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Filosofia da Biologia – ABRANTES (RFA)
ABRANTES, Paulo (Org.). Filosofia da Biologia. Porto Alegre: Artmed, 2011. Resenha de: BRZOZOWSKI, Jerzy André; MÉLO, Máida Ariane de. Revista de Filosofia Aurora, Curitiba, v.25, n.36, p.361-373, jan./jun, 2013.
O livro Filosofia da Biologia, organizado por Paulo Abrantes, tem um duplo objetivo: ao mesmo tempo em que pretende realizar uma introdução aos principais problemas tratados pela filosofia da biologia, busca pôr em evidência a importância que esse campo de pesquisa vem tomando no cenário latino-americano. Para tanto, cada capítulo do livro trata de um tema da filosofia da biologia e é assinado por um ou mais pesquisadores vinculados ao chamado Grupo Bogotá de Pensamento Evolucionista1. A filosofia da biologia é uma área sui generis da pesquisa filosófica, para a qual contribuem igualmente filósofos e biólogos; o perfil dos colaboradores do livro atesta esse fato.
Assim, o livro constitui um material de referência e apoio a estudantes de graduação e pós-graduação que estejam ingressando na pesquisa em filosofia da biologia ou simplesmente que tenham interesse pela área. Na maior parte dos capítulos, a leitura pode dispensar um conhecimento prévio dos assuntos abordados, e cada um dos capítulos pode ser lido independentemente dos demais. Apesar de, ao nosso ver, o livro não constituir um livro-texto nos moldes tradicionais, a obra é de inegável importância, pois contribui para suprir a grande carência de material em língua portuguesa na área.
Na introdução, Abrantes traça inicialmente um panorama sobre o lugar da filosofia da biologia no contexto tanto da filosofia da ciência como da filosofia em geral. Na sequência, apresenta os capítulos do livro, fazendo referência às perguntas da filosofia da biologia a que cada capítulo pretende responder. Abrantes também evidencia a lógica por trás da ordem dos capítulos, a nosso ver, muito bem pensada. De certo modo, a dinâmica do livro parte de questões que se situam na interface da filosofia da biologia com a filosofia da ciência em geral, e migra gradativamente para questões que podem ser exportadas da biologia para outros campos, como a ética e as ciências sociais. Essa introdução é bastante esclarecedora, e de leitura altamente recomendável mesmo para o leitor que deseje ter uma resposta rápida à questão “o que é a filosofia da biologia?”.
Conforme mencionado, o livro inicia-se com questões que estiveram vinculadas ao estabelecimento da biologia como uma ciência autônoma aos olhos da filosofia da ciência. Assim, no segundo capítulo, “Reducionismo em biologia: uma tomografia da relação biologia-sociedade”, Sergio Martínez aborda o tema do reducionismo em suas três dimensões: metafísica, epistemológica e metodológica. Na qualidade de tese metafísica, o reducionismo diz respeito à constituição do mundo; como tese epistemológica, é sobre a natureza das explicações científicas; do ponto de vista metodológico, o reducionismo pode ser entendido como um programa de pesquisa.
É na relação entre a dimensão metafísica e epistemológica que se coloca a questão da autonomia da biologia: se as teorias biológicas concebem o mundo como constituído apenas de objetos e eventos físicos, de modo que provavelmente não há leis ou forças fundamentalmente biológicas, não seria a biologia redutível à física? Em outras palavras, se os biólogos são reducionistas metafísicos, por que não o seriam nos níveis epistemológico e metodológico? Martínez analisa esse problema a partir de sua colocação histórica, no seio do positivismo lógico (Círculo de Viena), onde estava associado à tese da unidade da ciência. Martínez responde que o que confere unidade à ciência não é a possibilidade de reduzir uma teoria à outra, mas sim “a integração de processos complexos que tendem a apoiar-se mutuamente na geração de explicações e predições exitosas” (p. 43).
Em uma segunda parte do capítulo, Martínez se dedica a examinar como se dão as práticas efetivamente reducionistas no interior da biologia. Assim, analisa o reducionismo na medicina e na biologia evolutiva. Em conclusão, Martínez afirma que “[a] maneira pela qual se está tentando superar o reducionismo é, justamente, fazendo ver que não há razão para rejeitá-lo” (p. 51). Mas isso não quer dizer que devamos voltar à ideia positivista de reduzir a biologia à física; pelo contrário, reconhecer as práticas reducionistas bem-sucedidas ao interior da própria biologia é uma forma de reconhecer sua autonomia.
No terceiro capítulo, intitulado “Leis e teorias em biologia”, Pablo Lorenzano aborda a clássica questão das leis em biologia e a vincula à questão sobre como as teorias científicas têm sido formalizadas pelos lógicos e filósofos da ciência. A questão das leis tradicionalmente é colocada nos seguintes termos: há, na biologia, leis como as da física? Essa questão pressupõe, é claro, que as leis da física constituam paradigmas de leis científicas. Lorenzano começa apresentando a concepção chamada “clássica” das teorias científicas, vinculada a autores do já mencionado Círculo de Viena (Carnap, Hahn, Neurath, Schlick). Nessa concepção clássica, as leis científicas são formalizadas como os axiomas da teoria e, então, são estipuladas regras semânticas para a interpretação desses axiomas em um vocabulário observacional.
Na sequência, Lorenzano apresenta o conceito de lei que é geralmente aceito juntamente com essa concepção clássica de teoria científica. Tal “conceito clássico de lei” caracteriza as leis como enunciados universais, de alcance ilimitado, que contêm apenas termos gerais e nenhum termo particular. Diante dessa concepção, Smart argumentou que “leis” biológicas como as de Mendel não são genuínas, já que violam o requisito da universalidade, ao se referirem a mecanismos de hereditariedade que podem ser exclusivos a alguns animais e plantas da Terra. Em contrapartida, autores como Brandon, Sober e Elgin defenderam que a biologia tem leis, mas que elas não são exatamente do tipo descrito pela concepção clássica, mas sim generalizações não empíricas que ainda assim são explicativas.
No restante do capítulo, Lorenzano apresenta uma segunda maneira de formalizar as teorias científicas, adotada mais recentemente na filosofia da ciência. Trata-se da abordagem semântica, adotada pelo próprio Lorenzano, cujo principal slogan é “uma teoria é uma família de modelos”. O termo “modelo”, aqui, se refere a uma representação de um “pedaço da realidade”. A abordagem semântica propõe quatro critérios que permitem diagnosticar o que seria uma “lei fundamental” de uma teoria. Não vamos entrar em detalhes sobre esses critérios; basta dizer que, na seção final do capítulo, Lorenzano aplica esses quatro critérios à conhecida lei de Hardy-Weinberg, um dos princípios fundamentais da genética de populações, e conclui que ela não é uma “lei fundamental” no sentido preconizado pela abordagem semântica. De um modo geral, o capítulo de Lorenzano é bastante elucidativo, e é recomendado, sobretudo, para os leitores já familiarizados com os métodos de formalização de teorias científicas.
O quarto capítulo, “Função e explicações funcionais em biologia”, de autoria de Karla Chediak, trata do conceito de função e as diferentes concepções que filósofos da biologia possuem sobre o uso do termo em explicações biológicas. O significado do termo “função” é facilmente entendido quando associado à ideia de finalidade, ou seja, de forma teleológica. Dado que o raciocínio teleológico é em geral considerado espúrio na ciência, duas diferentes concepções de função foram propostas de modo a dissolver os aspectos teleológicos associados ao termo. A primeira delas, a concepção etiológica, sustenta tanto a possibilidade quanto a necessidade da utilização da teleologia nos enunciados de função em biologia, sem, no entanto, recorrer a um agente intencional. A teleologia nessa abordagem é, de certo modo, naturalizada; para seus defensores, o fato de ser resultado de um processo de seleção natural é o único critério que permite distinguir o que é funcional do que não é. Na outra concepção de função, a concepção analítica, há inicialmente necessidade de se delimitar um sistema no qual a função é desempenhada. A partir de então, a função exercida por um elemento em um sistema é analisada em termos do papel causal que esse elemento tem nesse sistema.
Ao discorrer sobre as diferentes abordagens do uso e conceito de função nas explicações em biologia, citando trabalhos como os de Larry Wright, Ruth Millikan, Karen Neander, Robert Cummins, dentre outros, a autora é concisa e objetiva, ressaltando as contribuições, particularidades e críticas de cada concepção, de modo a concluir que ambas — embora distintas — são relevantes e complementares.
Os capítulos quinto (de Favio González) e sexto (de González e Natalia Pabón-Mora) formam, de certo modo, uma unidade sobre o problema das espécies e da classificação biológica. O chamado problema das espécies, assunto do quinto capítulo, se situa na interface entre a filosofia da biologia e a prática da sistemática biológica, e pode ser expresso pela seguinte questão: qual o conceito adequado de espécie biológica? Nos últimos anos, tem-se observado uma espantosa proliferação de candidatos a “o” conceito de espécie: González enumera nada menos que treze desses conceitos.
No entanto, apesar de a definição do conceito de espécie ser o centro de gravidade do problema das espécies, há outros problemas relacionados, que são devidamente apresentados por González. Em primeiro lugar, está a questão do estatuto ontológico das espécies: seriam elas classes das quais os organismos são membros, ou entidades históricas individuais, das quais os organismos são partes? A resposta histórica a essa pergunta é que, pelo menos desde Darwin, ou pelo menos desde a publicação da obra Sistemática Filogenética, em 1966, por Willi Hennig, as espécies são consideradas entidades históricas individuais. Entretanto, González poderia ter explicitado melhor de que modo as concepções pré-darwinianas adotam a concepção de espécies como classes2
Outra questão que orbita o problema das espécies diz respeito à sua realidade: as espécies são reais ou abstrações da mente humana? González apresenta brevemente uma discussão acerca dessa questão e encaminha algumas conclusões. Para González, a complexidade e multidimensionalidade dos problemas biológicos tende a tornar o problema das espécies um problema sem solução (p. 112). Ainda assim, González parece vislumbrar certa possibilidade de unificação a partir dos conceitos filogenéticos de espécie.
No capítulo sexto, “A classificação biológica: de espécies a genes”, González retorna, desta vez com a coautora Natalia Pabón-Mora, para promover uma discussão de aspectos históricos e teóricos da classificação biológica. Os autores apresentam inicialmente uma história da classificação biológica, mostrando como as ideias do essencialismo e da classificação linear foram sendo abandonadas. O essencialismo seria a ideia de que os seres teriam de ser classificados com base em arquétipos, ou “tipos ideais”, que representariam as propriedades essenciais de um grupo de organismos. Por sua vez, a ideia da classificação linear refletiria a noção de que os seres vivos poderiam ser dispostos em uma única escala de aumento de complexidade, que iria do organismo mais simples aos seres humanos.
A segunda parte do capítulo é dedicada à discussão de problemas teóricos contemporâneos relativos à classificação de genes. Há, segundo os autores, inúmeros problemas nesse domínio, sobretudo relativos à falta de critérios claros para a nomenclatura gênica. Segundo os autores, a falta desses critérios coloca os biólogos em uma situação semelhante à da classificação das espécies no período pré-lineano. A abordagem realizada por González e Pabón-Mora sobre o problema da classificação dos genes é interessante e inovadora, estando geralmente ausente dos livros-texto de filosofia da biologia. Entretanto, a discussão está permeada de termos técnicos da genética que podem ser de difícil compreensão para o leitor que não tiver conhecimento prévio deles.
O capítulo 7, “A contingência dos padrões de organização biológica: superando a dicotomia entre pensamento tipológico e populacional”, de Maximiliano Bohórquez e Eugenio Andrade, é mais uma contribuição original à filosofia da biologia do que um texto introdutório sobre o assunto. Contudo, isso não representa um problema, já que os autores apresentam, de modo bastante satisfatório, o pano de fundo da discussão, de modo que mesmo o leitor que não o conheça é capaz de captar a contribuição proposta pelos autores.
De certo modo, a dicotomia entre pensamento tipológico e populacional tem relação com os temas dos dois capítulos anteriores. O pensamento tipológico, de acordo com o biólogo, filósofo e historiador da biologia Ernst Mayr é uma forma pré-darwiniana de pensar o mundo biológico como estando constituído por “essências” ou “tipos” imutáveis de organismos. Nessa visão, que teria surgido com Platão e perdurado até Darwin, cada espécie corresponde a um tipo ou classe imutável de organização (funcional e/ou morfológica), e as variações ao interior das populações são entendidas como desvios desse tipo.
A grande novidade trazida pelo pensamento darwiniano, de acordo com Mayr, é a aceitação da variedade entre os indivíduos de uma espécie como uma característica fundamental das populações biológicas. De acordo com Mayr, é apenas sob essa perspectiva — fundamentalmente estatística, contingente, histórica — que é possível conceber a evolução. Porém, a proposta de Bohórquez e Andrade é a de reconciliar a perspectiva tipológica com a populacional. De acordo com os autores, há certas regularidades na biologia (por exemplo, relativas ao desenvolvimento dos animais) que são mais bem compreendidas como tipos de fenômenos, com a ressalva de que se trata de tipos históricos e contingentes. Entendê-los dessa maneira, longe de trair os propósitos darwinianos, ajudaria a entender a “origem, desenvolvimento e evolução da forma orgânica” (p. 157).
O capítulo 8, escrito por Claudia Sepúlveda, Diogo Meyer e Charbel El-Hani e intitulado “Adaptacionismo”, aborda as explicações evolutivas de caráter adaptacionista e as contrasta com as não adaptacionistas. O adaptacionismo corresponde, grosso modo, à visão de que grande parte das estruturas funcionais dos seres vivos surgiu por processos de seleção natural. Antes de apresentar as críticas a esse modelo explicativo, Sepúlveda e colaboradores ressaltam, exemplificando com diversos estudos empíricos, que a seleção natural é um mecanismo corroborado. Essa ressalva é importante para evitar uma possível interpretação errônea de que as críticas dos próprios biólogos ao adaptacionismo teriam por objetivo mostrar que a seleção natural não é um mecanismo real de mudança evolutiva.
Longe disso, a mais famosa dessas críticas, publicada por Stephen Jay Gould e Richard Lewontin, em um artigo de 1979, denuncia o modo como as narrativas adaptacionistas para explicar a origem de certas características eram aceitas apenas em virtude de sua coerência com a seleção natural, sem nenhuma comprovação empírica. Muitas das estruturas supostamente adaptativas podem surgir, na verdade, como subprodutos estruturais de outras mudanças que são, elas sim, adaptativas.
Outro caso é quando uma estrutura surge inicialmente em resposta a determinada pressão seletiva, e é posteriormente “aproveitada” pela seleção natural para responder a outra pressão seletiva. É esse o tipo de raciocínio que está por trás do conceito de exaptação, proposto por Gould e Vrba em 1982. Nesse sentido, os autores citam o exemplo das penas das aves, que surgiram inicialmente em dinossauros plumosos como estruturas termorregulatórias. Posteriormente, com a evolução de outras estruturas (esqueleto, musculatura), as penas passaram a ser selecionadas também como estruturas para o voo.
Em seguida, Sepúlveda, Meyer e El-Hani apresentam a teoria neutra da evolução molecular, proposta em 1968 por Mootoo Kimura, como um exemplo de teoria que propõe o mecanismo de deriva genética, e não a seleção natural, como o principal motor da evolução. Não se trata de diminuir a importância da seleção natural como mecanismo explicativo, mas apenas delimitá-lo, admitindo-se a importância de outros mecanismos no processo evolutivo. Assim, os autores do capítulo defendem uma forma de pluralismo explicativo: as mudanças evolutivas não podem ser todas explicadas por uma única força ou mecanismo. Cabe ressaltar que esse capítulo é um dos mais didáticos do livro; seus autores utilizam abundantes exemplos para elucidar os temas abordados. Além de facilitar a compreensão, tais exemplos evidenciam a necessidade de se adotar uma postura pluralista no que concerne às explicações evolutivas, dada a complexidade do assunto.
Ainda no que diz respeito à abrangência da seleção natural, no capítulo 9, a autora Estela Santilli enfoca o problema dos níveis e unidades de seleção. Quais são as unidades efetivamente selecionadas em um processo de seleção natural — genes, organismos, grupos, populações? George Williams e Richard Dawkins, embora descrevam de maneiras diferentes o processo de seleção, argumentam que os genes são seu principal foco, adotando, assim, uma posição monista. Há os que defendem que a seleção opera no nível de grupo, como Sober e Wilson, adotando um pluralismo realista. Posições filosóficas monistas, pluralistas ou intermediárias estão presentes quando se quer identificar o papel das unidades de seleção. Genes, organismos, grupos e espécies são agentes de seleção em diferentes níveis da organização biológica. Nesse debate estão implícitos vários conceitos e critérios de individualidade, de modo que ainda será necessário, além de análise conceitual, trabalho empírico. A autora do artigo salienta, citando o trabalho de vários outros autores, os aspectos polêmicos da abordagem sobre os níveis de seleção. Para tanto, discorre sobre o tema com abrangência e clareza.
O capítulo 10, “Aproximação epistemológica à biologia evolutiva do desenvolvimento”, de Gustavo Caponi, busca examinar uma disciplina biológica extremamente recente (surgida na década de 1980), a biologia evolutiva do desenvolvimento, ou evo-devo. A evo-devo estuda o modo como fenômenos do desenvolvimento de organismos pautam, em algum sentido, sua evolução. Para apreciarmos plenamente as novidades epistemológicas trazidas por essa disciplina, de acordo com Caponi, temos de levar em consideração o conceito de ideal de ordem natural, proposto por Stephen Toulmin. Um ideal de ordem natural é um conjunto de pressupostos vinculados a uma teoria que “definem o que é o caso quando nada ocorre e assim estabelecem o horizonte de permanência sobre o qual irrompem os fatos a serem explicados por dita teoria” (p. 212).
Segundo Caponi, o ideal de ordem natural da biologia evolutiva — entendida aqui tanto no sentido darwiniano clássico quanto no da Nova Síntese — ou seja, o que não merece ser explicado aos olhos dessa teoria, é a ausência de variedade entre as espécies. Onde há diversidade, aos olhos da biologia evolutiva clássica, há um fenômeno a ser explicado. Assim, a novidade apresentada pela evo-devo é justamente um outro ideal de ordem natural: para essa outra teoria, o que deve ser explicado é a permanência das formas ancestrais; é necessário explicar por que certas formas não são biologicamente possíveis, a despeito de serem concebíveis. De modo geral: por que, a despeito de estarem submetidos a pressões seletivas e outras forças promotoras de mudanças, certos grupos de organismos apresentam um alto grau de conservação em determinadas características?
O tipo de explicação mais comum na evo-devo apela a restrições desenvolvimentais, algo como “exigências arquiteturais” que não podem ser dribladas no desenvolvimento dos organismos. O fato é que, embora todas as formas de organismo concebíveis podessem, em princípio, ocorrer na natureza, essas restrições circunscrevem o domínio das formas biologicamente possíveis. Assim, essas restrições desenvolvimentais constituem uma força evolutiva adicional; antes de poderem competir entre si diante da seleção natural, os organismos têm de ser, em primeiro lugar, viáveis do ponto de vista desenvolvimental.
O interessante é que, embora possa parecer o contrário, a evo-devo não promove um retorno a modos historicamente obsoletos de explicação dos fenômenos evolutivos centrados no organismo individual, tais como a perspectiva transformacional (CAPONI, 2005)3 e o apelo às causas próximas (CAPONI, 2000, 2001)4. Com isso, Caponi conclui que a evo-devo amplia o espaço da biologia evolutiva, complementando-a sem ferir seus modelos explicativos mais fundamentais. O capítulo de Caponi é recomendado como um excelente exemplo de análise filosófica de uma disciplina biológica.
A partir do capítulo 11, “O modelo primatológico de cultura”, de Jorge Martínez-Contreras, o livro se distancia um pouco das questões predominantemente epistemológicas e se volta para as implicações éticas e sociais da biologia. Martínez-Contreras pretende discutir de maneira crítica o conceito de cultura, desenvolvendo o conceito de cultura naturalizada, de modo a descrever a produção de cultura por outras espécies de animais, primatas não humanos e chimpanzés. Essa discussão é também metafísica e tem implicações diretas no que significa “ser humano”, já que o Homo sapiens é estudado, sob a perspectiva biológica, como um animal a mais. Ao longo do capítulo são destacadas as contribuições de cientistas, para depois, confrontá-las com o ponto de vista dos filósofos, de modo a obter, nas palavras de Martínez-Contreras, “uma definição mais sólida de cultura”.
Além disso, o autor pretende destacar que a diferença entre as culturas humanas e não humanas é de grau, não de tipo: se admitirmos que cultura significa transmitir conhecimentos e comportamentos por meio da aprendizagem social, então animais com essa capacidade — como os chimpanzés — são nossos semelhantes. Após a leitura do artigo, pode-se dizer que o autor conseguiu atingir os objetivos propostos, e que também partilhamos de sua visão: o conceito de cultura precisa ser revisto para abranger outras formas de vida que não só a humana.
No capítulo seguinte, “Genes, seleção natural e comportamento humano: a mente adaptada da psicologia evolucionista”, Ricardo Waizbort e Filipe da Silva Porto destacam o desenvolvimento, nos últimos anos, da Psicologia Evolutiva (PE). Ela está apoiada em duas teses centrais: na primeira, a mente humana é entendida como um processador de informações; já na segunda, os programas cognitivos que compõem a mente humana são decorrentes da evolução biológica, por meio da seleção natural. Para a PE, os genes são o nível fundamental em que a seleção opera, sendo conceitualmente entendidos como “elementos reguladores que usam o ambiente para construir organismos”. A concepção de uma mente modularizada seria composta, além de programas cognitivos de propósito geral (PCPG), por “programas cognitivos funcionalmente especializados dependentes de conteúdo”. Segundo os psicólogos evolucionistas, tal concepção requer uma integração conceitual da antropologia com a psicologia e desta com a biologia evolutiva. Para os autores do capítulo, algumas críticas, como as feitas por Geoffrey Miller e Steven Mithen à PE, têm estimulado o seu desenvolvimento, uma vez que este é um programa de pesquisa em expansão que tem contribuído para superar a ideia de que a mente humana é uma tábula rasa.
O capítulo 13, “Evolução humana: o papel da dupla herança”, de Paulo Abrantes e Fábio Almeida, enfatiza o papel desempenhado pela cultura na evolução humana, explicitando as implicações decorrentes das várias posições assumidas por diferentes autores nessa discussão. A argumentação está embasada na teoria da dupla herança, de Richerson e Boyd, considerando processos de coevolução gene-cultura. Conforme os autores desse capítulo, a teoria da dupla herança é a que melhor explica, atualmente, a evolução humana em sua especificidade.
O que distingue nossa espécie das demais é o fato de acumularmos cultura por meio de imitação fidedigna ao longo das gerações. Ao defenderem que a seleção natural atua diretamente sobre variantes culturais, não devendo ser confundida ou reduzida à seleção natural que atua na evolução biológica, Richerson e Boyd adotam uma posição divergente com relação aos sociobiólogos e demais autores que postulam o contrário. Merece destaque a forma como esses autores conduzem o leitor: há uma preocupação constante em não perder o foco sobre o assunto tratado de modo a satisfazer os objetivos propostos, e também em apresentar minuciosamente a teoria da dupla herança.
Por fim, o último capítulo do livro, “Ética evolucionista: o enfoque adaptacionista da cooperação humana”, de Alejandro Rosas, destaca uma explicação adaptacionista do comportamento moral e de seus mecanismos subjacentes. Inicialmente, o autor aborda as reflexões contidas nos trabalhos de Charles Darwin e Robert Trivers. Ambos fizeram contribuições promissoras ao não limitar o escopo de suas teorias de modo a predizer somente a utilidade biológica de traços comportamentais cooperativos, abordando também os mecanismos psicológicos e sociais que controlam tais comportamentos. Embora os dois autores destaquem o complexo normas-emoções-sanções, em Trivers ele subjaz à reciprocidade, e em Darwin, à norma do bem comum. Adiante, Rosas analisa as contribuições da psicologia e da economia no que diz respeito à cooperação e à deserção, apresentando elementos da teoria dos jogos e experimentos. Para concluir, Rosas postula que a cooperação humana tem mecanismos psicológico-normativos, os quais devem ser o objetivo principal da explicação evolucionista da moral. Segundo Rosas, abordar assuntos complexos como a moral requer certa medida de especulação e implica algumas concepções arriscadas, considerando “uma evidência fragmentada e frugal”.
Podemos concluir, com base nos objetivos contidos na apresentação e no capítulo introdutório do livro, que ele cumpre seus propósitos com êxito. Ao abordar de modo aprofundado os principais tópicos debatidos pela filosofia da biologia atualmente, Paulo Abrantes e demais autores evidenciam de modo performático o valor do trabalho conjunto de filósofos e biólogos. Embora acreditemos que nem todos os capítulos possam ser lidos sem conhecimento prévio dos assuntos abordados, devido à diversidade de autores e ideias, o livro é, sem dúvida, a referência mais completa do gênero disponível em língua portuguesa.
Notas
1 Disponível em: http://grupobogota.wordpress.com. Acesso em: 20 mar. 2012.
2 Nesse sentido, ver CAPONI, G.. Los taxones como tipos: Buffon, Cuvier y Lamarck. História, Ciência, Saúde, v.18, n.1, p.15-31, 2011.
3 CAPONI, G. O darwinismo e seu outro, a teoria transformacional da evolução. Scientiae Studia, v.3, n.2, p.33-42. 2005.
4 CAPONI, G. Cómo y por qué de lo viviente. Ludus Vitalis, v.8, n.14, p.67-102. 2000 e CAPONI, G. Biologia funcional vs. biologia evolutiva. Episteme, n.12, p.23-46, jan./jun. 2001.
André Brzozowski – Professor do curso de Filosofia na Universidade Federal da Fronteira Sul (UFFS), Erechim, RS – Brasil. E-mail: jerzy.brzozowski@uffs.edu.br
Máida Ariane de Mélo – Pós-graduanda na Especialização em História da Ciência na Universidade Federal da Fronteira Sul (UFFS), Erechim, RS – Brasil. E-mail: maida_ariane@hotmail.com
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