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Bretanha-Britânia-Angelcynn Celto Germânica entre Literatura e História / Brathair / 2012
Os habitantes das Ilhas Britânicas, tema do dossiê Bretanha / Britânia / Angelcynn Celto Germânica entre Literatura e História englobam duas culturas principais, uma de origem céltica e outra de origem germânica.
Os anglo-saxões penetraram nas Ilhas Britânicas por volta do século V e logo depois dominaram boa parte do território que já era ocupado anteriormente por populações célticas, na atual Inglaterra, formando, a princípio, a Heptarquia Anglo-Saxônica, com sete reinos independentes. Ali estabeleceram um novo idioma, que deu origem ao atual inglês, falado e compreendido em boa parte do mundo contemporâneo, e uma rica cultura, da qual um dos exemplos mais marcantes no plano literário é o poema Beowulf, do século X. Esse povo também esteve em contato com os vikings que chegaram ali por volta do século IX e foram repelidos com sucesso por Alfred, o Grande (871-899), além de estar em contato com as populações celtas da região.
As relações entre a cultura celta e a anglo-saxã nos são mostradas no artigo de A. Joseph McMullen (Harvard University), através dos primeiros manuscritos de Echternach, que apresentam um aspecto trilíngue em latim, antigo irlandês e anglo-saxão, mostrando a influência das relações entre Irlanda e Inglaterra anglo-saxã no século VIII.
Vinicus Dreger (Centro Educacional Anhaguera) salienta aspectos da História do Poder ao analisar as alianças matrimoniais estabelecidas pelo rei Æthelstan que ampliaram os domínios anglo-saxões até a Germânia Otônida entre os anos 920 e 940.
Elton Medeiros destaca a importância dos temas anglo-germânicos na atualidade através de um histórico desses estudos na Inglaterra e Escandinávia e aponta as possibilidades de pesquisa através da análise de fontes, dentre as quais, além do já conhecido poema Beowulf, a coletânea The Anglo-Saxon Poetic Records, um importante depósito de tradições, que tem muito a ser explorado.
Ryan Lavelle, da Universidade de Winchester, apresenta em sua entrevista, concedida a Elton Medeiros, a relevância dos estudos anglo-saxões na atualidade e aponta alguns caminhos para a realização de novas pesquisas. Salienta como obra essencial e introdutória ao assunto, a de Campbell, The Anglo-Saxons, de 1982. O autor também sugere como leituras documentais importantes Beda, na sua Historia Ecclesistica Gentis Anglorum e coleções de documentos anglo-saxões, que estão disponíveis on line, como a Crônica Anglo-saxã. A entrevista também esclarece visões maniqueístas sobre o contato entre anglo-saxões e vikings, auxiliando-nos a uma visão mais abrangente sobre o contato entre esses dois povos, bem como a importância do rei anglo-saxão Alfred, sobre quem o autor é especialista.
Por fim, temos um exemplo de documento anglo-saxão que dialoga com o Antigo Testamento, a tradução do poema Judite, provavelmente compilado no século X, que tem por base o relato bíblico contido no livro de Judith. Tem por base o manuscrito Cotton Vitelius A. XV, sendo um texto em verso, que se encontra no manuscrito junto com o poema Beowulf. A narrativa descreve como a personagem de Judite decapita o líder Holorfenes que sitiava a cidade de Betúlia. Ela o seduz e corta a sua cabeça enquanto ele dormia embriagado, ação que impede a ação do exército assírio. Medeiros salienta a importância de a personagem central ser, nesta narrativa, uma mulher, ao contrário do que ocorre em outros relatos anglo-saxões, quando estas aparecem como exemplos de nobreza e bons costumes, embora sejam figuras secundárias.
Sobre os germanos na Península Ibérica e as disputas religiosas, Jaqueline Calazans e Leila Rodrigues da Silva (PEM / UFRJ) analisam os cânones do Concílio de Zaragoza, no século IV e observam as influências do priscilianismo, que propagava ideias de austeridade e pobreza, calcadas no ascetismo, vigílias, jejuns e desapego aos bens materiais. O pensamento de Prisciliano gerou disputas eclesiásticas acerca do controle de práticas cristãs e posterior reforço da autoridade dos bispos e afirmação dos clérigos sobre a população laica.
Os povos de origem celta habitaram as Ilhas Britânicas desde antes da chegada dos anglo-saxões e também nos deixaram um rico legado de tradições. A contribuição das culturas celtas para a gesta da Matéria da Bretanha, em suas diversas versões regionais, expressas em distintos vernáculos, é inegável e já reconhecida e consagrada por todos os estudiosos arturianos. As formações sociais célticas engendraram mitemas arturianos nas Grandes Ilhas, sobretudo nas regiões do atual País de Gales e na Hibérnia (Irlanda), destacando-se os Mabinogion, contos para infância sob a forma de um manual de instruções rituais para a declamação dos bardos. Apesar de os Mabinogion terem sido compilados em kymrisch apenas na transição entre os séculos XIV e XV, seu lastro encontra-se em tradições celtas ancestrais, veiculadas pela oralidade. No que concerne ao continente, já na Idade Média Central (séculos XI a XIII), constituíram-se os Ciclos de Versificação, com Chrétien de Troyes (segunda metade do século XII), e os dois célebres Ciclos de Prosificação da Matéria da Bretanha, o Ciclo do Lancelot-Graal (Ciclo da Vulgata) e o Ciclo do Pseudo-Boron (Ciclo da PostVulgata), na primeira metade do século XIII. Os dois últimos, com destaque para o segundo, influenciaram a compilação de versões das aventuras arturianas em outros vernáculos, como o português, o castelhano, o alemão, o holandês e mesmo o checo.
A respeito das tradições e sagas ancestrais, Wolfgang Meid (Universidade de Innsbruck, Tirol) brinda-nos com um detalhado e erudito estudo, instigante e profundo, acerca das sagas irlandesas, sua tipologia e seus ciclos mais importantes. Destacam-se, em seu texto, o Ciclo de Ulster, o chamado Ciclo Mitológico, o Ciclo dos Reis e o Ciclo de Finn. A análise de Meid denota refinamento intelectual ao explicitar que esta maneira de elencar e classificar as narrativas da Hibérnia é, na verdade, uma hetero-representação, uma construção intelectual da Historiografia e da Teoria Literária contemporâneas. A esta classificação, Meid integra, discutindo suas confluências e dissintonias, o modo como as próprias sociedades celtas compreendiam e representavam as similitudes e diferenças entre suas narrativas. Por conseguinte, seu artigo apresenta a tipologia céltica dos contos, apontando para designações como Batalhas, Histórias de Amor, Cercos, Destruições, Mortes Heroicas, Cortejos Amorosos, Aventuras, Viagens pelo Mar, Roubos de Gado e, por fim, Fugas.
Também nesta senda caminha a bela resenha de Pedro Vieira da Silva Peixoto ao recente livro do consagrado estudioso Barry Cunliffe, The Druids: a very short introduction (2010). Dialogando com as proposições do autor, Peixoto traz a lume noções introdutórias e rudimentos sobre as práticas mágicas e rituais destes sacerdotes celtas, responsáveis, como shamans que eram, pela mediação entre o sagrado e o profano. A resenha vale-se de autores relevantes para os estudos celtas, como o austríaco Helmut Birkhan, autor do monumental Kelten (1997). Convém salientar que o Santo Graal, enquanto mitema fundamental para a construção da gramática do mito arturiano, derivou das copas mágicas célticas, bem como das copas análogas dos rituais alanos (com destaque para a Nartamongae), e da cornucópia celta da fartura, também ela um cálice. Portanto, entender o papel simbólico e social exercido pelos druidas é crucial para a melhor compreensão das aventuras arturianas e da simbologia híbrida do Santo Vaso.
Quanto aos ciclos de versificação e prosificação da Matéria Arturiana na Idade Média Central, a presente edição de Brathair apresenta dois artigos que analisam o papel da memória dos idosos e das tentações diabólicas no enredo da versão portuguesa de A Demanda do Santo Graal, cujo texto original dataria de 1248, atribuído ao cortesão Joam Vivas, conviva do rei Afonso III (1248-1279). Neste contexto, o artigo de Alessandra Conde (UFPA) resgata e inventaria os excertos da narrativa gralesca em que se consagram as recordações de dois anciãos, cujas identidades expressam uma importante clivagem social e religioso-ideológica.
Trata-se, por um lado, das reminiscências de um velho pescador, evidente figuração alegórica do Apóstolo Pedro, “Pescador de Homens”, bem como de seu sucessor mitológico, o Rei Pescador das narrativas do Santo Graal. O pescador exara palavras santas, ortodoxas, ensinamentos morais consentâneos ao ethos cristão, razão pela qual sua fala se constitui em vetor retórico de expressão da normativa clerical para as sociedades medievais. Este lugar canônico de sua fala vê-se ratificado pelo fato de que o pescador é eternamente alimentado pelo Santo Graal. Por outro lado, o velho judeu é retratado como eterno pecador, herdeiro do anátema de assassino de Cristo, de aparência repugnante, o que o torno lugar retórico em que se constroi o outro do poder clerical, o marginal a ser proscrito da unitas cristã.
Ainda no esteio de investigação de A Demanda do Santo Graal como formação discursiva, o artigo de Ana Márcia Alves Siqueira (UFC) estuda as artimanhas do Diabo para tentar e danar os homens, com ênfase nos pecados carnais, enquanto exempla, dentro da rede narrativa da aventura-peregrinação para encontrar o Cálice Crístico. Pela voz do Diabo e pela correlata preceptiva da Igreja sobre como combatê-lo e resistir à sua sedução, o texto projeta ainda mais luz sobre o ideal eclesial de disciplinarização da Cristandade Latina em seu sentido mais amplo.
Outro tema importante desta edição de Brathair é o processo de reapropriação e reorientação política e ideológica da memória recente a respeito de nosso passado céltico longínquo. Não apenas nos interessa esta discussão enquanto ocidentais, mas como estudiosos de Ciências Humanas, pois sua discussão implica problematizar a memória e a própria história como artefatos simbólicos dispostos ao manuseio político e identitário permanentemente ressignificado. Desta fora, o artigo de Juan Miguel Zarandona trabalha a reapropriação de uma pretensa identidade ancestral celta para a construção discursiva de uma narrativa de legitimação da singularidade e da especificidade da nação galega perante a investida centralizadora da cultura e do idioma de Castela sobre as particularidades culturais das etnias que formam a Espanha. No fundo, trata-se de uma instigante reflexão sobre a dialética entre passado e presente, ou passado-presente, para construção das narrativas identitárias, subsídios ideológicos para se tecer a auto-representação de uma comunidade e trazer à cena suas pretensões políticas.
Os estudos desta edição mostram a importância dos anglo-saxões e das heranças célticas nos tempos atuais, tanto através de tradições, como pela afirmação de identidades. As pesquisas aqui apresentadas auxiliam os leitores interessados no aprofundamento das culturas desenvolvidas mais especificamente nas Ilhas Britânicas, tema desse dossiê, e garantem à revista Brathair um papel ativo e de destaque na difusão dos estudos celtas e germânicos.
Adriana Zierer – Professora Doutora (UEMA). E-mail: medievalzierer@terra.com.br
Marcus Baccega – Doutor em História pela USP. Pós-Doutorando na Sorbonne, França. E-mail: marcusbaccega@uol.com.br
ZIERER, Adriana; BACCEGA, Marcus. Editorial. Brathair, São Luís, v.12, n.2, 2012. Acessar publicação original [DR]