Fronteiras, Migrações e Identidades nos mundos pré-modernos / Fronteiras – Revista Catarinense de História / 2020

A Ciência da História está interessada em compreender como as sociedades, nas mais distintas temporalidades, produziram para si e para os outros, diferentes formas de orientação e sentido no tempo, tanto para ações individuais quanto para as coletivas. Trabalhando com os indícios documentais e diversas historiografias disponíveis, o historiador consegue propor análises e reflexões que objetivam compreender, entre tantas possibilidades, os mecanismos de identificação, regulamentação social, processos conflituosos ou diplomáticos entre diferentes grupos sociais ou sociedades distintas. Em tempos de interações e conexões entre o local e o global, as ciências humanas tem se dedicado cada vez mais aos estudos das fronteiras, processos migratórios e identidades, de modo a discutir como estes fenômenos relacionam-se com a produção de orientação e sentido no tempo.

O dossiê Fronteiras, Migrações e Identidades nos mundos pré-modernos, proposto pelos professores Dominique Vieira Coelho dos Santos (FURB / Blumenau) e Renato Viana Boy (UFFS / Chapecó), abre espaço para questões dessa natureza, contemplando reflexões interdisciplinares que debatam as complexas relações entre fronteiras, migrações e identidades nos mundos pré-modernos. Reunimos aqui um grupo de seis artigos de pesquisadores e pesquisadoras que se dedicam ao estudo de temáticas situadas cronologicamente antes do período que chamamos de Modernidade, além de uma entrevista com o professor de História da África da Universidade Federal do Paraná, Otávio Luiz Vieira Pinto.

Dois artigos escolheram abordar a temática das sociedades pré-modernas enfatizando Roma Antiga. O primeiro deles, As trocas de correspondências entre Tibério César e a aristocracia senatorial durante seu afastamento para Capri (26 – 37 d.C.): uma análise dos crimes de traição nos Anais de Tácito, escrito por Rafael da Costa Campos, teve como objetivo expor a importância das trocas de correspondências como fundamental ferramenta política e administrativa do Principado. A análise ficou concentrada no período em que Tibério César se afastou de Roma e residiu na ilha de Capri (26 – 37 d.C.). O afastamento do princeps foi um marco de inflexão política em seu governo, e as trocas de correspondências apresentadas por Tácito em seus Anais expõem o seu impacto sob a aristocracia mediante a intensificação dos casos de acusações e condenações pelo crime de traição (maiestas). O segundo artigo, intitulado Uma República degradada: breve estudo da guerra de Jugurta de Caio Salústio Crispo, de Alice Maria de Souza, por sua vez, analisa a obra Guerra de Jugurta, de Caio Salústio Crispo, escrita durante o Segundo Triunvirato. Considerando os elementos exteriores ao texto em si – tais como contexto, objetivos do autor e gênero – interpreta o referido documento não somente como produto de apropriações do passado, mas, também como produtor de novas representações, servindo como veículo de transmissão e ressignificação da memória. Vemos, então, uma problemática envolvendo História e Memória. É o que faz Erick Carvalho de Mello, mas, agora, abordando a temática do celtismo e da celticidade. Sua reflexão, proposta no artigo O Mito e a cultura de memória Celtas: Uma convergência de imaginários, parte do campo da Memória Social, não da Ciência da História, mas, em um constante diálogo interdisciplinar, aborda o papel das diferentes apropriações do que se entende por “cultura celta” na formação das identidades nacionais de grupos como irlandeses, escoceses e bretões franceses. O autor procurou identificar como o mito do celtismo é construído na História recente e como a partir deste mito uma cultura de memória é formada e nos possibilita ter uma compreensão mais aprofundada sobre os conflitos históricos que esses grupos enfrentam hoje, sem deixar de dialogar com a forma como a temática tem sido tratada quando o foco são as populações prémodernas, se decidirmos denominá-las de “celtas” ou não.

O artigo Multiculturalidade e a Christiana Civilitas na Britannia de Guildas (s. VI), escrito a quatro mãos por Helena Schütz Leite e Renan Frighetto, se propõe a discutir sobre as transformações observadas no século VI na Britannia do século VI não sob o prisma da decadência e destruição do mundo romano no Ocidente europeu, visão muito presente na tradição historiográfica sobre o período. Diferente disso, os autores propõem, através do estudo da obra De Excidio Britanniae, de Gildas, perceber a pluralidade cultural que é possível observar ali, e a busca por uma identificação que aproximasse dos diferentes reinos da Britannia na Antiguidade Tardia.

Outro artigo que também lida com a questão das identidades e historiografia é A fronteira entre cristãos e muçulmanos: uma terra de ninguém?, escrito por Márcio Felipe Almeida. Entretanto, o ponto central das análises do autor está no espaço de fronteira disputado por populações cristãs e islâmicas no século XIII. Vale ressaltar que a fronteira, neste caso, não é uma linha divisória entre dois territórios, como se pode pensar à primeira vista. Diferente disso, neste artigo, Márcio Almeida discute a fronteira como sendo, ela mesma, um território pretendido pelos dois grupos em questão.

O último artigo deste dossiê é aquele que avança mais próximo do fim do período chamado de pré-moderno, intitulado A Colonização Oriental e os Processos de Reformulação Rural em Brandemburgo (séculos XII–XIV). Neste artigo, Álvaro Mendes Ferreira se dedicou a analisar o processo de transformações no espaço rural do Europa oriental, ocorridas no período assinalado, em virtude do processo de consolidação do regime senhorial. Tendo os processos na Marca de Brandemburgo como estudo de caso, o autor busca compreender como os vilórios eslavos se enquadravam neste cenário de transformações.

Por fim, apresentamos ainda uma entrevista com o professor Dr. Otávio Luiz Vieira Pinto, que tem dedicado suas pesquisas ao mundo persa e às trocas culturais entre os grupos da costa Suaíli, na África, e os grupos árabes e iranianos do Oriente Médio, entre os séculos VI e XI. Atualmente, Otávio Vieira Pinto é professor de História da África da Universidade Federal do Paraná, pesquisador do Middle Persian Studies (MPS) e do NEMED (Núcleo de Estudos Mediterrânicos), além de colaborador do projeto internacional Networks and Neighbours.

Além dos textos que compõem o dossiê, este número traz também dois artigos e duas resenhas. O artigo de Darlan Damasceno e Gilmar Arruda, intitulado Religiosidade e Natureza: imigrantes ucranianos e a transformação do meio ambiente (Paraná 1890-1915), aborda como a religiosidade dos imigrantes ucranianos atuou no processo de ressignificação e transformação do meio ambiente entre os anos 1890 e 1915, na região centro-sul do Estado do Paraná. As fontes utilizadas pelos autores, indicam que a religiosidade dos imigrantes foi fundamental no processo de (re)construção da realidade social nas colônias, e para moldar o modo de vida dos indivíduos através de esquemas de percepção inscritos em suas ações.

No texto de Cássila Cavaler Pessoa de Mello, De estrangeiro a cidadão: o processo de naturalização instaurado em 1832 e seus limites, a autora discute o processo de naturalização instaurado no Império do Brasil a partir da Lei de 23 de outubro de 1823. Aponta os motivos que estimularam os estrangeiros a buscarem o título de cidadão brasileiro e expõe os trâmites e as dificuldades enfrentadas por aqueles que optavam por se tornar cidadãos. O texto explora tanto a perspectiva estatal, quanto a dos indivíduos neste percurso.

Na seção resenha, temos dois instigantes textos. Um novo estudo sobre a vida de Marx, uma resenha de Daniel de Souza Lemos, trata da obra Karl Marx: uma biografia dialética, publicada no Brasil em 2019, de autoria de Angelo Segrillo, professor de História Contemporânea e coordenador do Laboratório de Estudos da Ásia do Departamento de História, na USP. O texto de Isabel Schapuis Wendling, intitulado Modelando Condutas: uma resenha da obra sobre os poderes nas escolas católicas masculinas no Brasil, resenha a obra Modelando Condutas: educação católica em escolas masculinas de Roseli Boschilia, publicada pelo museu Paranaense em 2018.

Este dossiê e os demais artigos que compõem o número 35 da Fronteiras: Revista Catarinense de História estão fundamentados na proposta de uma história plural, que dispõe de espaço às múltiplas possibilidades de análises históricas de populações, personagens e acontecimentos em tempos recuados, definidos aqui como pré-modernos até a atualidade mais recente, focos dos textos que se enquadram fora do nosso dossiê. Afinal, se a História é a Ciência dos seres humanos no tempo e quem faz História é como o ogro da lenda, que, ao farejar carne humana, vê ali sua caça, para lembrarmos uma célebre reflexão do medievalista francês March Bloch, não é possível nos contentarmos com qualquer narrativa supostamente historiográfica que deixe de contemplar estas outras dinâmicas espaço-temporais tão importantes para compreendermos nossa própria historicidade.

Desejamos uma proveitosa leitura!

Dominique Vieira Coelho dos Santos (FURB)

Renato Viana Boy (UFFS)

Organizadores do Dossiê

Samira Peruchi Moretto (UFFS) Editora


SANTOS, Dominique Vieira Coelho dos; BOY, Renato Viana; MORETTO, Samira Peruchi. Apresentação. Fronteiras: Revista catarinense de História. Florianópolis, n.35, 2020. Acessar publicação original [DR]

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Regulação de conflitos na Idade Média / Tempo / 2020

Entre poderes: jurisdições e regulação de conflitos na Idade Média. Séculos V ao XV

Nas últimas duas décadas, as pesquisas referentes a estudos sobre a Idade Média experimentaram um vertiginoso e consistente crescimento na historiografia produzida por pesquisadores brasileiros. Neste caso, não se trata apenas do aumento no número de publicações na área, sejam em livros, artigos ou anais de eventos científicos. Para além disso, destacamos que as pesquisas sobre o período medieval vêm experimentando um reconhecimento nacional e internacional, verificado através do surgimento de novos laboratórios e grupos de pesquisa, fortalecimento dos trabalhos em rede com historiadores e universidades estrangeiras, e pela “democratização” do acesso a uma bibliografia atualizada e fontes documentais, fruto dos constantes processos de digitalização e disponibilização on-line do material de pesquisa em História Medieval.

O resultado do fortalecimento da área dos estudos medievais apresenta ainda outra consequência extremamente positiva: a diversificação nas temáticas de pesquisa. Atualmente, encontramos pesquisas que se localizam nos mais diversos recortes temporais, geográficos, temáticos, o que permite o fortalecimento do diálogo com outras ciências, como Arqueologia, Ciência Política, Direito, Literatura, Artes e Antropologia.

Devido a esse cenário de transformações e fortalecimento da área junto aos estudos de História no Brasil, hoje em dia não caberia uma proposta de dossiê junto a um periódico apenas pautado pelo título de “História Medieval” ou “Idade Média”. Por isso, este dossiê não é recortado apenas por balizas cronológicas amplas em comparação com outros períodos da História (Moderna, Contemporânea, Colonial, do Tempo Presente, entre outros). Mais do que isso, trazemos aqui artigos que lidam de maneira mais específica com questões relacionadas ao recurso à Justiça e suas formas específicas de ação, legitimação e atuação, bem como a compreensão sobre sua função de intermediar e promover a resolução de conflitos no período medieval.

Atualmente, o termo jurisdictio designa, de forma relativamente precisa, a instituição do Judiciário, ou seja, o poder de julgar e, por extensão, o limite desse poder. Esta compreensão se desenvolveu, sobretudo, a partir do século XVIII. No final da Idade Média, a etimologia da palavra jurisdictio refletia sua íntima ligação com determinadas práticas legais. Associados a ela, encontramos ainda os termos edictum (editar) e dictum, “o que ele diz”, recorrente nos inquéritos e procedimentos judiciais em geral. (Billorè; Mathieu, 2012)

Todavia, quando recuamos alguns séculos no tempo, percebemos que a concepção medieval de jurisdictio deve boa parte de sua significação à estruturação institucional da Igreja. A ausência de uma definição estrita de jurisdictio, longe de levar apenas à confusão em sua compreensão, multiplicava as possibilidades de extensão dos usos do poder da justiça. Dessa forma, era por meio de uma malha de superposições jurisdicionais que muitos conflitos eram regulados no período medieval (Guillot; Rigaudière, 1999).

Nesta perspectiva, o que este dossiê pretende é apresentar um panorama da problemática sobre a Justiça e o exercício do poder em diferentes contextos de resolução de conflitos, contribuindo para o fortalecimento de um debate importante no âmbito da historiografia do Direito e suas aplicações no estudo das sociedades medievais. Acreditamos que os artigos aqui apresentados possibilitarão ao leitor o contato e algumas reflexões com abordagens historiográficas atualizadas sobre o tema. Além da aproximação com a área do Direito e da Ciência Política, o dossiê Entre poderes: jurisdições e regulação de conflitos na Idade Média. Séculos V ao XV também propõe um diálogo mais próximo com outras áreas da História, como a História Moderna, na medida em que a questão do estudo das jurisdições é temática recorrente em ambas as áreas.

Assim sendo, o dossiê se inicia com o artigo de Marcelo Cândido da Silva, “Valor e cálculo econômico na Alta Idade Média”, trazendo uma reflexão sobre a presença do cálculo econômico na definição dos preços dos gêneros alimentícios, partindo da análise da relação entre avaliação dos produtos e definição de seus preços. O autor trabalhou com documentos oriundos da Gália e da Península Itálica.

Na sequência, dois artigos que tratam do mundo anglo-saxônico e anglo-normando, a partir de recortes cronológicos e documentais distintos. No trabalho intitulado “Propriedade fundiária na Nortúmbria anglo-saxônica: jurisdição, conflito e confluências (século VIII)”, Renato R. da Silva discute, a partir da análise da questão fundiária na Inglaterra anglo-saxônica, como se davam as redefinições, discussões e conflitos presentes sobre esta questão, uma vez que a jurisdição sobre os regimes de propriedades ainda não se apresentava plenamente constituída e uniformemente aceita nesta sociedade. Já José Manuel Cerda propõe uma análise sobre a distinção dos conselhos gerais e do conselho privado e cerimonial durante o período de governo de Henrique II, na segunda metade do século XII. Percebendo uma ampliação das grandes assembleias, Cerda verifica que Henrique II e sua corte teriam introduzido um grande número de reformas e medidas, apoiadas pelo consentimento baronial. Suas reflexões estão presentes no artigo “King Henry Plantagenet in the midst of his barons: public and territorial consultation at great assemblies in England (1155-1188)”.

Os dois últimos artigos deste dossiê lidam com análises localizadas na Península Ibérica, concentrando-se no estudo da atuação do poder real, não restrito exclusivamente à figura do monarca. No artigo “Inquirir em nome de Afonso II: a jurisdição régia a serviço da aristocracia cristã (Portugal, século XIII)”, Maria Filomena Coelho coloca em discussão certa naturalidade presente nas análises sobre as iniciativas régias do governo de Afonso II em Portugal. A autora propõe uma relativização sobre a visão dessa centralização do poder real que permite ampliar os estudos das inquirições, ligando-as a um cenário político mais amplo e menos centrado na figura do monarca.

Por fim, encerrando este dossiê, no artigo “Jurisdições das rainhas medievais portuguesas: uma análise de queenship”, Mirian Coser propõe uma análise a respeito de como os domínios da rainha de Portugal sobre determinadas propriedades conferiam a ela não apenas recursos econômicos, mas também o exercício da Justiça. Por meio da pesquisa sobre as crônicas do reino, a autora aponta para o fato de os recursos econômicos e exercício de uma Justiça por parte da rainha constituírem um espaço de poder legítimo que se relaciona não apenas com o matrimônio, a linhagem e a maternidade, mas também com o patrocínio, a piedade religiosa e a intercessão junto ao rei, inclusive nos assuntos da guerra.

Portanto, tendo como eixo os estudos sobre a Justiça e o exercício do poder na Idade Média, o dossiê Entre poderes: jurisdições e regulação de conflitos na Idade Média. Séculos V ao XV apresenta cinco artigos que mantêm o foco no tema proposto, mas diversificam a análise tanto no que diz respeito às balizas temporais, com trabalhos que tratam desde a Alta até a Baixa Idade Média, como também nos recortes geográficos, apresentando reflexões sobre a Gália, a Península Itálica, a Inglaterra anglo-saxã, a Inglaterra anglo-normanda e o mundo Ibérico. Acreditamos que os trabalhos aqui reunidos representam, em diferentes medidas, os impactos recentes das reflexões propostas por uma Nova História Política e pela Nova História Cultural.

Referências

BILLORÈ, Maitre; MATHIEU, Isabelle; AVINGNON, Carole. La justice dans la France Médiévale. VIIe-XVe siècle. Paris, Armand Colin, 2012. [ Links ]

GUILLOT, Olivier; RIGAUDIÈRE, Albert; SASSIER, Yves. Pouvoirs et institutions das la France médievale: des origines à l’époque féodale. Tome 1. 3 ed. Paris, Armand Collin, 1999. [ Links ]

Fabiano Fernandes – Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), campus Guarulhos (SP), Brasil. E-mail: fabfer2007@hotmail.com http: / / orcid.org / 0000-0002-1384-9156

Renato Viana Boy – Universidade Federal da Fronteira Sul (UFFS), campus Chapecó (SC), Brasil. E-mail: renatoboymedieval@gmail.com http: / / orcid.org / 0000-0001-5500-6256


FERNANDES, Fabiano; BOY, Renato Viana. Apresentação. Tempo. Niterói, v.26, n.1, jan. / abr., 2020. Acessar publicação original [DR]

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Exercício do poder na idade média e suas representações: novas fronteiras, novos significados / Anos 90 / 2019

Esta publicação é fruto da intensificação de debates dirigidos por um grupo multi-institucional e internacional de pesquisadores(as) latino-americanos(as) que a cada dois anos, desde 2016, tem se reunido nas atividades da Rede Latino-Americana de Estudos Medievais.1 A Rede não se propõe nem se apresenta como uma Associação. Os(as) pesquisadores(as) nela reunidos(as) consideram que entidades como a Sociedad Argentina de Estudios Medievales (SAEMED) e a Associação Brasileira de Estudos Medievais (ABREM) cumprem esse papel. A ideia é, portanto, estimular diálogos e atividades sistemáticas de modo a intensificar e qualificar cada vez mais a produção historiográfica sobre o medievo para além dos espaços europeus, sem, obviamente, abrir mão dos convênios, acordos e parcerias com instituições desse continente.

As atividades da Rede começaram a concretizar-se a partir do Foro Internacional Estudios Medievales en Red, ocorrido na Universidad Nacional de Costa Rica, e no II Encontro, realizado na Universidade Federal da Fronteira Sul, em Chapecó (2016 e 2018 respectivamente). Desses encontros foram definidas ao menos duas publicações que colocam em perspectiva diferentes formas de se pesquisar Idade Média: a obra La edad media en perspectiva latinoamericana2, publicada em 2018, e este dossiê publicado pela Anos 90.

Esta proposta visa a ampliar a visibilidade da produção historiográfica latino-americana no campo dos estudos medievais. Objetivo que consideramos plenamente alcançado. A justificativa fundamenta-se no fato de ser possível perceber um crescimento substancial e cada vez mais especializado na área. Junto a este crescimento quantitativo, observa-se, ainda, uma diversidade e originalidade nas abordagens historiográficas, temáticas e conceituais. Cabe ressaltar que a Anos 90 se insere, com esta publicação, em um contexto de recente interesse de periódicos nacionais pela temática da Idade Média, como a Revista Brasileira de História, Revista de História, Tempo, Esboços e História em Revista. 3

Exercício do poder na Idade Média e suas representações: novas fronteiras, novos significados reúne dez trabalhos de pesquisadores(as) do Brasil, Chile, Costa Rica, México e França. Pode ser compreendido como uma publicação dividida e pensada em ao menos dois eixos: o primeiro remete às recentes disputas sobre o ensino escolar de história medieval e às reflexões de cunho historiográfico. O texto de Douglas Mota Xavier de Lima abre o dossiê à medida que toca em temas candentes e extremamente atuais sobre os usos públicos da Idade Média – não apenas no Brasil – e, principalmente, no contexto da elaboração / implementação da Base Nacional Comum Curricular (BNCC). Este primeiro artigo do dossiê se dedica, especialmente, a discutir a presença do tema da Idade Média na educação escolar, tendo como documento principal de suas análises três versões da BNCC.

Outros dois trabalhos foram feitos por historiadores mexicanos. No artigo “Claudio Sánchez- -Albornoz y la preocupación por el método o cómo hacer historia medieval desde América Latina”, Martin Federico Rios Saloma investiga o trabalho deste medievalista espanhol, especialmente sua atuação durante seu período de exílio na Argentina. Seus vínculos com medievalistas europeus e seu conhecimento sobre fundos documentais espanhóis serão as bases para a análise de seu trabalho como docente e pesquisador em História Medieval.

Diego Carlo Améndolla Spínola, por seu turno, traz no artigo “Feudalismo: estado de la cuestión, controversias y propuestas metodológicas en torno a un concepto conflictivo, 1929-2015” um estudo não de um historiador em especial, mas de um conceito: o feudalismo. Para tanto, o aporte historiográfico utilizado pelo autor lida com medievalistas alemães, franceses, ingleses e italianos, não com o objetivo específico de definir o conceito, mas de verificar as transformações em sua compreensão e seu uso.

O segundo eixo do dossiê está organizado a partir de aspectos cronológicos, sendo composto pela maior parte dos artigos aqui presentes. Contempla, portanto, diferentes abordagens que assim se caracterizam seja pela diversidade de objetos (relações entre romanos e bárbaros, concílios, mosteiros), espaços (França, Itália, Inglaterra, Alemanha e Castela) e tipos documentais (narrativos, jurídico-normativos, tratadística, arqueológicos).

Neste segundo eixo, Renato Viana Boy apresenta uma discussão historiográfica sobre as relações de poder e autoridade no mundo mediterrânico do século VI entre romanos bizantinos e bárbaros. Mais do que perceber neste espaço e período apenas as disputas e conflitos, o autor tenta encontrar possíveis relações políticas que poderiam aproximar populações, à primeira vista, distantes.

Outros três artigos lidam com reflexões que têm a Península Ibérica como recorte geográfico. No primeiro deles, intitulado “A imagem historiográfica de Hugo de Cluny em Leão (séc. XI-XII)”, Maria Filomena Pinto da Costa Coelho apresenta uma análise historiográfica sobre a força política do abade Hugo de Cluny, para além de seu espaço de atuação nos domínios da religião, durante o reinado de Afonso IV. Em “O poder sacralizado dos clérigos de Castela (século XIII e início do século XIV)”, Leandro Alves Teodoro analisa, para os séculos XIII e XIV, o processo de sacralização da Eucaristia e a celebração de missas como parte do revigoramento da ação pastoral dos bispos ibéricos, ampliando o espaço de atuação das igrejas paroquianas. Ainda sobre o recorte ibérico, Armando Torres Fauaz, no artigo “Representación y delegación de poderes. Los usos públicos del mandato en el ducado de Borgoña (siglos XIII-XIV)”, apresenta-nos um estudo sobre o exercício de um governo laico no Ocidente medieval, a partir da prática romana do mandato no ducado da Borgonha dos séculos XIII e XIV, como sendo uma atividade central nas práticas de representação de autoridade. Os outros artigos deste dossiê lidam com temáticas aplicadas para além do espaço ibérico. Em “‘Assembled as one man’. The councils of Henry II and the political community of England”, José Manuel Cerda se dedicou a analisar a presença das communitas ou universitas regni como uma comunidade de nobres que eram peça-chave na compreensão das origens parlamentares inglesas. O artigo “Redes e centros de poder no Centro-Oeste Gaulês na primeira Idade Média (séculos V-X)”, de autoria de Adrien Bayard, trabalhou a relação entre fontes de natureza escrita e arqueológica para o estudo das redes estabelecidas entre grupos aristocráticos locais e representantes do poder visigodo e, depois, franco, nas dioceses de Angolema e Saintes, entre os séculos V e X. E, fechando o dossiê, no artigo “O abade, o poeta e o charlatão: reflexões acerca de esoterismo e política nos séculos XV e XVI”, onde o historiador Francisco de Paula Sousa Mendonça Júnior trabalhou com a relação entre esoterismo e política no processo de transição do regimen animarum para a Razão de Estado. Para tanto, Francisco se utilizou de fontes de origem alemãs e italianas.

Assim, entendemos que a reunião de artigos presentes no dossiê Exercício do poder na Idade Média e suas representações: novas fronteiras, novos significados apresenta não apenas um apanhado de recentes pesquisas sobre o medievo, mas também demonstra uma forte articulação da produção historiográfica brasileira e estrangeira (em especial, latinoamericana) sobre a Idade Média. Além desse diálogo mais próximo entre pesquisadores de diferentes países, os artigos que compõem este dossiê demonstram, ainda, uma variedade que se dá em aspectos distintos: temático, cronológico, geográfico, documental e metodológico. Assim, acreditamos que os objetivos traçados nos momentos de encontro dos pesquisadores da Rede Latino-Americana de Estudos Medievais, que se fundamentavam basicamente na produção e divulgação de trabalhos que prezam pela qualidade, atualidade, diversidade e intenso diálogo entre medievalistas de diferentes espaços, tenham sido alcançados neste dossiê.

Notas

1. Informações sobre a Rede em: http: / / edadmedia.cl / rede-latino-americana-de-estudos-medievais /

2. TORRES FAUAZ, A. (org). La edad media en perspectiva latinoamericana. Heredía: EUNA, 2018.

3. Considerando de 2016 a 2019, e incluindo este dossiê da Anos 90, foram / estão para ser publicados ao menos 6 dossiês sobre o medievo. Este número é mais amplo se considerarmos outras publicações, como a Antíteses e a Diálogos Mediterrânicos. Essa inserção / ampliação das publicações se dá além das duas revistas mais específicas da área, Signum e Brathair. Importante considerar também a Revista Chilena de Estudios Medievales e a Temas Medievales, Argentina. Todas podem ser acessadas online e gratuitamente.

Igor Salomão Teixeira – Professor do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). E-mail: teixeira.igor@gmail.com http: / / orcid.org / 0000-0002-6866-9654

José Manuel Cerda Costabal – Professor da Universidad Gabriela Mistral, Santiago, Chile. Doutor em História pela University of New South Wales, Sydney, Austrália. E-mail: joecerda@gmail.com http: / / orcid.org / 0000-0002-6175-774X

Renato Viana Boy – Professor da Universidade Federal da Fronteira Sul (UFFS), Campus Chapecó, SC, Brasil. Doutor em História Social pela Universidade de São Paulo (USP). E-mail: renatoboymedieval@gmail.com http: / / orcid.org / 0000-0001-5500-6256


BOY, Renato Viana; COSTABAL, José Manuel Cerda; TEIXEIRA, Igor Salomão. Apresentação. Anos 90, Porto Alegre, v. 26, 2019. Acessar publicação original [DR]

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