Deslocamentos: trabalho e identidades / História – Questões & Debates / 2012

A emergência dos fenômenos ligados à dispersão populacional, sejam estes relacionados à experiência das migrações internas ou aos chamados movimentos transnacionais, também conhecidos como “novas diásporas”, tem motivado um número crescente de pesquisas em diferentes áreas das ciências humanas, frequentemente voltadas às reflexões sobre o deslocamento de pessoas entre países, regiões e continentes, bem como aos seus desdobramentos.

Desde o século XIX, quando o fenômeno das migrações internas e externas ganhou intensidade, em decorrência da expansão do capitalismo e do avanço tecnológico dos meios de transporte e das comunicações, os deslocamentos migratórios adquiriram maior visibilidade, refletindo as assimetrias presentes nas relações socioeconômicas, bem como as contradições existentes na sociedade capitalista. Todavia, somente a partir da segunda metade do século XX, e particularmente nas últimas décadas do milênio, as temáticas acerca dos trânsitos migratórios passaram a ser estudadas com maior afinco por historiadores, geógrafos, antropólogos, economistas e sociólogos, interessados em analisar o fenômeno não só a partir das questões ligadas à mundialização da economia capitalista ou aos conflitos étnicos, políticos e religiosos – fatores estes que, sem dúvida, foram responsáveis pela dispersão de grandes contingentes populacionais, sobretudo a partir do oitocentos –, mas também preocupados em ultrapassar essas abordagens, procurando refletir igualmente a respeito das experiências compartilhadas por pessoas ou grupos que, motivadas por fatores ideológicos, históricos e sociais, protagonizaram esses múltiplos movimentos.

O crescente interesse pelas rupturas, descontinuidades e desigualdades inseridas no interior de uma complexa teia de relações de poder envolvidas nos processos de deslocamento fez com que pesquisadores interessados nesta temática se aproximassem das reflexões empreendidas por autores vinculados aos estudos culturais, dentre os quais se destacam Hommi Bhabha, Edward Said, Arjun Appadurai, Stuart Hall e Nestor Canclini. Abrigados no arcabouço teórico identificado como pós-colonialista, estes autores contribuíram para a emergência de conceitos como desterritorialização, alteridade, exclusão, resistência, identidade e multiculturalismo, estreitamente vinculados às práticas migratórias e, portanto, apropriados para as análises que buscam privilegiar experiências de sujeitos deslocados.

Os artigos reunidos no dossiê temático deste volume expressam, em seu conjunto, este interesse cada vez maior pela dimensão subjetiva das migrações. Os aspectos relacionados às experiências vivenciadas nas sociedades de origem ou de destino são ressaltados pelos artigos de Montserrat Soronellas Masdeu, Suzana Serpa Silva e Joseli Mendonça. O primeiro, contemplando o estudo de sociedades agrárias da Catalunha, no século XX, mostra as consequências ambíguas dos deslocamentos populacionais para tais sociedades: de um lado, a urbanização e o êxodo rural dela decorrente favorecem o despovoamento das áreas agrícolas, impondo dificuldades para as comunidades locais; de outro, a migração internacional, ensejada pela globalização, facilita o fenômeno de repovoamento das áreas rurais, possibilitando projetos de desenvolvimento local. Esta dinâmica migratória, defende a autora, faz com que as sociedades agrárias da Catalunha se “reinventem” como sociedades rurais.

Os artigos de Susana Serpa Silva e Joseli Mendonça enfocam principalmente as experiências de precarização das condições sociais vivenciadas pelos sujeitos que se deslocam. O primeiro trata da migração clandestina de açorianos para o Brasil nos anos 1830. Na perspectiva de autoridades portuguesas e da própria opinião pública em Portugal, os açorianos que migravam eram submetidos a uma “escravidão branca” nas áreas para as quais se dirigiam. Como indica a autora, em uma época em que se procurava reprimir e extinguir o tráfico de escravos, a degradação da condição dos trabalhadores açorianos que se deslocavam era equiparada à dos escravos. Também relacionando tráfico de escravos e transferência de trabalhadores livres, o artigo de Joseli Mendonça analisa a legislação brasileira que, vigente desde os anos 1830, regulava contratos de trabalho, criando condições para que se configurasse a “escravidão branca” constituída na percepção a que se refere Suzana Serpa Silva. Proposta e aprovada em contextos nos quais as restrições ao tráfico de escravos se intensificavam, esta legislação objetivava favorecer os “importadores” de mão de obra, limitando sobremaneira a autonomia dos trabalhadores.

Na sequência, os artigos de Roseli Boschilia e Maria Izilda Santos de Matos enfocam, a partir de corpus documentais diversos, aspectos relacionados às experiências individuais vivenciadas por imigrantes portugueses. Enquanto Roseli Boschilia, ancorada em documentos de caráter mais oficial, dentre os quais se destacam os pedidos de passaporte, registros de desembarque e pedidos de naturalização, analisa o perfil dos imigrantes portugueses que se dirigiram ao Paraná durante a segunda metade do século XIX, Maria Izilda Santos de Matos privilegia cartas e correspondências privadas para investigar a presença dos imigrantes portugueses em São Paulo, procurando, a partir destes documentos, rastrear não só os vínculos estabelecidos e os circuitos de sustentação nas regiões de saída e de acolhimento, mas também tensões e frustrações, possibilidades de reencontros e reconstituição familiar.

Num terceiro bloco, fechando o dossiê, estão os artigos de Regina Weber e Marcelo Garabedian, com reflexões voltadas à imigração espanhola. Interessada em estudar as manifestações de identidade étnica dos espanhóis que, ao longo do século XX, se radicaram no Rio Grande do Sul, Regina Weber analisa as manifestações étnicas destes imigrantes e seus descendentes, observando fatores econômicos e culturais internos e externos ao grupo, no intuito de refletir acerca das formulações identitárias que decorrem das práticas de agregamento gestadas na sociedade de destino.

Já o argentino Marcelo Garabedian faz uma reflexão sobre a imprensa imigrante a partir da análise do periódico El Correo Español, principal jornal da colônia espanhola editado na Argentina durante o século XIX. Neste artigo, o autor procura destacar o protagonismo deste periódico para a consolidação institucional da imigração espanhola no seu país, assim como sua contribuição para as discussões políticas e culturais, intimamente associadas ao projeto de construção do nacionalismo espanhol no interior da sociedade argentina.

Além dos textos que compõem o dossiê, este volume traz ainda um artigo sobre o ensino de História, de autoria de André Luiz Paulilo, que tem como objeto de análise os manuais didáticos da área de História, destinados especialmente aos professores do ensino fundamental. No texto, o autor procura problematizar o papel exercido por esta modalidade de documentos sobre os pressupostos teóricos que orientam a prática de ensino de docentes que trabalham em escolas públicas.

Por fim, na seção de resenhas, são apresentados três textos. O primeiro deles, de Renata Senna Garraffoni, discute a obra de Salvatore Settis, The future of the “Classical”; o segundo, de Igor Zanoni Constant Carneiro Leão e Demian Castro, traz considerações sobre o texto Pós-modernidade, mal-estar, violência: uma leitura de Maria Laurinda Ribeiro de Souza; e o terceiro, de Daniel Augusto Arpelau Orta, trata da obra de David Levering Lewis, O Islã e a formação da Europa de 570 a 1215.

Roseli Boschilia

Joseli Mendonça

Junho de 2012


BOSCHILIA, Roseli; MENDONÇA, Joseli. Apresentação. História – Questões & Debates. Curitiba, v.56, n.1, jan. / jun., 2012. Acessar publicação original [DR]

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Hannah Arendt na história: da felicidade, da amizade e do amor / História – Questões & Debates / 2007

Hannah Arendt foi uma pensadora, cujas reflexões no campo da política e da filosofia a transformaram em uma importante figura no cenário da teoria política contemporânea.

Intelectual independente e solitária, por ter se mantido afastada de escolas acadêmicas, partidos políticos e linhas ideologias, a autora pertence ao pequeno grupo de pensadores que não se curvam diante dos poderosos e do pensamento único, que se mantém fiel a si mesmos e cuja obra expressa essa lealdade numa escala e abrangência maior. A atualidade e pertinência de suas análises acerca do efeito devastador da modernidade sobre a esfera do político e da liberdade nos regimes totalitários do século XX, transformaram suas obras em leitura obrigatória em diferentes áreas do conhecimento.

No campo da História, embora Hannah Arendt tenha conferido à disciplina um lugar privilegiado, dando visibilidade às coisas humanas, ao colocar o homem no centro de suas reflexões, seu pensamento ainda não foi devidamente explorado pelos pesquisadores dessa área. Nesse sentido, a aproximação entre as idéias de Hannah Arendt e a História, se constitui numa tarefa, ao mesmo tempo, instigante e desafiadora.

Os textos apresentados nesse dossiê da Revista História: Questões & Debates resultam das reflexões realizadas durante o Colóquio alusivo à comemoração do centenário de nascimento da autora, realizado em Curitiba, em maio de 2007, sob o patrocínio do Goethe Institut de Curitiba, da Associação Paranaense de História e do Departamento de História da Universidade Federal do Paraná.

Dentre as diversas perspectivas a partir das quais pode-se ler a obra de Hannah Arendt, o evento, privilegiou os conceitos de amizade, a felicidade e o amor, procurando associar as percepções da autora sobre estes sentimentos a algumas experiências históricas.

Ao tratar de temas ligados à subjetividade, vistos, muitas vezes, com enorme reserva pelos cientistas sociais, quando manifestos no espaço público, a proposta do referido colóquio mostrou-se ousada e inovadora. Rompendo com a idéia de que os sentimentos, as sensibilidades e as paixões – quase sempre entendidos como sintoma de anomia social – são considerados como uma intromissão perigosa na ação coletiva, os palestrantes procuraram discorrer sobre momentos históricos em que os sentimentos promoveram relações de solidariedade e de pactos consensuados.

Coerentes com o pensamento de Hannah Arendt, para quem o pensar e o sentir são momentos éticos indivisíveis, os autores realizaram suas reflexões, procurando entender o passado, não como experiência morta, mas como experiências, exemplos singulares, plurais e coletivos, capazes de iluminar o presente num instante de perigo, como Arendt, inspirada em Walter Benjamin, entendia ser o ofício do historiador.

Renata Senna Garrafoni, no artigo Felicitas romanica, procura desconstruir a leitura moderna que se faz da felicidade quando se trata da Roma Antiga, destacando como, entre as camadas populares daquele período, à diferença de Sêneca e de outros clássicos, a felicidade era cultivada e valorizada na vida privada, manifestando-se enquanto amor erótico.

No texto O amor na política, Renato Augusto Carneiro Júnior orienta-se por uma historiografia dedicada aos sentimentos religiosos, ao refletir sobre a obra O conceito de amor em Santo Agostinho. A partir dessa obra, Carneiro Júnior identifica a oportunidade de analisar a existência humana e a importância do amor na relação do homem com o Criador e com a sociedade, de onde deriva a forma de pensar a política, segundo Hannah Arendt.

Inspirada no percurso do livro Rahel, Ana Paula Vosne Martins, cujo artigo intitula-se Da amizade entre homens e mulheres: cultura e sociabilidades nos salões iluministas, procura reconstruir a tradição dos salões como espaços culturais no qual as distâncias sociais e de gênero foram reduzidas em favor de uma sociabilidade marcada pela civilidade, diálogo, deferência e, sobretudo, amizade. Constituiu-se ali esferas públicas ímpares, heterossociais que, à diferença do que se supõe, muito antes do movimento feminista, aproximaram homens e mulheres em torno da arte, da política e do debate livre de idéias.

Incitada pelas sugestões teóricas propiciadas pelos estudos da “Vida Privada”, Marion Brepohl, em O enamoramento e a separação dos amantes, seleciona passagens do Denktagbuch, escrito por Arendt e organizado por Ursula Lutz, visando à compreensão do amor dos amantes segundo Hannah Arendt. Recusando o método de análise do gênero diário, Brepohl afirma que no caso específico deste livro, a autora não se propõe ao ato confessional de sua intimidade, mas uma reflexão sobre a própria intimidade, em tudo distante dos negócios públicos. Brepohl afirma ser aquela interpretação um legado de seu tempo: na metade do século XX, o amor dos amantes resultaria de uma relação entre iguais, o que fortalece, segundo o que também enfatiza Martins, a aparição no espaço público. E, em diálogo com Carneiro Júnior, observa ainda que, à diferença do amor Ágape e do amor Philia, o amor erótico é tão mais efêmero quanto for sua intensidade.

Finalmente, Wolfgang Heuer, com o artigo Amizade Política pelo cuidado com o mundo, perpassando diversas obras da autora, com ênfase para Human Condition e O que é política?, analisa o conceito arendtiano de amizade pública, percorrendo as três chamadas gerações perdidas do século XX na Europa e concluindo que a amizade política é a alternativa necessária para a ação. Como Garrafoni, recua à sociedade greco-romana, momento em que Aristóteles propôs a amizade como concórdia em favor da comunidade. Momentos raros, sem dúvida, mas que, em virtude de sua excepcionalidade mesma, assumem um caráter exemplar.

Além dos textos que compõem o dossiê, essa edição traz ainda um conjunto de quatro artigos, cujas inquietações apontam para a reflexão acerca de conceitos ligados à intolerância, à memória, às representações e à interdisciplinaridade.

O primeiro deles, de autoria de Nádia Reis, aborda o neointegralismo, baseado no reavivamento de antigas concepções de mundo e de organização da sociedade do movimento integralista dos anos 30 no Brasil.

Na seqüência, o texto de Nádia Maria Weber Santos, tem como objetivo legitimar o uso da literatura como fonte histórica e traçar algumas das inter-relações possíveis entre Literatura e História.

Já a reflexão realizada por Leandro Duarte Rust, destacando a representação de tempo como objeto de estudo das dimensões e alcances históricos, busca problematizar o processo de institucionalização do papado medieval entre os séculos XI e XIII.

O artigo de André Fabiano Voigt revisita um clássico nos estudos sobre migrações, aculturação e assimilação, realizando novas propostas de interpretação dos temas concernentes a este campo historiográfico, ao analisar a obra de Emílio Willems.

Encerra o volume, a resenha escrita por Ximena Alvarez sobre a obra de Hannah Arendt Responsabilidade e julgamento. Trazendo indagações sobre a ética moral, a responsabilidade civil, coletivas e as culpas entorno ao silêncio, a obra constitui uma das coletâneas organizadas com os últimos textos escritos da filósofa antes da sua morte, em dezembro de 1975.

Por fim, gostaríamos de destacar que esse dossiê, além de buscar uma aproximação entre as idéias de Hannah Arendt e a História, cumpre importante papel no sentido de lembrar que “mesmo em tempos mais sombrios, temos o direito a esperar por alguma iluminação”.

Claudia Roemmelt – Diretora do Goethe Institut de Curitiba.

Roseli Boschilia – Presidente da Associação Paranaense de História.


ROEMMELT, Claudia; BOSCHILIA, Roseli. Apresentação. História – Questões & Debates. Curitiba, v.46, n.1, jan. / jun., 2007. Acessar publicação original [DR]

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