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Relações Étnicas: Racismo, Educação e Sociedade / Revista Trilhas da História / 2020
Em 2019, a Universidade Federal do Mato Grosso do Sul, Campus de Três Lagoas, sediou o evento intitulado Simpósio Multidisciplinar de Relações Étnicas: Racismo, Educação e Sociedade. O evento fora construído por várias mãos, na tessitura de práticas e diálogos entre cursos de licenciatura do campus, especialmente os cursos de História, Geografia e Pedagogia, representados por docentes e discentes comprometidos / as com a educação para as relações étnico-raciais. Além dos temas candentes para o debate das relações étnico-raciais, o encontro foi bem sucedido por conseguir reunir vozes negras e indígenas protagonizando os diálogos estabelecidos nas mesas redondas, simpósios temáticos, lançamentos de livros e atividades culturais. Eventos desta natureza têm como justificativa a urgência da produção de um novo estradar da universidade, desenhando bifurcações necessárias entre a educação e a luta antirracista.
Uma busca no Google de eventos acadêmicos ocorridos em novembro de 2019 possivelmente aponte para muitos outros lugares e entidades que realizaram atividades voltadas à semana da Consciência Negra naquela conjuntura. Provavelmente também o crescimento do número de pesquisas, ações e projetos a extrapolar a efeméride, seja uma realidade e uma conquista de que nos sentimos parte e que devem ser comemoradas. No entanto, passado um ano, perscrutando um olhar retrospectivo, concluímos que estamos longe de empreender uma alteração efetiva no estado de coisas e no cenário de violência que o racismo estrutural engendra. Ao adentrarmos o ano de 2020, pudemos constatar, não sem tristeza e indignação, que os passos são ainda muito curtos, apesar de tão necessários.
Marcado pelo advento da pandemia do novo Coronavírus, o ano de 2020 escancarou o racismo estrutural e aprofundou a chaga do negacionismo. Logo nos primeiros meses da conjuntura pandêmica, o mundo assistiu ao levante estadunidense em reação ao assassinato de George Floyd, um homem negro morto por um policial branco, em 25 de maio, na cidade de Minneapolis, em mais uma das abordagens violentas das instituições policiais sobre as populações negras, mas que, naquela ocasião, fora filmada e exposta nas mídias globais. Homens e mulheres de todo o planeta assistiram ao terrível assassinato daquele cujas últimas palavras foram: “eu não consigo respirar”. O fato foi corretamente lido pela sociedade como violência racista e a repercussão se politizou, fazendo emergir dali o movimento mundial intitulado “Black Lives Matter” (Vidas Negras Importam). Demonstrar que a abordagem policial difere a partir de marcadores de cor, evidenciando que a sociedade é amplamente racializada, foi um objetivo trilhado pelo movimento, apesar de persistirem visões negacionistas teimando em retrucar pelas redes que “todas as vidas importam”, numa tentativa de apagamento do racismo como causa estrutural da morte de Floyd. Não é exagero dizer que a sensibilização estadunidense frente a este fato pode ter abalado o destino das eleições presidenciais dos Estados Unidos, uma vez que a resposta do líder máximo do executivo naquele momento não destoava da onda negacionista e mesmo não se distanciava de grupos de supremacia branca naquele país.
Aqui no Brasil, os primeiros sinais de que a epidemia também seria uma tragédia racializada vieram antes e foram, respectivamente, a notificação da primeira morte por Covid-19, no país, de uma empregada doméstica, e a evidente negligência do Estado contra os povos indígenas no combate à disseminação do vírus entre as comunidades. O Instituto Socioambiental apontou para essa omissão argumentando que o Estado inclusive ajudou a espalhar a doença entre os povos originários, por meio de profissionais da saúde que levaram o vírus para aldeias, como também pelo silêncio sobre garimpeiros e grileiros que aumentaram as invasões na Amazônia durante a pandemia e, ainda, pelo fato de indígenas terem de buscar o auxílio emergencial nas cidades.[1]
Em maio de 2020, uma operação policial resultou na morte de uma criança de 14 anos, dentro de sua casa, em São Gonçalo, Rio de Janeiro. João Pedro era mais um garoto negro, morador do complexo de favelas do Salgueiro, e sua morte expôs a terrível tradição da abordagem policial onde se concentram os pobres e negros das periferias que, como afirmava Carolina Maria de Jesus, constituem o “quarto de despejo” da sociedade.
Pouco tempo depois, em 02 de junho, fomos surpreendidos com o desfecho de uma tragédia a ser evitada se nosso povo pudesse se libertar da sua própria história, superando as dores e desigualdades infligidas, sobretudo, nas intersecções de raça, gênero e classe. Naquele dia, na cidade de Recife, morreu o menino Miguel ao cair da altura do nono andar de um prédio. Sua morte foi definida pela ONU como decorrente do racismo sistêmico, pois Miguel era uma criança negra e estava sozinho naquele andar por conta da negligência da patroa de sua mãe. A mãe de Miguel, Mirtes Souza, mulher negra, havia saído para passear com o cachorro da patroa. Assim como a sua própria mãe, era empregada doméstica e não pode contar com o direito ao isolamento social preconizado pela Organização Mundial da Saúde – OMS.
Djamila Ribeiro, ao refletir sobre o fato, expôs sua relação inegável com um passado colonial que teima em se reproduzir. Em texto publicado em 09 de julho no Jornal A Folha de São Paulo, a filósofa afirmou que era preciso atentar para algo insistentemente invisível, “o serviço doméstico em meio à pandemia, a hierarquização de vidas. A patroa que faz as unhas, enquanto Mirtes Souza, empregada doméstica, passeia com o cachorro”. Para esta autora, Miguel “provou uma experiência comum para pessoas negras no país: ser uma presença indesejada, uma chateação preta no momento de vaidade da família branca”. Mas, como compreender que a queda e morte de uma criança é resultado de racismo? O que é preciso reconhecer por detrás do elenco de fatos imediatos daquele 02 de junho como fios invisíveis e históricos que colocam o menino Miguel, de apenas cinco anos, naquele elevador, cujos botões foram apertados pela patroa branca, primeira-dama de um município que tampouco ela residia?
Na época dos fatos foram ventiladas as noções de racismo estrutural e sistêmico em algumas reportagens e programas de repercussão que visavam explicar os acontecimentos a partir de leitura sociológica apontando que o racismo não se resume a práticas individuais, conscientes e isoladas, de aviltamento direto contra homens, mulheres e crianças lido a partir de marcadores raciais erigidos em processos de colonização eurocentrados. Um dos autores que se fez presente no debate público foi Silvio de Almeida, para quem o racismo é estrutural e também institucional, pois nossas ações e comportamentos “são inseridos em um conjunto de significados previamente estabelecidos pela estrutura social. Assim, as instituições moldam o comportamento humano, tanto do ponto de vista das decisões e do cálculo racional, como dos sentimentos e preferências”.
Apesar da repercussão destes e de outros casos, que incluiu até um movimento pela derrubada de estátuas e monumentos colonialistas ao redor do mundo, as dores da família de Floyd, de João Pedro e de Miguel, bem como os debates trazidos às superfícies das mídias e redes sociais não foram suficientes para produzir uma fissura sistêmica ou estrutural que interrompesse o ciclo histórico de violência infligida aos povos subalternizados e marcados pela negritude dos seus corpos.
Ao completarmos um ano de nosso evento, às vésperas do Dia da Consciência Negra de 2020, João Alberto Freitas, de 40 anos, foi tratado como criminoso, espancado e morto por seguranças no estacionamento de uma unidade do supermercado Carrefour em Porto Alegre. Seu crime: ser negro no Brasil. Mas, igualmente, como ocorreu com os tristes exemplos que elencamos acima, não foi dito a Beto que ele pagava com a vida por sua negritude, pois o racismo que impele as instituições a detratarem e destruírem pessoas negras só pode ser percebido pelo escancaramento do absurdo que se pensaria caso o evento ocorresse inversamente, com pessoas brancas. Só parece possível produzir alguma consciência e educação das relações étnico-raciais que superem as estruturas racistas quando o conjunto da sociedade assumir essa tarefa e, sobretudo, as pessoas brancas admitirem sua importância na luta antirracista, quando forem capazes de presumir seus privilégios invisíveis como serem tratados / as como pessoas sem previamente serem suspeitas. Grada Kilomba, em entrevista à já citada Djamila Ribeiro, alertou que “as pessoas brancas não se veem como brancas, se veem como pessoas. E é exatamente essa equação, ‘sou branca e por isso sou uma pessoa’ e esse ser pessoa é a norma, que mantém a estrutura colonial e o racismo”.
Os casos de violências tão terríveis como estes ocorridos após o nosso evento tensionam nossa própria esperança. Além das mortes decorrentes do racismo estrutural, que foram em número maior do que podemos supor aqui, também os casos de preconceitos e prejuízos produzidos pela omissão no combate ao racismo, e mesmo por sua reprodução, projetam cotidianamente os brancos / as ao centro e os negros / as e indígenas às margens. Basta lembrarmos do caso da entrevista da cofundadora do Nubank, Cristina Junqueira, ao programa Roda Viva (TV Cultura) do último 19 de outubro, em que afirmou, sobre contratar pessoas negras a partir de políticas afirmativas, que o banco não poderia fazê-lo pois não dá para “nivelar por baixo”.
Estas dinâmicas se beneficiam do silenciamento e da normatização e mantêm engrenagens muito antigas que, a despeito da centenária resistência, dos aquilombamentos e retomadas, das emancipações individuais e das pequenas conquistas legais, asseveram o fosso social que persiste e se desnudou ainda mais com a pandemia. A doença foi pior e, de fato, mais letal para aqueles e aquelas que já são atravessados pela chaga do racismo. A publicação do GT de Racismo e Saúde da Associação Brasileira de Saúde Coletiva (ABRASCO), fundamentada na perspectiva de que a OMS, “concebe o racismo como um dos determinantes sociais do processo de adoecimento e morte”. Os autores / as consideram que “os desdobramentos da pandemia da Covid-19 numa sociedade estruturada pelo racismo penaliza grupos vulneráveis, especialmente entre pessoas negras, está diretamente relacionado à policrise sanitária, social, política, econômica, moral, crise na globalização e os fluxos migratórios etc”.
Produzir mudança que salve vidas implica uma tarefa de arco revolucionário e, na educação, uma radicalidade emancipadora. Com efeito, a denúncia e o anúncio, sejam eles viralizados pelas câmeras e redes que hoje podem contribuir com a desnaturalização da violência racial, seja na reunião de pessoas dispostas a dar um passo em outra direção, isto é, na direção da luta antirracista, é o trabalho de formiguinha a que temos de nos comprometer nas nossas rotinas de trabalho, estudos, nos almoços de família, nas rodas de conversas, no chão das escolas, de forma coletiva, perene e intransigente. É neste compromisso que trazemos e apresentamos o Dossiê Relações étnicas – Racismo, Educação e Sociedade.
Como já salientamos, sua proposta nasce do Simpósio Multidisciplinar de Relações Étnicas, mas ganha novo fôlego ao revisitarmos as experiências do ano que decorreu de lá pra cá, com a pandemia da Covid-19 e do racismo. Se alcançamos, na época, o bonito objetivo de construir um espaço pluralmente atravessado por olhares decoloniais, narrativas indígenas, vozes negras de homens e mulheres, estéticas diversas, em ações potentes e resistentes na denúncia das várias formas de opressão que marcam a nossa sociedade, como também de (re)existências a demarcar a educação como instrumento de luta e vivida / produzida pela ação humana no tempo, agora, compreendemos que o dossiê alimenta o anseio de manter vivo este espaço como marco de luta e esperança. Os textos, assim como o simpósio, também se constituem numa treliça interdisciplinar e trazem esta dimensão de enfrentamento aos muitos racismos, como os vividos nos espaços escolares, mas ainda em outros lugares da sociedade e a envolver sujeitos diversos, como negros e negras, indígenas e ciganos.
O texto Cabelo crespo, corpo negro na luta cultural por representação afirmativa da identidade negra, da historiadora e militante negra, Celia Regina Reis da Silva, apresenta densidade teórica e trabalho com as fontes na abordagem de uma temática de suma importância para o Dossiê ao estudar o corpo negro e o cabelo crespo, em vista da discriminação vivida por crianças, adolescentes e jovens, tanto no espaço escolar quanto em outros lugares da sociedade. Mas apresenta também o seu reverso, ou seja, as múltiplas manifestações culturais da juventude negra de São Paulo, especialmente das periferias, na denúncia desta situação e na apresentação, vivência e (re)existência de outras práticas que implicam a valoração das vidas negras, na sua mais ampla acepção. Ao discutir essas questões no ambiente escolar, a autora denuncia como a escola acaba por ser este lugar de segregação e racismo se não problematiza-los em suas raízes e efetivar práticas antirracistas em seu cotidiano. Desse modo, o texto é um alento para pensarmos questões fundamentais na apreensão das múltiplas formas de luta, especialmente na abordagem do corpo e do cabelo negros e na criatividade das periferias na reinvenção de outras práticas que vão de encontro à violência contra pretos e pretas.
O texto A lei 10.639 / 2003 e o Programa Nacional da Biblioteca na Escola do ano de 2013: Como a temática étnico-racial tem sido tratada pelo programa dez anos após a sua implementação, de Felipe Lima e Jaqueline Santa Bárbara, traz uma temática muito relevante para a Educação e a História, ao abordar a forma como os negros e negras vem sendo retratados na literatura infantil, especialmente como se constitui (ou se nega) a identidade negra, a partir da análise de livros disponibilizados pelo PNBE / 2013, dez anos após a Lei 10.639 / 03. Desse modo, ao entrevistar duas professoras que trabalham com o ciclo fundamental e analisar 60 livros enviados para as escolas brasileiras, os / as autores / as abordam uma discussão fundamental acerca das questões étnico-raciais e do trabalho desenvolvido em sala de aula.
O texto ‘E se fosse o contrário?’ Djonga e Fanon: um diálogo sobre racismo e alienação, de Fábio Silva Sousa e Rogério Leão Ferreira, ao trabalhar duas linguagens diferenciadas (um autor e um videoclipe), traz uma contribuição necessária para a análise do racismo e das formas de opressão que marcam a sociedade no Brasil e em outras partes do globo. Ao discutir Frantz Fanon e sua obra “Pele negra, máscaras brancas”, e o Rapper Djonga, numa linguagem explícita e até direta, por vezes, ao confrontar-se com a alienação do negro, o texto problematiza a quem favorece a identificação com o branco e nos aponta caminho para superarmos o racismo impregnado em nosso tecido social.
O texto Entre o sul e o norte de Mato Grosso: doenças, conflitos e a exclusão da liberdade (séculos XVIII e XIX), de uma das autoras desta apresentação e de Rafaely Zambianco Soares Sousa, discute temas como doenças, conflitos e a exclusão da liberdade na história dos negros e negras escravizados entre o norte e sul de Mato Grosso. Ainda que não se refira diretamente à temática das relações étnico-raciais, possibilita a compreensão de um cenário em que imperavam doenças e insalubridades no Brasil Oitocentista, em particular incidindo sobre a vida dos negros e negras, escravizados e libertos. Contrapondo-se às mazelas que marcaram mais de 350 anos de escravidão temos também, nesta história, o desejo e a busca pela liberdade, como expõe uma das fontes de 1872, em que liberdade, vida, doença e morte se entrelaçaram pelos caminhos e arredores do Cuyabá. Ao conhecermos o passado suas lições nos ensinam a necessidade do combate ao racismo no presente, em todos os lugares em que ele se estrutura, pois, comumente, a sua história é a de permanência da injustiça, da Colônia ao século XXI, mas também de muitas lutas ao longo do tempo.
O texto O ‘Nobre educador’ da Bahia: trabalho, cidadania e sociabilidades, de Sivaldo dos Reis Santos, ao discorrer sobre a trajetória do professor negro Elias de Figueiredo Nazareth, que fora docente e diretor da Escola Normal da Bahia, contribui com novas análises podendo dar visibilidade historiográfica aos trabalhadores negros que vivenciaram momentos sociais de tensão e mudanças entre o fim do século XIX e começo do XX. Apresentando fontes da Hemeroteca Digital Brasileira como jornais, revistas e relatórios de autoridades públicas na área da educação, da segunda metade do século XIX e primeiras décadas do século XX, o texto propõe uma ruptura sobre aquilo que Chimamanda Adichie chamou de “uma história única”, que comumente naturaliza um lugar específico para determinados sujeitos nas narrativas da história e que pode ser tensionada com pesquisas que desvelem a agência de homens e mulheres a se desviarem desses lugares atribuídos arbitrariamente, e não sem resistências coletivas e individuais, evidentes nestas obras.
A interpretação acerca dos Suruí / Aikewara e a Guerrilha do Araguaia: memórias de uma história em movimento, dos autores Andrey Minin Martin e Iolanda de Araújo Mendes, evidencia pesquisa empírica, especialmente na produção das fontes orais. Ao narrar as memórias da guerrilha do Araguaia, os autores dão conta de explicitar os marcos de memória impressos pela ditadura militar, assim como a reconstrução do direito moral à terra e, inclusive, à reivindicação à expansão de seus limites. Ao contribuir para a história indígena, o texto explicita a proximidade com a temática do racismo, porque também esses grupos, os povos originários, vivem na pele, no corpo, na carne, a violência que marca a nossa história, do passado ao tempo presente. Reconstituir uma história de lutas e uma reivindicação de memórias é fundamental para não deixar que estas histórias sejam silenciadas, especialmente no contexto da ditadura civil-militar.
Marcio Edovilson Arcas e Ademilson Batista Paes, em A invisibilidade / camuflagem cigana: uma análise sobre a representação dos ciganos no olhar do Gadje (não-cigano) apresentam uma reflexão basilar para a análise da representação dos ciganos na Literatura e em outras fontes trabalhadas em sala de aula. Os autores problematizam como o mito construído em torno dos ciganos desvela a inexistência da alteridade face a esses povos, prevalecendo interpretações centradas na discriminação, intolerância, racismo e violência. Diante disso, a invisibilidade dos ciganos é apontada e denunciada pelos autores, fazendo-nos entender o quanto o racismo também se estrutura na negação da diferença e no desconhecimento de outros grupos sociais.
Este Dossiê, ao sistematizar reflexões de diferentes grupos, com autorias de diferentes áreas, apontando para o quanto nos constituem enquanto um mosaico carregado de belezas, ambiguidades, contradições, pode contribuir para a humanização desses temas, mas mais que isto para a percepção de que nos constituímos das diferenças que devem ser valorizadas positivamente na acepção mais ampla da palavra, fazendo com que o antirracismo seja a tônica de nossas ações, dos nossos compromissos com a vida, com as histórias e memórias de George Floyd, João Pedro, Miguel e Beto, de Marielle Franco e de tantas outras…, na relação dialógica da teoria e práticas imbricadas e constituídas de gente em sua diversidade.
Nota
1. Sobre tais argumentos e para acompanhar o programa de observatório do instituto frente à pandemia nos povos indígenas, acesse https: / / covid19.socioambiental.org /
Maria Celma Borges
Mariana Esteves de Oliveira
BORGES, Maria Celma; OLIVEIRA, Mariana Esteves de. Apresentação. Revista Trilhas da História. Três Lagoas, v.10, n.19, jul. / dez., 2020. Acessar publicação original [DR]
História, memória e representações / Revista Trilhas da História / 2014
No Dossiê “História, Memória e Representações”, a Revista Trilhas traz um debate que contempla questões norteadoras da produção do conhecimento histórico, como a discussão das representações missionárias no continente africano; as representações da igreja dos pobres no Brasil; o significado das práticas religiosas populares; a memória da Umbanda; a memória de migrantes paranaenses e paulistas e o sonho da terra prometida; a cultura escolar e suas relações com o meio social; a memória dolorosa das enchentes, entre outros temas que se entrelaçam. Contribui, dessa maneira, para dar continuidade às ações da Revista, qual seja, propiciar espaços para que pesquisas de fôlego sejam publicadas e, assim, as trilhas possam ser percorridas na escrita da História e em sua reflexão.
No texto “O conceito de representações da Nova História Política: uma análise dos estudos de missionários na África Meridional de fins do século XIX e início do XX”, Yuri Wicher Damasceno trabalha o conceito de representações a partir da perspectiva da história política. O autor aborda o papel das missões e dos missionários em Uganda, destacando que o objetivo era levar “os ideais imperialistas” na “busca de uma regeneração da África”, ou seja, o desejo de “civilizá-la” nos moldes dos projetos colonialistas. Para essa reflexão, Damasceno destaca a ação da Church Missionary Society e suas práticas imperialistas, inspiradas na visão da Europa como o “centro civilizador” e o continente africano como o lugar da “barbárie”. O autor contribui para mostrar os limites desta interpretação e a necessidade de apreendermos as suas arbitrariedades.
O texto “Festa de Nossa Senhora Imaculada Conceição, padroeira de Dourados (1920-1960): conservadorismo e mudança de práticas culturais”, de Tiago Alinor Hoissa Benfica, analisa certas práticas religiosas populares, a exemplo da festa religiosa, por meio de fontes bibliográficas, periódicos e entrevistas. Observa o autor que sendo as festas espaços de convivência, solidariedade, trocas de saberes, elas se tornam instrumentos de poder e de controle da Igreja Católica, utilizados como forma de conter o avanço do protestantismo na localidade. Discorre ainda sobre a figura do festeiro e o seu papel na organização da festa, observando o status que isto lhe delegava. Mas chama a atenção a afirmativa de Hoissa de que a memória da festa, apreendida por meio de entrevistas, esconde os momentos de tensão vividos em seu interior, a exemplo das brigas e dos crimes que também eram comuns em Dourados, Mato Grosso do Sul, nas primeiras décadas do século XX.
Bruno Dias Santos, ao abordar o tema “Da Igreja Romana à Igreja dos pobres: crítica e utopia nas missivas de frei Betto (1969-1973)” propícia uma leitura das práticas e representações vividas por esse agente pastoral em meio ao cenário da Ditatura Militar e do nascimento da Teologia da Libertação nos anos 1970. Agente central no processo de denúncia das arbitrariedades do regime de exceção e, ao mesmo tempo, sujeito histórico das mudanças no interior da Igreja Católica, em especial, na opção pelos pobres, frei Betto tornara-se um dos ícones de luta de parte desta instituição. Porém, ao mesmo tempo, sentiria na pele, no corpo e no sangue, o peso desta postura.
O artigo “Salvos por Cacique Tartaruga: Memória, História e Mito na umbanda de Campo Grande- MS”, de Saulo Conde Fernandes, contempla o debate da religiosidade, por meio da memória dos pais e mães de santo em Mato Grosso do Sul. Associando a História Oral e a Antropologia, Fernandes destaca o diálogo entre ambas e apresenta histórias de vida que dão vida à memória e às representações da umbanda. Na discussão da incorporação do Cacique Tartaruga, um “caboclo de umbanda”, guia espiritual na cidade de Campo Grande, MS, o autor tece ainda uma etnografia dos terreiros chamando a atenção para a diversidade da religiosidade afro-brasileira nesses lugares. Estabelece uma crítica ao mito fundador da Umbanda, observando a amplitude de interpretações em torno de sua origem. Propõe, então, a teoria do rizoma como mais eficiente para a compreensão das religiões afro-brasileiras, já que, no seu entender, as várias linhas se entrelaçam e não há um continuum na história.
No artigo “A problemática dos sujeitos: o movimento migratório proveniente do estado do Paraná e São Paulo para Ivinhema-MT (1960-1970)”, de Nelson de Lima Júnior, também encontramos a reflexão da memória e das representações. Isso é possível a partir das lembranças tecidas e narradas pelos migrantes paranaenses e paulistas de sua terra natal e daquilo que se sonhara conquistar por uma vida inteira: a terra de trabalho como morada da vida. Mesmo em vista de todas as dificuldades em meio aos projetos de assentamento e às frustrações derivadas das ações governamentais para sufocar os movimentos sociais de sem terras em seus estados de origem, é possível encontrar na fala dos entrevistados, como narra Nelson, o sonho da conquista da terra, ou seja, aquilo que lhes conduzira à caminhada e lhes dera força para se deparar com as intempéries da vida.
Marilsa de Paula Casagrande, ao abordar “A Cultura e a Cultura Escolar”, discute, a partir de alguns referenciais teóricos que define como básicos, a apreensão do significado da cultura e da cultura escolar para a escola. Este debate é fundamental, pois, como é perceptível nas preocupações da autora, não são elucubrações teóricas sem uma preocupação com o “chão da escola”, ao contrário, já que Casagrande entende “a escola como representação da nossa visão de mundo”. Desse modo, as mudanças ou permanências vividas no ambiente escolar evidenciam o modo como o novo ou o velho se manifestam. Daí ser preciso apreender continuidades e rupturas desse lugar de produção do saber e de reprodução, muitas vezes, das práticas autoritárias da sociedade, se não nos dermos conta dessa dimensão.
No Ensaio de Graduação “Espectros da Catástrofe Entre o Trauma e a Solidariedade: Representações Iconográficas da Enchente de 1974 em Tubarão (SC)”, de Elias Theodoro Mateus, encontramos um diálogo profícuo entre as fotografias, como fontes históricas, e os referenciais teóricos, a fim de apresentar, em paralelo com os estudos da psicanálise que enfatizam as dimensões de “solidariedade e trauma”, a construção da memória da enchente em meio à tragédia vivida pela população de Tubarão nos anos 1970. O autor enuncia, por meio das imagens, o quanto fora impactante esse acontecimento para a memória dos moradores, (re)definindo modos de vida e de compreensão do lugar.
A Resenha de Laura Sanches da obra de Mercedes de la Garza, “El legado escrito de los mayas”, faz uma importante referência acerca do legado pré-colombiano, trazendo análises de escritos na língua maia, produzidos no período colonial. Nas palavras de Sanches, “Este libro es de consulta básica para quien desee conocer la trayectoria histórica maya desde el Clásico hasta fines de la Colonia, y para quienes investigan y enseñan temáticas relacionadas a las religiones y literaturas precolombinas, la historia de la Conquista de América, la evangelización y la resistencia”.
Por fim, na seção Fontes apresentamos a entrevista do Professor Dr. Eudes Fernando Leite (UFGD), historiador mato-grossense, realizada pelo Grupo PET – História Conexões de Saberes e estruturada por Vitor Oliveira (UFMS / CPTL). Na entrevista Leite explicita a sua concepção de história narrando a sua trajetória de ensino e pesquisa na área. A proposta do grupo PET consiste em desenvolver uma série de entrevistas com historiadores que trabalham ou trabalharam a história regional, (MT / MS). Objetiva-se, com este material, sondar em que pé está a historiografia regional, quais os trilhos e as trilhas percorridos, bem como as novas possibilidades de investigação da história, o que propicia um prato cheio de experiências para contribuir nos rumos da pesquisa regional e para além de Mato Grosso do Sul.
Maria Celma Borges
Caio Vinicius dos Santos
Verão de 2014
BORGES, Maria Celma; SANTOS, Caio Vinicius dos. Apresentação. Revista Trilhas da História. Três Lagoas, v.4, n.7, jul. / dez., 2014. Acessar publicação original [DR]
História, ensino e fontes / Revista Trilhas da História / 2014
Apresentar este Dossiê é um prazer, pois traz questões fundamentais para repensarmos interfaces entre a História, o Ensino e as Fontes. Os temas abordados nos artigos, ensaio de graduação e na seção fontes evidenciam o quanto é profícuo este debate e quão necessárias são as abordagens aqui apresentadas, uma vez que contribuem para a divulgação de estudos e pesquisas, bem como favorecem a reflexão epistemológica.
Na esteira dos números anteriores, a Revista Trilhas inova por dar continuidade a um diálogo entre questões que se entrelaçam e são basilares para a produção do conhecimento histórico, já que apontam as diferentes concepções e perspectivas teórico-metodológicas em cada artigo apresentado. Neste sentido, é importante apresentar brevemente os textos que dão conta de enunciar este cenário da produção acadêmica, assim como a maturidade e a diversidade de temas.
O texto “A narrativa da fada Brasiléia como Instrumento Pedagógico nas aulas de História do Brasil nos anos 1940”, das autoras Andréa Giordianna Araujo da Silva, Lilian Bárbara Cavalcanti Cardoso e Roseane Maria de Amorim, apresenta a história do ensino de História, tendo como fonte central o livro “A fada Brasiléia”, visto como recurso para a crítica ao processo civilizador que se desejava instaurar na construção da disciplina de História no ensino primário dos anos 1940. Esta abordagem favorece a percepção da dinâmica do campo da História e do ensino de História. Povos indígenas e negros, como afirmam as autoras, praticamente desapareceram desta narrativa e nas poucas situações em que são apresentados figuram como “vítimas” ou “coitados”. Na contramão desta interpretação as autoras possibilitam olhar para outras histórias em que povos originários e negros são agentes centrais.
O artigo “Ensinar e aprender história de Santa Catarina: o uso da Revista Histórica Catarina em sala de aula como recurso fonte da aprendizagem histórica significativa”, de Tânia Cordova, analisa a Revista “História Catarina” como fonte para apreender a história de Santa Catarina. Entendida como um recurso ao trabalho docente, a autora ressalta a necessidade de que o ensino de História opere com novas ferramentas numa relação de ensino-aprendizagem e interação professor-aluno. Assim, a Revista é apresentada como instrumento fundamental para a escrita da História que privilegie a diversidade étnica, com ênfase na cultura indígena, africana e afrodescendente. A autora também observa a contribuição desta fonte para o estudo dos saberes local e regional e a sua relação com a macro-história.
Outro artigo a abordar o ensino de História intitula-se “Os parâmetros curriculares nacionais de História e os saberes do docente: reflexões sobre a produção do conhecimento histórico”, de autoria de Jaqueline Aparecida Martins Zarbato. Neste texto, a autora discute o significado dos PCNs e de que modo conceitos como memória, identidade e nação são tomados como elementos centrais para a construção do conhecimento histórico. Nesta perspectiva, a autora aborda a relação entre História e currículo para pensar os PCNs e o seu lugar no cotidiano escolar. Por meio de relatos de professoras evidencia a concepção destas agentes sociais na construção do ensino de História. “Velhos problemas”, a partir de “novos olhares”, vêm à tona propiciando a compreensão da dinamicidade nas diferentes concepções da disciplina História.
No texto “História & Representação: um olhar conquistador no cinema”, Pepita de Souza Afiune discute o cinema e a sua relação com o ensino de História, apontando para o quanto os filmes criam estereótipos que precisam ser problematizados pelo professor e o aluno, a fim de que esta ferramenta didática tão fundamental para a produção da história possa ser utilizada em sua plenitude, contribuindo para o senso crítico e para a humanização da relação docente e discente. Aliado à base teórica, o texto se fundamenta em pesquisas de campo realizadas com estudantes e mestres em escolas de redes privada e pública de Anápolis, Goiás.
O artigo “A Universidade Pública em Três Lagoas-MS e as titubeações do campo histórico”, de Tiago Alinor Hoissa Benfica, traz uma importante contribuição para a análise da constituição da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS) em seus anos iniciais. O campo da História como disciplina no sul de Mato Grosso, hoje Mato Grosso do Sul, é privilegiado, possibilitando o entendimento das artimanhas do poder vigente quando da implantação da Universidade e o desejo de constituir um “projeto do estado Nacional”, a fim de integrar o estado “ao corpo da nação”. Objetivava-se ainda, com a implantação da Universidade, “trazer a cultura” para os três-lagoenses. Somando-se a esta discussão, Benfica contribui para o conhecimento de parte importante da história do curso de História em Três Lagoas.
O artigo “Evasão na licenciatura: estudo de caso”, de Camila Carvalho e de Vitor Wagner Neto de Oliveira possibilita entendermos parte significativa dos motivos que fizeram com que os acadêmicos tenham abandonado a Licenciatura em História, no curso de Três Lagoas, no período de 2009 a 2013. Por meio de questionários aplicados aos alunos evadidos, os autores observam que este é um fenômeno que não se limita ao curso de História e nem mesmo às Licenciaturas em Mato Grosso do Sul, já que são múltiplos os fatores, entre eles o descrédito do querer ser professor, somando-se à carga de atividades atribuída no curso, entre outras situações. Na construção do texto, os autores, por meio de dados quantitativos, mostram que não existe uma única resposta para a evasão, mas afirmam ser necessário problematizá-la, já que se trata de uma questão latente em todo o cenário nacional, em especial no que diz respeito às Licenciaturas.
O artigo “Algumas perspectivas do Cavaleiro Medieval na obra de Georges Duby”, de Leandro Hecko, num bom exercício de análise das fontes, dá a sua contribuição para a abordagem e escrita da História, ao apontar para o longo processo de constituição da figura do cavaleiro como herói em algumas obras de Georges Duby. Em sua discussão, o autor destaca o binômio cavaleiro / guerreiro na construção de suas personagens imersas na história medieval, mas finaliza ressaltando que o cavaleiro medieval foi uma “mescla de tudo o que representou a Idade Média”. Daí a sua importância como objeto da história e a sua contribuição para o trabalho com as fontes, no caso, com a produção historiográfica deste renomado medievalista.
Jhonatan Uilly e Paulo Fernando de Souza Campos, no artigo “Pérolas Negras: a participação de mulheres negras na Revolução Constitucionalista de 1932”, a partir de análise de jornais paulistas, enfatizam o papel das mulheres negras e suas formas de organização no cenário da guerra paulista, em especial a formação de um corpo de combatentes feminino e negro. Os autores, ao estudar a ação das mulheres negras voluntárias na Legião Negra, como enfermeiras, entre outras atividades, também evidenciam o peso do racismo no interior da elite paulista, numa tentativa de invisibilizar estas mulheres naquele momento histórico.
O texto “„O povo tem mil olhos e mil ouvidos para ver e para ouvir‟: O comício de 18 de março de 1942 em Curitiba sob a ótica da Análise do Discurso”, de Márcio José Pereira, ao ter como fonte central uma crônica publicada na Gazeta do Povo, em Curitiba-PR, utilizando-se da Análise do Discurso (AD), possibilita-nos ver o peso das palavras na referência aos alemães residentes no Brasil e às suas ações em pleno cenário da Segunda Guerra Mundial. Segundo o autor, construía-se, por meio da crônica, uma imagem negativa dos indivíduos de origem alemã e daqueles que pudessem se assemelhar aos germânicos. Desta maneira, ao defender a depredação de prédios ocorrida dias anteriores em Curitiba, à publicação da crônica, o discurso do jornalista Rodrigo de Freitas está alinhavado, conforme o autor, ao da grande política do Estado Novo e encontraria terreno fértil para proliferar, mas, ao ser desconstruído por Márcio Pereira, revela também as potencialidades da escrita da História e a inversão do arbítrio.
O artigo “Maternidade e feminismo: notas sobre uma relação plural”, de Georgiane Vásquez, apresenta a construção da figura materna e da mulher ao longo do século XX. O texto é elaborado de modo a demonstrar a dinamicidade do debate envolvendo maternidade e feminismo e a percepção de que a história das mulheres e de seus movimentos possibilita-nos fazer uma história mais plural, ao sugerir que os espaços de luta, seja na dimensão dos valores ou da conquista de direitos, são delineados por práticas e representações sociais. Ao abordar o discurso religioso e o médico sobre as mulheres o texto faz o leitor atentar para várias expressões do feminismo na sociedade, com seus limites e suas ânsias.
O Ensaio de Graduação “Em lugar de pena, taco de sinuca; em lugar de uísque, garrafa de cerveja: a contracultura na poesia marginal no Brasil no período da ditadura civil-militar por meio da obra 26 poetas hoje (1976)”, de Alexandre Vinicius Gonçalves do Nascimento, é uma análise da poesia marginal no Brasil no cenário da ditadura civilmilitar. Tendo a poesia marginal como fonte, o autor tece as formas de resistência forjadas nos anos de chumbo em meio ao movimento de contracultura. Pelo deboche, ironia e humor, conforme Nascimento, a poesia marginal questionou a ordem vigente, fundamentada na repressão e no arbítrio. Escrita em guardanapos, pedaços de papeis, em paredes, mimeografada, esta poesia ocupava as margens e ao mesmo tempo denunciava o interior. A antologia “26 poetas hoje”, de Heloisa Buarque de Holanda, publicada em 1976, é a fonte primordial para a análise, deslindando a criatividade de quem viveu e produziu marginalmente a poesia naquele momento histórico.
Na resenha sobre a obra de Thiago Moratelli, “Os trabalhadores da construção da Estrada de Ferro Noroeste do Brasil: experiências operárias em um sistema de trabalho de grande empreitada (São Paulo e Mato Grosso, 1905-1914)”, Caio Vinicius dos Santos adentra o mundo do desenvolvimento industrial e da expansão do “progresso” pelo interior brasileiro das primeiras décadas do século XX. No texto, nos deparamos com o contar das margens de uma sociedade comandada pelo seu centro elitizado, mas também nos confrontamos com o seu reverso, ao encontrar, nas linhas do texto, conforme Santos, a tonicidade e o desejo de dar vozes aos sujeitos marginalizados, silenciados pela história dos grandes nomes.
O livro “Cristianismos. Questões e debates metodológicos”, de André Leonard Cheviratese, resenhado por Juliana B. Cavalcanti, traz um debate acerca da memória coletiva, dos testemunhos bíblicos e da imagem iconográfica da mãe e o filho personificados nas páginas da Bíblia. A resenha apresenta uma construção importante para a análise do diálogo entre a memória e os sujeitos da história, tendo respaldo em suas coletividades, parábolas, entre vários outros exemplos.
Na seção fontes, apresentamos o texto de Daniel Rincon Caires, intitulado “Aquarelas de Joaquino Cândido Guillobel produzidas no Maranhão entre 1820 e 1822” que trata das pinturas do português Cândido Guillobel, feitas no Maranhão de 1820. Caires indica a dissertação de mestrado de Eneida Maria Mercadante Sela para um aprofundamento na biografia de Cândido Guillobel. Nas imagens apresentadas de Guillobel, as personagens são retratadas de modo a se observar cada detalhe, indo desde o ambiente, passando pelas vestimentas e chegando a estrutura corporal, ao mostrar hábitos e costumes do fim da colônia pelo olhar português. A leitura deste texto é primordial para a compreensão da importância das pinturas como fontes históricas.
Maria Celma Borges Bruno
Cezar Bio Augusto
Inverno de 2014
BORGES, Maria Celma; AUGUSTO, Bruno Cezar Bio. Apresentação. Revista Trilhas da História. Três Lagoas, v.3, n.6, jan. / jun., 2014. Acessar publicação original [DR]
Política e movimentos sociais / Revista Trilhas da História / 2013
A composição deste número é sugestiva para pensarmos a dinâmica da história, da política e de seus movimentos e agentes sociais. Os artigos apresentam contribuições substanciais para a compreensão dos discursos políticos produzidos desde o Brasil Império à Primeira República. Traz a discussão da vida na estiva, das políticas de colonização; das lutas dos mutilados pelo sisal na Bahia dos anos 1980 e das práticas de resistência das mulheres no contexto da Constituinte de 1988.
Os Ensaios, com propriedade, apresentam resultados de pesquisas na graduação, evidenciando como é profícuo o diálogo entre o ensino e a pesquisa na formação do professor. Os textos enfocam desde os lugares da “fala franca” na Antiguidade; de festas e de lazer na capital fluminense da Primeira República ao fazer artístico da Tropicália da década de 1970. A Resenha instiga o leitor ao conhecimento de parte da cultura do continente africano. A seção Fontes nos brinda com a história de um trabalhador da cana de Porto Rico.
É um prazer apresentar este número, pela sua riqueza, pela diversidade de temas e de contribuições que se entrelaçam, a partir de várias instituições de muitos lugares do país. A seguir apresentaremos cada uma das contribuições buscando instigar os leitores a acessar os textos integrais, carregados de vida e partilhados de forma generosa pelos autores.
O artigo “As relações Brasil e Uruguai através dos discursos do Visconde do Rio Branco proferidos em 1855”, de Jaqueline Schmitt da Silva, enfoca os discursos e as ações de Visconde do Rio Branco no quadro de conflitos entre Brasil e Uruguai, contribuindo para a discussão da história política e dos caminhos tomados pela política externa brasileira naquele momento histórico.
Erika Arantes, ao utilizar-se da documentação policial, entre outras fontes, em “A Vida na Estiva – O cotidiano dos trabalhadores do porto do Rio de Janeiro nos primeiros anos do século XX”, conta a história dos trabalhadores do porto em sua dura rotina de desemprego e de violência policial. O enredo evidencia o drama do viver nas ruas e nelas dormir a procura de trabalho ou por não ter conseguido emprego para aquele dia, o que implicava vivenciar constantes repressões policiais, particularmente pela tarja da “vadiagem”. A rotina do trabalho e o modo de vida na zona portuária carioca do início da República desvelam as políticas de controle e o papel da polícia na tentativa de disciplinarização da classe trabalhadora. Mas, mais que isto, desvelam ainda os limites da administração pública e privada para este controle.
O artigo “A conciliação entre capital e trabalho em Evaristo de Moraes e Jorge Street via sindicato operário”, de Pedro Paulo Lima Barbosa, aborda dois autores que, segundo Moraes, mesmo em muitas ocasiões estando em lados opostos no debate do movimento operário da Primeira República, muito contribuíram para o abrandamento do conflito entre capital e trabalho. Isto se deu ao incentivarem a criação de sindicatos para “barganharem” junto à burguesia e ao Estado, evitando conflitos e a aproximação com alas “mais radicais”.
O texto “O movimento dos trabalhadores mutilados da região sisaleira da Bahia”, de Cassiano Ferreira Nascimento, apresenta um “movimento reivindicatório” da década de 1980, envolvendo trabalhadores rurais que sofreram mutilação e não conseguiram a aposentadoria por invalidez. O autor reconstrói histórias de lutas por meio de memórias dolorosas, ao contarem a experiência da amputação. A dor torna-se símbolo da resistência em um dos muitos movimentos que efervesceram por todo o país nos anos 1980. Os relatos demonstram o desespero diante da deformação e da falta de horizontes quanto a um novo trabalho. A mutilação é sentida como um marco de memória semelhante ao tempo da conquista da aposentadoria, pois a partir dela “viveriam em condições mais dignas”.
O artigo “„Lobby do Batom‟: uma mobilização por direitos das mulheres”, de Kerley Cristina Braz Amâncio, explicita a organização das mulheres, por meio do movimento político “Mulher e Constituinte”, empreendido pelo CNDM (Conselho Nacional dos Direitos da Mulher) na luta pelo reconhecimento e inclusão de seus direitos na Constituição de 1988. Utilizando jornais da época e documentos produzidos por estas mulheres no movimento que ficara conhecido como “Lobby do Batom”, a autora, com propriedade, demonstra os lugares ocupados por essas ações de resistência que foram muito além da questão de gênero, pois redimensionaram o lugar das mulheres na classe trabalhadora.
O texto “Políticas de colonização no extremo oeste catarinense e seus reflexos na formação da sociedade regional”, de Paulo Ricardo Bavaresco, Douglas Orestes Franzen e Tiones Ediel Franzen, observa a condição de fronteira dos projetos de colonização alemã do alto Vale do Rio Uruguai, municípios de Mondaí e Itapiringa; da região de fronteira entre Brasil e Argentina, em Dionísio Cerqueira, e do município de São Miguel do Oeste. No estudo desses três espaços é possível entender que projetos de colonização implicam varias facetas como jogos de interesses, migrações, conflitos entre estados pela posse da terra e discursos civilizatórios. A abordagem traz para a cena da história a formação do espaço e do povo da fronteira oeste de Santa Catarina.
O Ensaio de Graduação “Transformações da „fala franca‟ no mundo antigo”, de Kauana Candido, parte da análise de Michel Foucault e de sua produção, em especial a parresia (a fala franca). Em seguida discute a política no contexto da Antiguidade grega e romana e as suas relações com a contemporaneidade, momento em que indaga: “o que é falar francamente”? As redes sociais e as ruas em movimentos ocorridos em 2013 possibilitaram discernir entre os “bajuladores” e os “parresistas”? Estas são questões que possibilitam o diálogo entre os diferentes tempos.
O Ensaio intitulado “‟E dançaram a noite toda, até a manhã…‟: Um estudo sobre o funcionamento das sociedades recreativas, carnavalescas e clubes na capital fluminense (1908-1913)”, de Igor Estevam Santos de Oliveira, faz uma análise bibliográfica e de fontes do Arquivo Nacional que permitem levantar um número expressivo de associações desta natureza nos subúrbios do Rio de Janeiro do início do século XX. O texto apresenta várias questões envolvendo estas organizações, e apreende os laços de amizade e de solidariedade mútua que poderiam facilitar a constituição de uma identidade comum entre os seus membros.
“Um verme passeia na lua cheia‟: performance e cenicidade audiovisual em Ney Matogrosso na construção de um fazer artístico na década de 1970”, de Robson Pereira da Silva, conta a trajetória artística de Ney Matogrosso, com ênfase para a sua inserção no movimento Tropicalista e ainda para a indústria cultural da década de 1970. O ensaio contribui para a compreensão dos movimentos artísticos que nasceram nesse período da ditadura militar e alicerçam a crítica ao regime, expondo ainda a transgressão corpórea e visual.
A Resenha de Júnio Viana Gomes do romance Hibisco Roxo, de autoria de Chimamanda Ngozi Adichie, apresenta a história de uma família nigeriana e os conflitos vividos na intimidade do lar, mas também no processo de colonização da Nigéria. Segundo Júnio Gomes, mais do que a narrativa da história de uma família bem sucedida, Adichie quer mostrar outras histórias e outros olhares sobre o continente e a cultura africana, com seus embates, contradições e a sua beleza.
Na Seção Fontes, temos o texto “Fonte para a história dos trabalhadores da cana – MINTZ, Sidney. Worker in the cane: a Puerto Rican life history”, de autoria de Flávia Bruna Ribeiro da Silva Braga e Pedro Henrique Falcão Sette. O romance conta a história de vida de um trabalhador da cana, “Don Taso”, que vive em Porto Rico, em meados do século XX, e sente no corpo o domínio econômico e político dos EUA, ao vivenciar a ocupação americana de seu país, após a Guerra hispano-americana de 1898. A abordagem, segundo os autores, é antropológica e etnológica, pois Taso, de quarenta anos, uma esposa e onze filhos, é um excelente informante. Amparado em gravações e anotações realizadas na convivência com Taso, Mintz apresenta uma história em que a sua preocupação é a de “compreender a presença estrangeira e as mudanças no modo de vida dos portorriquenhos”. Mintz destaca que a vida política de Taso explicita suas posições claramente contrárias ao patronato. Esta é uma análise reveladora das possibilidades da literatura como fonte para a história.
Uma boa leitura a todos!!!
Maria Celma Borges
Primavera de 2013
BORGES, Maria Celma. Apresentação. Revista Trilhas da História. Três Lagoas, v.3, n.5, jul. / dez., 2013. Acessar publicação original [DR]
Regiões e Identidades / Revista Trilhas da História / 2012
O artigo “Vias de transporte em regiões de fronteira: possibilidades técnicas, interesses econômicos e imperativos políticos”, do Prof. Paulo Roberto Cimó Queiroz, tece uma discussão fundamental para iniciarmos o Dossiê sobre as “Regiões e Identidades”. De forma generosa, o autor discute como se configuraram as redes de transporte em regiões de fronteira, tendo como eixo de abordagem o extremo oeste. Ao inspirar-se em Lucien Febvre (1949), redefine o conceito de fronteiras humanizando este espaço / lugar, visto como “lugar de encontro e conflito de alteridades”. Agradecemos esta contribuição para que possamos continuar caminhando pelas trilhas da história.
O artigo “Em nome da civilização: o Mato Grosso no olhar dos viajantes”, de Carlos Alexandre Barros Trubiliano, é instigante para a discussão de Mato Grosso na perspectiva dos viajantes de fins do século XIX e início do XX. O autor desnuda uma leitura comum nesse período: a de Mato Grosso como região de “ambiente hostil”, de “barbárie” e de “atraso”. Os povos originários aparecem como “selvagens”, ocupando lugares que deveriam ser destinados à “civilização”. Problematizando cada um desses conceitos, a leitura é enriquecedora, carregada de vida e preocupada em evidenciar o quanto o peso da “civilização” influiu nas imagens sobre Mato Grosso.
O artigo “Disciplinarização e biopolítica na Província de Mato Grosso do século XIX”, de Patrícia Figueiredo Aguiar, nos brinda com uma reflexão importante para entendermos a década de 1830 na Província de Mato Grosso, particularmente na discussão dos códigos criminais e do modo como foram interpretados, pela autora, como tecnologias do poder para “disciplinar” os “indesejáveis”. A análise se detém no entendimento da história do Brasil Imperial e de uma Província distante da capital, mas próxima no desejo de “civilizar-se”. A “administração de condutas” e o “controle do território” era uma preocupação premente do poder imperial por toda a Regência. O texto, então, nos propicia o aprofundamento desta discussão.
O artigo “A Eucaliptização da Microrregião de Três Lagoas”, de Mieceslau Kudlavicz, traz a reflexão para o tempo presente e aborda as transformações que vem ocorrendo no modo de vida e de trabalho de milhares de trabalhadores nos meios urbano e rural dos municípios desta região, oriundas das atividades envolvendo a produção do papel e celulose, em detrimento da produção camponesa. Em nome do “progresso”, a região vem sendo ocupada por extensas áreas de monocultura de eucalipto, em lugares que poderiam ser destinados para o plantio de alimentos por meio da reforma agrária. Kudlavicz evidencia, de forma clara, a dissonância desta lógica perversa do capital que inclui bem poucos e exclui uma parte significativa da população.
O artigo “Nas fronteiras do oeste do Paraná: Conflitos Agrários e Mercado de Terras (1843 / 1960)”, de Leandro de Araújo Crestane e Erneldo Schallenberger, problematiza os conflitos agrários e o mercado de terras no oeste do Paraná. No estudo de caso da Gleba Santa Cruz, os autores evidenciam a luta dos posseiros e colonos, ao se depararem com as ações das Companhias colonizadoras, observando-se ainda o embate entre elas e o Estado do Paraná. A partir de entrevistas, essas lutas vão sendo enunciadas e demonstram sua radicalidade, a exemplo da luta armada, num momento em que várias regiões do Paraná fervilhavam de conflitos agrários. O levante à margem do Piquiri é evidência dessa história.
O texto “Bosque Marechal Cândido Rondon (Londrina – PR): patrimônio e identidade”, de Fernanda Frozoni, é revelador da história das identidades desenhadas pelos sujeitos na ocupação dos espaços urbanos. A utilização desses espaços desnuda o lugar que é ocupado na memória dos transeuntes, ou seja, o lugar se define a partir da práxis, do modo de vida e de trabalho daqueles que ali estão presentes. O espaço pode ser reapropriado, comercializado, abandonado pelas políticas públicas, mas é também fundamentalmente vivido pelos homens, mulheres e crianças em suas práticas cotidianas. A abordagem apresentada pela autora possibilita que uma parte da história de Londrina, no Paraná, seja recontada não pela perspectiva da lógica do espaço como mercadoria, mas como fruto da ação humana.
O artigo “Autoridade na contemporaneidade: do conceito à acepção”, de Maridulce Ferreira Lustosa, contribui para a reflexão das identidades ao propor uma discussão da autoridade e dos vínculos afetivos que a constituem, envolvendo as relações humanas. Ao buscar o conceito de autoridade, a partir de autores como Sennet (2001), Arendt (2007), Weber (2001), entre outros, a autora contribui para o debate desta temática que envolve fundamentalmente as relações de poder, construídas historicamente a partir das relações sociais, sendo apresentadas pela autora com perspectivas teóricas diversas. “Conceitos, crises e imagens” de autoridade são abordados para explicitar a dinamicidade da discussão do conceito de autoridade.
O artigo “Hades na Ilíada: a formatação da morte no épico homérico”, de Leandro Mendonça Barbosa, encerra esta seção nos remetendo à história antiga. Ele se aproxima da temática das Regiões por possibilitar pensarmos na versatilidade desse conceito, na medida em que o autor analisa as regiões do “inframundo” ou “mundo dos mortos”, a partir da representação de Hades, o “deus do submundo”, na Ilíada. Vale observar que esta versatilidade foi conquistada no alargamento das concepções de espaço pela história do imaginário. Também a questão da identidade é contemplada, pois remete aos lugares do imaginário e ao modo como as pessoas se identificavam ou mesmo negavam as divindades. O autor destaca a carência de estudos sobre Hades, observando que a própria literatura grega vivencia esta ausência.
O ensaio de graduação “As desventuras de um renascentista entre os Tupinambás: a visão do viajante Hans Staden sobre as terras e os povos do Brasil”, de Rafael Pereira da Silva, faz um estudo sobre a colonização da América portuguesa, logo em seu início, a partir da interpretação da obra “Viagem ao Brasil”, do alemão Hans Staden. Conforme o autor, no olhar dos viajantes apresenta-se uma construção sobre a “descoberta” dessa “nova terra”. Este texto é instigante, pois não se furta a trabalhar os escritos de Hans Staden como fontes históricas, vestígios para que possamos tecer as nossas próprias abordagens, na esteira do saber de outros pesquisadores.
O ensaio de graduação “Identidade no contexto migratório: Um estudo das narrativas epistolares”, de Marciana Santiago de Oliveira, faz uma reflexão sobre as cartas do Boletim VAI VEM, as quais descrevem a construção da identidade de muitos migrantes para a região noroeste paulista na busca de melhores condições de trabalho e de vida. Ao explorar essas cartas, como fontes históricas, a autora constrói uma narrativa entrelaçada à história social do trabalho, numa abordagem “vista de baixo”. É esse vai vem que nos permite enxergar a trajetória de sujeitos marcados pela vida de trabalho, pela construção de uma identidade de migrantes e pela materialização de suas lutas por meio do Boletim. O ensaio permite ainda visualizar a importância da Arquivologia para a pesquisa histórica.
A resenha “Multidões em cena. Propaganda política no varguismo e no peronismo”, de Maurílio Dantielly Calonga, traz uma análise do regime de Getúlio Vargas e de Juan Domingos Perón, por meio das propagandas políticas, tecendo a intensidade que essas propagandas tiveram e como contribuíram para a ascensão de Vargas e Perón ao poder. O autor aponta e caracteriza as diferenças históricas entre o Brasil e Argentina nesse período, e a propaganda como instrumento de coerção, sendo monopólio dos governos para conquistar o apoio da sociedade.
A resenha “Nas margens da boiadeira: territorialidades, espacialidades, técnicas e produções no noroeste paulista”, de Natália Scarabeli Zancanari, apresenta um estudo importante, estabelecido a partir de fontes documentais e fontes orais, envolvendo a região do noroeste paulista, sob o viés econômico e geográfico. A obra problematiza ainda a vivência no campo com a dinâmica da relação agro mercantil da pecuária no século XIX e XX, bem como a associação do desenvolvimento e progresso a partir da relação do rural e o urbano e o desenvolvimento da economia mercantil por meio da pecuária.
No trabalho com as fontes, Wesley de Paula David faz um estudo dos costumes, a partir de E. P. Thompson e do diálogo com a literatura por meio da obra Inocência, de Visconde de Taunay, considerando essa obra tanto uma fonte histórica quanto uma fonte literária. Utiliza de outros teóricos para entender qual a relação a história estabelece com a literatura. A interpretação da obra, a partir do diálogo entre teoria e a fonte, bem como o diálogo entre a obra literária e o olhar de historiador na interpretação do texto como prática social, favorece ao entendimento de hábitos vividos no sertão do sul de Mato Grosso. Finalizando a abordagem, o autor visualiza o sertão com costumes constituídos por saberes de gente comum.
Os textos apresentados nesse Dossiê evidenciam o quanto é necessário continuarmos a tecer as trilhas da história, esperando que elas possam ser sempre ampliadas com a participação discente, docente e da comunidade mais ampla, de inúmeros lugares, particularmente no alargamento de problemas de pesquisa e na humanização de saberes.
Maria Celma Borges
Rodrigo Ferreira Ornellas
Primavera de 2012
BORGES, Maria Celma; ORNELLAS, Rodrigo Ferreira. Apresentação. Revista Trilhas da História. Três Lagoas, v.2, n.3, jul. / dez., 2012. Acessar publicação original [DR]
Cultura e Poder / Revista Trilhas da História / 2011
A organização do Dossiê Cultura e Poder, apresentado como o primeiro número da Revista Trilhas da História, resulta da seleção de textos produzidos para o VI Ciclo de Palestras “A História em Movimento: Cultura e Poder na Antiguidade e no Tempo Presente”, ocorrido em 2010, no campus de Três Lagoas, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul. Resulta também de trabalhos desenvolvidos no Curso, em 2011. Já no contexto do Ciclo tínhamos por objetivo discutir a história antiga e no tempo presente, buscando culturas, poderes e saberes em objetos, sujeitos e tempos distintos.
Se o objetivo, neste momento, é a abertura de trilhas na história, nada melhor que iniciarmos com o texto “Homossexualidade na Bíblia Hebraica ou uma Historiografia Bicha?”, de Fernando Cândido da Silva, ao problematizar, de forma provocativa, esta temática da cultura e poder, mostrando a sua relevância na construção de outras histórias, não apologéticas, nem muito menos neutras, mas reveladoras da potencialidade que o tema enuncia.
O texto “As transformações das imagens de Dioniso (séculos VI e V a.c): o caso da Tirania”, de Leandro Mendonça Barbosa, contribui semelhante ao anterior, para refletirmos sobre a importância dos estudos da antiguidade. Ao trabalhar, com maestria, as transformações da imagem de Dioniso, por meio da análise dos vasos fabricados nos séculos relacionados e de pesquisadores que tratam da temática, o autor discorre sobre a utilização deste deus pelos governos liderados pela tirania, observando como as divindades campestres tornaram-se presentes no meio urbano.
O texto “O Batalhão Sagrado de Tebas: militarismo e homoafetividade na Grécia Antiga”, de Fortunato Pastore, dando continuidade aos estudos da antiguidade, objetiva, conforme o autor, contribuir para a compreensão da “capacidade militar do Batalhão Sagrado de Tebas, unindo fatores e interpretações que, geralmente, se apresentam separadas ou com frágil vinculação”. O cerne está na discussão da relação entre a capacidade militar e a homoafetividade na Grécia Antiga, partindo da análise de Epaminondas, apresentado como o principal representante do Batalhão Sagrado de Tebas, e um dos responsáveis pelas inúmeras vitórias desse corpo militar.
Adentrando as reflexões do presente – ou de um presente mais próximo – a discussão de Isabel Camilo de Camargo, em “A ocupação de Paranaíba no século XIX e a gênese do latifúndio na região”, traz o debate do século XIX para este tempo, ao enunciar o processo de ocupação da terra no sul de Mato Grosso, e enfatizar a gênese da grande propriedade em Paranaíba, com o olhar para os sujeitos envolvidos. Sua discussão inova por propor um debate para além da história dos pioneiros, ao enfocar as pessoas comuns como agentes da história e problematizar a questão da escravidão, tão importante por adentrar na “periferia” da escrita da história e se dispor a discutir abordagens consagradas na historiografia regional.
O artigo “Dinâmica econômica e organização territorial da Mesorregião Leste de Mato Grosso do Sul”, de Patrícia Helena Minali e Edima Aranha Silva, ambas geógrafas, contribui para a história e a compreensão das relações de poder, ao enfocarem a “ferocidade das ações” e as mudanças na dinâmica territorial da Mesorregião Leste de Mato Grosso do Sul, particularmente com o aumento ostensivo do plantio de eucaliptos, visando atender aos interesses do capital. As figuras apresentadas pelas autoras (mapas, tabelas), em especial as que se referem ao modelo celulose-papel, possibilitam entender o peso do poder da empresa Votorantim na ocupação de espaços em redes geográficas pelo globo terrestre, internacionalizando o trabalho e, consequentemente, a exploração do meio-ambiente, do trabalhador e da sociedade como um todo.
Os artigos “Sob a Insígnia do Trabalho: Notas Sobre a Potencialidade Transitivo-Fundacional da Sociedade”, de Júlio Cezar Ribeiro, e “Um exercício historiográfico sobre o tema trabalho: um breve ensaio”, de Juliano Alves da Silva, discutem a importância do trabalho como categoria analítica e expressão da ação humana, a partir de abordagens que propõem tanto o debate teórico, particularmente o primeiro, quanto a reflexão das experiências do cotidiano dos sujeitos no presente, a exemplo da classe trabalhadora nas indústrias de Aparecida do Taboado-MS, realizada por Silva. A questão do poder norteia as abordagens, pois é impossível discutir o trabalho sem relacioná-lo ao poder.
O texto “Edificando a diferença: mecanismos de Biopoder durante a construção da Usina Hidrelétrica de Ilha Solteira”, de Tiago de Jesus Vieira, aponta para os mecanismos de poder utilizados pela empresa responsável na construção da hidrelétrica de Ilha Solteira e, mais que a usina, pela edificação da cidade e a estratificação dos sujeitos. Utilizando o jornal “O Barrageiro”, e fontes da CESP, entre outras, inspirado em Michel Foucault, discorre sobre os meandros de poder e os interesses implícitos nas práticas da empresa.
O ensaio de Graduação “A ditadura econômica e a política autoritária: subversão dos militantes católicos do IAJES na região do Alto Paraná”, de Marcelo Fernandes Brentan, principiando pela análise das formas repressivas de Getúlio Vargas aos anos da ditadura militar, tal como sobre os projetos econômicos desses contextos, busca analisar as pastorais sociais e parte da igreja católica na região do Alto Paraná, com o olhar para a relação entre a igreja e a política. A sua preocupação está em problematizar o papel do IAJES (Instituto Administrativo Jesus Bom Pastor), nos anos de 1960 e 1990, entendendo-o como propulsor de novos movimentos sociais.
Outro ensaio de Graduação, que traz uma temática profundamente relevante sobre a cultura e poder, é o de Larissa Fernanda Garcia Botacci, em “A construção social do sexo: alguns aspectos a considerar sobre a terceira idade”. Partindo do estudo sobre os sentidos da sexualidade dos idosos, a autora busca “descortinar alguns significados e implicações do comportamento sexual no processo de envelhecimento”. A sua abordagem é instigante para repensarmos o lugar ocupado pelo idoso em nossa sociedade. Ao desvendar preconceitos possibilita que possamos avançar no debate.
O terceiro ensaio de Graduação, “A luta pela terra em Andradina-SP: os posseiros da Fazenda Primavera”, de Hélio Carlos Alexandre, apresenta uma discussão fundamental para pensarmos a cultura e o poder na história do Brasil. Ao trabalhar a questão agrária na fazenda Primavera e a luta dos posseiros até o assentamento Primavera, o autor nos faz enxergar os homens e mulheres que há décadas construíram suas histórias, alicerçando ações em memórias de luta. Ao analisar esses sujeitos, o autor, por ser parte dessa história, em meio a ela vai se enredando, mostrando a trama que envolve milhares de famílias brasileiras, historicamente relegadas ao peso do latifúndio, do poder econômico e político que impera em nossa sociedade.
Somando-se aos Artigos e Ensaios temos ainda duas Resenhas. A primeira de Charles Assi, graduando em História, na UFMS de Três Lagoas, e da autora desta apresentação. A obra resenhada, “Nervos da terra – Histórias de Assombração e Política entre os Sem-Terra de Itapetininga-SP”, do antropólogo Danilo Paiva Ramos, conta histórias e memórias da luta pela terra, a partir do estudo das narrativas das “histórias de assombração”, contadas pelos assentados, entrelaçando luta e política. Uma abordagem instigadora do diálogo entre a História e a Antropologia.
A segunda Resenha, escrita pelo graduando em História, do CPTL / UFMS, Dante Duran Previatti de Souza, apresenta o livro: O mundo se despedaça, de Chinua Achebe. Uma obra que retrata a cultura e a ancestralidade Ibó, da qual Achebe é descendente. Conforme Souza, a abordagem deste autor imprime à obra “um caráter histórico, além do literário”. A seleção desta Resenha, produzida por um acadêmico do segundo semestre do Curso, expressa a esperança de que os graduandos continuem a produzir textos de qualidade, passíveis de serem publicados e horizontes para as novas pesquisas.
Temos ainda uma parte muito especial: as Fontes. Esta seção traz o texto “A utilização de processos-crime em busca de novos sujeitos: perspectivas e desafios”, de Joycimeire Carlos Lélis e Rejane Trindrade Rodrigues, ambas graduandas de História, da UFMS. Na apresentação da fonte, as autoras escolheram um fragmento de um processo criminal, instaurado em Sant’Ana do Paranaíba, em 1881, que versa sobre uma história de amor e de violência. Fazendo um exercício teórico-metodológico, observam os caminhos e descaminhos na interpretação de fontes desta natureza.
As trilhas da história fazem com que sujeitos e tramas se entrelacem, em lugares e tempos diversos: na antiguidade e no presente; na graduação e pós-graduação. Produções advindas de outras áreas, como a Geografia e a Antropologia, contribuem para a confecção de saberes que vão além das especificidades das disciplinas, por possibilitarem um diálogo rico e constante, num exercício interdisciplinar. Que nossas trilhas permaneçam assim, entrelaçando áreas e conhecimentos (de doutores, doutorandos, mestres, mestrandos, graduados e graduandos…) em caminhos que somente se efetivam no desafio da escrita e no sabor da pesquisa.
Maria Celma Borges
Primavera de 2011.
BORGES, Maria Celma. Apresentação. Revista Trilhas da História. Três Lagoas, v.1, n.1, jun. / nov., 2011. Acessar publicação original [DR]