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O corpo, os ritos, os sonhos, o tempo: ensaios de antropologia medieval – SCHMITT (FC)
SCHMITT, Jean-Claude. O corpo, os ritos, os sonhos, o tempo: ensaios de antropologia medieval. Petrópolis: Vozes, 2014. Resenha de: BORGONGINO, Bruno Uchoa. Uma abordagem antropolítica da Idade Média. Faces da História, Assis, v.2, n.2, p.198-201, jul./dez., 2015.
Jean-Claude Schmitt, proeminente discípulo de Jacques Le Goff, dedica-se aos estudos medievais desde a década de 1970. Ao decorrer de sua carreira, acumulou distinções honoríficas, como chevallier da Ordre des Palmes Academiques (2002) e da Légion d´honneur (2005) e doutor honoris causa da Universidade de Münster (2003), além de exercer o cargo de diretor da École de Hautes Études en Sciences Sociales (EHESS) desde 1983.
Em suas pesquisas, o historiador francês emprega métodos e referências teóricas da antropologia para compreender a sociedade e a cultura do Ocidente medieval, empreendendo, em livros e artigos, investigações sobre vários aspectos socioculturais como: a juventude; o suicídio; os gestos; o aniversário; entre outros. Dentre livros que escreveu, foram traduzidos para o português: O corpo das imagens, Os vivos e os mortos na sociedade medieval, História das superstições, História dos jovens,2 Dicionário temático do Ocidente medieval3 e, mais recentemente, O corpo, os ritos, os sonhos, o tempo: ensaios de antropologia medieval, que ora resenho.
Le corps, le rites, les rêves, le temps: essais d´anthropologie médiévale foi originalmente publicado em 2001 pela editora Gallimard, contudo, foi oferecido ao mercado brasileiro somente em 2014.4 Este atraso de treze anos pela versão nacional não faz jus à importância deste material, pois considera-se que nele constam dezessete artigos de Schmitt, selecionados pelo próprio autor, os quais representam a multiplicidade de suas contribuições aos estudos medievais. Tais artigos permaneceram sem uma versão traduzida oficialmente para a língua portuguesa, embora não fossem inéditos na época da primeira edição em francês e já constassem como referência clássica em determinados campos investigativos.
Cabe salientar que os textos compreendidos no livro, publicados ao decorrer de trinta anos da carreira do medievalista, não foram organizados de maneira cronológica, mas agrupados em quatro unidades – a serem ainda apresentadas mais adiante –, constituindo, cada uma delas, um eixo temático. Se, por um lado, a opção por agrupar os artigos em blocos de assuntos afins facilita a consulta pelo leitor a conjunto tão heterogêneo; por outro, a alternância de textos do início da sua trajetória acadêmica com reflexões mais recentes5 dificulta a percepção do processo de amadurecimento intelectual de Schmitt.
Pode-se constatar, ainda, que o material compilado foi originalmente vinculado em meios diversos, cada qual com suas orientações editoriais próprias e seu públicoalvo pretendido: alguns dos textos eram artigos de periódicos acadêmicos, outros, capítulos em livros. Por isso, há certa discrepância quanto ao tamanho dos escritos, assim como no nível de aprofundamento na abordagem.
Os artigos foram precedidos por um prefácio redigido pelo próprio Schmitt, no qual o autor relaciona sua formação intelectual aos debates acadêmicos mais populares durante o início de sua carreira; assim como aos cursos de renomados pesquisadores – como Georges Duby e Michel Mollat –, aos quais pôde assistir; e às leituras por ele realizadas. Além do diálogo com diversos campos da Antropologia, Schmitt destaca a relevância do comparatismo proposto por Marc Bloch e, depois, por Jean-Pierre Vernant, no qual o exercício de confrontação entre sociedades díspares ajuda a revelar as especificidades de cada uma. Logo, o livro é iniciado por um texto em que o autor contextualiza sua inserção como historiador e esclarece suas principais referências.
A exposição das influências acadêmicas feita pelo próprio Schmitt explicita a formação e atuação do autor em consonância com as propostas da Nova História. Peter Burke demonstrou como a terceira geração da Escola dos Annales, que surgiu após 1968, privilegiou a História das Mentalidades, a análise de fenômenos culturais e a aproximação com a Antropologia (BURKE, 1997, p. 79-107). Essas novas orientações para a pesquisa histórica propiciaram a emergência de novos problemas, novos objetos e novas abordagens.
Ao lado de pesquisadores consagrados como Jacques Le Goff e Georges Duby, Jean-Claude Schmitt contribuiu para a incorporação da Nova História aos estudos medievais ao se atentar para as dimensões simbólicas das representações e das práticas sociais na Idade Média e investigar temas outrora não contemplados pela historiografia, tais como o “corpo” ou o “futuro”.
O primeiro bloco temático, intitulado Sobre crenças e ritos, reúne reflexões sobre aspectos da religião medieval em cinco capítulos. Os artigos É possível uma história religiosa da Idade Média?, A noção de sagrado e sua aplicação à história do cristianismo medieval e Problemas do mito no Ocidente medieval pretendem problematizar os conceitos de “religião”, “sagrado” e “mito” respectivamente, a fim de apresentar as precauções metodológicas na aplicação de tais categorias na pesquisa em História Medieval. Em A crença na Idade Média e Sobre o bom uso do Credo, Jean- Claude Schmitt analisa os sistemas de classificação e os modos de produção e difusão das crenças legítimas, destacando a posição da Igreja nesses processos.
A segunda parte, Tradições folclóricas e cultura erudita, é composta por quatro textos. O capítulo inicial desse bloco, As tradições folclóricas na cultura medieval, apresenta as principais abordagens nos estudos sobre o “folclore” para, em seguida, delimitar os problemas e os princípios de análise para investigações a respeito do tema na sociedade feudal. Os três artigos subsequentes consideram tradições folclóricas medievais diversas.
O sujeito e seus sonhos é o título do terceiro bloco, que abarca três escritos. No primeiro, A “descoberta do indivíduo”: uma ficção historiográfica?, Schmitt parte de uma revisão historiográfica da tese do “nascimento do indivíduo” no século XII para compreender o conceito medieval de “pessoa”. Os dois capítulos seguintes, Os sonhos de Guibert de Nogent e O sujeito do sonho, têm como objeto as atitudes e teorias medievais a respeito do sonho.
A quarta e última parte do livro, O corpo e o tempo, reúne cinco capítulos. Em O corpo doente, corpo possuído, aborda as concepções medievais a respeito do corpo doente. O corpo na Cristandade também debate questões concernentes à corporeidade, considerando três aspectos: o corpo do homem individual, o corpo divino e o corpo social. No artigo Tempo, folclore e política no século XII, Schmitt relaciona as representações do tempo e ideologia a partir da obra do clérigo Walter Map. No capítulo seguinte, Da espera à errância: gênese medieval da Lenda do Judeu Errante, o medievalista francês aborda o tema literário moderno de um judeu que perambula o mundo desde que testemunhou a crucificação, argumentando que sua origem remonta a lendas do século XII. O texto que encerra o volume, A apropriação do futuro, estuda a maneira como os medievais percebiam o seu futuro.
A partir da leitura dos artigos de O corpo, os ritos, os sonhos, o tempo, constatase o compromisso de Jean-Claude Schmitt com o rigor teórico-metodológico ao estudar a cultura medieval, independentemente do objeto que proponha.
Tanto nas abordagens de recorte espaço-temporal mais abrangentes, quanto nas análises de corpus documentais mais restritos, o autor tenta delimitar com a maior precisão possível o campo conceitual. Dessa forma, demonstra a relatividade das categorias que compõem nossa própria percepção do mundo, apresentando como na Idade Média elementos como o corpo, o sonho ou mesmo o futuro eram concebidos de outra maneira.
Esse esforço é empreendido recorrendo principalmente à Antropologia, tal como anunciado no subtítulo e no prefácio. Sendo o livro ora resenhado uma compilação de parcela considerável da produção de Jean-Claude Schmitt, sua publicação em português consiste numa oportunidade ímpar para que os medievalistas brasileiros possam aprofundar seu contato com a obra do autor.
Notas
2 Escrito em parceria com Giovanni Levi.
3 Em dois volumes. Organizado em parceria com Jacques Le Goff.
4 Apesar da editora informar em seu site oficial que o livro foi lançado em 2015, na ficha catalográfica indica 2014 como ano de publicação.
5 O artigo mais antigo data de 1976 e o mais novo, 2000. No total, dois textos foram escritos na década de 1970, oito na década de 1980, cinco na de 1990 e dois em 2000.
Referências BURKE, Peter. A escola dos Annales (1929-1989): a Revolução Francesa da historiografia.
São Paulo: UNESP, 1997.
SCHMITT, Jean-Claude. O corpo, os ritos, os sonhos, o tempo: ensaios de antropologia medieval. Petrópolis: Vozes, 2014.
Bruno Uchoa Borgongino – Doutorando – Programa de Pós-Graduação em História Comparada – Instituto de Historia – Universidade Federal do Rio de Janeiro – Largo de São Francisco de Paula, 1, CEP: 20051-070, Rio de Janeiro – RJ, Brasil. Professor e pesquisador – Universidade Estácio de Sá, campus Cabo Frio – Rod. Gen. Alfredo Bruno Gomes Martins, s/n, lote 19, CEP: 28909-800, Cabo Frio, Rio de Janeiro, Brasil. Bolsista CAPES. E-mail: uchoa88@gmail.com.
[IF]Medicine & Health Care in Early Christianity | Gary B. Ferngren
Em 1874, o inglês John William Draper publicou o livro The history of the conflict between religion and science. Como o próprio título denota, o autor adotava uma perspectiva segundo a qual existiria um antagonismo entre religião e ciência desde que o cristianismo ascendeu politicamente.[2] Cerca de vinte anos depois, Andrew Dickson White publicou A history of the warfare of science with theology in Christendom, em que adotava uma ótica similar à de Draper. [3]
Esses dois trabalhos experimentaram um grande sucesso comercial, influenciando na produção posterior dos historiadores da ciência. Dessa forma, tornaram-se as principais referências numa tendência historiográfica conhecida como tese do conflito. Segundo seus adeptos, a História da Ciência seria constituída de uma série de conflitos entre religião e ciência, tendo nos casos de Galileu Galilei e Charles Darwin seus exemplos mais ilustres. Leia Mais