTP)
SILVA, Cristiano Cezar Gomes da. Futebolidade: história do futebol e modernidade na cidade de Belo Jardim. Resenha de: SANTOS, Jacqueline dos. Futebol, história e modernidade. Cadernos do Tempo Presente, São Cristóvão, n. 01 – Outubro de 2010.
Futebol, História e Modernidade
Há quem diga que o futebol é o esporte mais praticado do mundo, este esporte tem apaixonado milhões e milhões de pessoas. No Brasil foi introduzido no final do século XIX por Charles Miller (1874-1953), onde de início era praticado apenas pela elite, com restrições de negros nos times de futebol, depois se tornou o esporte das massas, abarcando todo operariado e atualmente observamos a grande expansão deste esporte. Com uma prática simples, o futebol compreende as mais variadas camadas sociais, promovendo assim uma interação, o desenvolvimento sócio-econômico, além de proporcionar alegria, prazer, momentos de fuga da realidade. É esta a temática da obra Futebolidade: história do futebol e modernidade na cidade de Belo Jardim, de Cristiano Cezar Gomes da Silva.
O autor é mestre em História pela UFPE e doutorando no programa de Pós-Graduação em Letras da UFPB. Foi pesquisador visitante no Department of Spanish and Portuguese at The Ohio State University, nos Estados Unidos. Sua obra foi elaborada a partir das reportagens em jornais de época e através de fotografias coletadas juntamente com as transcrições de entrevistas. A obra objetiva um estudo historiográfico da prática do futebol em Belo Jardim, no agreste de Pernambuco. O estudo compreende o período de 1940 a 1961. O livro está dividido em três partes. A primeira é intitulada: “Futebol, cidade e cotidiano”. Aponta como o jogo, no caso futebol, imbrica-se com o cotidiano das cidades e constrói um espaço lúdico, que proporciona, em alguns casos, uma fuga da realidade. A segunda parte; “Futebol: um signo moderno?”, fala sobre o surgimento do futebol na Inglaterra durante o século XIX e como este esporte influenciou nas mudanças ocorridas na sociedade daquele país. Partindo deste pressuposto o autor faz uma analogia com as mudanças ocorridas em Belo Jardim, a partir da instituição do futebol na década de 1940. Chega à conclusão que com a implantação do esporte na cidade houve resultados positivos. E, encerrando, “A expansão do futebol em Belo Jardim”. Neste capítulo, o autor amplia observações sobre a proliferação do futebol iniciada no capítulo anterior. Destacará a criação da Liga Desportiva de Belo Jardim, ligada à Federação Pernambucana de Futebol (FPF), que impulsiona a prática de futebol mediante a organização de campeonatos locais e por fim, a participação da cidade na I Copa do interior, em 1961. A obra é voltada para o esporte que mais atrai multidões e desperta paixões: o futebol. Segundo o autor, este jogo consegue envolver de forma única povos de diferentes culturas, hábitos e costumes. Como ele mesmo escreve o futebol promove: “a prática da socialização”, atraindo dessa forma a atenção do público, mobilizando grande parte da sociedade em busca de um fim único: a fuga da realidade, garantindo assim, segundo o autor, uma felicidade momentânea. Por mobilizar uma maior quantidade de pessoas promovendo uma “socialização”, o autor comprova ao escrever que desde o surgimento do futebol na Inglaterra, por volta do século XIX, observou-se uma enorme mudança na sociedade contemporânea. Estas mudanças que, segundo ele, são positivas são também observáveis na cidade de Belo Jardim por volta da década de 1960. Neste período, o futebol é instituído naquela cidade e a partir daí cria-se uma identidade, transformando o cotidiano das pessoas, proporcionando-lhes momentos de felicidade. É perceptível uma verdadeira adoração não só de Silva – como o brasileiro de maneira geral – pelo futebol. É impressionante como este esporte envolve e transforma a maneira de pensar das pessoas. O autor deixa entrever em sua obra que o espaço lúdico permitido pelo futebol insere o indivíduo numa coletividade, criando assim uma interação entre pessoas de diferentes níveis culturais. Diante disso, faço o seguinte questionamento: será que não há outra forma para que as pessoas se afastem por alguns instantes de sua realidade ao não ser a prática do futebol? Enquanto nós nos alienamos em busca do lúdico, não enxergamos as decisões que são tomadas sobre nossas vidas, que podem nos afetar mais profundamente.
É um exagero afirmar que a construção de um estádio é tão importante quanto uma obra de saneamento básico. Mas se não há saúde e educação, conseqüentemente não há força para que as pessoas possam interagir. Não quero dizer que numa cidade o lugar para o lúdico não seja reservado, mas tenhamos cuidado para não nos desviarmos do que é realmente primordial à população e não nos deixarmos alienar por aquilo que deve receber papel secundário em nossas vidas. O futebol, sem dúvidas, tem o poder de reunir pessoas das mais diversas camadas sociais, de hábitos e costumes diferentes. No entanto, o autor só procurou mostrar o lado positivo deste esporte, deixando de lado os gastos excessivos na promoção de campeonatos e mais, os casos de violência ocorridos dentro e fora dos estádios de futebol, que muitas vezes são tão agressivos que chegam negar o lado positivo deste esporte.
Jacqueline dos Santos – Graduanda em História / Integrante do GET /UFS Cadernos do Tempo Presente, São Cristóvão, n. 01 – Outubro de 2010.
Globalização, Democracia e Terrorismo – HOBSBAWM (CTP)
HOBSBAWM, Eric. Globalização, Democracia e Terrorismo. São Paulo: Companhia das Letras, 2007. Tradução de José Viégas. Resenha de: SILVA, Karla Karine de. Sobre a Globalização, a Democracia e o Terrorismo. Cadernos do Tempo Presente, São Cristóvão, n. 01 – Outubro de 2010.
Em seu mais recente livro, Globalização, Democracia e Terrorismo (Tradução José Viegas. São Paulo: Companhia das Letras Ed. 2007, R$ 36,00), o historiador egípcio Eric Hobsbawm reúne uma coletânea de palestras e conferências pautadas em alguns dos temas mais atuais da contemporaneidade. Dividida em dez capítulos, sua obra analisa fatos e situações focadas principalmente nos séculos XX e XXI. Hobsbawm aborda diferentes e relevantes problemas, como os impérios hegemônicos estabelecidos por Estados Unidos e Grã-Bretanha e suas diferenças; o fim da Guerra Fria e suas conseqüências; a democracia em suas diversas particularidades; o terrorismo, esta novidade apenas aparente na geopolítica, a crescente violência e seus deslocamentos de eixos; a expansão do Império norte-americano. Todos os escritos são permeados por discussões sobre guerra, paz, segurança, nacionalismo, globalização, economia e ordem pública. Há também considerações significativas sobre o futebol, relacionado com criatividade a alguns dos temas mencionados.
Eric Hobsbawm nasceu em Alexandria, em 1917, e educou-se na Áustria, na Alemanha e na Inglaterra. Historiador contemporâneo, recebeu o título de doutor honoris causa em universidades de diversos países. Lecionou até se aposentar no Birkbeck College, da Universidade de Londres, e posteriormente na New School for Social Research, de Nova York. Publicou no Brasil obras como Era dos Extremos (1995), Ecos da Marselhesa (1996), Sobre História (1998), O Novo Século (2000) e Tempos Interessantes (2002).
Embora não deixe de mencionar exemplos sobre guerra, globalização e terrorismo em um punhado variado de países nos cinco continentes, as conferências selecionadas para o livro concentram-se nas políticas norte-americana e britânica. Hobsbawm deixa claro sua crítica e contrariedade ao expansionismo do governo de George W. Bush (2000-2008). O historiador põe em perspectiva comparada os fenômenos que fizeram desses países – EUA e Inglaterra – grandes impérios, ao mesmo tempo em que apresenta suas diferenças. Tratando-se da Grã-Bretanha, centro da economia mundial no século XIX, Hobsbawm explica que suas pretensões expansionistas eram, e são, sobretudo comerciais. Dos anos 1800 até a primeira metade do século XX, o império britânico era o maior exportador de produtos manufaturados, ainda detentor de uma força naval incomparável e, embora tenha encontrado um forte concorrente tecno-industrial (EUA) no século seguinte, reestruturou-se no mercado investindo ainda mais em instituições financeiras, bancos e exportação de capitais.
Os EUA também têm um vasto mercado-mundo tecno-industrial e sua frota aérea não enxerga concorrentes. Entretanto, sua política externa expansionista pautada em parte na exportação do chamado “modelo americano de ser”, e mais incisivamente pela ocupação militar de países mais fracos, valendo-se da ideologia que Hobsbawm classifica de “uma missão imperial (…) a implicação messiânica da convicção fundamental de que sua sociedade livre é superior a todas as demais e está destinada a tornar-se o modelo global”, difere em muito dos ideais britânicos de superioridade. O reconhecimento de seus limites e da não interferência nas políticas internas dos países “ocupados” economicamente pela Grã-Bretanha, impedem-na de cair na megalomania messiânica americana.
A ênfase que Hobsbawm confere às discussões sobre as hegemonias norte-americana e britânica se justifica pelo fato de que, diante das crises mundiais, – principalmente as que emergiram com o fim da “Guerra Fria” – apareceram pequenos Estados independentes e internamente conflituosos. Isto facilitou o acesso de grupos terroristas a armamentos mais sofisticados, aumentou da violência e inflacionou as guerras civis (as guerras larvais em “países sem importância” para os falcões do exército americano são o melhor exemplo disto). O mundo Pós-Guerra Fria experimentou histerias diante de catástrofes (aquecimento global), pandemias (AIDS, gripe aviária) e viu, pela TV e Internet, a ascensão da propaganda do terrorismo. Por isto, o historiador afirma que é urgente a necessidade que os povos têm de um sistema governamental que interfira positivamente como agente promotor da ordem global. Seriam os EUA, potência mundial militar e tecnológica, tal agente? Esta questão permeia toda a obra do autor, especialmente os capítulos seis a oito.
O conceito atual de democracia-liberal, muito distante dos seus ideais originais, tem sido desculpa para as “intenções” messiânicas americanas. O autor ressalta que esta proposta estadunidense não resolve os problemas, tampouco está ali o modelo de governo a ser seguido pelas nações do mundo. As diferenças culturais, as necessidades de cada povo e as variadas concepções de mundo dentro das culturas, elegem qual modelo de governo adéqua-se melhor aos problemas das diversas sociedades.Neste sentido, a ânsia de um governo adequado às necessidades de um grupo ou a resposta a algum tipo de imperialismo, tem alimentado a crescente onda de terrorismo. A análise de Hobsbawm sobre os agentes do terror e os elementos que lhe dão embasamento é provocativa. Ele considera que este não se concentra em grupos ativistas específicos como, por exemplo, ETA, IRA, Al-Qaeda, Hamas, Al Fatah, Jihad Islâmica da Palestina, Hezbollah, Tigres Tâmeis, Partido dos Trabalhadores do Curdistão etc., mas acentuadamente está presente em Estados (autoritários ou liberais), nas suas táticas de coerção e “controle”.
Em suma, Globalização, Democracia e Terrorismo traça vividamente um painel do cenário político internacional analisando a situação mundial e os problemas mais agudos com que nos confrontamos atualmente. Mais do que uma mera apresentação da situação mundial, o autor deixa claro sua oposição às intervenções armadas como desculpa para resolver questões internacionais. Condena fortemente as pretensões imperialistas e hegemônicas, aceleradoras da violência e, sobretudo, demonstra sua preocupação com o colapso no qual o mundo se encontra atualmente. Em época de guerras, falências e forte crise econômica, uma obra como esta pode nos auxiliar a observar de maneira crítica as ondas rápidas dos acontecimentos no tempo presente.
Karla Karine de Jesus Silva – Graduanda em História pela Universidade Federal de Sergipe. Bolsista PIBIC/CNPq. Integrante do Grupo de Estudos do Tempo Presente – GET.
Breve história do século XX – BLAINEY (CTP)
BLAINEY, Geoffrey. Breve história do século XX. [?]: Fundamento Educacional, 2008. Resenha de: DAMASCENO, Natália Abreu. Uma Breve História do Século XX: Entre os Perigos e as Benesses da Síntese. Cadernos do Tempo Presente, São Cristóvão, n. 01 – Outubro de 2010.
Após o sucesso do bestseller Uma Breve História do Mundo publicado em 2000, o australiano Geoffrey Blainey, professor em Melbourne e em Harvard, apostou novamente na síntese de períodos de longa duração. Em 2005, lançou o livro Uma Breve História do Século XX, cuja primeira edição brasileira só foi lançada pela editora Fundamento Educacional em 2008. Esta obra narra, mais que os grandes acontecimentos do século, o extenso processo de transformação vivenciado pela humanidade ao longo dos novecentos.
Evidentemente, ao tentar abarcar todo o século XX, incluindo seus diversos conflitos e dilemas políticos, econômicos e sociais, a narrativa de Blainey revela um previsível grau de superficialidade. Afinal, trata-se de um século descrito em 309 páginas. Porém, ao optar por abandonar muitos dos jargões e reflexões densas, típicas das obras historiográficas, o autor produz uma narrativa leve e acessível aos aficionados de diversas áreas do conhecimento.
Deste modo, a isenção de uma análise robusta dos acontecimentos, do número excessivo de datas, nomes e dados científicos afasta esta obra do mundo acadêmico e coloca-a nas mãos do grande público. Vale lembrar que as freqüentes inferências do autor sobre o cotidiano, seu recurso a conceitos como “mentalidade” e “espírito de época”- explorando curiosidades e por vezes adentrando na história da vida privada – despertam o interesse de um público mais heterogêneo e distanciam a obra das frias narrativas dos livros didáticos.
Uma Breve História do Século XX foca-se nos três grandes conflitos mundiais ocorridos neste século: a Primeira e a Segunda Guerra Mundial, e a Guerra Fria. A Primeira, descrita como as demais com vivacidade jornalística, é entendida por Blainey como uma ruptura no otimismo que vinha se estabelecendo nas civilizações devido aos avanços conquistados no fim do século anterior. O século XX era um século promissor: a Europa era o lar de vastos impérios e de poderosas nações consolidadas, os Estados Unidos eram a terra da inventividade e do rápido crescimento econômico. A democracia e a liberdade começavam a invadir os territórios ainda que apenas em uma parte do mundo. Tudo levava a crer que, nas regiões não atingidas pela prosperidade, os ventos da mudança chegariam mais cedo ou mais tarde.
Geoffrey Blainey chama de “segunda era inventiva” o período que vai de 1850 até a Primeira Guerra Mundial. Nesse período, segundo ele, as diversas inovações tecnológicas como o telefone, o gramofone, a câmera e o avião, tornavam o mundo menor, mas “O fato de o mundo estar se tornando menor não significava que necessariamente ficava mais amigável” (BLAINEY, p. 41, 2008). Os crescentes gastos com armas, navios de guerra e com o exército foram o prenúncio de que as batalhas de pequena escala freqüentes no início do século, período que até então era considerado pacífico entre as grandes potências, culminariam num estrondoso conflito mundial.
A Europa, até então leito das grandes economias e acontecimentos, é retratada como palco de diversos conflitos étnicos, econômicos, políticos, religiosos e ideológicos há muito iniciados, mas que se acentuaram neste século. Assim, eventos como a Revolução Russa, a crise de 1929, as tensões do tratado de Versalhes, a criação da Liga das Nações, a ascensão de regimes totalitários autoritários e fascistas nos anos 20 e 30 e o nascimento de uma Turquia independente do islamismo são abordados sob um ponto de vista que enxerga o século XX como um período de intensificação das diferenças através da supressão do espaço.
Já a Segunda Guerra Mundial, que contou com armas e estratégias mais avançadas, aparece nesta obra de Blainey como um atestado temporário de colapso das democracias, agravado pela tomada da França pelos nazistas em 1941. O massacre de judeus, ciganos, homossexuais, a invenção de armas letais sofisticadas, a voraz expansão do império japonês na Ásia Oriental e o mistério da vida na União Soviética compuseram o cenário de terror e incertezas que assolou o mundo durante este conflito. O fim da guerra trouxe mais dúvidas que explicações. As nações européias deixam de ser as grandes potências e o mundo polarizou entre os Estados Unidos e a União Soviética. O mapa europeu mudou novamente e grandes investimentos científicos começara a ser feitos. Iniciara a chamada Guerra Fria.
Ao tratar da segunda metade do século XX, que o autor entende como o momento de triunfo e consolidação da verdadeira democracia, Blainey não desenha somente um panorama das batalhas, dos acordos e dos impasses políticos e militares que ocorreram durante a Guerra Fria. Evidencia também, nesse período, a emergência de movimentos ecológicos, pacifistas, musicais e feministas enquanto partes de um processo de mudanças que configurariam mais tarde os valores, o comportamento e a moral da sociedade do século XXI. Delineia este processo inclusive, englobando diversos âmbitos como o dos esportes, das línguas globais e da urbanização das cidades.
Deste modo, Uma Breve História do Século XX é repleto de escolhas feitas pelo autor (umas louváveis, outras nem tanto). Afinal de contas, ao mesmo tempo em que fornece um painel dinâmico dos principais acontecimentos históricos ocorridos no referido século, falha na problematização de alguns e até no esquecimento de outros, como por exemplo, da política do Apartheid (1948-1990), relevante problema na história dos novecentos que não é sequer mencionado na obra. Por fim, Geoffrey Blainey possui o mérito da boa síntese, em uma obra relevante que compila informações históricas de diversas naturezas. Porém, a crítica que por vezes é ausente no livro, não deve faltar ao leitor.
Referências
DAMASCENO, Natália Abreu. Uma Breve História do Século XX: Entre os perigos e as benesses da síntese Revista Eletrônica Boletim do TEMPO, Ano 5, Nº08, Rio, 2010.
Natália Abreu Damasceno – Graduanda em História pela Universidade Federal de Sergipe. Bolsista do Programa de Educação Tutorial (PET)/UFS. Grupo de Estudos do Tempo Presente/CNPq/UFS. natalia.abreu.d@gmail.comnatalia.abreu.d@gmail.com.
O crime do restaurante chinês: Carnaval, futebol e justiça na São Paulo dos anos 30 – FAUSTO (CTP)
FAUSTO. Boris. O crime do restaurante chinês: Carnaval, futebol e justiça na São Paulo dos anos 30. São Paulo: Companhia das Letras, 2009. Resenha de: ROSALBA, Patrícia Salvador Moura. O Crime do Restaurante Chinês: carnaval, futebol e justiça na São Paulo dos anos 30. Cadernos do Tempo Presente, São Cristóvão, n. 01 – Outubro de 2010.
São Paulo, década de 1930, carnaval, festas, copa do mundo, crimes e justiça, são alguns dos temas retratados por Boris Fausto no livro O Crime do Restaurante Chinês. O autor faz um estudo detalhado sobre um episódio criminoso que acometeu o casal de chineses Ho-Fung e Maria Akiau e mais duas vítimas, dois homens que trabalhavam no estabelecimento comercial do casal. Para a produção do livro, Fausto recorre aos arquivos da história e da memória pessoal. Esmiúça os jornais publicados durante o marco temporal mencionado e o prodigioso processo criminal que detalha um dos fatos policias que mais chamou atenção da opinião pública paulistana na década de 1930. Resgata em sua memória a beleza e a mestria do carnaval de 1938, vivenciada sob a companhia da família por meio da participação do corso da Avenida São João, sempre ao cair da noite no domingo e terça-feira de carnaval. Relembra como o tal crime marcou a sua infância através das imagens estampadas nos jornais e que aterrorizaram suas noites, dos comentários que escutava nas ruas e no ambiente familiar sobre o episódio. Boris vivia, sentia, sofria com os fatos que conhecia sobre o crime na época de sua infância. As lembranças, a curiosidade do excelente pesquisador e sua trajetória profissional no campo acadêmico, contribuíram para que Boris Fausto construísse um enredo envolvente e misterioso com revelações que surpreendem o leitor a cada página e capítulos. Trouxe a baila discussões importantes que marcaram e ainda estão presentes na cultura brasileira como a importância da imprensa na formação da opinião pública, os dispositivos técnicos utilizados pelo sistema de justiça criminal para solucionar crimes, teorias raciais, a relação entre migrantes, imigrantes e trabalhadores marginalizados nas grandes cidades e, sobretudo, a grande euforia provocada por dois momentos importante de exacerbação da cultura brasileira, o carnaval e a Copa do Mundo de Futebol, realizada na França em 1938, aliás, rituais cristalizados nacionalmente que, em suas várias versões, continuam a movimentar os espaços culturais brasileiros provocando momentos de euforia coletiva.
A perspectiva teórico-metodológica utilizada pelo autor está ancorada nos estudos denominados de micro-história. Com base em autores como Carlo Ginzburg, Giovanni Levi e Le Roy Ladurie, a micro- história se constituiu como um gênero muito estudado que influenciou e influencia a construção de diversos estudos históricos. Portanto, Fausto ainda nos presenteia com detalhes metodológicos desta forma de fazer história, na medida em que evidencia em sua escrita as principais características dessa metodologia. Reduziu a sua escala de observação, com a narração do crime do restaurante chinês, no qual buscou significados importantes que falam da cultura paulistana e que passariam despercebidos na leitura ampla de grandes episódios. Concentrou a observação em pessoas comuns como Arias de Oliveira, Ho-Fung, Maria Akiau, José Kulikevicius e Severino Lindolfo Rocha, ambos marcados socialmente através dos estereótipos de algoz e vítimas. Extraiu dos discursos presentes nos jornais e nos processos, dos fatos aparentemente corriqueiros uma dimensão social muito importante para entender e explicar a cidade de São Paulo dos anos 30 e suas peculiaridades, utilizando-se do estilo narrativo para contar a história. O livro está dividido em dezesseis capítulos, acrescentados de uma breve explicação e de uma introdução, nos quais a autor narra o acontecimento policial de 1938 em detalhes, com imagens ricas, fotos que apresentam São Paulo nos anos de 1930, manchetes dos jornais relatando o crime, além das fotografias das pessoas envolvidas no processo criminal, desde as vítimas, acusado e autoridades do Sistema criminal e médico. São fotos surpreendentes acompanhadas de explicações que envolvem o/a leitor/a na teia dos acontecimentos e os/as deixa com vontade de não parar de ler. Uma trama que envolve o debate entre saber, poder e ciência, esmiuçado em laudos periciais, testes psicológicos, teorias científicas, interrogatórios, depoimentos, confissões, relatórios, denúncia e sentenças, e coloca na cena principal o acusado Arias de Oliveira, negro, pobre, analfabeto e interiorano, cujo corpo e mente são analisados, estudados, destrinchados pelo Estado, numa ação que evidencia as interfaces da biopolítica. Para aguçar a curiosidade de quem ainda não teve o privilégio de tal leitura, recorro ao estilo descritivo e informo que em uma manhã da quarta-feira de cinzas de 1938, foram encontrados quatro corpos em um restaurante chinês, situado à Rua Wenceslau Braz nº 13. Os corpos espalhados no chão dividiam espaço entre mesas e cadeiras, e foram identificados como sendo de Ho-Fung, chinês, imigrante e proprietário do restaurante e de sua mulher Maria Akiau. Além do casal, também compuseram a cena do crime mais dois corpos de homens que foram identificados como o lituano José Kulikevicius e o brasileiro Severino Rocha, ambos trabalhavam no restaurante havia pouco tempo antes do crime. Os assassinatos contra os dois empregados do restaurante foram cometidos com diversos golpes de um cilindro de madeira, que era usado como pilão na cozinha do estabelecimento comercial. O dono do restaurante, além de ser espancado e ter várias fraturas na cabeça, também foi asfixiado, aparentemente, numa tentativa de não deixar dúvidas sobre sua morte. Maria Akiau, que foi assassinada por último, lutou com o criminoso, como demonstrou o laudo, através da constatação de marcas de unha em partes de seu corpo, e foi esganada com um laço de tecido apertado em seu pescoço. A partir da cena encontrada, a apuração dos assassinatos se desenrola e várias questões brotam, sem respostas imediatas. A principal delas se dirigia ao responsável pelo crime, ou seja, quem teria sido o assassino monstruoso? É nessa teia de acontecimentos que se chega ao principal suspeito, Arias de Oliveira. A história se desenvolve, de maneira rica em resgate de fatos históricos, e por meio de uma verdadeira aula de metodologia e análise de fontes documentais. Além do mais, coloca o/a leitor/a em contato com a memória pessoal de Boris Fausto em plena década de seu nascimento, revelações sobre sua família, seus medos, o marcante carnaval de 1938 e relatos indiciosos e inesperados sobre esse fato que lhe marcou e que ficou registrado, segundo o próprio Fausto “nas ilusões da memória” p.217 como “o mais aterrorizante elemento da cena do crime” p. 217, mas que não aparece registrado em nenhuma fonte analisada pelo autor. O livro em questão trata da história de São Paulo, e porque não dizer da História do Brasil, ligando acontecimentos culturais importantes a um crime que tomou as páginas dos jornais paulistanos em uma década marcada por importantes mudanças em âmbito nacional. Destaco que, uma das principais contribuições do autor é reflexão sobre as formas de se fazer história, através de uma discussão pertinente com a memória. Recomendo ao leitor a se debruçar sobre as páginas do Crime do Restaurante Chinês, certamente será uma prazerosa leitura, repleta de enigmas e descobertas.
Nota
Patrícia Rosalba Salvador Moura Costa – Aluna do Programa de Doutorado Interdisciplinar em Ciências Humanas da Universidade Federal de Santa Catarina-UFSC. Pesquisadora do Grupo de Estudos do Tempo Presente -GET e do Núcleo de Identidades de Gênero e Subjetividades-NIGS da UFSC.
Tempo Presente | UFS | 2010
O Grupo de Estudos do Tempo Presente – GET, ligado ao Departamento de História da Universidade Federal de Sergipe, responsável pela revista eletrônica semestral dos Cadernos do Tempo Presente (São Cristóvão, 2010-), informa a todos os interessados em apresentar artigos e resenhas para publicação que continua recebendo artigos e resenhas em fluxo contínuo e de acesso aberto.
Seguindo a própria composição do GET, serão bem-vindas produções de historiadores, geógrafos, cientistas sociais, filósofos, jornalistas, economistas, psicólogos, estudiosos das relações internacionais, dos meios de comunicação e demais áreas das ciências humanas.
Periodicidade semestral.
Acesso livre
ISSN 2179-2143
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