Brasília (I) / Urbana / 2018

A construção de Brasília não foi apenas a tarefa de erguer os monumentos e superquadras que deram reconhecimento internacional ao Plano Piloto como experiência arquitetônica e urbanística. A construção da capital envolveu a urbanização de um território bem mais amplo, que já transborda os limites do Distrito Federal. Além disso, Brasília é também construção simbólica realizada por meio de imagens, narrativas e discursos produzidos em meio a ampla controvérsia. Em seus primórdios, a nova capital foi defendida como aspiração secular e corolário da afirmação de um Brasil moderno. Em contraste, mereceu, na mesma época, a condenação de críticos que a viram como expressão autoritária e epítome da falência do modernismo. Se, num certo momento, pretendeu-se afirmar uma história de Brasília, trata-se agora de problematizar os diversos processos envolvidos em sua formação urbana, que está longe de estar esclarecida e recusa-se a simplificações. Muito além da mera polarização entre defensores e detratores, na metrópole contemporânea, novas formas de vivência dos espaços e múltiplas representações desafiam as críticas tradicionais e atribuem à capital significados nunca previstos nas pranchetas de seus arquitetos ou nos discursos de seus fundadores. Estudos recentes reconhecem essa complexidade, revisitam questões aparentemente pacificadas e trazem à tona temas e problemas novos ou ainda pouco explorados.

A possibilidade de contribuir para um panorama mais arejado de discussões sobre Brasília, tal como propõe esse dossiê, é tributária de um esforço de longa data por parte de pesquisadores brasileiros e estrangeiros dedicados ao estudo histórico da capital. Sem pretender aqui uma apreciação do conjunto da historiografia, pode-se, muito brevemente, pontuar episódios marcantes nesses estudos e debates. Embora o Plano Piloto e sua icônica arquitetura tenham concentrado a maior parte das atenções, já nos anos 70 o processo de construção da cidade e a realidade da urbanização informal situada além do Plano Piloto passaram a ser objeto de investigação. Nesse aspecto, contribuições pioneiras vieram do campo da Antropologia, em trabalhos acadêmicos desenvolvidos por David Epstein (1973) e Gustavo Lins Ribeiro (1980, com publicação apenas em 2008). A cidade mereceu contínuas avaliações críticas, como se vê no conjunto de textos reunidos por Xavier e Katinsky (2012). No entanto, a discussão sobre Brasília foi tolhida pelo impacto duradouro das obras de caráter apologético e pelas implicações de abordar uma cidade que se tornara palco e símbolo da ditadura militar. Na avaliação de Vidal (2009, p.20), Brasília foi, durante quase duas décadas, assunto tabu para as ciências sociais brasileiras.

No contexto de lenta distensão política do país nos anos 80, a expansão dos estudos sobre Brasília foi parte de um novo momento na produção da pesquisa história sobre a cidade e o urbanismo no Brasil. Num panorama geral, a autonomização em relação à prática projetual e a consolidação de espaços acadêmicos específicos para a pesquisa começaram a dar forma a um campo disciplinar próprio da história das cidades, que permaneceu, porém, aberta às trocas interdisciplinares (PEREIRA, 2014; MELLO, CASTRO, 2016). Em Brasília, pode-se destacar o aparecimento de um conjunto de trabalhos de arquitetos, antropólogos, geógrafos e economistas, sob a coordenação do geógrafo Aldo Paviani, com ênfase na análise das condições estruturais do processo de urbanização no Distrito Federal. Entre os textos clássicos dessa produção, estão A metrópole terciária, de Aldo Paviani (1985) e Brasília, mitos e realidades, de Paulo Bicca (1985). Nessa época, em muitas faculdades brasileiras, a preocupação com políticas públicas e questões sociais sobrepôs-se ao estudo da forma das cidades (FERNANDES; GOMES, 2004). Os estudos realizados sobre a capital voltaram-se às condições políticas e sociais da sua construção. Mas, a configuração e a organização espacial também estiveram ao centro das preocupações, seja na análise do território metropolitano do DF, no âmbito da disciplina de geografia, seja na análise da dimensão morfológica dos espaços urbanos, com aplicações da teoria da sintaxe espacial pelo grupo liderado pelo arquiteto Frederico de Holanda.

Num panorama abrangente, após os anos 80, observa-se um esforço de pesquisadores e críticos brasileiros no sentido de superar “a ênfase em gênios isolados e heróis que marcava, então de forma quase exclusiva, a historiografia da arquitetura brasileira [do século 20]” ( ZEIN, 2018). Manifestou-se uma consciência mais clara da historicidade do moderno (GUERRA, 2011). Como parte do movimento de reavaliação da produção modernista, houve estímulo para se repensar a posição de Brasília – por vezes considerada modelo, clímax ou ocaso – numa trajetória mais complexa e multiestratificada. A crítica a Brasília e sua peculiar concepção expandiu-se.

Ainda no início dos anos 80, James Holston esteve em Brasília para o trabalho de campo que serviu de base para sua tese de doutorado, publicada em 1989 com o título The modernist city e tendo a 1ª edição brasileira em 1993. O livro permanece como referência clássica da crítica a Brasília, em sua análise de premissas e paradoxos do projeto e no exame dos modos de “abrasileiramento” da cidade construída, além de ter apontado sendas de interpretação depois aprofundadas por outros autores. No entanto, o livro de Holston (1993) também suscitou questionamentos de autores como GUERRA (2002) e GORELIK (2005) acerca dos seus métodos de análise da arquitetura moderna e também de Holanda (2010) sobre suas observações acerca de uma suposta ausência de vida urbana na cidade.

Ao lado de pesquisas feitas em centros nacionais e estrangeiros, a FAU-UnB também passou a ter contribuição mais efetiva numa renovação na historiografia e na crítica da cidade. Ainda no início dos anos 80, Sylvia Ficher iniciou prolífica carreira na UnB, desenvolvendo e orientando pesquisas pautadas pelo recurso à documentação e pela sistematização de dados, nas quais foi possível ampliar o leque dos “paradigmas” da concepção do Plano Piloto, analisar os desenvolvimentos desse projeto, apontar preexistências no território do DF e revelar a atuação de outros profissionais além dos protagonistas usuais (entre outros, FICHER, 2005, 2016; LEITÃO, FICHER, 2010; BATISTA et al , 2006). Na primeira década do século 21, como parte do movimento de expansão das universidades federais, de consolidação dos Programas de Pós-graduação e de fomento à articulação nacional e internacional de pesquisadores, configurou-se um ambiente favorável à ampliação dos trabalhos sobre Brasília. O aporte, na FAU-UnB, de novos professores voltados diretamente para a pesquisa intensificou a produção de estudos sobre a cidade tendo por base métodos e experiências obtidos em suas universidades de origem ou em estágios de pesquisa no exterior. Em paralelo, estruturaram-se em outros departamentos da Universidade núcleos e grupos de estudo dedicados à memória e história de Brasília, com evidente interesse pelas potencialidades do método de história oral.

Desde a época de sua construção, a cidade sediou encontros e seminários dedicados ao seu estudo e debate, cujos registros dão a ver mudanças nas formas de encará-la e expectativas diversas quanto ao seu crescimento. Enquanto em fins da década de 50 esteve em pauta a capital como possível expressão de uma síntese das artes, no início dos anos 70 sobressaiu a necessidade de planejar a expansão da mancha urbana e, na década de 80, avultaram as preocupações com as relações inter-regionais e a escala nacional dos seus problemas (PERPÉTUO, 2016). Nos últimos anos, discussões abertas ao público promovidas por instituições e órgãos de gestão da capital, tais como o IPHAN e a SEGETH, contribuíram para aproximar especialistas, alunos e pesquisadores e suscitaram estudos em perspectiva histórica sobre problemas diversos de preservação e planejamento. No quadro de pesquisadores de pós-graduação na FAU-UnB, há peculiar presença de servidores públicos cujo ponto de partida é a reflexão sobre seu próprio trabalho em órgãos da capital.

Ainda nos anos 80, a reorganização de acervos documentais e o apoio de instituições locais em muito facilitaram a realização de pesquisas sobre Brasília. Em meio à campanha por autonomia política do DF, depois estabelecida na Constituição de 1988, o interesse em consolidar uma memória da construção da capital levou à criação, em 1985, do Arquivo Público do Distrito Federal, principal repositório da documentação da Novacap. E, desde os anos 90, houve importantes iniciativas editoriais de divulgação de estudos até então inéditos ou de acesso limitado, além de coleções de caráter multidisciplinar lançadas pela EdUnB nas efemérides do cinquentenário da cidade.

Na produção mais recente sobre Brasília, a revisão da historiografia tradicional e dos mitos veiculados em discursos de autoridades e seus apoiadores nas décadas de 50 e 60 é uma temática fértil. Nessa direção, pode-se mencionar o livro De Nova Lisboa a Brasília, derivado da tese de doutorado de Laurent Vidal (2009) sobre os projetos políticos e planos urbanísticos aventados para a capital desde o século 19. Além de rever momentos fundacionais da capital, pesquisas provenientes de campos diversos da historiografia vem buscado desvendar as especificidades da cidade em contínua transformação, com suas variadas expressões culturais. Sem deixar de lado a documentação escrita tradicional ou os projetos e planos urbanísticos, emergiu para análise uma gama mais diversificada de fontes, provenientes não apenas de autoridades e experts, mas também de moradores do Plano Piloto ou de localidades distantes dele, migrantes de épocas diversas e observadores externos. Fotografias, revistas, filmes, músicas e poesias passaram a ser analisados como reinterpretações criativas sobre a cidade, entrecruzando discursos de autoridades e experiências cotidianas ali vivenciadas de modo subjetivo. No senso comum, as discussões sobre Brasília por vezes recaem no que Lucio Costa chamou de “jogo de gosto-não-gosto” ( COSTA, 1995, p. 323) ou na evocação nostálgica da epopeia da construção. Mas, mesmo tais posições são escrutinadas como parte das narrativas, imagens e representações produzidas sobre a cidade.

Este dossiê abre-se para algumas das muitas possibilidades de problematizar Brasília. E são muitas mesmo: por conta do alto número de submissões de qualidade recebidas e em reconhecimento da vitalidade dos estudos ora em curso, o dossiê foi dividido em dois números consecutivos. A organização em dois volumes foi possível graças à receptividade ao tema por parte da revista Urbana, cujo consistente trabalho editorial tornou-se referência no campo dos estudos históricos acerca do universo urbano moderno e contemporâneo.

A construção urbano-territorial e a construção simbólica de Brasília são temas privilegiados do dossiê. Neste primeiro volume, o intuito de pensar a extensa aglomeração urbana num amplo arco temporal e de revelar suas lógicas peculiares fez-se presente sobretudo nos dois primeiros artigos. Sylvia Ficher retoma os preceitos da concepção de Brasília – os “genes do seu DNA” – e as decisões tomadas quando da sua implantação, apontando desdobramentos no processo de expansão metropolitana. Seu texto analisa os fatores que atuaram na constituição de um tecido urbano esgarçado e um território fragmentado, numa crítica ao modo como a metrópole vem sendo ocupada e gerida. Numa abordagem distinta, mas também atentos ao ideário modernizador na base do projeto da nova capital e a suas implicações na configuração da metrópole, Carlos Henrique Magalhães de Lima e Carolina Pescatori baseiam seu artigo no conceito de “modernização seletiva” do sociólogo Jessé Souza. Os autores tomam como mote a trajetória de Zé Bigode, personagem do filme A cidade é uma só? para refletir sobre os princípios do arranjo territorial de Brasília. Na sequência, Thiago Perpétuo trata de outro tema central para a gestão da cidade contemporânea: seu reconhecimento como patrimônio cultural. O autor investiga documentos e discussões produzidos nos momentos iniciais do processo de preservação, apontando embates e tensões entre os diversos agentes envolvidos. Sua análise vem desmistificar entendimentos usuais sobre um período que, mais tarde, viria ser evocado de modo a legitimar um modelo de preservação.

Os dois artigos finais do dossiê detém-se em interpretações e representações produzidas acerca da cidade por agentes bem distintos e em períodos também muito diferentes, mas não de todo apartadas. Fábio Franzini dedica-se à análise de um conjunto de discursos produzidos durante a segunda metade da década de 1950, no contexto da idealização, concepção, construção e inauguração de Brasília. Sem deixar de observar as nuances das várias falas, o autor faz aproximações entre textos seminais da crítica à Brasília de autores como de Gilberto Freyre, Mário Pedrosa e Milton Santos. Sua análise ressalta o modo como o passado é revisto e, sobretudo, a identificação entre a forma de Brasília e a projeção do futuro. Já no artigo de Renata Almendra, os grafites realizados em galerias subterrâneas, muros e viadutos de Brasília são reveladores de experiências e sensibilidades de uma geração que habita a metrópole e intervém em seus peculiares espaços deixando marcas territoriais. Como mostra a autora, os grafites assimilam, de modo próprio, temas do repertório heroico e monumental presentes nos discursos sobre Brasília e também evidenciam preocupações com problemas sociais e políticos recentes.

Dos planos urbanísticos e discursos iniciais aos filmes e grafites sobre Brasília, a cidade foi concebida e assimilada de muitas maneiras. Esse conjunto de textos – a que se somarão os artigos do número seguinte deste dossiê – aponta, enfim, não para uma relação unívoca entre forma material e forma simbólica, como se pretendeu outrora, mas para algumas das várias possíveis abordagens na interpretação e contínua reinvenção da cidade planejada.

Referências

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DERNTL, Maria Fernanda. Editorial. Urbana. Campinas, v.10, n.2, maio / ago, 2018. Acessar publicação original [DR]

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