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Brasília (II) / Urbana / 2018
Os artigos deste segundo volume do dossiê Brasília expandem a análise acerca das representações sociais da cidade a partir de fontes diversas: memórias e depoimentos orais, filmes, registros críticos e literários, revistas, fotografias etc. As fontes provêm de grupos ou indivíduos também muito diversos: além dos protagonistas políticos da época da fundação, intelectuais, escritores e artistas, há moradores de áreas periféricas da capital, prostitutas e travestis. As análises tratam, por um lado, de revisitar a cidade recém-construída e sua peculiar paisagem, cedo marcada por conflitos e contradições. Por outro lado, muitos dos artigos reunidos neste dossiê dedicam-se à metrópole contemporânea, onde emergem os imaginários e universos simbólicos daqueles que a vivenciam no cotidiano e recorrem a táticas para ocupar ou habitar seus disputados espaços. Em vários artigos, as representações dos habitantes de Brasília levam a contradizer lugares-comuns da crítica à cidade modernista e revelam experiências muito distintas do que fora preconizado à época da concepção da capital. O amplo território de Brasília é lugar de práticas de segregação espacial e especulação imobiliária similares ao que se observa em outras metrópoles brasileiras; ainda assim, a reflexão a esse respeito não se encerra em constatar que a capital se tornou “uma cidade como outra qualquer”, conforme já desabafou o arquiteto Oscar Niemeyer em entrevista [1]. Em vez disso, os artigos aqui reunidos enfrentam a complexidade urbano-territorial de Brasília e mostram que os usos e apropriações da cidade dão novos significados a seus espaços e criam narrativas alternativas sobre ela.
O artigo inicial de Hugo Segawa abarca o impacto da capital e as transformações no modo de percebê-la desde os tempos do canteiro de obras até o cinquentenário, destacando como o suspense dominante na primeira década foi sucedido por atitudes de suspeição, crítica, resgate e, mais tarde, pelo deparar-se com a realidade. Nessa trajetória, o autor observa a passagem de um mito da modernização para a realidade dos paradoxos e das desigualdades, mas também leva a ver uma cidade em permanente reinvenção, o que exige, conforme alerta, também o reinventar das análises a seu respeito na historiografia da arquitetura e do urbanismo. A produção de um dos fotógrafos mencionados por Hugo Segawa, o francês Marcel Gautherot, é retomada, no artigo seguinte, de autoria de Heliana Angotti-Salgueiro. A autora faz uma análise da trajetória inicial de Gautherot e em seguida mostra como o trabalho dele em Brasília foi além da mera documentação, vindo representar a arquitetura por meio de imagens abstratas e experimentais ou dotadas de caráter escultórico. Dada a ampla circulação dessas imagens, a fotografia assumiu papel essencial no conhecimento e na difusão do modernismo extra-europeu.
Ainda enfatizando o período inicial de concepção e construção de Brasília, Fernanda Reis Ribeiro e Ana Elisabete de Almeida Medeiros abordam o tema pouco explorado do transporte ferroviário na capital. Embora as medidas para estabelecer a ligação férrea com Brasília tenham sido feitas antes mesmo que o Plano Piloto de Lucio Costa tivesse sido escolhido, logo a ferrovia foi suplantada pela ênfase no rodoviarismo. Mesmo assim, como mostram as autoras, as instalações ferroviárias da capital atuaram de forma a estruturar memórias e, ressaltam, merecem específica abordagem do ponto de vista patrimonial.
Os ideais de modernização subjacentes à construção de Brasília e suas expressões na concepção urbana e territorial permanecem fundamentais na problemática dos artigos seguintes. Vê-se neles um interesse compartilhado por trazer à luz os usos, apropriações e configurações de outros espaços do próprio Plano Piloto – além do seu core monumental ou das suas espaçosas superquadras – assim como de núcleos periféricos – as denominadas regiões administrativas. Marcelo Augusto de Almeida Teixeira articula teoria queer, sociologia, geografia das sexualidades e arquitetura numa análise sobre as dinâmicas de estruturação de paisagens sócio-sexuais no Plano Piloto. Ao se deter no caso da avenida W3 Norte, o autor mostra as específicas relações entre a configuração daqueles espaços e sua utilização para moradia e trabalho de profissionais do sexo. O artigo seguinte, de autoria de Angelica Peixoto de Paiva Freitas, analisa representações de Brasília expressas em reportagens da revista mensal Traços e na série de mini-documentários Distrito Cultural. A autora mostra como a revista e a série apontam uma mudança do imaginário da cidade-monumento-patrimônio para uma cidade-apropriada-vivida, onde fervilham manifestações culturais e produções artísticas.
Os dois artigos finais focalizam representações emanadas de regiões administrativas periféricas ao Plano Piloto. O artigo de Mariana Lucas Setubal trata de Brasília a partir da análise de dois longa-metragens do cineasta Adirley Queiros – A Cidade é uma só? (2011) e Branco sai, preto fica (2014) – ambos tendo como lugar privilegiado para elaboração de suas narrativas a Ceilândia. Com base em uma discussão introdutória a respeito do modo como se deu o planejamento Brasília, a autora reflete sobre problemas relativos à questão territorial, situando-a no cerne da crítica desenvolvida nos filmes. Já o artigo de Jorge Artur Caetano Lopes dos Santos trata do modo como o processo de aquisição de lotes no Recanto das Emas foi relatado em memórias de suas moradoras, atentando tanto para o que é dito como para “o que é mal dito ou nem dito”. Em sua análise, as narrativas das moradoras revelam um imaginário acerca da relação com importantes figuras políticas da capital, assim como táticas e estratégias empreendidas por elas e seus parentes na busca de um espaço para morar.
Neste conjunto de artigos, Brasília aparece, enfim, como cidade narrada e vivenciada por grupos muito diversos, que tem de lidar com a peculiar configuração urbana da capital e contribuem, de modos distintos, para dar-lhe vida e recriá-la. As análises densas e bem fundamentadas desenvolvidas em cada um dos artigos estimulam a renovação das problemáticas sobre Brasília e têm o mérito adicional de sugerir caminhos para outras interpretações a respeito da história e das representações da capital. Brasília revisitada, conforme escreveu Lucio Costa, mas também reapropriada e recontada.
Nota
1 MACIEL, Pedro. Entrevista a Oscar Niemeyer: «O Voo do arquiteto». Caliban. [sem data] Disponível em Acesso em: 5 fev. 2019.
Maria Fernanda Derntl – Universidade de Brasília. E-mail: mariafernanda_d@yahoo.com.br
DERNTL, Maria Fernanda. Editorial. Urbana. Campinas, v.10, n.3, set / dez, 2018. Acessar publicação original [DR]
Brasília (II) / Urbana / 2018
Os artigos deste segundo volume do dossiê Brasília expandem a análise acerca das representações sociais da cidade a partir de fontes diversas: memórias e depoimentos orais, filmes, registros críticos e literários, revistas, fotografias etc. As fontes provêm de grupos ou indivíduos também muito diversos: além dos protagonistas políticos da época da fundação, intelectuais, escritores e artistas, há moradores de áreas periféricas da capital, prostitutas e travestis. As análises tratam, por um lado, de revisitar a cidade recém-construída e sua peculiar paisagem, cedo marcada por conflitos e contradições. Por outro lado, muitos dos artigos reunidos neste dossiê dedicam-se à metrópole contemporânea, onde emergem os imaginários e universos simbólicos daqueles que a vivenciam no cotidiano e recorrem a táticas para ocupar ou habitar seus disputados espaços. Em vários artigos, as representações dos habitantes de Brasília levam a contradizer lugares-comuns da crítica à cidade modernista e revelam experiências muito distintas do que fora preconizado à época da concepção da capital. O amplo território de Brasília é lugar de práticas de segregação espacial e especulação imobiliária similares ao que se observa em outras metrópoles brasileiras; ainda assim, a reflexão a esse respeito não se encerra em constatar que a capital se tornou “uma cidade como outra qualquer”, conforme já desabafou o arquiteto Oscar Niemeyer em entrevista [1]. Em vez disso, os artigos aqui reunidos enfrentam a complexidade urbano-territorial de Brasília e mostram que os usos e apropriações da cidade dão novos significados a seus espaços e criam narrativas alternativas sobre ela.
O artigo inicial de Hugo Segawa abarca o impacto da capital e as transformações no modo de percebê-la desde os tempos do canteiro de obras até o cinquentenário, destacando como o suspense dominante na primeira década foi sucedido por atitudes de suspeição, crítica, resgate e, mais tarde, pelo deparar-se com a realidade. Nessa trajetória, o autor observa a passagem de um mito da modernização para a realidade dos paradoxos e das desigualdades, mas também leva a ver uma cidade em permanente reinvenção, o que exige, conforme alerta, também o reinventar das análises a seu respeito na historiografia da arquitetura e do urbanismo. A produção de um dos fotógrafos mencionados por Hugo Segawa, o francês Marcel Gautherot, é retomada, no artigo seguinte, de autoria de Heliana Angotti-Salgueiro. A autora faz uma análise da trajetória inicial de Gautherot e em seguida mostra como o trabalho dele em Brasília foi além da mera documentação, vindo representar a arquitetura por meio de imagens abstratas e experimentais ou dotadas de caráter escultórico. Dada a ampla circulação dessas imagens, a fotografia assumiu papel essencial no conhecimento e na difusão do modernismo extra-europeu.
Ainda enfatizando o período inicial de concepção e construção de Brasília, Fernanda Reis Ribeiro e Ana Elisabete de Almeida Medeiros abordam o tema pouco explorado do transporte ferroviário na capital. Embora as medidas para estabelecer a ligação férrea com Brasília tenham sido feitas antes mesmo que o Plano Piloto de Lucio Costa tivesse sido escolhido, logo a ferrovia foi suplantada pela ênfase no rodoviarismo. Mesmo assim, como mostram as autoras, as instalações ferroviárias da capital atuaram de forma a estruturar memórias e, ressaltam, merecem específica abordagem do ponto de vista patrimonial.
Os ideais de modernização subjacentes à construção de Brasília e suas expressões na concepção urbana e territorial permanecem fundamentais na problemática dos artigos seguintes. Vê-se neles um interesse compartilhado por trazer à luz os usos, apropriações e configurações de outros espaços do próprio Plano Piloto – além do seu core monumental ou das suas espaçosas superquadras – assim como de núcleos periféricos – as denominadas regiões administrativas. Marcelo Augusto de Almeida Teixeira articula teoria queer, sociologia, geografia das sexualidades e arquitetura numa análise sobre as dinâmicas de estruturação de paisagens sócio-sexuais no Plano Piloto. Ao se deter no caso da avenida W3 Norte, o autor mostra as específicas relações entre a configuração daqueles espaços e sua utilização para moradia e trabalho de profissionais do sexo. O artigo seguinte, de autoria de Angelica Peixoto de Paiva Freitas, analisa representações de Brasília expressas em reportagens da revista mensal Traços e na série de mini-documentários Distrito Cultural. A autora mostra como a revista e a série apontam uma mudança do imaginário da cidade-monumento-patrimônio para uma cidade-apropriada-vivida, onde fervilham manifestações culturais e produções artísticas.
Os dois artigos finais focalizam representações emanadas de regiões administrativas periféricas ao Plano Piloto. O artigo de Mariana Lucas Setubal trata de Brasília a partir da análise de dois longa-metragens do cineasta Adirley Queiros – A Cidade é uma só? (2011) e Branco sai, preto fica (2014) – ambos tendo como lugar privilegiado para elaboração de suas narrativas a Ceilândia. Com base em uma discussão introdutória a respeito do modo como se deu o planejamento Brasília, a autora reflete sobre problemas relativos à questão territorial, situando-a no cerne da crítica desenvolvida nos filmes. Já o artigo de Jorge Artur Caetano Lopes dos Santos trata do modo como o processo de aquisição de lotes no Recanto das Emas foi relatado em memórias de suas moradoras, atentando tanto para o que é dito como para “o que é mal dito ou nem dito”. Em sua análise, as narrativas das moradoras revelam um imaginário acerca da relação com importantes figuras políticas da capital, assim como táticas e estratégias empreendidas por elas e seus parentes na busca de um espaço para morar.
Neste conjunto de artigos, Brasília aparece, enfim, como cidade narrada e vivenciada por grupos muito diversos, que tem de lidar com a peculiar configuração urbana da capital e contribuem, de modos distintos, para dar-lhe vida e recriá-la. As análises densas e bem fundamentadas desenvolvidas em cada um dos artigos estimulam a renovação das problemáticas sobre Brasília e têm o mérito adicional de sugerir caminhos para outras interpretações a respeito da história e das representações da capital. Brasília revisitada, conforme escreveu Lucio Costa, mas também reapropriada e recontada.
Nota
1 MACIEL, Pedro. Entrevista a Oscar Niemeyer: «O Voo do arquiteto». Caliban. [sem data] Disponível em Acesso em: 5 fev. 2019.
Maria Fernanda Derntl – Universidade de Brasília. E-mail: mariafernanda_d@yahoo.com.br
DERNTL, Maria Fernanda. Editorial. Urbana. Campinas, v.10, n.3, set. / dez., 2018. Acessar publicação original [DR]