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Coleções, museus e patrimônios das culturas negras / Revista Mosaico / 2016
O título desta apresentação poderia ser As Cores do Silêncio e os Gostos do Silenciamento, empreendendo duas sinestesias para insinuar temáticas como a questão racial, os silêncios da história, a poética e a política da memória. Debate que força passagem quando pensamos nas heranças africanas diluídas no Atlântico e manifestas em coleções, museus e patrimônios ou, em outros termos, como essa gama de expressões integrou um processo de produção de sentidos silenciados (ORLANDI, 2007).
São esses sentidos que atravessam o presente dossiê da Revista Mosaico. Os bens culturais de matriz africana foram e são constantemente silenciados em algumas práticas que legitimam ações sobre qual leitura do passado e o monopólio do direito de falar sobre o passado. São colocados em silêncio constitutivo (quando uma prática ou palavra silencia outra) e como silêncio da censura (o que é proibido de ser dito ou expresso) (ORLANDI, 2007). Situação que ganha potência quando analisada nas tramas em torno do campo do patrimônio – compreendido como um campo de poder, que prioriza determinados repertórios culturais e cujo conflito é o motor – e o modo como essas tensões reverberam na escrita da História.
A questão é que são esses mesmos mecanismos seletivos que iluminam percursos, nomes e legados, os utilizados para a invenção do anonimato, a fabricação da desimportância, a instituição de vazios e silêncios. Por isso, investigar presenças consiste em um estudo das ausências, fruto de uma engenhosa operação. Dessa forma, os silêncios podem sinalizar “não sua inexistência de fato, mas sua presença como parte do ‘inenarrável’, estando situadas, por constrições várias, ‘fora do acontecimento’” (FANINI, 2009, p. 16). Interditos que são reconhecidos como rastros, indícios que possibilitarão ler os testemunhos a contrapelo, problematizando as intenções de quem os construiu.
Portanto, o intuito do dossiê foi reunir artigos que problematizassem questões ligadas às coleções, aos museus e aos patrimônios das culturas africanas e de sua diáspora visando refletir sobre os usos plurais das coleções, as políticas da memória e as diferentes escritas da História, das Ciências Sociais e da Museologia, priorizando trabalhos teóricos e estudos de caso que abordassem as culturas negras em suas diferentes dimensões. Pretendeu, assim, acolher reflexões sobre colecionismo, cultura material, trajetórias de vida, saberes, discursos e relações de poder com enfoque para as expressões culturais afro-brasileiras, bem como para as políticas de patrimonialização daí resultantes evitando naturalizar ausências, subrepresentações e exotismos (SANTOS, 2005).
Do mesmo modo, o intuito foi colocar em circulação experiências diluídas ou tidas como insignificantes no processo de elaboração da memória coletiva, a partir de uma política de memória em que se formariam vozes em dissonância ou vozes em falsete na escrita da Nação. Esse rememorar cria espaços excêntricos que permite imaginar alternativas de ser e de saber: “da mesma forma, aponta para a abertura de um lugar crítico que lhes permite interrogar, redefinir e afirmar uma memória que se instaura a partir da tensão entre a pluralidade tonal e a singularidade das vivências” (BEZERRA, 2007, p. 37).
No caso das expressões culturais da diáspora negra no Brasil isso ganha ressonância quando percebemos “a repetição de lugares comuns, conceitos e preconceitos, reduzindo e desqualificando a força e a presença de matrizes africanas na construção de nossas formas de vida, trabalho sensibilidades etc.”, cujas bases “sofrem deslocamentos e desviam pontos de confluência transculturais”, perdendo de vista “negociações, transformações, incorporações e inovações nas sociabilidades de tempos e espaços brasileiros” (CUNHA, 2006, p. 1-2).
Se reconhecermos os silêncios em torno da Coleção de Magia Negra, as tensões que envolveram o tombamento do Terreiro da Casa Branca, em Salvador (BA) (VELHO, 2006), e que é recente entre nós, especialmente a partir do registro do patrimônio intangível, a salvaguarda das expressões culturais de matriz africana e de outros povos constitutivos de nossa identidade, é inegável a importância que o silenciamento enquanto categoria analítica assume no campo das políticas patrimoniais brasileiras. Talvez, por isso, constitua uma das questões centrais que atravessam os artigos deste dossiê temático.
Essa problemática é inaugurada no artigo “Acepção de ruídos: (re)produção e arquivamento da Coleção Perseverança do Instituto Histórico e Geográfico de Alagoas”, de autoria de Débora Rejane Viana Sobral. Tendo como objeto as tramas acionadas pelo catálogo ilustrado da coleção constituída a partir das perseguições e repressões às casas de Xangô em Alagoas no início do século XX, o texto analisa a construção dos discursos sobre os artefatos de origem afro-brasileira, as lacunas e os limites na fabricação da coleção e o modo como a instituição detentora do acervo manipula e se legitima através do uso dessa informação. Desse modo, o silenciamento não foi imposto apenas por ocasião do “Quebra de 1912” que obrigou os terreiros a exercerem um “candomblé em silêncio” (RAFAEL, 2004), mas assume outras dinâmicas nos processos de musealização e tratamento da informação em torno desses artefatos.
O artigo “Mulheres negras e a discussão de gênero na construção das narrativas nos museus de Salvador”, de Joana Angélica Flores Silva, apresenta significativas provocações. Visando perceber a representação das mulheres negras nos museus históricos da primeira capital do país, problematiza como em determinadas exposições de longa duração é reincidente uma imagem colonizadora da mulher branca sobre a imagem colonizada da mulher negra. Dessa forma, além de refletir sobre outras narrativas que evidenciem de forma não discriminatória a participação de distintos sujeitos nos espaços de memória, também contribui para que possamos percorrer os silenciamentos que transformam as mulheres negras em silêncios dos “silêncios da história”, para dialogarmos com a expressão de Michelle Perrot (2005).
Ainda com relação às práticas de poder instituídas na intersecção entre raça e campo de produção simbólico tendo como eixo os museus e suas reverberações, o texto “A transitoriedade de um objeto: os balangandãs dos séculos XVIII e XIX e suas ressignificações na contemporaneidade”, de Sura Souza Carmo, compara a joalheria afro-brasileira que integra a coleção do Museu Carlos Costa Pinto, em Salvador-BA, e as peças que são atualmente comercializadas na capital baiana. Entre interessantes questionamentos destaca a construção da exoticidade em um museu elitista da cidade de Salvador e o silenciamento sobre protagonismo da mulher negra na Bahia escravocrata e as invenções da liberdade. Nesse aspecto, ao silenciar a violência, a exposição museológica empreenderia outra violência, reforçando determinadas imagens etnocêntricas sobre o lugar da mulher negra dos séculos XIX e XX e, assim, contribuindo para determinados protocolos de leitura estigmatizadores no século XXI.
Situações que também podem ser evidenciadas na arte pública de matriz africana. Em “O silêncio dos atabaques? Arte pública de matriz africana e memória topográfica em perspectiva”, artigo de minha autoria, utilizo as categorias memória topográfica e arte pública para analisar as estratégias de silenciamento como uma forma de poder e de produção de significados no campo de produção simbólico. Citando diferentes exemplos, demonstro como a destruição da arte pública relacionada a essas expressões culturais de matriz africana, especialmente às religiões afro, se torna metáfora e metonímia do racismo e da intolerância religiosa na “batalha das memórias” que fabrica e imortaliza saberes, expressões, celebrações e lugares significativos para a memória nacional e local.
O artigo “A presença das culturas negras na arte moderna em Salvador e o discurso de baianidade”, de Neila Dourado Gonçalves Maciel também articula arte e expressões de matriz africana. Tendo como recorte o modernismo baiano empreendido por Carybé entre 1950 e 1970 problematiza a invenção da “baianidade”, juntamente com a literatura, música e outras linguagens discursivas. Nesse aspecto, demonstra as contradições na arte que torna visível determinadas memórias urbanas, especialmente relacionadas ao cotidiano de uma parcela da população negra, e, ao mesmo tempo, contribui para a invisibilidade dos sujeitos tornados objetos de discurso. Surge aquilo que a autora compreende ser uma estratégia visando forjar uma “frequência harmônica para narrativas dissonantes”.
Essas tensões também são explicitadas em outras expressões artísticas, a exemplo da literatura. O artigo “Literatura machadiana: um dos patrimônios culturais do Brasil e elemento de memória da população negra oitocentista”, de Murilo Chaves Vilarinho, explicita na obra de Machado de Assis alguns aspectos do quotidiano da população negra do oitocentos no Rio de Janeiro, destacando os impactos da escravidão e da Abolição da Escravatura por meio do olhar do escritor. Compreende, assim, que a literatura possibilita recompor os rastros apagados e relegados ao esquecimento, demonstrando a expressão estética como representação do real e como significativo documento que contribui para repensarmos a escrita da História.
Estratégia que também é analisada no texto “Cantilenas de Goiás: memória, gênero e patrimônios das culturas negras na obra de Regina Lacerda”, de Paulo Brito do Prado. Ao articular as adoções temáticas da autora goiana e as estratégias de mediação no espaço literário, analisa as táticas em prol de registrar, em seu projeto criador, determinadas memórias de mulheres negras e fragmentos das culturas afro-brasileiras. O artigo destaca na obra de Regina Lacerda, a despeito de seu lugar de fala e de certa visão etnocêntrica, fortes permanências das culturas indígena e afro-brasileira na fabricação da Cidade de Goiás como “berço da cultura goiana”. Além disso, sublinha como sua literatura e seus estudos no campo do folclore reverberam (como uma cantilena) o lugar das mulheres e dos legados africanos, personagens e práticas que preenchem o cotidiano de Goiás e que, na maioria das vezes, foram e são silenciados no concerto de vozes dissonantes que compõem a sinfonia da História.
O texto escolhido para encerrar o dossiê, “Capoeira e identidade negra na pós-modernidade: algumas considerações”, de Márcio Nunes de Abreu, parte de uma recente provocação feita pelo sociólogo Muniz Sodré ao admitir o capoeirista Mestre Camisa, mais “negro” do que muitos dos negros que conhecia. O trabalho discute os limites da subjetivação e da identificação cultural entre identidades dominantes e subalternas, indagando, a partir dos referenciais de Stuart Hall, os paradoxos da identidade cultural na pós-modernidade. Questões que atravessam os artigos anteriores e que reverberam o fortalecimento de identidades locais e a criação de novas identidades, com uma ampla gama de variações e identificações, mais políticas, plurais e diversas, ampliando o espectro de cores, sons e de gostos e resistindo às tentativas de silenciamento.
Este número da Revista Mosaico publica ainda três artigos livres cujas temáticas de algum modo reverberam os debates do dossiê, ao privilegiarem análises sobre discurso, diferença e poder. Isso pode ser observado nos textos “Trilhas da imaginação: compreendendo a construção histórica e social do ‘exotismo amazônico’ por uma leitura ecossistêmica comunicacional”, de Rafael de Figueiredo Lopes e Wilson de Souza Nogueira; “A interferência Norte-Americana na política interna brasileira: o caso do jornal A Noite”, de Pedro Henrique R. Magri; e “Histoire de La Folie: uma proto-análise teórico-metodológica do ponto de vista histórico”, de Ronivaldo de Oliveira Rego Santos.
Referências
BEZERRA, Kátia da Costa. Vozes em dissonância: mulheres, memória e nação. Florianópolis: Editora Mulheres, 2007.
CUNHA, Marcelo Nascimento Bernardo da. Teatro de memórias, palco de esquecimentos: culturas africanas e das diásporas negras em exposições. Tese (Doutorado em História), Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, 2006.
FANINI, Michele Asmar. Fardos e fardões: mulheres na Academia Brasileira de Letras (1897-2003). Tese (Doutorado em Sociologia) – Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, 2009.
ORLANDI, Eni. As formas do silêncio no movimento dos sentidos. 6 ed. Campinas, SP: Editora da Unicamp, 2007.
PERROT, Michelle. As mulheres ou os silêncios da história. Bauru, SP: EDUSC, 2005.
RAFAEL, Ulisses Neves. Xangô Rezado Baixo: um estudo da perseguição aos Terreiros de Alagoas em 1912. Tese (Doutorado em Antropologia), Universidade Federal do Rio de Janeiro, 2004.
SANTOS, Myrian Sepúlveda dos. Canibalismo da memória: o negro em museus brasileiros. Revista do Patrimônio, n. 31, 2005.
VELHO, Gilberto. Patrimônio, negociação e conflito. Mana, n. 12, 2006.
Clovis Carvalho Britto
Organizador
BRITTO, Clovis Carvalho. Apresentação. Revista Mosaico. Goiânia, v.9, n.2, jul. / dez., 2016. Acessar publicação original [DR]