Falar, ler e escrever em sala de aula | Stella Maris Bortoni-Ricardo

O primeiro volume da série “Ensinar leitura e escrita no ensino fundamental”, intitulado “Falar, ler e escrever em sala de aula: do período pós-alfabetização ao 5° ano” abarca, fundamentalmente, importantes reflexões sobre o ensino da escrita e leitura do período posterior à alfabetização até o 5° ano. Essa obra, coordenada pela doutora em Linguística Stella Maris Bortoni-Ricardo, com auxílio de sua orientanda Maria Alice Fernandes de Souza, é resultado de uma pesquisa sociolinguística que ainda hoje permanece em andamento.

A produção é destinada a professores que estão atuando em sala de aula, à formação inicial e continuada. Com a intenção de promover uma reflexão sobre o que tem ocorrido nas escolas brasileiras, o livro apresenta várias fontes de debates e sugestões de intervenções para os leitores.

O livro é sistematizado com uma introdução, seguida por quatro unidades, em cujo interior há aulas, as quais são fontes essenciais de análise e sugestões de trabalho. A maioria das aulas possui os tópicos “Refletindo juntos”, “Saberes que colhemos na comunidade, saberes que colhemos nos livros” e “Trocando mensagens”, salvo algumas exceções. As autoras facilitam a compreensão da leitura ao identificarem a idade e a turma a que se destinam as aulas. Outro aspecto facilitador são os boxes existentes ao lado das páginas, que são constituídos por explicações e referências das fontes de estudo sobre o tema trabalhado na lauda. Um aspecto crucial que as autoras explicitam na introdução é a concepção de ambas sobre a língua materna, já que é por meio dessa fundamentação que o trabalho será analisado.

A primeira unidade, “Falar, ler e escrever em sala de aula”, possui quatro aulas; a primeira, terceira e quarta se referem à reflexão sobre variantes linguísticas. A professora realizou um trabalho com diferentes turmas; todas as atividades foram pautadas no pressuposto da existência de variações da língua, trazendo na quarta e última aula da unidade o conhecimento sobre três conceitos dos contínuos que se relacionam com tal variação. Na segunda aula, a docente desenvolveu uma atividade sobre o tipo textual instruir; com esse movimento, trabalhou as características próprias dessa tipologia e salientou a relevância social que esses saberes abarcam.

Na segunda unidade, “Modos de falar, modos de escrever”, três aulas subsidiaram a pesquisa. As pesquisadoras permaneceram analisando a mesma turma na primeira e segunda aulas, nas quais há um trabalho sobre a influência que a linguagem oral traz à escrita. Com o auxílio do dicionário e outros suportes, a professora levantou uma rica discussão sobre o que é próprio da escrita e da oralidade. Já na terceira aula, em outra turma, as docentes exploraram os conceitos de tempos verbais e suas funcionalidades.

Duas aulas são ministradas na terceira unidade: “Produzindo diferentes gêneros de texto”. Uma tem como objetivo construir o conceito de “diagrama sequencial”, ensinando, assim, às crianças a construírem narrativas; e fazer com que elas tenham seu repertório de vocabulário ampliado, dando destaque para a escrita e reescrita de textos. À última aula restou a construção do sentido da tipologia instruir, em que a professora mencionou o que significa sentido comum e figurado.

“Revisando conceitos básicos” é o título da última unidade do livro que, como sugerido, faz uma revisão do projeto realizado em todas as outras unidades. Traz, ainda, uma peça teatral infantil sobre festas juninas e sua suposta utilidade para a realização de outras atividades que contemplem o uso de gêneros textuais. Finalizando, as autoras dão ênfase aos debates que aconteceram durante a pesquisa e suas implicações.

Sem sombra de dúvidas, a produção das pesquisadoras é extremamente válida no âmbito educacional, visto que trata de temas atualizados e relevantes no campo da Linguística Aplicada ao Ensino da Língua Portuguesa, sobretudo nos anos iniciais, etapa educacional muitas vezes pouco contemplada com os estudos aqui relatados. De maneira exemplar, conclui-se que os principais objetivos foram cumpridos. Positivamente as autoras fazem com que a pesquisa se relacione com a comunidade onde ela é realizada, fornecendo exemplos para outras instituições educacionais. Em contrapartida, ao longo do trabalho, senti a falta de explicações e reflexões embasadas teoricamente, que provavelmente dariam ainda mais sentido ao trabalho.


Resenhista

Vanessa Almeida Stigert – Graduanda do Curso de Pedagogia da Universidade Federal de Juiz de Fora. E-mail: vanessa_stiigert@hotmail.com


Referências desta resenha

BORTONI-RICARDO, Stella Maris; SOUZA, Maria Alice Fernandes. Falar, ler e escrever em sala de aula: do período da pós-alfabetização ao 5° ano. São Paulo: Parábola Editorial, 2008. Resenha de: STIGERT, Vanessa Almeida. Revista Práticas de Linguagem. Juiz de Fora, v.2, n. 2, p.117-119, jul./ dez. 2012. Acessar publicação original [DR]

Formação do professor como agente letrador – BORTONI-RICARDO et al. (REi)

BORTONI-RICARDO, Stella Maris; MACHADO, Veruska Ribeiro; CASTANHEIRA, Salete Flôres. Formação do professor como agente letrador. São Paulo: Contexto, 2010. Resenha de: ARAPIRACA, Mary; BEZERRA, Raquel. Revista Entreideias, Salvador, n. 01, p. 133-137, jan./jun. 2012.

A pesquisa em Educação e Linguagem, no contexto brasileiro, tem sido de modo significativo alimentada por estudos que tematizam a leitura, desde os anos 80 do século passado, período em que se publicaram análises influenciadas pela psicologia e pelosestudos da cognição. (KLEIMAN, 1999; KATO, 1986; SILVA, 1987,1993) Essa perspectiva foi, paulatinamente, assumindo um tom mais sociológico, movimento inevitável, visto que seus corpora são em sua maioria constituídos eminstituição escolar, no cenário específico da aula de português.

Em paralelo a esse movimento, os estudos sociolinguísticos se desenvolviam no Brasil, e as noções de norma e variação linguísticas acabaram por ser considerados como categorias sem as quais não se poderia pensar o ensino-aprendizagem de português materno. Exemplo disso é a antologia de textos de pesquisadores brasileiros, organizada por Bagno, reunindo em 2002 trabalhos antigos (já publicados nas décadas de 60 e 70 do século XX) e outros elaborados em atendimento à convocação do linguista a oferecer reflexões sobre a noção de norma em dimensões variadas: O exame do conceito de norma, mesmo quando seguido do adjetivo lingüística, transpõe os limites dos domínios das ciências da linguagem, obrigando à sempre inevitável e salutar intersecção com outros campos de conhecimento, como a filosofia, a sociologia, a antropologia, a pedagogia, a história, para citar apenas os mais evidentes. Esta coletânea, me parece, mostra isso muito bem, sobretudo quando dela participam, além de uma maioria de lingüistas, pesquisadores das ciências sociais e das ciências da educação.

Nessa obra, dos dezessete artigos reunidos, se tematizam o conceito articulado a algum aspecto da educação brasileira em sua interface com a variação linguística e o ensino da língua materna.

Na reunião desses pesquisadores encontramos Bortoni-Ricardo apresentando “Um modelo para a análise sociolinguística do português do Brasil”, trabalho em que propõe que se considere o que chamou de “contínuos” no tratamento das variedades da língua falada no Brasil: o contínuo rural-urbano, o de oralidade-letramento e o de monitoração estilística. Posteriormente, e tomando por referência de análise esses continua, a autora organiza material didático para o curso Pedagogia para Início de Escolarização (PIE), sediado na Universidade de Brasília e destinado a professores normalistas da Secretaria de Educação do Distrito Federal, publicando-o em 2000 sob o título: Educação em língua materna – a sociolinguística em sala de aula, pela Parábola Editorial. Nessa obra, informa a autora, “fui fazendo uma seleção de conteúdo, principalmente nas searas da sociolinguística variacionista, da sociolinguística interacional e da etnografia da comunicação”.(BORTONI-RICARDO, 2005, p. 11) Revela-se com clareza a opção metodológica da pesquisa:

“eventos” ou “episódios” de interação linguística com falantes/informantes, registrados e transcritos, em clássico procedimento etnográfico, indicando adesão a uma vertente metodológica cuja aceitação no contexto dos estudos linguísticos não é pacífica: “a influência dos métodos etnográficos na coleta de dados para os estudos sociolinguísticos não se deu de imediato, nem tampouco é prática universal no âmbito da sociolinguística variacionista”. (BORTONI-RICARDO, 2005, p. 214)

Essa decisão metodológica parece-nos indício de uma trajetória de pesquisa que, considerando o já mencionado contínuo oralidade- -letramento, tem no cenário escolar um contexto privilegiado de coleta de dados: convém salientar que o processo de urbanização no Brasil resultou em fenômeno que interessa igualmente à pesquisa sociolinguística variacionista e em educação. Bortoni-Ricardo (2005), em análise da contribuição de sua área ao desenvolvimento da educação, informa que desde a década de 70 do último século a sociolinguística assumiu a vanguarda entre as ciências sociais que tomam a questão educacional como reflexão, notadamente a vertente etnográfica de estudos sociolinguísticos educacionais e, a propósito disso, cita Cook-Gumperz (1987, apud BORTONI- -RICARDO, 2005, p. 119): O estudo de fenômenos linguísticos no ambiente escolar deve buscar responder a questões educacionais. Estamos interessados em formas linguísticas somente na medida em que, por meio delas, podemos obter uma compreensão dos eventos de sala de aula e, assim, da compreensão que os alunos atingem. interesse reside no contexto social da cognição, em que a fala une o cognitivo e o social.

É, pois, na perspectiva dos procedimentos etnográficos que analisamos Formação do professor como agente letrador, obra de Bortoni-Ricardo em parceria com Machado (mestre e doutora em educação e professora da Educação Básica) e Castanheira (pedagoga, atuante na formação de professores do ensino fundamental). A publicação se destaca por convergir práticas de pesquisa linguística etnográfica, princípios teóricos do sociointeracionismo discursivo, uma metodologia de ensino da leitura e análise de procedimentos didáticos que a tradição escolar trata como disciplinas. A proposição fundamental do trabalho é que a leitura é uma arquicompetência e que, por conseguinte, todo professor é um agente de letramento, de modo que lhe cumpre a tarefa de desenvolver as competências relativas à compreensão textual.

Parece fácil postular esse princípio do lugar epistemológico dos estudos linguísticos. É necessário considerar, no entanto, que a atuação docente na educação básica é um trabalho em que as fronteiras disciplinares precisam dissolver, recíproca e solidariamente, seus limites. O ensino da leitura é indício do que se afirma aqui.
Precisamente por essa razão, Formação do professor como agente letrador se inicia propondo uma “pedagogia da leitura”, ao tempo em que apresenta uma análise cuidadosa dos dados estatísticos revelados pelo Sistema Nacional de Avaliação da Educação Básica (SAEB), instrumento oficial do governo cuja série histórica se inicia em 1990,e do Indicador de Alfabetismo Funcional, o INAF, do Instituto Paulo Montenegro. Os dados analisados resultam de procedimentos de avaliação que não concernem a conhecimentos de uma disciplina, mas de uma competência interdisciplinar por princípio.

A obra apresenta, no segundo capítulo, o que chama de matrizes de referência para a formação e o trabalho do professor como agente de letramento (p. 19 e seguintes), com dois conjuntos de descritores: o primeiro, elaborado pelas autoras na perspectiva da sociolinguística educacional, detalha competências relativas ao exercício docente das séries iniciais do ensino fundamental, com ênfase em alfabetização e letramento, mas preservando caráter multidisciplinar, uma vez que não se confinam práticas de letramento em compartimentos disciplinares; o segundo conjunto, baseando-se no Programa Internacional de Avaliação de Alunos (PISA), descreve habilidades cognitivas relativas ao “ler para aprender”, e enumera procedimentos do trabalho de compreensão leitora de textos que apresentam diferentes formas de conhecimento – considerando-se a classificação adotada por Schneuwlye Dolz (2004), o “ler para aprender” identifica-se ao domínio social da transmissão e construção de saberes – preservando o princípio da leitura como arquicompetência interdisciplinar.

Para o agenciamento do letramento que cabe ao professor de toda e qualquer disciplina, as autoras apresentam, no terceiro capítulo, a noção de mediação pedagógica na compreensão leitora.

A essa altura, vêm à cena os protocolos de leitura, isto é, descrição minuciosa e microanálise de episódios de interação verbal entre professor e aluno(s), cujos turnos de fala são integralmente transcritos (marcados em sequência numérica, na ordem em que ocorrem) e pontualmente interrompidos por comentários analíticos feitos pelas autoras-pesquisadoras. Na base dessas análises está a noção de andaimagem (de “andaime”), do inglês scaffolding, “conceito metafórico que se refere a um auxílio visível ou audível que um membro mais experiente de uma cultura pode dar a um aprendiz”, evidentemente apoiada em Vygotsky, mas igualmente referenciada na sociolinguística interacional. (BORTONI-RICARDO; MACHADO; CASTANHEIRA, 2010, p. 26) O quarto capítulo expõe princípios de procedimento pedagógico muito semelhante ao do capítulo terceiro, mas sob a designação “leitura tutorial”, e provoca certo estranhamento, visto ser essencialmente uma repetição do anterior, na perspectiva da interação professor/aluno, mas acionando outras noções, como as de níveis de proficiência leitora e estratégias de leitura. Os capítulos cinco, seis e sete, designados “Aplicação da proposta de leitura tutorial como estratégia de mediação” e numerados de um a três, tem modo de exposição do procedimento distinto dos protocolos de leitura, isto é, são mais descritivos e injuntivos que analíticos.

O capítulo oito retoma a metodologia etnográfica primeiramente apresentada e, introduzidas as noções de letramento científico (“maneira de o sujeito raciocinar sobre os fatos científicos e as práticas sociais de conhecimento científico”) e alfabetização científica (“aprendizagem dos conteúdos, domínio da linguagem científica, memorização de terminologias”), passa a sistematizar alguns resultados de pesquisa que investigou contribuições da sociolinguística à introdução ao letramento científico em séries iniciais da escolarização básica. Os quatro capítulos restantes são protocolos de aula transcritos como o protocolo de leitura do capítulo terceiro, e são designados “Etnografia de uma prática de letramento científico”, numerados de 1 a 4.

A obra não apresenta nenhum comentário ou esclarecimento ao leitor sobre as diferenças entre os procedimentos de análise que apresenta, provavelmente porque tenha em vista mais ser uma referência didática para o trabalho de leitura em qualquer conteúdo curricular que um tratado sobre pesquisa sociolinguística e seus métodos. De qualquer modo, é um exemplo bem sucedido do caráter multidisciplinar e da vocação etnográfica da pesquisa em Educação, que tem na instituição escolar pública um cenário capaz de fornecer dados valiosos e úteis à compreensão da sociedade brasileira e sua transformação.

Referências

BAGNO, Marcos. Lingüística da norma.São Paulo: Edições Loyola, 2004.

BORTONI-RICARDO, Stella Maris. Educação em língua materna: a sociolingüística na sala de aula. São Paulo: Parábola editorial, 2004.

_____. Nós cheguemu na escola, e agora? Sociolingüística e educação.

2. ed. São Paulo: Parábola Editorial, 2005.

KATO, Mary. O aprendizado da leitura. São Paulo: Martins Fontes, 1986.

KLEIMAN, Ângela. Oficina de Leitura: teoria e prática. Campinas, SP: Pontes Editora da Unicamp, 1989.

SCHNEUWLY, Bernard; DOLZ, Joaquim. Gêneros orais e escritos na escola. Campinas, SP: Mercado de Letras, 2004.

SILVA, Ezequiel Theodoro da. Elementos de Pedagogia da leitura.

São Paulo: Martins Fontes, 1993. ______. O ato de ler: fundamentos psicológicos para uma nova Pedagogia da leitura. São Paulo: Cortez, 1987.

Mary Arapiraca – Universidade Federal da Bahia. E- mail: marya@ufba.br

Raquel Bezerra – Universidade Federal da Bahia. E- mail: rbezerra@ufba.br

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