Posts com a Tag ‘Boitempo (E)’
O ódio como política: A reinvenção das direitas no Brasil | Esther Solano Gallego
Ester Solano | Imagem: Nocaute
No dia 8 de outubro de 2018, entre o primeiro e o segundo turnos da eleição presidencial brasileira, a editora Boitempo liberou gratuitamente o e-book O ódio como política: A reinvenção das direitas no Brasil, organizado pela socióloga Esther Solano Gallego, com o objetivo e “ajudar a compreender” como havíamos chegado à situação na qual o retrógrado Jair Bolsonaro estava à frente nas pesquisas e com grandes chances de vencer a eleição. Às vésperas de um novo certame, em junho de 2022, as preocupações com as ameaças (algumas delas já concretizadas) à democracia brasileira, as teses, as propostas de resistência ao “fascismo” comunicadas naquele livro permanecem na “ordem do dia”. Por essa razão, revisitaos a obra tantas vezes resenhada para reavivar as suas assertivas.
Os 22 autores que compõem o projeto são, em maioria, professores universitários brasileiros das áreas das ciências humanas e sociais, ativistas e cartunistas e um religioso identificados com o campo progressista. Todos contribuem para o cumprimento da meta do livro, descrita por Gallego: “aprofundar-se nas complexas dinâmicas das direitas desde diversos pontos de vista e análises”. Se quisermos de fato lutar contra as direitas, continua a organizadora, “com frequência antidemocráticas e retrógradas, devemos primeiro observar, escutar, enxergar a realidade e entendê-la para depois combatê-la. Não sabemos tudo. Aprendamos juntos.” (p.8). [i]
Para iniciar o aprendizado, compreendamos que as “direitas” às quais o título da obra se refere são plurais na terminologia. Os autores a tratam como “conservadorismo radical”, “direita”, “direita radical”, “extrema direita”, “grupos de direita”, “nova direita” e “novas direitas”. Abordadas, em sua maioria, como lideranças políticas, partidos políticos, movimentos e instituições da sociedade civil, as direitas nascem nos anos 80, a partir da reorganização “das classes dominantes”, representadas em várias instituições de pesquisa e financiamento (think thanks), como também das ameaças sofridas por essas classes médias em suas “oportunidades”, da conjunção de identidades e da conjuntura propiciada pelas redes sociais e internet, já nos anos 2000/2010.
Alguns autores destacam o caráter militante desses grupos (ao contrário do caráter financiado desses grupos), o transbordamento dessa militância para além dos partidos, alcançando editoras, movimentos e grande mídia, marcando a sensibilidades de jovens da periferia que passaram literalmente da esperança dos anos de crescimento econômico à indignação com a indiferença do Estado em termos de segurança e oportunidades, por exemplo. Outros ainda ressaltam as consequências que essas direitas de orientação militarizadas trouxeram à vida dos negros, dos pobres, das mulheres e das pessoas GLBTI. A “democracia, os direitos humanos, ao Estado laico e à diversidade humana”, segundo um desses autores, foram as principais vítimas dos fundamentalismos e extremismos advindos das novas direitas.
O diagnóstico está presente na maioria dos textos, enquanto as declarações propositivas são minoritárias. Como sair dessa situação? Em geral, estudar, denunciar, protestar são as medidas. Apenas um se engaja em solução radical: transformar “as condições socioeconômicas que lhe fornecem a base material” (p.35).
No que diz respeito ao espírito deste dossiê de Crítica Historiográfica, vale destacar as ideologias atribuídas às novas direitas brasileiras. Se hoje, autores divergem nos critérios de classificá-las e nos termos empregados para as designações, imaginem há quatro anos. Os autores agrupam os mesmos étimos de modo diferente, embora na maioria das combinações o libertarianismo esteja presente: “libertarianismo” (ultraliberalismo), “fundamentalismo religioso” (antiaborto, homofobia) e “anticomunismo”; “libertarianismo”, “monetarismo” (Chicago) e “neoliberalismo” (Áustria); “libertarianismo”, “conservadorismo” e “reacionarismo”; “libertarianismo”, “fundamentalismo religioso” e “anticomunismo”; “fundamentalismo religioso cristão” e “extremismo religioso cristão” (que ganham a forma de “protofascismo”).
Autores também significam as palavras de modo diferente e até divergente. Eles afirmam que os “conservadores” são os mais aguerridos combatentes da (falsa) “ideologia de gênero”; que o “conservadorismo radical” (mapeado nas redes sociais) divide brasileiros em “pessoas de bem” e “vagabundos”, ou seja, denunciam esse segundo tipo como humanos de comportamento desviante, resultantes de uma educação equivocada e do culto aos direitos humanos, que corrompem a inocência das crianças, cujo líder é Lula e os instrumentos são movimentos sociais, sindicatos e Supremo Tribunal Federal. Eles afirmam, por fim, que a ideologia das novas direitas pode ser sintetizada na ameaça do “inimigo interno”, sobrevivente do Discurso de Segurança Nacional dos tempos da ditadura, na reação ao estado de bem-estar social (neoconservadorismo) e na implantação de políticas de “austeridade” (neoliberalismo).
No que diz respeito especificamente ao lugar do direito, três textos se destacam. Dois deles tratam de direitos de grupos determinados e um da ação do poder judiciário. Em “Precisamos falar da ‘direita jurídica’”, Rubens Casara denuncia o “populismo jurídico” e o “ativismo jurídico” como ameaças à democracia, assim como os operadores do direito que interpretam as leis ao modo conservador e neoliberal, ou seja, que concebem o poder judiciário como “um mero homologador das expectativas do mercado” ou “instrumento de controle tanto dos pobres […] quanto das pessoas identificadas como inimigos políticos do projeto neoliberal” (p.92)
Dos dois que tratam de grupos, o primeiro descreve ações dos fundamentalistas aos “direitos LGBTI” na Constituinte de 1988 (orientação sexual) e no parlamento, de 2006 a 2015 (anti-homofobia, união estável de pessoas do mesmo sexo e identidade de gênero). “Moralidades e direitos LGBTI nos anos 2010”, de Lucas Bulgarelli, põe formalmente os direitos LGBTI e os direitos humanos em posições separadas, ambos combatidos pelos conservadores. O segundo texto – “Feminismo: um caminho longo à frente”, de Stephanie Ribeiro –, denuncia a negação do “direito ao aborto seguro e legal” (de modo direto pela direita e indireto pela esquerda) e a vertente feminista de orientação “liberal”. Segundo a autora, trata-se de “um feminismo sem comprometimento com outras mulheres […] ou que não precisa ter um posicionamento político […] pautado em ascensão individual e não em rompimento com estruturas opressoras” (p.133)
Apesar dos esclarecimentos, das denúncias e alertas, a coletânea não está isenta de afirmações controversas e/ou usos equivocados de conceitos. Duas delas chamam a atenção pelo primarismo: a inclusão do conservadorismo (uma macro ideologia) em pé de igualdade com o neoliberalismo, por exemplo, a afirmação de que a defesa do estado de direito é uma “reivindicação conservadora” que serve ao capital. Outras não menos inquietantes são: a admissão da existência de “neoliberais de esquerda”; a declaração de que o Ministério Público foi partícipe de todos os golpes de Estado; que o neoliberalismo” e a “nova direita” são ideais antagônicos; e que a esquerda liberal e neoliberalismo progressista são ideais sinônimos.
Usos equívocos que merecem a atenção do leitor são a tomada do fundamentalismo como fundamentalismo religioso, a definição de extremismo como uso de violência, sem a respectiva definição de violência; e o emprego de “feminismo liberal” com o sentido de feminismo neoliberal.
O grande termo ausente, porém, é o “ódio”, que está no título do livro e na apresentação da editora. Ele aparece (antifeminista e pró segurança pública) tangencialmente como o par oposto da esperança (orçamento participativo e bolsa família) entre os jovens pobres de Porto Alegre, o ódio às minorias, disparado pelas “classes dominantes” (FHCC), o discurso de ódio experimentado pelos pobres, diante da falta de “dignidade” resultante da crise econômica (F), o ódio ao pensamento livre disparado pelos reacionários contra os professores pelo ESP (FP), demonstrando que não é sentimento de esquerda ou de direita (contraditando, de certo modo, o que sugere a designação da obra).
As ausências e as situações controversas, ao contrário de borrarem a obra, somente reforçam a importância da sua leitura. Para profissionais do direito, principalmente, o livro pode auxiliar na mudança de sensibilidade dos apartidários e imparciais “operadores” para as causas das mulheres e da população LGBTQIA+. Para os professores de História, o livro serve duplamente: como testemunhos dos anos quentes do golpe e da campanha eleitoral de 2018 e como roteiro de para a ação, seja no planejamento da formação continuada, seja na orientação da ação no interior da escola. Aliás, os objetivos anunciados pela organizadora (e cumpridos com sobras) são em si mesmos pragmáticos e beneméritos: “observar, escutar, enxergar a realidade e entendê-la para depois combatê-la.” (p.9).
Sumário de O ódio como política: A reinvenção das direitas no Brasil
Prólogo | Gregório Duvivier
Apresentação | Esther Solano Gallego
- A reemergência da direita brasileira | Luis Felipe Miguel
- Neoconservadorismo e liberalismo | Silvio Luiz de Almeida
- A nova direita e a normalização do nazismo e do fascismo | Carapanã
- As classes dominantes e a nova direita no Brasil contemporâneo | Flávio Henrique Calheiros Casimiro
- O boom das novas direitas brasileiras: financiamento ou militância? | Camila Rocha
- Da esperança ao ódio: a juventude periférica bolsonarista | Rosana Pinheiro-Machado e Lucia Mury Scalco
- Periferia e conservadorismo | Ferréz
- A produção do inimigo e a insistência do Brasil violento e de exceção | Edson Teles
- Precisamos falar da “direita jurídica” | Rubens Casara
- O discurso econômico da austeridade e os interesses velados | Pedro Rossi e Esther Dweck
- Antipetismo e conservadorismo no Facebook | Márcio Moretto Ribeiro
- Fundamentalismo e extremismo não esgotam experiência do sagrado nas religiões, Henrique Vieira
- Moralidades, direitas e direitos LGBTI nos anos 2010 | Lucas Bulgarelli
- Feminismo: um caminho longo à frente | Stephanie Ribeiro
- O discurso reacionário de defesa de uma “escola sem partido” | Fernando Penna
- Sobre os autores
- Charges
Resenhista
Lucas Miranda Pinheiro é Doutor em História (UNESP/Franca), professor do Departamento de Relações Internacionais (DRI) e do Mestrado Profissional em Ensino de História (ProfHistória) da Universidade Federal de Sergipe (UFS). Entre outros trabalhos, publicou (em coautoria) Perspectivas e Debates em Segurança, Defesa e Relações Internacionais e Relações Internacionais: Olhares Cruzados. Currículo Lattes: http://lattes.cnpq.br/6576943412041943; Orcid: https://orcid.org/0000-0002-4821-0168; E-mail: cucapinheiro@yahoo.com.br.
Para citar esta resenha
GALLEGO, Esther Solano. O ódio como política: A reinvenção das direitas no Brasil. São Paulo: Boitempo, 2018. 133p. Resenha de: PINHEIRO, Lucas Miranda. Bolsonarismo à direita? Crítica Historiográfica. Natal,.2, n. esp. (Novas Direitas em discussão), ago. 2022. Disponível em <https://www.criticahistoriografica.com.br/um-elemento-ausente-resenha-de-o-odio-como-politica-a-reinvencao-das-direitas-no-brasil-organizado-por-esther-solano-gallego/>.
O patriarcado do salário | Silvia Federici
Silvia Federici | Imagem: Outros Quinhentos
Nascida em Parma, Itália, em 1942, Silvia Federici mudou-se para os Estados Unidos em 1967 onde estudou filosofia na Universidade de Buffalo, Nova York. No ano de 1972 a filósofa participou da fundação do Coletivo Feminista Internacional (International Feminist Colletctive), uma organização que impulsionou a campanha que pauta o salário para o trabalho doméstico. Juntamente com outras ativistas e intelectuais como Mariarosa Dalla Costa, Selma James, Maria Mies e Vandana Shiva, Federici tem se debruçado a pensar teoricamente a reprodução sexual, o trabalho reprodutivo e de cuidado, como fio condutor das relações de classe e as dominações.
Publicado em 2021 no Brasil, o livro O patriarcado do salário, escrito por Silvia Federici, nos dá subsídios para pensarmos a relação entre feminismo e marxismo a partir da discussão da reprodução social. O volume é composto por sete ensaios escritos entre os anos de 1975 a 2008, nos quais a autora retoma importantes discussões feitas por Karl Marx e Friedrich Engels sobre a questão do trabalho, articulando-a à luz da teoria feminista. Leia Mais
Brasil à parte: 1964-2019 | Perry Anderson
Tom Ginsburg (2020) registrou, em palestra proferida na Universidade de Chicago, que o ataque às democracias dá-se também pelo Poder Judiciário, não apenas por investidas militares ou avanço comunista. A expressão death by a thousand cuts, na acepção apresentada por Ginsburg, refere-se a uma lenta morte por mil cortes e busca a atualização do debate quanto à qualidade da democracia e das instituições democráticas dentro do cenário mundial. Leia Mais
Gênero, neoconservadorismo e democracia: disputas e retrocessos na América Latina | Flávia Biroli, Juan Marco Vaggione e Maria das Dores Campos Machado
Na América Latina, a década de 2010 foi marcada pela queda do que se convencionou chamar de “onda vermelha”. Fosse por meio de golpes ou eleições, essas mudanças levaram à instabilidade política e ao acentuado crescimento do conservadorismo religioso e do neoliberalismo no continente latino-americano. O resultado mais visível da chegada desse segmento das direitas ao poder vem sendo demonstrado pelo desprezo às políticas de direitos humanos e aos acordos internacionais de garantia de direitos sexuais e reprodutivos. Dessa forma, para sua autoafirmação diante de outras frações do conservadorismo, tais movimentos transformam seus adversários políticos em inimigos, agindo de modo violento contra movimentos feministas e LGBTQI.
É partindo desses pontos que a obra “Gênero, neoconservadorismo e democracia: disputas e retrocessos na América Latina”, de Flávia Biroli, Maria das Dores Campos Machado e Juan Marco Vaggione, traz as seguintes questões: qual (is) é (são) a(s) novidade(s) desses atuais ataques à agenda da igualdade de gênero e da diversidade sexual? Como esses atores conservadores, sobretudo religiosos, incidem sobre as democracias da região? Quais as consequências do uso do gênero dentro das disputas políticas? E quais são os efeitos da polarização em um contexto de erosão das democracias? Leia Mais
Hegel e a liberdade dos modernos | Domenico Losurdo
Domenico Losurdo| Foto: Kyan Shokoui Dios
Introdução
A despeito das piadas jocosas que encontramos em páginas de social medias relacionadas à filosofia, é inegável que Hegel continua sendo um autor que desperta respeito, ou, no mínimo, curiosidade para uma leitura. Disso, é difícil encontrar hoje alguém disposto a comentar sua obra. O italiano Domenico Losurdo (1941-2018) tomou consciência de tal empreendimento. Porém, não se absteve de contribuir com algumas ideias. O trabalho de anos de pesquisa e publicações diversas (LOSURDO, 2019, pp. 19-20), resultou no livro intitulado Hegel e a liberdade dos modernos. O foco de sua obra direciona-se ao Hegel sujeito-político, inserido no contexto de sua época. No entanto, Losurdo deu um passo adiante ao confrontar o estudo dos escritos de Hegel com a fortuna crítica coeva e hodierna de sua obra; é dessa relação entre escritos filosóficos e fortuna crítica que se pretende dar atenção nessa resenha crítica.
A importância da historiação dos escritos filosóficos
À primeira vista, Losurdo dá atenção à biografia intelectual como uma maneira de escapar de trabalhos historicista-jornalísticos e das obras que versam a comentários a partir de Hegel. Essa premissa pode parecer estranha àqueles que, acostumados com leituras de autores e autoras já consagrados, acabam por não questionar os cortes produzidos em torno do sujeito, separando, por vezes, a vida pessoal dos escritos publicados, como se não houvesse relação nenhuma entre eles (LUKÁCS, 2018, p. 44). Leia Mais
Mulheres e caça às bruxas: da Idade Média aos dias atuais | Silvia Federici
Silvia Federici | Foto: DeliriumNerd
Ao falar de caça às bruxas imagina-se fogueiras queimando acerca de centenas de anos atrás em um povoado bem distante, com pessoas ao redor do fogo assistindo a incineração de uma ou mais mulheres acusadas de bruxaria por serem aliadas ao diabo. São cenas que parecem estar bem longínquas do século 21, e ainda relacionadas somente ao combate contra o mundo sobrenatural. No entanto, através do livro “Mulheres e Caça às Bruxas: da Idade Média aos Dias Atuais” a autora Silvia Federici apresenta a interligação da caça às bruxas à eliminação das mulheres do sistema capitalista e as consequências disso para as suas vidas. O livro de título original “Witches, witch-hunting, and women” é a obra mais recente da autora, lançado no Brasil em 2019 pela editora Boitempo, estando dividido em duas partes no mesmo volume: Revisitando a acumulação primitiva do capital e a caça às bruxas na Europa; Novas formas de acumulação de capital e a caça às bruxas em nossa época. Silvia Federici é escritora, professora e intelectual militante de tradição feminista marxista autônoma, nascida na Itália em 1942, mudou-se para os Estados Unidos no fim da década de 1960, onde foi cofundadora do Coletivo Internacional Feminista e contribuiu para a Campanha por um salário para o trabalho doméstico. Em 1965 concluiu a graduação em filosofia. Atualmente é professora emérita na universidade de Hofstra, em Nova York. Suas outras obras são: Calibã e a Bruxa (Elefante, 2017) e O Ponto Zero da Revolução (Elefante, 2019), além de artigos sobre feminismo, colonialismo e globalização. Leia Mais
Gênero Neoconservadorismo e Democracia: Disputas e Retrocessos na América Latina | Flavia Biroli, Juan M. Vaggione e Maria das Dores C. Machado
O livro Gênero, Neoconservadorismo e Democracia: Disputas e Retrocessos na América Latina, organizado e escrito por Flávia Biroli, Juan Marco Vaggione e Maria das Dores Campos de Machado, publicado no ano de 2020 pela Editora Boitempo, analisa o crescimento do neoconservadorismo no que tange aos direitos sexuais e reprodutivos, à educação voltada ao gênero e sexualidade, aos estudos de gênero e aos direitos humanos. Sobretudo, o objetivo do livro, como identificado nas primeiras páginas, é de entender o avanço neoconservador em relação ao gênero a partir de uma perspectiva interdisciplinar, transnacional e comparativa ao relacioná-lo com os debates que envolvem religião, direitos e democracia (BIROLI; VAGGIONE; MACHADO, 2020). O livro traz um debate significativo ao mobilizar as disputas e discussões políticas atreladas à “ideologia de gênero”, à “cultura da morte” e à igualdade de gênero que tomou corpo nas últimas duas décadas do século XXI na América Latina.
Já faz algumas décadas que as autoras e o autor do livro têm se dedicado às pesquisas que envolvem gênero, política e religião. Como poder ser visto, Flávia Biroli é professora e pesquisadora no Instituto de Ciência Política da Universidade de Brasília (UnB), onde tem realizado inúmeras publicações, e tem se dedicado às temáticas da democracia, política, estudos de gênero e teoria feminista no Brasil contemporâneo. Já, Juan Marco Vaggione é doutor em direito pela Universidade Nacional de Córdoba (UNC), na Argentina, e em sociologia pela New School for Social Research, nos Estados Unidos. Atualmente, é professor titular de sociologia da Faculdade de Direito da UNC e pesquisador do Consejo Nacional de Investigaciones Científicas y Tecnicas (Conicet) da Argentina; também dirige o Programa de Direitos Sexuais e Reprodutivos da Faculdade de Direito da UNC. Por sua vez, Maria das Dores Campos de Machado é doutora em Sociologia pelo Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro e tem se dedicado aos estudos das religiões, neoconservadorismo e à política brasileira. Atualmente, é professora aposentada e voluntária na Universidade Federal do Rio de Janeiro.
A soma das diferentes trajetórias de pesquisas e análises acaba dando destaque à obra resenhada aqui. A análise está centrada na emergência do neoconservadorismo e no avanço sobre a democracia ao inter-relacionar os ataques ao gênero no contexto atual; aspecto, este, considerado muitas vezes menor nas principais produções que hoje se voltam a pensar a democracia na América Latina. Para analisar o fenômeno, Flávia Biroli, Juan Marco Vaggione e Maria das Dores Campos de Machado (2020) propõem cinco dimensões, a fim de identificar as características contemporâneas do neoconservadorismo: 1º) “o conceito de neoconservadorismos permite jogar luz sobre as alianças e afinidades entre diferentes setores” (BIROLI; VAGGIONE; MACHADO, 2020, p. 28); 2º) a expressiva utilização da juridificação da moralidade; 3°) o fato de que o neoconservadorismo opera em contexto democrático, ao mesmo tempo em que o fere; 4°) o caráter global e transnacional (adicionado aqui por mim) do neoconservadorismo do século XXI; 5°) a relação entre neoconservadorismo e a agenda neoliberal no que tange aos direitos das mulheres e dos sujeitos LGBTQI.
O livro foi dividido em três capítulos, em que foram abordadas as seguintes temáticas: as reações dos atores religiosos (católicos ou evangélicos), as tentativas de restrição das agendas ligadas à igualdade de gênero, as disputas entre os movimentos feministas e LGBTQI e os movimentos conservadores; o transnacionalismo dos avanços das agendas conservadoras na América Latina, os ataques políticos em diferentes esferas institucionais (jurídicos, parlamentar, etc.) aos poucos avanços nas últimas décadas que envolveram a igualdade de gênero; a interconexão entre o avanço conservador com as políticas neoliberais, a mobilização dos direitos humanos como argumento para participação e defesa dos projetos conservadores, a centralidade da família como uma tendência transnacional no projeto político neoconservador, os padrões do neoconservadorismo religioso, o caráter novo do conservadorismo que emerge no século XXI e a aliança entre distintos setores nas agendas antigênero (BIROLI; VAGGIONE; MACHADO, 2020).
No primeiro capítulo, intitulado A restauração legal: o neoconservadorismo e o direito na América Latina, escrito por Juan Marco Vaggione, o objetivo foi compreender como “o neoconservadorismo se instalou como um problema complexo para a reflexão analítica e normativa” (BIROLI; VAGGIONE; MACHADO, 2020, p. 42). Mais precisamente, por meio do conceito de “juridificação reativa” [1], o autor se dedicou a entender como se deu (por meio de quais sujeitos e de que maneira) o crescente “movimento de restauração moral por meio do direito” (BIROLI; VAGGIONE; MACHADO, 2020, p. 42). Em outras palavras, foi pensado como o direito vem sendo instrumentalizado para a defesa dos princípios morais neoconservadores na ofensiva contra o gênero. O capítulo é denso, cheio de exemplos e discussões que envolvem os direitos sexuais e reprodutivos das últimas décadas na América Latina e esteve pautado na ideia de que a juridificação reativa seria tanto uma arena quando uma estratégia para o avanço neoconservador (BIROLI; VAGGIONE; MACHADO, 2020).
Já, no capítulo de Maria das Dores Campos Machado, com o título O neoconservadorismo cristão no Brasil e na Colômbia, o aspecto central foi a comparação entre os dois países que compõem o título no que diz respeito à emergência neoconservadora dos grupos cristãos. O capítulo traça um panorama ao abordar questões ligadas ao ensino, religião, projetos de leis, crescimento de percentuais religiosos, avanço do conservadorismo entre os anos de 2014 até 2018, o papel das ONG’s religiosas para a interversão no debate público, entre outros aspectos. Também sublinhou, graças à circulação dos líderes religiosos, sobre a propagação dos valores e da agenda antigênero, a construção de redes e eventos transnacionais e como as novas tecnologias facilitaram na promoção de agendas que desafiam a democracia (BIROLI; VAGGIONE; MACHADO, 2020). O grande destaque do capítulo refere-se à autora ter chamado a atenção para a atuação das mulheres conservadoras (seja como deputadas, pastoras ou ministras) na agenda antigênero, contra os debates sobre os direitos sexuais e reprodutivos, na desqualificação do feminismo e em defesa da moral cristã.
Na tentativa de entender a relação entre gênero e democracia, Flávia Biroli, no capítulo Gênero, “valores familiares” e democracia, analisou “os processos de transformação das democracias no mesmo contexto em que as disputas em torno do gênero ganham novos padrões” (BIROLI; VAGGIONE; MACHADO, 2020, p. 136). A autora foca na discussão dos estudos que vêm se indagando sobre a desdemocratização e como o gênero vem sendo considerado nas análises; a relação entre as evidências empíricas no combate ao gênero, principalmente, os valores democráticos e a maneira como se dá a contestação dos estudos de gênero na qualidade de área científica e acadêmica (BIROLI; VAGGIONE; MACHADO, 2020).
Os aspectos mais interessantes do capítulo tratam de demarcar as ideias que constituem os argumentos dos grupos neoconservadores, de que os lobbies feministas e LGBTQI ameaçam as crianças e a família, que as organizações internacionais têm como objetivo subjugar a nação por meio do enfraquecimento da família, que as crianças precisam ser protegidas dentro das autoridades reconhecidas, a família, e que os movimentos de minorias ameaçam as maiorias agindo contra a democracia (BIROLI; VAGGIONE; MACHADO, 2020). Por isso, o sentido de democracia está em disputa no tempo presente e precisa ser debatido.
As discussões propostas no livro tiveram como base dois grandes marcos conceituais (apresentados na introdução): o neoconservadorismo e a temporalidade. Foi com o segundo eixo que tive certo incômodo, uma vez que sua construção se deu ao tentar verificar as políticas antigênero. As autoras e o autor falam em “uma nova temporalidade” a partir das ameaças ao gênero, pautadas em termos como “ideologia de gênero”. No entanto, o tempo parece compacto em um grande bloco único, o que me faz questionar: não seriam múltiplas (no plural) temporalidades na América Latina? Em todos os países da América Latina, as ameaças se deram da mesma maneira e nos mesmos marcos temporais? Conforme foi sendo demostrado ao longo dos capítulos, ocorreram trânsitos, projetos, avanços e derrotas que não foram lineares e homogêneos em todos os países. Sem falar que o avanço neoconservador não tomou corpo em todos os países e já vendo sofrendo limitações. Em outras palavras, as temporalidades foram muito diversas e ainda precisam ser mais bem exploradas. Por último aqui, os avanços neoconservadores estão alinhados ao negacionismo enfrentado, de uma maneira geral, em diferentes âmbitos, como, aqueles ligados às ciências e às universidades; pouco citado em suas multiplicidades no livro.
O livro Gênero, Neoconservadorismo e Democracia é uma leitura precisa ao dar historicidade aos embates políticos presentes na América Latina do século XXI. Mobiliza diferentes disciplinas para a análise dos segmentos sociais, culturais e econômicos, que fizeram com que disputas e conservadorismo tomassem corpo e significado durante o período. O tema é extremamente atual, pertinente e importante, tanto para pesquisadores quanto para quem busca entender como se manifestou o avanço neoconservador nas últimas duas décadas. Por isso, o livro é importante a fim de entendermos mais sobre a história do tempo presente no que tange ao neoconservadorismo, às ameaças à igualdade de gênero e às democracias na América Latina. Também significa uma análise do quão complexo e novo são esses movimentos e os desafios que têm sido enfrentados pelos diferentes movimentos sociais, ativistas e pesquisadores, com os avanços das agendas antigênero. Como sinalizou Flávia Biroli, “há mais em jogo do que visões de mundo conflituosas” (BIROLI; VAGGIONE; MACHADO, 2020, p. 185); entender, historicizar e analisar o que acontece (como foi feito neste livro) é valoroso para quem se interessa pela história do tempo presente.
Nota
1. Juridificaçãoreativa é o termo utilizado para designar o uso do direito por parte dos atores neoconservadores para a defesa dos seus princípios morais e para avançar na disputa contra o gênero (BIROLI; VAGGIONE; MACHADO, 2020).
Eloisa Rosalen – Doutoranda em História na Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Florianópolis, SC – BRASIL. lattes.cnpq.br/3857428948780807 . E-mail: rosaleneloisa@gmail.com.
BIROLI, Flavia; VAGGIONE, Juan Marco; MACHADO, Maria das Dores Campos Machado. Gênero, Neoconservadorismo e Democracia: Disputas e Retrocessos na América Latina. São Paulo: Boitempo, 2020. Resenha de: ROSALEN, Eloisa. O avanço neoconservador antigênero na América Latina durante o século XXI. Revista Tempo e Argumento. Florianópolis, v.13, n.32, p.1-6, 2021. Acessar publicação original [IF].
Pandemia. COVID-19 e a reinvenção do comunismo | Slavoj Žižek
Nascido em 1949 em Liubliana na Eslovênia, Slavoj Žižek, é filósofo e psicanalista. Sua produção intelectual tem sido influenciada principalmente por obras de Karl Mark e Jacques Lacan, e pautada em crítica e reflexões originais sobre diversas áreas do conhecimento, com destaque para a cultura e política da pós-modernidade. Atua como professor da European Graduate School e do Instituto de Sociologia da Universidade de Luibliana, bem como presidente da Sociedade de Psicanálise Teórica, de Liubliana. É diretor de relações internacionais do Instituto de Humanidades da Universidade Birkbeck, de Londres, Inglaterra. Autor de diversas obras com os títulos Bem-vindo ao deserto do Real! (2003), Às portas da revolução: escritos de Lênin de 1917 (2005), e O sujeito incômodo (2016). A obra objeto desta resenha constitui uma congregação de ensaios relacionados a pandemia da COVID-19, organizado em treze capítulos, o autor inicia seu texto com críticas a exposição que se fez sobre o surgimento do perigo, na época eminente, do novo Coronavirus, em comparação com outras epidemias anteriores. O autor faz alusão a última grande pandemia de influenza, a gripe espanhola, que entre 1918-1920 atingiu mais de 50 milhões de vítimas. Destaca, ainda, que na contemporaneidade a influenza ainda se faz presente e tem ceifado milhares de vidas todos os anos. Com essa breve contextualização do problema, o autor nos remete ao que ele considera a raiz da questão, que é a conectividade do nosso mundo, “quanto mais nosso mundo estiver conectado, mais um desastre local pode deflagrar um pavor global e, eventualmente, uma catástrofe” (Žižek, 2020, p. 13). Neste ponto o autor critica as medidas de isolamento e quarentena, que nos remetem a ideia de comunismo, ressaltando a importância de uma resposta global com ações coordenadas. Ainda nos capítulos iniciais, o autor destaca que em se tratando de uma pandemia, será necessário que os governos tomem medidas fortes que em muito se parecem ideias comunistas, como controlar a produção e a distribuição principalmente de alimentos, para evitar desabastecimento e consequentemente fome. Neste ponto, tendo em vista que esse ensaio foi escrito no começo da pandemia, observa-se que alguns países como Itália, França, Espanha, Inglaterra, China, Estados Unidos, dentre outros, já estão adotando plenamente esses esforços de controle, fugindo assim da lógica do capital. Verifica-se que se não houver esforço coletivo de cooperação e colaboração dos governos em combater os efeitos socioeconômicos da pandemia da COVID-19, deixando de lado a lógica exploratória e brutal do capital para pensar nas pessoas, em termos de sobrevivência, o mundo como o conhecemos necessitará ser reinventado devido a ampliação da desigualdade, pobreza e conflitos. Isto remete reflexões sobre um novo modelo socioeconômico para substituir o capitalismo, que desde a algum tempo já vem demonstrando ser insustentável, como tem reiterado as sucessivas crises econômicas que expõe a fragilidade do sistema capitalista. Neste sentido, retomando o título do livro desta resenha, constata-se que a proposta de reinvenção do comunismo, é a tentativa do autor em provocar reflexões sobre o futuro do capitalismo, congregando novos fatos e evidências a partir da eminência da COVID-19. Um desses fatos abordados na obra de Žižek são suas explicações acerca da reação das pessoas frente a pandemia. Para tanto, o autor busca na psicologia uma associação oportuna a partir do livro “Sobre a morte e o morrer”, publicado em 2008, de autoria da psiquiatra Elisabeth Kübler-Ross, que propõe cinco estágios de reação quando as pessoas são diagnosticadas com uma doença terminal, que são eles: negação, raiva, negociação, depressão e aceitação. Ao relacionar a abordagem de Kübler-Ross (2008) com a pandemia, Žižek (2020, p. 24-27) discute esses cinco estágios destacando slogans que disseminados nas mídias e redes sociais como sobre a negação: “Não há nada grave ocorrendo, há apenas alguns indivíduos irresponsáveis disseminando pânico”; raiva: “Os culpados são os chineses sujos ou a ineficiência do Estado em lidar com esse tipo de crise”; negociação: “Ok, há algumas vítimas, mas a situação é menos grave que a SARS e ainda podemos limitar o estrago”; depressão: “Não nos enganemos mais, estamos todos perdidos” e, por ultimo a aceitação: “Ok, as pessoas vão continuar morrendo, mas a vida vai seguir, talvez haja alguns efeitos colaterais positivos”. O autor também destaca que a pandemia pode suscitar um vírus ideológico que nos motive a pensar além de Estado-nação e nos leve a refletir sobre novas formas de cooperação e solidariedade globais. Destaca ainda que, assim como a catástrofe de Chernobil na Rússia em 1986, que deflagrou o fim do comunismo soviético, especula-se que o coronavírus possa fragilizar ou até mesmo provocar ações para mudanças no governo comunista na China. Todavia, o autor admite que a COVID-19 pode nos estimular a reinventar o comunismo com base na confiança no povo e na ciência, mesmo com o negacionismo e a banalização desses temas por governantes nacionais de alguns países como o Brasil. A partir da narrativa de Fredric Jameson, conceituado crítico literário e teórico marxista, o autor fala do enredo utópico apresentado em filmes de catástrofes, onde uma ameaça como um asteroide ou uma pandemia põe em risco a vida (Žižek, 2020). Frente a isso, a humanidade é capaz de ensejar uma nova solidariedade global, colocando as diferenças em segundo plano e se unindo por uma causa comum, a busca de uma solução. O autor pondera que já estamos vivenciando um acontecimento como esses retratados nos filmes, mas que ainda estamos muito aquém de uma união global para uma solução solidária. O autor destaca que ainda precisamos repensar nossas prioridades, além da ameaça viral, vivenciamos outras catástrofes ou crises paralelas como as de natureza climática: seca, ondas de calor, tempestades massivas etc. Além disso, segundo o autor, há inúmeras notícias nas mídias de massa que se preocupam mais com o mercado e os efeitos da pandemia na economia do que em relação a outras questões, considerando as centenas de milhares de pessoas que já morreram e que ainda irão morrer. Nesse sentido, o autor menciona ser necessário repensar a economia para que as pessoas não se tornem extremamente dependentes do mercado da conectividade, como algum tipo de organização global capaz de controlar e regular a economia. Eis um dos ápices do livro de Žižek onde sustenta a noção de reinvenção do comunismo. Com base nos escritos de Georg Wilhelm Friedrich Hegel, escritos da juventude, para descrever a atual situação, o autor destaca que, o que aprendemos com a história é que não aprendemos nada com a história (Žižek, 2020). Aplicando a atual situação, o autor, destaca que a epidemia não nos deixará mais sábios, mas sim confrontará os fundamentos de nossas vidas, causando dor, sofrimento e caos econômico possivelmente pior que a Grande Recessão de 1929 ou ainda em relação a outras pandemias. Žižek sustenta que não existe um retorno ao normal da vida cotidiana pré pandemia, mas sim que o novo ‘normal’ deverá ser construído sobre o que sobrar ou se mantiver de nossas antigas vidas antes da pandemia, evidenciando a necessidade de se repensar tudo. Nesse aspecto o autor propõe que a pandemia COVID-19 poderia revitalizar o comunismo, pois, segundo o autor, nesses momentos de pânico é necessário uma abordagem mais centralizada e articulada, como a adotada pelo Estado chinês, como seu regime comunista. O autor menciona que o uso do termo ‘comunismo’ ou reinvenção do comunismo em sua obra está associada a necessidade de resposta globais coordenadas a ameaça da atual pandemia. Destaca que, os governos precisam se unir, como se estivessem em guerra, neste caso, não contra uma nação inimiga, mas sim contra um inimigo comum e invisível: a COVID-19. Contudo, a maior preocupação do autor indicada na obra é a possibilidade da aplicação de medidas de sobrevivência orientadas pelos governos e com respaldo de especialistas. O autor destaca que isso não está longe de acontecer e pondera que se pode observar no tom dos pronunciamentos e discursos das autoridades a proposição de novos hábitos e rotinas de convivência com a pandemia. Ressalta-se que de forma subliminar estamos sendo convencidos a aceitação da lógica da sobrevivência. Isso implicaria em deixar de lado os cuidados com os fracos ou idosos e que sobreviva o mais apto. Ainda nesse contexto, o autor critica a atitude de alguns governantes, sobretudo o de Donald Trump que buscou reservar doses de vacinas, ainda em testes e experimentação, exclusivamente para os Estados Unidos. O autor argumenta que no contexto de pandemia, os governos se veem diante de escolhas radicais, em alguns casos pode haver conflitos e lutas pelo poder, em outros o incentivo é para proteger a economia a todo custo. Assim, o autor destaca que é necessário que se reflita acerca das ações dos governantes e da própria forma de agir do Estado. Como conclusão o autor pondera que se deve repensar a forma de se pensar política, de se pensar o Estado, de se pensar em nações, pondera a necessidade de solidariedade global. Destaca que, além do coronavírus, outras questões precisam de atenção, são ameaças eminente como as questões ambientais e assim por diante. Que se aproveite esse momento para se por em discussão questões pertinentes que se façam ajustes necessários não só para se conter o coronavírus, mas para a própria sobrevivência humana. Ao analisar a obra como um todo, observou-se mudança de posicionamentos do próprio autor no decorrer de seus escritos. Como se trata de ensaios escrito no início da pandemia do novo coronavírus, inicialmente o autor adota uma postura muito mais cética em relação a COVID-19 e se de fato seria uma ameaça real ou se tratava mais de uma paranoia exagerada pela mídia e pelos governos, o que fica bem evidente nos capítulos iniciais onde, critica duramente as ações tomadas por governantes quanto aos decretos de limitação de circulação das pessoas. No entanto, à medida que os capítulos avançam, o que corresponde ao próprio avanço da pandemia, nota-se uma mudança de postura quanto a pandemia e seus efeitos, bem como com as medidas tomadas para se conter o avanço do vírus. Tal comportamento explicitado pelos ensaios do autor, indica um pouco do que as pessoas sentiram e ainda sentem, mas que estão aprendendo e revendo, durante a pandemia, que ainda perdura. Em suma, é possível que todos que lerem a obra de Žižek, se identifiquem com algo tratado por este autor. Quanto a questão central da obra de Žižek, a reinvenção do comunismo, primeiramente se refere a uma crítica ao regime comunista chinês, que segundo o autor pode ser abalado e correr o risco de colapsar devido a forma como lidou com o início da catástrofe causada pelo novo coronavírus. No desenrolar de sua obra o autor destaca que essa reinvenção do comunismo, não necessariamente se refere a um novo regime politico econômico, mas a atitudes adotadas por governantes que em muito relembram ideais comunistas, em destaque a solidariedade, participação mais ativa e provedora do Estado em prover segurança, saúde e demais serviços básicos e, que em alguns casos, levou governos a estatizarem, mesmo que temporariamente, alguns setores da economia para garantir seu funcionamento. Em suma, a reinvenção do comunismo, trata-se de uma ideia de união e solidariedade global, como a apresentada em filmes apocalíticos, nos quais a humanidade se depara com um evento catastrófico que pode levar a extinção da raça humana, como a atual pandemia. Isso fomenta a união global, deixando de lado as diferenças e juntando esforços para a resolução dos problemas. Embora um tanto utópico a ideia de politicas públicas globais em prol da humanidade, o autor destaca que algumas coisas já tem sido feitas, como uma frente mundial contra a COVID-19, liderada pela Organização Mundial de Saúde – OMS e que as discussões nesse respeito se intensificaram cada vez mais com a ameaça do novo coronavírus. Por fim, esta obra é dirigida a todos que desejam se aprofundar em uma discussão filosófica sobre a organização político-econômica mundial, críticas as ações de combate a pandemia e reflexão sobre nossa natureza frente a uma pandemia e nossa forma de pensar nossa existência e repensar nossas ações como seres humanos. Leia Mais
Guerra do lugares. A colonização da terra e da moradia na era das finanças | Raquel Rolnik
Há livros que chamam a atenção em uma primeira vista. Em 2016, quando ganhei o livro Guerra dos lugares – colonização da terra e da moradia na era das finanças, escrito por Raquel Rolnik e lançado em dezembro de 2015 pela editora Boitempo, me interessei logo por sua capa. A capa vermelha com uma foto do projeto “Mulheres são heroínas” – ação na favela do morro da Providência, Rio de Janeiro – já prenunciava um fato: a guerra dos lugares também é uma disputa de narrativas sobre as cidades, as políticas públicas territoriais e os rumos possíveis para a democratização do espaço urbano (1).
Sinal óbvio dessa disputa está logo na apresentação do livro, quando a autora narra uma das visitas oficiais que fez como relatora especial para o Direito à Moradia Adequada da Organização das Nações Unidas – ONU ao Reino Unido. A vista aconteceu em um momento de questionamento de políticas de austeridade fiscal e da reforma do sistema de bem-estar social do país. A visita de Raquel Rolnik representando a ONU, que tinha como foco análises de condições de moradia e direitos humanos, era vista como um apoio à campanha anti-bedroom tax, ação do governo que tirava subsídios e excluía indivíduos ativos que moravam em apartamento com quartos “sobrando”. Segundo a relatora quem sofria com isso eram “os mais pobres, doentes mentais, loucos, pessoas com deficiência física” (p. 10), que perderiam a estabilidade e segurança garantidos pela política de bem-estar social. Leia Mais
Mulheres, raça e classe | Angela Davis
Angela Davis é umas das mais importantes feministas contemporâneas. Sua potente história de luta política encarnou uma geração de reivindicações por humanidade, igualdade e liberdade não só para o povo negro, mas para todas as parcelas oprimidas da sociedade. O sentido de suas reflexões aliaram, como ninguém, teoria e prática, em uma leitura da história, da sociedade e da política, que estiveram e ainda estão fundamentalmente conectadas com um novo devir, uma transformação profunda da realidade e, portanto, seu pensamento entra no rol das teorias críticas, do pensamento produzido desde a subalternidade e de profundo valor para um outro mundo possível.
Em 2016, a obra “Mulheres, raça e classe”, escrita por Davis em 1981, ganhou uma edição brasileira, lançada pela Editora Boitempo. Ainda que nesse espaço de trinta e cinco anos, feministas brasileiras se esforçaram para se apropriar dessa e de outras obras de Davis, organizando estudos e traduções livres, o lançamento da obra no Brasil, nesse momento, tem um significado importante. De fato, o reencontro das brasileiras e brasileiros com Davis é requerido, mais do que nunca, em um momento que, de um lado, exige novas reflexões e apropriações críticas para enfrentamento do recrudescimento das forças conservadoras e seu sentido privatista, racista e patriarcal e, de outro lado, acompanha um processo importante de fortalecimento da luta feminista e, especialmente, da revalorização e mobilização das leituras e práticas das mulheres negras para o feminismo. Leia Mais
Feminismo para os 99%: Um Manifesto | Cinzia Arruzza, Thithi Bhattacharya e Nancy Fraser
Não se deve julgar um livro pela capa, mas no caso da edição brasileira de Feminismo para os 99%, a diagramação e as ilustrações tornam a leitura ainda mais prazerosa, enriquecendo assim a experiência da leitora. A edição brasileira também nos presenteia com o prefácio escrito pela deputada federal, professora e ativista política Talíria Petrone. Prefácio que começa com uma epígrafe do Quarto de Despejo de Carolina de Jesus, mulher negra, favelada, mãe de três filhos e uma das maiores escritoras de nosso país.
A partir de Carolina, Talíria nos mostra a urgência dos feminismos no mundo, mas sem deixar de lado o contexto brasileiro, país em que a colonialidade forjou desigualdades sociais, étnico-raciais e de gênero, que até hoje estão presentes e moldam nosso cotidiano. Em um momento em que o capitalismo está em crise, que a extrema direita sobe ao poder em diversos lugares e os discursos de ódio tomam espaço no cenário político, o prefácio de Talíria homenageia Marielle Franco:
se estivesse viva, a feminista e vereadora do Rio de Janeiro, mulher, negra, socialista, que amava mulheres, favelada, que carregava no seu corpo esse feminismo que queremos e estamos construindo, seria, certamente, parte, com entusiasmo, deste documento (Petrone, 2019:21). Leia Mais
Dicionário Gramsciano (1926‐1937) | Guido Liguori e Pasquale Voza
Organizado pelos italianos Guido Liguori e Pasquale Voza, o Dicionário Gramsciano se inscreve, sem demora, entre as obras de referência para os pesquisadores, do campo marxista ou fora dele, mas também como um incentivo para os iniciantes das obras do autor, a partir das expressões de Antonio Gramsci.
Publicado na Itália em 2009 e no Brasil em 2017, no octogésimo aniversário da morte do pensador marxista, conta com mais de 600 verbetes dispostos em 831 páginas. Com a colaboração de estudiosos de Gramsci, a produção é prova do vigor dos estudos desenvolvidos e pesquisas especializadas no autor1 e revela a importância do seu pensamento para compreender o nosso tempo, o momento extremamente complicado, em termos de contexto político regional e mundial. O seu léxico produziu fascínio por décadas e os adeptos das idéias desse importante intelectual e político do século XX comemoram a vinda desse importante manual. Leia Mais
Mulheres e Caça às Bruxas: da Idade Média aos dias atuais / Silvia Federici
Silvia Federici / Foto: DeliriumNerd /
Quando ouvimos falar de Silvia Federici, quase sempre lembramos de Calibã e a Bruxa: mulheres, corpo e acumulação primitiva, publicado pela primeira vez em 2004. No Brasil, foi traduzido pelo Coletivo Sycorax e publicado em 2017 pela editora Elefante. Esse livro, que teve uma ótima recepção, nos apresentou ideias ainda pouco difundidas por aqui. O impacto de Calibã e a Bruxa para o pensamento feminista foi tão grande que levou Federici a receber diversas solicitações para produzir um livro em que revisitasse algumas questões abordadas nele, mas com uma linguagem capaz de atingir um público mais amplo. Tais solicitações, somadas ao desejo da autora de continuar pesquisando aspectos da caça às bruxas, resultou em Mulheres e Caça às bruxas, lançado em 2018 e publicado no Brasil pela editora Boitempo em 2019.
Mulheres e Caça às bruxas é composto por sete capítulos, divididos em duas partes. Os capítulos são, em sua maioria, edições revistas de artigos e ensaios publicados anteriormente.
Na primeira parte, Federici dialoga mais especificamente com Calibã e a Bruxa, colocando a caça às bruxas dos séculos XVI e XVII na Europa no rol dos processos sociais que prepararam terreno para o surgimento do capitalismo, junto com o comércio escravista e o extermínio dos povos indígenas. Na segunda parte, Federici esboça novas investigações, trazendo para a conversa sociedades contemporâneas e “novas formas de acumulação de capital e caça às bruxas”.
Para a autora, as transformações sofridas pela Europa resultaram em um aumento vertiginoso de práticas misóginas e patriarcais, cujas consequências mais perversas foram a tortura e a morte na fogueira de milhares de mulheres acusadas de bruxaria. Federici tenta explicar como as mulheres passaram a ser vistas como ameaça à nova ordem que se impunha, passando a ser controladas, vigiadas e punidas. Ela aponta os cercamentos das terras a partir do final do século XV, como fundamentais para a compreensão deste processo e afirma que estes, somados ao crescimento das relações monetárias, resultaram em pauperização e exclusão social da população, sendo as mulheres as mais atingidas. Isso ocorre por múltiplos motivos.
As mulheres, que até então viviam em terras comunais, exercendo suas atividades coletivamente e gozando dos direitos consuetudinários, viram a privatização das terras desmantelar os laços comunais e toda uma rede de saberes compartilhados por elas, bem como a maneira como se relacionavam com a terra, a natureza e seus corpos, que nesse processo passam a servir à produção e reprodução da mão de obra. Para garantir a força de trabalho que serviria ao sistema capitalista, as mulheres foram confinadas no trabalho doméstico não remunerado, bem distante do trabalho coletivo praticado anteriormente.
Dessa forma, a autora relaciona a caça às bruxas à necessidade do controle da reprodução e, consequentemente, dos corpos das mulheres. Nesse sentido, é interessante notar que as mulheres mais velhas eram vistas como as mais perigosas e foram as mais perseguidas e mortas em países como a Inglaterra. As idosas, especialmente as sem família, foram as maiores vítimas da miséria e da exclusão social, sendo muito comum que se rebelassem contra essa situação praguejando, furtando, etc. Além disso, as mais velhas eram as grandes portadoras dos saberes sobre a comunidade e a natureza, saberes estes que poderiam “corromper” as mais jovens, ensinando-as sobre controle de natalidade, ervas abortivas e outros conhecimentos proibidos que iam contra as perspectivas das novas normas que pretendiam disciplinar os corpos para o trabalho.
Era preciso arruinar esses conhecimentos “mágicos” e garantir o total controle do Estado e da Igreja sob o comportamento sexual e reprodutivo das mulheres. Isso pressupunha interferir na maneira como elas se relacionavam entre si, estimulando as suspeitas e denúncias. Federici aprofunda o tema ao analisar as mudanças na Inglaterra entre os século XIV e XVIII, do termo “gossip” – equivalente à “fofoca” no português. A palavra, que na Idade Média remetia à amizade e solidariedade entre mulheres, lentamente adquire o significado pejorativo que conhecemos hoje, de conversa fútil, vazia e maledicente. Essa nova conotação é parte simbólica do processo de degradação, desvalorização e demonização das mulheres e dos saberes compartilhados entre elas, sendo a caça às bruxas o ponto alto dessa degradação.
A caça às bruxas é comumente considerada como “coisa do passado”, algo que entrou para o imaginário, sendo abordada em filmes, séries, romances, etc. muitas vezes de maneira folclorizada e estereotipada. No entanto, Federici argumenta que as novas formas de acumulação do capital – envolvendo desapropriação das terras, destruição de laços comunitários, intensificação da exploração e controle dos corpos das mulheres, etc. – vem resultando em uma nova onda de violências, principalmente nos países mais pobres, como da América Latina e África. Essa violência, na verdade, nunca teria cessado e, sim, se normalizado e adquirido outros formatos, como a violência doméstica, por exemplo, tão banalizada ainda hoje.
Entretanto, apesar do crescimento de organizações e lutas feministas no sentido de prevenir essa violência, o que assistimos nas últimas décadas, segundo a autora, ultrapassa a norma. Para ela, o aumento em todo o mundo de agressões, torturas, estupros e assassinatos de mulheres, atingem níveis de brutalidade que só vemos em tempos de guerra. É sobre essa escalada de violências que Federici fala na segunda parte de Mulheres e caça às Bruxas. Ela relaciona essa situação devastadora às novas formas de acumulação de capital e à “globalização”, que nada mais seria do que um “processo político de recolonização” (p. 94) que não pode ser alcançado sem o ataque sistemático às mulheres e seus direitos reprodutivos, especialmente mulheres negras, indígenas, racializadas e migrantes.
Uma das maiores expressões desse recrudescimento da violência contra as mulheres é a “nova” caça às bruxas que ganhou terreno a partir dos anos 80 em algumas regiões do mundo, como na Índia e em alguns países africanos. Federici finaliza seu livro discutindo esse fenômeno, principalmente na África, colocando-o no âmbito do enfraquecimento das economias locais africanas e à desvalorização da posição social das mulheres. Ela relaciona a caça às bruxas atuais com outros elementos de violência contra as mulheres na Índia, México, etc., analisando-os como efeitos da integração forçada das populações, notadamente das mulheres, na economia global, mas também da propensão dos homens de descarregarem nelas, especialmente em suas companheiras, as frustrações econômicas impostas pelo capitalismo, além da crescente presença de igrejas neopentecostais evangelizadoras em algumas regiões.
Por fim, Silvia Federici fala sobre o importante papel do ativismo feminista em relação à crescente violência contra as mulheres no mundo e, mais especificamente à caça às bruxas na África. Ela comenta o silêncio dos movimentos feministas sobre essa situação, que acredita representar um perigo para todas as mulheres, e propõe alternativas de luta. Essa luta, para ela, deve envolver críticas severas e ações contra as agências que criaram as condições para que tais fenômenos se tornassem possíveis, incluindo os governos africanos, o Banco Mundial, o Fundo Monetário Internacional e até as Nações Unidas que, segundo ela “apoiam os direitos das mulheres da boca para fora” (p. 111). A defesa das mulheres, para Federici, são incompatíveis com o apoio e difusão de políticas neoliberais e os feminismos precisam cobrar das instituições que promovem tais políticas e silenciam diante de tamanha violência.
A caça às bruxas não é apenas uma realidade que ficou para trás. Em pleno século XXI, mulheres continuam sendo perseguidas, controladas, violentadas e mortas. Silvia Federici nos ajuda a compreender os processos históricos que geram essas violências ontem e hoje e, assim, barrar seus avanços. Para isso, é preciso manter viva a memória daquelas que perderam a vida e fortalecer as lutas das mulheres pelo fim dessas violências e do sistema que as concebe e reproduz.
Erika Bastos Arantes – Historiadora, mãe e feminista. Professora do departamento de história da UFF de Campos dos Goytacazes, onde coordena o grupo de estudos Gênero, Raça e Classe.
FEDERICI, Silvia. Mulheres e Caça às Bruxas: da Idade Média aos dias atuais. Tradução Heci Regina Cadian. São Paulo: Boitempo, 2019. Resenha de: ARANTES, Erika Bastos. Caça às Bruxas ontem e hoje. Humanas – Pesquisadoras em Rede. 06 jul. 2020. Acessar publicação original [IF].
Mulheres e caça às bruxas: da Idade Média aos dias atuais | Silvia Federici
Silvia Federici nasceu em Parma, Itália, em 1942 e vem ganhando cada vez mais leitores e leitoras no Brasil. Em seus trabalhos discute sobre mulheres, gênero, trabalho e como a reprodução – e o trabalho doméstico/reprodutivo – são as chaves para compreender a desvalorização das mulheres na sociedade capitalista.
No livro “Mulheres e caça às bruxas”, lançado no Brasil em 2019, Federici faz uma retomada da discussão desenvolvida no livro “O Calibã e a Bruxa” de 2004, traduzido para o português pelo Coletivo Sycorax e publicado pela Editora Elefante em 2017. Naquele momento, Federici (2017) se preocupava em demonstrar como o processo de acumulação primitiva do capital foi alcançado também a partir da caça às bruxas da era moderna, num amplo e profundo processo de perseguição e disciplinarização dos corpos femininos, da sociabilidade e da reprodução, a incidir sobre a divisão sexual e na desvalorização (e não remuneração) do trabalho doméstico e reprodutivo. A proposta dela era alçar a caça às bruxas ao hall de elementos expostos por Marx sobre a acumulação primitiva, tais como a expropriação agrária dos cercamentos ingleses, o colonialismo, a pirataria e a usura (MARX, 1985). Apesar da centralidade nas relações sociais e no trabalho, não há um consenso se Federici efetivamente avança com as teses de Marx , porém, n’O Calibã, o acúmulo de fontes e experiências daquele processo extensamente analisado revelam, no mínimo, que o capital não teria tamanha força social sem a diminuição proporcional do poder horizontal e comunitário das mulheres. Leia Mais
A classe trabalhadora: de Marx ao nosso tempo | Marcelo Badaró Mattos
Marx não dedicou um escrito exclusivo sobre classes sociais. Sobre o tema tratado explicitamente, restou apenas um fragmento de um texto inacabado. Já no Livro I de O Capital o termo “classe operária” aparece dezenas de vezes, porém sem uma conceituação precisa que a defina. Contudo, a despeito de apenas referir-se a elas de forma marginal ou indireta (por vezes proletariado, movimento operário, produtores), por certo constituem um fio condutor que atravessa toda sua obra. Mais que isso, possivelmente, e de forma contraditória, constituam-se de sua categoria mesma de maior alcance, sua “ultima thule2” (MARX, 2011, p. 306-307) um precepto heurístico capaz de transcender as bordas do mundo que ele próprio conheceu. É seguramente ancorado nessa percepção que o professor de História do Trabalho e Sindicalismo, Marcelo Badaró Mattos, da Universidade Federal Fluminense, nos entrega o texto A classe trabalhadora: de Marx ao nosso tempo. Uma sofisticada análise que põe em tela a estrutura e a dinâmica da classe trabalhadora desde sua gênese até sua expressão contemporânea. Leia Mais
Fidel Castro: biografia a duas vozes | Ignacio Ramonet
O livro escrito por Ignacio Ramonet é intitulado Fidel Castro: biografia a duas vozes e foi publicado em 2016 pela editora Boitempo. A obra é uma versão atualizada da primeira edição, publicada em 2006, e aborda a trajetória de Fidel Castro, que concretizou uma revolução em Cuba em 1959. O trabalho é fruto de 300 horas de entrevistas realizadas por Ramonet, que construiu uma destacada carreira como jornalista dirigindo o jornal Le Monde Diplomatique. As entrevistas foram realizadas entre 2003 e 2005, uma obra que, como o próprio autor nomeia, é uma espécie de “livro-conversa”.
Não são poucas as biografias de Fidel Castro, afinal esse foi o homem que comandou uma revolução na América Latina em meio à Guerra Fria e teve sempre como obstáculo os Estados Unidos, o país mais desenvolvido economicamente no continente americano. O livro de Ramonet se destaca pela casualidade de uma conversa, o que faz muitas vezes a leitora e o leitor estabelecer um grau de proximidade com os interlocutores, desejando que o entrevistador aprofunde algum tema, ou mesmo querendo fazer muitas perguntas sobre os diversos assuntos que são abordados no livro. Leia Mais
O jovem Hegel e os problemas da sociedade capitalista – LUKÁCS (FH)
LUKÁCS, György. O jovem Hegel e os problemas da sociedade capitalista. Tradução de Nélio Schneider. 1 ed. São Paulo Boitempo, 2018. 733p. Resenha de: SILVA, Edson Roberto de Oliveira. O jovem Hegel de Lukács: por uma redenção da dialética. Faces da História, Assis, v.7, n.1, p.51-507, jan./jun., 2020.
György Lukács é considerado o maior filósofo marxista do século XX. Nasceu em Budapeste no dia 13 de abril de 1885, em uma Hungria que, no período, fazia parte do território integrado ao Império Habsburgo. Graduou-se na Universidade da mesma cidade, doutorou-se em Direito e Filosofia em 1906 e 1909, respectivamente. A produção e desenvolvimento filosófico do jovem Lukács — de 1910 a 1923 influenciou nomes conhecidos como Walter Benjamin, Siegfried Kracauer, Ernest Bloch e pensadores da famosa Escola de Frankfurt, como Theodor W. Adorno.
O livro O Jovem Hegel e os Problemas da sociedade capitalista (2018), de Lukács faz parte da coleção A Biblioteca Lukács, coordenada por José Paulo Netto, e se tornou o sétimo título do filósofo húngaro publicado pela editora Boitempo. A obra foi traduzida diretamente do alemão por Nélio Schneider e teve revisão técnica de Netto e Ronaldo Vielmi Fortes.
A coleção Biblioteca Lukács tem como missão fazer a divulgação do pensamento do filósofo húngaro. Entretanto, não é de hoje que o pensamento lukacsiano é divulgado no Brasil, tanto por traduções como por elaborações críticas. Sua filosofia foi intensamente divulgada na década de 1960 por três intelectuais de grosso calibre — Leandro Konder, Carlos Nelson Coutinho e J. Chasin — efetuando traduções e em elaborações críticas. Entre as obras de Lukács traduzidas e divulgadas por Konder e Coutinho estão: Ensaios Sobre Literatura (1964); Introdução a uma Estética marxista (1978), títulos esses publicados pela Editora Civilização Brasileira.
O desenvolvimento filosófico de Lukács tem como proposta, desde seus primeiros escritos marxistas, fazer um debate renovado com a filosofia clássica, principalmente a alemã, na qual ele buscava fazer “ao nível da crítica” a “análise histórica e sistemática das modalidades de conhecimento e interpretação do mundo constituídas pela cultura burguesa” e “determinar o estatuto histórico-filosófico do marxismo” instaurando uma “crítica macroscópica da totalidade da cultura burguesa” (NETTO, 1978, p.14). Netto (1978) dará destaque para duas obras do filósofo húngaro onde se encontram as críticas sistemáticas à cultura filosófica burguesa: O jovem Hegel, a qual nos propomos apresentar a partir dessa resenha, e Destruição da Razão: de Schelling a Hitler (NETTO 1978, p.15). O intérprete nos alerta que a crítica à filosofia burguesa do pensador húngaro não somente se propõe a apontar suas limitações, mas, também, resgatar Hegel da instrumentalização mistificadora elaborada pelos ideólogos fascistas — se empenhando em “resgatar os conteúdos humanistas e democráticos do pensamento burguês anterior 1848” (NETTO, 2011, p.8). Desta forma Lukács, desde História e Consciência de Classe, é considerado um renovador do pensamento marxista.
O livro, O jovem Hegel, é dividido em quatro partes que são compostas por momentos do desenvolvimento filosófico de Hegel partindo das diferentes localidades em que o filósofo alemão viveu: Berna (1793-1796), denominado como o período republicano de Hegel; Frankfurt (1797-1800), no qual o filósofo deu início ao desenvolvimento do método dialético; e Iena, que se divide em mais dois períodos: o primeiro (1801-1803), no qual há a vinculação e a defesa ao idealismo objetivo; e o segundo (1803-1807), momento que mostra os últimos percalços que Hegel trilhou para culminar em sua primeira produção amadurecida, original e de peso, A Fenomenologia do Espírito.
O plano de fundo d’O jovem Hegel é a Revolução Francesa e os ecos no pensamento germânico. O interesse do filósofo alemão, como nos alerta Lukács, estava voltado para entender a sociedade civil burguesa [bürgerlicheGesellschaft]. O húngaro mostrará que a influência da revolução burguesa na sua totalidade — isto é, Revolução Industrial e a revolução política para a instauração de um Estado-nação —, interessava à Hegel e foi determinante para a formação de seu posicionamento filosófico e político.
No curto espaço de tempo que Hegel esteve em Berna, Lukács analisa o início do seu desenvolvimento filosófico, desmistificando as interpretações feitas de sua filosofia nesse período, que tendem a culminar, muitas vezes, na redução e vinculação de suas elaborações a um “reacionarismo” tratando-o como absolutista e vinculando-as unilateralmente com a “teologia”. O húngaro nos mostra que, em primeiro lugar, as vinculações políticas de Hegel nesse período sempre estiveram voltadas para a ala da esquerda democrática do Iluminismo e que teciam críticas ao Iluminismo alemão, pois os “absolutistas feudais e seus ideólogos tentaram muitas vezes se aproveitar de determinados aspectos deste movimento para seus próprios fins” (LUKÁCS, 2018, p. 68). Hegel via a “antiga república citadina (polis) não como um fenômeno social do passado”, mas como a constituição de “um modelo eterno, ideal não alcançado para uma mudança atual da sociedade e do Estado” (LUKÁCS, 2018, p. 69, grifos nossos). Em segundo, aponta que a filosofia de Hegel não teve vinculação teológica, pelo contrário, Lukács argumenta que o alemão é um crítico do sectarismo do cristianismo primitivo (LUKÁCS, 2018, p. 71), e se interessava por seitas posteriores. Hegel, segundo seu estudioso, trata o cristianismo como uma religião “positiva” a qual “constitui um esteio do despotismo e da opressão” (LUKÁCS, 2018, p. 85).
A ligação de Hegel à filosofia kantiana, principalmente de Crítica da razão Prática, é, segundo Lukács, de extrema importância para a vinculação de sua filosofia à realidade. O filósofo alemão vê que tanto os problemas sociais como os morais vinculam-se aos problemas da práxis, mostrando que a base de sua filosofia é a “reconfiguração da realidade social pelo ser humano”. Lukács escreve que Hegel vai além de Kant, posto que este último investiga os problemas morais do ponto de vista do indivíduo. Para Kant o fundamental é a consciência como um fato moral, em contraponto a isso “o subjetivismo do jovem Hegel, direcionado para a prática, é coletivo e social desde o início. Para Hegel, é sempre a atividade, a práxis da sociedade que constitui o ponto de partida e também o objeto central da investigação” (LUKÁCS, 2018, p. 73).
Já nos três anos de Frankfurt, Hegel, segundo Lukács, irá reestabelecer criticamente algumas das suas concepções filosóficas, entre elas a sua elaboração de positividade. Nesse momento, a “positividade” será vista como “um sinal de que o desenvolvimento histórico já ultrapassou uma religião, e que ela merece ser destruída e inclusive tem de ser destruída pela história” (LUKÁCS, 2018, p. 329). Essas novas formulações também servirão de base para os “primeiros embriões do método de Fenomenologia do espírito” (LUKÁCS, 2018, p. 177). Lukács nos expõe que todo esse desenvolvimento do período de Frankfurt é atrelado com as constantes variações na história da Revolução Francesa, porém suas concepções republicanas revolucionárias permanecem as mesmas do período de Berna. O húngaro realça que é nesse momento que se revela a diferença da produção filosófica hegeliana, pois, enquanto em Berna Hegel elaborava suas concepções histórico-filosóficas partindo de um único fato relevante para a história universal, a Revolução Francesa, após Frankfurt, o alemão passa a dar igual importância para o desenvolvimento econômico da Inglaterra. Assim, ambos os eventos passam a ser elementos fundantes para a sua concepção de história e noção de sociedade. “O problema”, diz Lukács, “referente ao modo como a estrutura absolutista feudal da Alemanha deve ser modificada pela Revolução Francesa aflora para Hegel dali em diante não como questão geral da filosofia da história, mas como problema político concreto”. (LUKÁCS, 2018, p. 171).
Lukács diz que a filosofia de Hegel incorpora as “problemáticas sociais e políticas” e que estas “se convertem em filosóficas de modo sempre imediato” (LUKÁCS, 2018, p. 172). Como consequência disso, passou a tomar “consciência, portanto, do antagonismo entre dialética e pensamento metafísico primeiro como antagonismo entre pensamento, representação, conceito etc. de um lado, e vida, de outro” (LUKÁCS, 2018, p. 173). Esse processo teria feito parte de um projeto de reconciliação filosófica de Hegel entre os “ideais humanistas do desenvolvimento da personalidade e os fatos objetivos e imutáveis da sociedade burguesa” que, segundo o filósofo húngaro, irão conduzir Hegel “a uma compreensão mais e mais profunda primeiro dos problemas da propriedade privada e depois do trabalho como inter-relação fundamental entre indivíduo e sociedade” (LUKÁCS, 2018, p. 175). Esse desenvolvimento das concepções de Hegel culminará em uma tentativa de sistematização no fim do período de Frankfurt, o que também prepara Hegel para uma crítica profunda ao idealismo subjetivo e para a separação da filosofia de Schelling frente a de Fichte.
Em Iena, onde Hegel passa um pouco mais de seis anos, de 1801 a 1807, é que surgirão as suas elaborações de juventude mais profundas. É o período em que o jovem filósofo acertará as contas com a filosofia clássica de seu tempo, Kant, Schiller, Fichte e, somente em Fenomenologia do espírito, com Schelling — obra que sela definitivamente o rompimento com as colaborações filosóficas entre ambos, e faz com que este último se coloque como um combatente frente a dialética hegeliana. Em Iena temos dois períodos, o primeiro, de 1801 a 1803, é marcado fortemente pela defesa de Hegel ao idealismo objetivo. Para tanto, o filósofo inicia sua parceria com Schelling demonstrando a diferença da filosofia deste com a de Fichte onde, o último, é colocado como um agnóstico (LUKÁCS, 2018, p. 342), motivo que colocou Hegel como defensor da filosofia schellinguiana e revelou a ambos que ali nascia uma nova formulação filosófica por parte de Schelling. Nesse processo, Lukács aponta que Hegel combateu o individualismo abstrato da ética elaborando uma crítica mais concreta, dessa forma o filósofo alemão “não se limita mais a examinar problemas isolados da ética kantiana que tem uma problemática coincidente com a sua, mas submete toda a ‘filosofia prática’ do idealismo subjetivo a uma análise crítica abrangente” (LUKÁCS, 2018, p. 391).
A filosofia hegeliana, segundo o húngaro, é histórica desde as primeiras elaborações de Berna, porém essa concepção só entra em cena após as “renúncias às ilusões jacobinas de renovação da Antiguidade”. É nesse momento que Hegel se depara com os “problemas da dialética da sociedade burguesa moderna”, isso faz com que se constitua, no seu pensamento filosófico, um problema central e latente de “conexão dialética entre o desenvolvimento histórico e a sistemática filosófica”. Dessa maneira Hegel tem a possibilidade de levantar contra Fichte uma crítica a suas concepções de “liberdade independentemente das leis objetivas da natureza e da história” (LUKÁCS, 2018, p. 410. Lukács mostra que o historicismo de Hegel segue uma concepção que não significa uma glorificação do passado, pois esse seria a visão do historiador romântico que apareceu na Alemanha “sob a influência publicística da contrarrevolução”, disseminando a “concepção de que a ‘organicidade’ das formações históricas e do desenvolvimento histórico exclui a vontade consciente dos homens de mudar seu destino social” e, além disso, também defendem que “a ‘continuidade’ do desenvolvimento histórico é francamente contrária à interrupção da linha de desenvolvimento já iniciada” (LUKÁCS, 2018, p. 411. As concepções de Hegel nesse momento já se apresentam como um prelúdio para a sua primeira síntese filosófica de peso sistematizada em Fenomenologia do espírito A Fenomenologia do espírito de Hegel é colocada por Lukács como uma obra seminal do pensamento filosófico alemão e marca uma virada nas coordenadas do desenvolvimento não só da filosofia hegeliana, mas de todo pensamento moderno. É no segundo momento de Iena, 1803 a 1807, que Hegel iria amadurecer suas diferenças filosóficas com Schelling, as quais foram reduzidas pelo primeiro apenas à questão do método, mas que o húngaro enfatiza que a diferença se apresenta “também em todas as questões da filosofia da sociedade e da história” (LUKÁCS, 2018, p. 559). A concepção filosófica-histórica de Hegel, a partir de Lukács, vai na contramão da visão moderna, pois na filosofia hegeliana não existe “estado de espírito”, assim há uma diferença em relação a “posição histórica do tempo presente” (LUKÁCS, 2018, p. 594). Em Iena, o filósofo húngaro diz que “a Revolução Francesa e sua superação (no triplo sentido hegeliano) por Napoleão constitui o ponto de inflexão decisivo da história mais recente” e que entra em contraposição com a visão posterior do velho Hegel que a “Reforma assume a posição central na história da era moderna que em Iena Hegel havia atribuído à Revolução Francesa e a Napoleão” (LUKÁCS, 2018, p. 595).
O filósofo húngaro atribui à Fenomenologia a sistematização entre as categorias de mediação, reflexão etc. mas considera as categorias de alienação (Entäusserung) e estranhamento (Entfrendung) como pontos centrais do desenvolvimento dessa obra, ambos os termos derivados da tradução do termo inglês “alienation” para o alemão – termo esse que foi utilizado na economia-política inglesa, quando se tratava da venda de mercadoria e, também, pela “teoria do contrato social para denominar a perda da liberdade original, a transmissão, a exteriorização da liberdade original à sociedade originada pelo contrato”(LUKÁCS, 2018, p. 689). A categoria de alienação não foi usada exclusivamente por Hegel na filosofia clássica alemã. Lukács exibe que Fichte já a tinha utilizado para mostrar que um “objeto posto” constitui uma alienação do sujeito e o próprio objeto é concebido como uma “razão alienada”. O estudioso do filósofo alemão aponta que, na Fenomenologia, há três níveis de apresentações da categoria de alienaçãoo primeiro faz menção à relação entre sujeito-objeto, e vincula toda produção humana, o trabalho, à “atividade social e econômica do homem”; o segundo nível a alienação é o que se apresenta na sua forma capitalista, e que, mais tarde, será desenvolvido por Marx como categoria fetichismo (LUKÁCS, 2018, p. 691); no terceiro nível é um momento que passa pela alienação, ou seja, como “coisidade (Dingheit) ou objetividade (Gegenständlichkeit)” que é a “forma em que, na história da gênese da objetividade, esta é apresentada filosoficamente como momento dialético na trajetória do sujeito-objeto idêntico de volta a si mesmo, passando pela ‘alienação’” (LUKÁCS, 2018, p. 692).
Lukács se esforça em sistematizar historicamente o envolvimento de Hegel com o seu tempo histórico e demonstrar o reflexo desse tempo em sua filosofia. Dessa forma o húngaro não faz uma biografia de Hegel, mas um tratamento histórico-sistemático olhando a “filosofia como parte importante do movimento total da história” (LUKÁCS, 2018, p. 21). Graças ao trabalho de tradução de Nélio Schneider, a divulgação do pensamento de Lukács — que se iniciou na década de 1960 com Konder, Coutinho e Chasin — ganha ainda mais volume e temos a oportunidade de ter em mãos um trabalho histórico-filosófico que contribui para o desenvolvimento do marxismo no Brasil de forma fecunda e dialética pois essa obra tem a capacidade de desmistificar a filosofia de Hegel e, com uma leitura atenta, absorver o método dialético que ali se explicita.
Referências
LUKÁCS, György. O jovem Hegel e os problemas da sociedade capitalista. Tradução de Nélio Schneider.1º ed. São Paulo Boitempo, 2018.
NETTO, José Paulo. Lukács e a Crítica da Filosofia Burguesa. Lisboa: Seara Nova, 1978.
NETTO, J. Paulo. Introdução: Sobre Lukács e a Política. In. LUKÁCS, György Socialismo e democratização – Escritos políticos 1956-1971. 2º ed. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 2011.
Edson Roberto Silva – Graduado em História pela Universidade Estadual Paulista – UNESP, Assis, estado de São Paulo (SP), mestrando na Pós-Graduação em História da UNESP de Assis, estado de São Paulo (SP), Brasil. Atualmente é bolsista CAPES. e-mail: edoliviera89@gmail.com.
[IF]Um porto no capitalismo global: desvendando a acumulação entrelaçada no Rio de Janeiro | Guilherme Leite Gonçalves, Sérgio Costa
Durante a administração de Eduardo Paes como prefeito do Rio de Janeiro (2009-2016), a prefeitura empreendeu um ambicioso projeto de revitalização da Zona Portuária da cidade, realizado sob a midiática alcunha de Porto Maravilha. O projeto consistiu na implantação de uma nova rede de infraestrutura viária e de serviços, que tinha por objetivo lançar a região como novo polo empresarial, fomentando ali um processo de adensamento demográfico e verticalização. Para tanto, em um gesto polêmico que suscitou um acalorado debate público, foi demolido o Elevado da Perimetral, que margeava o Cais do Porto e a região do Centro. A demolição foi apresentada como a obra-chave para a revitalização urbana proposta e, justamente na faixa de terrenos liberada com a remoção do elevado, foram construídos os espaços e equipamentos públicos que se transformariam nos principais símbolos da operação Porto Maravilha. Leia Mais
A liberdade é uma luta constante | Angela Davis
Talvez não seja absurda a máxima “me diga o que tu lês e eu te direi o que tu és”. Afinal, nossos gostos não são naturais. São históricos e, portanto, revelam as afinidades teóricas, posições políticas e éticas de nós mesmos e da cultura que nos enlaça. Deste modo, o ato de escolher um livro para leitura reflete as estruturas hierárquicas do poder e do saber.
Logo, escutar a fala de Angela Davis – digo escutar porque o seu texto transpõe as letras e ecoa como uma voz forte que grita a sensibilidade, por meio de seu ativismo político e suas reflexões intelectuais que, aliás, caminham lado a lado, é ganhar fôlego e coragem para falar de coisas que o projeto neoliberal tenta calar para não desestabilizar as relações de desigualdade que ele faz manter rígida.
Davis não fala do racismo contra a mulher negra. Sua frase “quando as mulheres negras se movem, toda a estrutura política e social se movimenta na sociedade” mostra como a violência contra a mulher está diretamente articulada a violência do Estado, ao sistema prisional, ao sexismo e ao capitalismo. Neste sentido, ela desromantiza o feminismo negro e lança a real: para acabar com a percepção de que a mulher negra só serve para ser subalterna ou fazer sexo barato ou forçado, não basta lutar pelo lugar de fala individual. Ter jornalista negra na bancada de um jornal não é suficiente para aplacar o racismo. É preciso refletir, no coletivo, os discursos do presente e ver como eles mantém, sob novos arranjos, o passado escravista, como no complexo industrial-prisional, nos serviços de assistência à saúde, à educação e à assistência social, todas empresas que captam lucros obscenos graças ao encarceramento e a alienação da população. É, pois, na correlação entre as categorias de gênero, raça e classe que somos alertados a pensar e mudar nossa experiência.
Deste modo, as reflexões de Davis nos lançam para a interseccionalidade, um conceito de estrutura intelectual e política que tensiona o dinamismo da violência presente no enodamento entre patriarcado, supremacia branca, Estado, mercado, imperialismo e capitalismo. A luta pela liberdade não é limitada, ela se estende a todas as condições de vida desafortunada do mundo. Para tanto, ela convoca a pensarmos em estratégias e táticas que sejam acessíveis a uma amplitude de pessoas, incluindo aquelas cujo nível de despolitização banaliza injustiças. Para ela, a luta deve ser globalizada, exercida pelo coletivo. Só assim poderemos enfrentar a militarização da sociedade, sempre com beleza e estímulo. Ela realça essas condições para a luta.
Contra o insidioso individualismo capitalista, que é perigoso e inclusive modela e enfraquece as formas de lutas, Davis enfatiza que os movimentos coletivos devem ter maior importância que as falas sobre indivíduos tomados isoladamente. Outrossim, a história não deve ser percebida como gerida por personalidades heroicas, mas por pessoas comuns, que em espírito de comunidade, exercem seu protagonismo. Logo, não se pode reduzir o enfrentamento do racismo a pessoa de Nelson Mandela ou Martin Luther King. Eles foram figuras importantes, claro, mas suas realizações, como eles mesmos reconheciam, aconteceram no âmbito coletivo.
Do mesmo modo, não se pode reduzir a luta contra o racismo a questão da representatividade individual. O ingresso de pessoas negras em quadros de reconhecimento socioeconômico – ter tido um ministro negro como presidente do STF, por exemplo – não aplaca os efeitos do racismo na vida da maioria da população negra. Aliás, é assim que o capitalismo opera seu politicamente correto: individualizando-o, ou seja, concentrando o discurso contra o racismo em exemplos isolados para mantê-lo aceso em suas engrenagens. Assim, os discursos pela representatividade devem se referir a luta pela liberdade negra, o que inclui a acessibilidade aos direitos legais, é verdade, mas, sobretudo, a possibilidade de subsistência concreta, através de moradia, saúde, educação, emprego, segurança, enfim, ao desmonte estrutural do funcionamento social baseado, dentre outros, na violência policial, no aprisionamento racista e na exploração capitalista.
Se tomarmos o complexo industrial-prisional, no Brasil e no mundo, veremos que sua lucratividade é diretamente proporcional a manutenção da engrenagem escravista que ele incita. A tendência a reduzir os problemas de segurança pública à construção de presídios de encobre a tática neoliberal de se desviar dos problemas sociais subjacentes – concentração de renda, qualidade da educação, gratuidade do serviço de saúde, tolerância a diversidade sexual e religiosa, etc., que, em última instância, são transformados em mercadorias extremamente lucrativas quando deveriam ser direitos fundamentais, ofertados gratuitamente a todos, sem exceção.
Dentro desta perspectiva, todo fenômeno que cerceia a vida humana deve ser tomado como uma questão social que os atos de luta por justiça devem incluir em suas pautas. É de extrema relevância uma contextualização ampliada e globalizada para compreender os fenômenos que restringem os direitos civis. Demarcar os elos que articulam as múltiplas formas do aparato segregatício, nos diferentes períodos históricos, é imprescindível. Demarcar a presença do passado no presente, para se tecer um futuro comum, é crucial. Caso contrário, como iremos compreender o fato do negro ser sempre invadido pelo medo quando do encontro com policiais por ser considerado um elemento suspeito? Obviamente, atualmente não vivenciamos os abusos escancarados do tronco de açoite de negros ou da Ku Klus Klan. Não obstante, as atrocidades policial, militar e estatal funcionam sob a mesmo modelo e funcionalidade daqueles. Basta tomarmos o número de adolescentes negros, moradores de comunidades brasileiras, mortos pela polícia.
Portanto, a criminalização do racismo nas leis não significa a abolição do racismo, que persiste de modo ostensivo, transpondo o poder judiciário. As instituições sociais tornam o racismo profundamente arraigado, escamoteado e presente no entrecruzamento dos discursos da economia, da política, da ciência, da religião, da mídia, da estética, da família, das forças armadas, da saúde, da educação e do trabalho.
Por isso, não se pode analisar a questão a partir de casos individuais. Processar alguém que cometeu um ato racista, embora seja importante, não mortifica as raízes do racismo que estão no aparato. Igualmente, ter uma mulher negra no comando de uma penitenciária não oferece garantia nenhuma. As tecnologias e o regime do poder permanecem intactos. Deste modo se o “quem matou Marielle Franco?” reivindica unicamente a criminalização e o encarceramento das pessoas envolvidas, ele estará reproduzindo o trabalho do Estado, porque quando focamos no indivíduo culpado, engajamo-nos involuntariamente na mesma lógica que reproduz a violência que supomos contestar.
Daí os esforços em agregar novas perspectivas nas reflexões dos ativistas, seguindo a linha da interseccionalidade dos movimentos e do desenvolvimento de manobras de lutas que produzam identificações entre os membros que as elaboram e, por isso mesmo, a elas se engajam. Se esse tipo de abordagem não for feita, fica até difícil assimilar a questão do abolicionismo prisional, que envolve questões ideológicas e psíquicas mais profundas que simplesmente o fechamento das instituições. Sobre isso, vale citar a representação do policial e do bandido nos desenhos infantis em que o primeiro é bom porque prende o segundo, que é mau e por isso é levado para a prisão. Ou seja, há um encadeamento implícito entre os significantes mau e prisão, que precocemente é introjetado no imaginário social, impedindo uma análise crítica sobre as condições de possibilidade da maldade, que não são inatas, são sociais. Aliás, as prisões existem para bloquear este tipo de enfoque. A mesma violência que justifica sua construção é aquela da qual ela se alimenta para exercer seu funcionamento.
Destarte, é preciso incentivar pensamentos que desmontem a idéia segundo a qual a prisão é um lugar destinado a punição de quem comete crimes. É necessário ampliar as avaliações. Para tanto, algumas interrogações são bem vindas: por que há mais negros que brancos encarcerados? Por que os escolarizados são minoria nas prisões quando comparados aos analfabetos? Parece que o holofote deveria incidir primeiro sobre os temas racismo, educação, saúde, moradia. Temos de falar do papel político, econômico e ideológico da prisão. É por aí que chegaremos na associação dela ao sistema punitivo, não o oposto. É um esquema lucrativo. Como Foucault anunciou, as prisões existem para não funcionar, para depositar pessoas que representam grandes feridas sociais. É este seu projeto. Segurança, lei e ordem são retóricas que viabilizam o aumento da população carcerária e, por efeito, consolam o eleitorado burguês, promovem a corrupção e a concentração de renda e amalgamam a incompetência e a recusa estatal aos problemas que merecem atenção.
É preciso repetir a todo instante para não esquecer: a abolição da escravatura não aboliu a instituição escravidão, que continua no modus operandi das sociedades democráticas. Lembremos da precarização do trabalho tão bem representada pelotas aplicativos de entrega.
Outro ponto importante salientado por Davis é a necessidade de não inferiorizarmos as pessoas em relação as quais defendemos os direitos. Afinal, a luta por justiça social somente será efetiva se for feita em parceria e igualdade entre aqueles que são injustiçados e aqueles que têm consciência da injustiça. A libertação das mulheres não é uma luta das mulheres, assim como o racismo não é uma luta dos negros. Pensar em termos identitários despontencializa o ato. Não podemos reduzir o feminismo e o racismo aos corpos, ao gênero, a individualidades. A luta não pertence a ninguém em si. Ela é de todos. É global e objetiva a globalidade. Todos os movimentos – população LGBTQ +, feminista, antirracista, dos doentes mentais, prisioneiros, pessoas em situação de rua, etc. devem ser coesos e agir em massa, em solidariedade transacional, pois os objetos de suas causas estão interligados e incorporam em sua estrutura reminiscências históricas de relações de poder.
A mudança deve ser sistêmica. Não podemos medir os níveis de transformação em curso se tomando como critério analítico ações individuais. O indiciamento do policial que matou o adolescente João Pedro em São Gonçalo, no Rio de Janeiro, em maio deste ano, durante uma operação contra o tráfico de drogas, não dá conta, isoladamente, de romper a barbárie instalada pela violência policial. É preciso repensar o papel da polícia, a forma pela qual ela é encorajada a usar a violência como primeiro recurso de trabalho e de como ela repete a tendência de criminalizar a cor da pele, já reinante na época da escravidão. É curioso escutar nas narrativas de pessoas negras o quanto a cor da pele se coloca como um elemento determinante em suas relações sociais. Uma mulher negra é barrada na piscina de um clube por ser confundida com uma babá. Um homem negro na parada de ônibus é olhado com terror por pessoas brancas por poder ser um assaltante. Enfim, a ideologia entre negritude, sexualização e criminalização é controlada por um aparato que transcende a pessoas e cargos. Eleger um presidente negro não corta a raiz do racismo. Os EUA nos mostra isso. Ter Obama eleito e reeleito, com seu progressismo, não impediu o assassinato do adolescente Michel Brown, em Ferguson, em 2014, tampouco o sufocamento de George Floyd, durante oito minutos, por um policial branco, em maio deste ano. Nenhuma mudança ocorre somente porque um chefe de Estado a quer. Nenhum direito é dado. Todo direito é tomado, através de lutas da massa.
Destarte, devemos inferir que as lutas antirracista, das questões de gênero, contra a homofobia, contra as políticas repressivas anti-imigração, contra os indígenas, os mulçumanos, devem ser tomadas como um emblema da luta pela liberdade. Certamente, a liberdade de muitas pessoas é cerceada. O fato de ter uma modelo negra e trans na passarela da São Paulo Fashion Week não transforma necessariamente a condição de vida da maioria das mulheres negras e trans. Indica, apenas, a ascensão de alguns, bem poucos, indivíduos.As conexões entre os acontecimentos e experiências devem ser continuamente estimuladas para que não esqueçamos de que nada acontece isoladamente. “A injustiça em qualquer lugar do mundo é uma ameaça à justiça de todo o mundo” (DAVIS, 2018, p. 66), diz Davis, citando Martin Luther King.
O neoliberalismo incita o individualismo, fazendo as pessoas pensarem apenas nelas mesmas. Isso aparece até em seu discurso politicamente correto, afinal, o capitalismo é político e sabe usar isso a seu favor, como por exemplo, na tentativa de concentrar na pessoa de Mandela toda a luta antirracista, desconsiderando o processo vivido por um conjunto de companheiros e companheiras. Até nas supostas campanhas publicitárias feitas com pessoas negras, gordas, idosas ou com deficiência o que chama a atenção é o protagonismo para o consumo, para a vida de si mesmo.
Não podemos contaminar as lutas reivindicatórias com tal idéia, pois é no coletivo que elas se dão, apesar de todos os desafios. Afinal, “o otimismo é uma necessidade absoluta, mesmo que seja apenas um otimismo da vontade e um pessimismo da razão” (DAVIS, 2018, p. 56).
Um traço do discurso de Davis é o reconhecimento do sujeito coletivo da história. Para ela, há uma tendência em concentrar os grandes feitos históricos em individualidades masculinas e investidas de poder. Tendência esta perigosa porque enfraquece o movimento. Ora, o número de ruas em nosso país que homenageia os grandes nomes da história é altíssimo. Igualmente o é o número da população carcerária, que passa dos 773.000. Mas, também, vela o papel fundamental, nos movimentos pela liberdade das pessoas comuns, das mulheres, domésticas, trabalhadores rurais, dentre outros. Vale salientar que os regimes de segregação e autoritarismo não são destituídos pela ação de um líder e sim pelo protagonismo de pessoas que, tendo um posicionamento crítico na relação com a realidade, não se calam e vão a luta. Com efeito, o conceito de liberdade só pode ser forjado por quem dela se encontra privado. O lugar de fala deve ser dado a estas pessoas. É preciso desconstruir o mito, reforçado no imaginário social, de que existiu, existe e existirá um salvador, um messias. É claro que há pessoas na história que devem ser aplaudidas por sua perspicácia em perceberem e autorizarem atos que viabilizem a luta mediante a garantia dos direitos civis – Mandela, Lincoln, Obama, Lula, etc. Entretanto, restringir a questão da liberdade a isso é enfraquecê-la em sua amplitude. Não é suficiente o reconhecimento legal da união homossexual quando um filho de um casal homoafetivo é estigmatizado na escola.
Por isso mesmo destacar a elaboração de pautas sistêmicas, tal qual a erigida pelo Partido das Panteras Negras, em 1966, nos EUA, cujo eco ainda se faz potente em nosso século graças à amplitude de suas reivindicações. Como sugere Davis, o partido, ao reconhecer que a escravidão não seria eliminada com sua mera abolição, esforçou-se pela luta da liberdade, entendendo que nesta está incluída o fim da exploração do capitalismo aos oprimidos, a aquisição de moradias adequadas a vida humana, uma educação crítica e não alienante, saúde gratuita, o fim da violência policial, o fim das guerras, controle da tecnologia pelo coletivo, dentre outros. Talvez não seja absurdo apostar que a consciência e a amplitude do movimento tenha sido determinante para que Davis entrasse na lista das dez pessoas criminosas mais procuradas pelo FBI, sem nunca ter feito nada. Aliás, fez. Ela se insurgiu com força e determinação. E, é verdade, as faces do neoliberalismo sabem intimidar – e usa meios legais para isso – aqueles que o enfrentam, desencorajando o restante das pessoas a não se envolverem em protestos sociais. É nesta perspectiva que o assassinato de Marielle Franco precisa ser situado.
Davis nos lembra que, embora Bush tenha declarado o combate ao terror nos EUA, após o 11 de setembro de 2001, o termo terrorista já era amplamente designado aos ativistas da luta antirracista na década de 1960, no país, pelos discursos de ordem e lei do presidente Nixon. Assim, o fenômeno terrorismo parece funcionar como uma estratégia sólida para justificar truculências. Talvez caiba aqui citar que é de terrorista que o presidente Bolsonaro nomeia aqueles que lutam pela liberdade no país. Ora, o que foi a fantasmagoria em torno da operação Lava-jato e seu discurso jurídico de anticorrupção senão uma manobra institucionalizada de poder que abriu espaço para o avanço do fascismo no Brasil, com toda uma engrenagem de fake news, apoio midiático e empresarial e conivência da burguesia?
Reconhecer, pois, as continuidades entre as diferentes formas de violação da vida são imprescindíveis para se construir lutas globais para a ampliação da “linha do nós”, sem exceção de classe, gênero, raça ou etnia. E, ainda, para que o acesso ao conhecimento, ao bem estar biopsicossocial e ao trabalho não sejam determinadas pelas obscenidades do lucro capitalista.
Davis ressalta que os constantes casos de violência devem ser sempre mencionados pelos movimentos. Tal evoca luta, perseverança e coragem na construção de um futuro comum. Para ela, nomes como Michel Brown e Assata Shakur devem ser citados não apenas para prenderem os responsáveis por sua morte, mas para anunciar a verdade sobre a violência no mundo. Ou seja, para mostrar que estamos vacinados contra soluções manifestas e enganosas, que deixam intactas toda uma estrutura latente. Os movimentos contra o racismo suscitados pela morte de George Floyd, nos EUA, que se estenderam a vários lugares do mundo, guardam sua potência aí. A maneira como ele foi morto obedece a lógica da violência de que o acusam. O ato, feito por um policial branco e de todo modo institucionalizado pelo Estado, tem um único objetivo: provocar medo na população oprimida. Fazer as pessoas desistirem de denunciar a macro estrutura de poder, ramificada nos diferentes setores da sociedade, que se mantém erguida graças a opressão das diferenças.
Como entender o investimento maciço de dinheiro na construção de presídios e o corte de verbas destinadas às escolas, que se mantém sob condições miseráveis, quando se sabe que o problema da violência urbana é um problema social que não pode ser reduzido ao nível da individualidade de um suposto criminoso? Mas, o complexo prisional é mais lucrativo que a construção de escolas. Fato.
Assim, Davis insiste que o epicentro das teorias e práticas do século XXI devem ser a interseção e a globalidade. Se tomarmos a questão do feminismo, veremos que seu discurso é de certo modo aceito pela sociedade em geral e até reforçado pelo capitalismo porque, no fim das contas, ele se destina as mulheres brancas de classe média e alta que devem ser livres para ter “o seu estilo” que podem adquirir nas lojas e magazines, que vendem todos os estilos. Em contrapartida, mulheres negras, da classe trabalhadora, que inclusive trabalham com serviços domésticos para que as mulheres abastadas sejam livres, permanecem à margem, excluídas da própria categoria “mulher”. Então, de que mulher falamos? De que humanos falam os direitos humanos? Questionamentos como estes são essenciais para se desconstruir a universalização de categorias como as de “mulher”, “humano”, “negro”, que reforçam o discurso meritocrático. No fim das contas, é preciso ter consciência que o caráter revolucionário e radical das lutas não está simplesmente no esforço em incluir os indivíduos, sejam eles mulheres, negros ou trans, em categorias ideologicamente formatadas. Trata-se, essencialmente, de uma contestação à própria categoria, que precisa ser repensada para deixar de produzir normatividades, ou seja, referenciais cristalizados sobre quem pode ou não pode ser mulher, por exemplo. O trabalho empreendido pelos movimentos precisa ser feito na intersecção entre raça, classe, sexualidade e gênero, deslocando-se de uma abordagem centrada em experiências individuais e detendo-se em questões mais amplas como os sistemas de produção neoliberal, o complexo industrial prisional, o encarceramento psiquiátrico, a indústria farmacêutica, etc. Apesar desses problemas serem abordados de modo marginal e independente, a potência que os mantém ativos está justamente no elo que os liga. Vale salientar que, mesmo tendo sua identidade de gênero legalmente instituída, a mulheres trans negras e em vulnerabilidade social ainda são enclausuradas, em penitenciárias masculinas, vítimas da violência e discriminação dentro e fora das instituições.
Davis aponta a necessidade de reavaliarmos, a nível individual e coletivo, as ideologias produzidas em torno do conceito de normal. Ora, é difícil legitimar a luta pelo abolicionismo prisional se há uma percepção da massa de que as prisões são normais. Destarte, é impossível lutar pela inclusão social da loucura se esta é definida como uma doença mental essencialmente orgânica pela hegemonia psiquiátrica. Igualmente, é impossível lutar pela diversidade sexual quando há uma insistência na naturalização e binarização do conceito de gênero. Aliás, a própria ideia de normalidade é produto de condições sociais, políticas e ideológicas que são criadas para justificar legalmente e cientificamente discursos e práticas abusivas.
Assim, os movimentos pela liberdade envolvem muito mais que reivindicações de inclusão identitária. Eles envolvem a consciência em relação às estruturas de poder capitalista, ao colonialismo, ao racismo, ao fascismo e a multiplicidade de experiências que não devem ser objetos de uma categorização. Tais movimentos não nos mostram apenas a existência de uma série de conexões entre discursos e práticas de instituições diversas que tendemos a analisar isoladamente. Eles nos convocam a esboçar modelos epistemológicos, teóricos, metodológicos, éticos e de organização coletiva que nos levem além de classificações maniqueístas, moralizantes e reducionistas, incitando-nos a adentrar no universo produtivo dos antagonismos. Enfim, os movimentos nos encorajam a uma reflexão que nos permite separar coisas que concepções ideológicas insistem em permanecer unidas e, consequentemente, separar coisas que a ideologia persiste em naturalizar. Não se pode defender o abolicionismo prisional sem considerar o antirracismo. Da mesma forma, a abolição das prisões deve abarcar a crítica a ideologia de gênero.
Pensar o feminismo em um contexto abolicionista, antirracista e vice-versa, quer dizer, interseccionalizá-los, significa aplicar a máxima de que o pessoal é político, ou seja, o individual é social. Afinal, como não vermos uma continuidade entre a violência institucionalizada das prisões e a violência doméstica e sexual contra a mulher? Não podemos reduzir o machismo a questões individuais, a um repertório psicológico anormal. Precisamos compreender que modelamos nossa intimidade, nossos sentimentos e afetos, segundo estruturas políticas de poder. Neste sentido, acabamos por fazer o trabalho do Estado em nossa vida privada, reproduzindo uma estrutura racista e repressora. O aumento do feminicídio no governo antidemocrático de Bolsonaro informa-nos isso. Ora, um governo que se constrói em torno do ódio e tortura incita os mesmos atos na vida doméstica. A violência racista e sexual, contra a mulher são práticas não apenas toleradas ou negligenciadas. Ela é encorajada.
Os movimentos pela liberdade, portanto, não tratam apenas da garantia dos direitos civis. Eles visam a mudança e ao remodelamento da estrutura. Ser livre não significa simplesmente a garantia de direitos formais que permitam o acesso e participação do indivíduo na sociedade, que continuaria a funcionar sob uma engrenagem ultrajante. Ser livre é não ter que se submeter a um sistema de produção capitalista que, utilizando um vocabulário coaching, extorque o tempo de vida da maioria das pessoas, enfraquecendo os vínculos sociais, sindicais e trabalhistas, incutindo-lhes a ideal do consumo como determinante de uma vida feliz. Aliás, a luta implica repensar radicalmente nossa vida íntima, a construção daquilo que somos, pois o capitalismo já faz isso e, por isso, tendemos a reduzir nosso projeto de existência a posse de mercadorias que poderemos adquirir com trabalho e esforço, reproduzindo, assim, uma lógica escravista, em que o abusador e o abusado é o próprio indivíduo.
Por fim, Davis adverte que a luta é global, ampla, articulada, interseccionlizada, solidária, coletiva. É constante.
Kelly Moreira de Albuquerque – Possui graduação em Psicologia pela Universidade de Fortaleza (2009), mestrado em Psicologia pela Universidade Federal do Ceará (2012) e doutorado em Psicologia pela Universidade de Fortaleza (2016). Atualmente é doutora III do Centro Universitário Fanor Wyden. E-mail: kellynha.psico@hotmail.com
DAVIS, Angela. A liberdade é uma luta constante. São Paulo: Boitempo, 2018. Resenha de: ALBUQUERQUE, Kelly Moreira de. Uma luta constante. Albuquerque – Revista de História. Campo Grande, v. 12, n. 23, p. 204-211, jan./jun., 2020.
Capitalismo em debate: uma conversa na teoria crítica – FRASER; JAEGGI (C-FA)
FRASER, Nancy; JAEGGI, Rahel. Capitalismo em debate: uma conversa na teoria crítica. São Paulo: Boitempo, 2020. Resenha de: FILHO, José Ivan Rodrigues de Sousa. “A turbulência que se aprofunda ao nosso redor”. Cadernos de Filosofia Alemã, São Paulo, v 25 n.1 Jan./Jun, 2020.
“A turbulência que se aprofunda ao nosso redor” *.
Capitalismo em debate é, acima de tudo, uma obra filosófica sintomática do tempo presente. E o é porque o capitalismo se encontra em discussão na esfera pública, em especial nos Estados Unidos, onde o livro, há dois anos, viera a lume e onde Bernie Sanders, neste ano, conduziu uma pré-candidatura presidencial declaradamente socialista que angariou intenso apoio e provocou acalorado debate. Essa recente problematização política do capitalismo tem lugar sob uma constelação de graves desenvolvimentos econômicos, políticos e culturais que remontam ao ocaso dos anos 2000: a crise financeira mundial de 2007-2009, o imediato resgate estatal de graúdos bancos privados à beira da falência, o consequente agravamento da crise das finanças públicas, a política de austeridade fiscal então renovadamente receitada e imposta, o duradouro refreamento do crescimento econômico, os protestos massivos que proliferaram por todo o mundo em indignada reação a esse plexo de crises econômicas, os movimentos políticos regressivos que também emergiram mundo afora, as políticas públicas econômicas e culturais promovidas por novos governos de extrema-direita hiper-reacionária que se instalaram com o apoio de tais movimentos e que tanto mantêm como aprofundam a mesma diretriz neoliberal de distribuição regressiva da riqueza social pela qual se nortearam prévios governos de centrodireita e centro-esquerda, além de intensificarem o escangalhamento do Estado de bem-estar social, denegarem as profundas mudanças socioeconômicas necessárias para evitarmos ou enfrentarmos a iminente crise ecológica global, insuflarem o etnonacionalismo e o racismo, reforçarem o machismo e a homofobia e minarem o Estado de direito e a democracia liberal. É sob a opaca radiação dessa constelação capitalista que se gesta o livro de Nancy Fraser e Rahel Jaeggi, e é a tal constelação que ele responde diretamente, sintomatizando o nosso tempo em três sentidos: ele reflete (sobre) um complexo temático discutido publicamente, um complexo de crises distintas e interligadas de alcance global e um complexo heterogêneo de movimentos e lutas sociais.
Vertida para o nosso português por Nathalie Bressiani, filósofa notoriamente versada nas teorias críticas das duas autoras, a obra se torna muito mais acessível no Brasil, onde tanto Fraser como Jaeggi, embora sejam filósofas preeminentes com diversas obras de imenso peso teórico, ainda são pouco traduzidas: justamente as mais importantes obras de ambas (por exemplo: de Fraser, Fortunes of feminism: from state-managed capitalismo neoliberal crisis ; de Jaeggi, Kritik von Lebensformen ) ainda não o foram. Também nesse sentido, Capitalismo em debate é uma novidade muitíssimo bem-vinda: pela precisão e pela consistência teórica do trabalho de tradução e por difundir entre nós o que mais recentemente teorizaram a filósofa estadunidense e a suíça.
É na tentativa de fazer jus à obra (bem como à sua tradução brasileira) que, a seguir, se elabora um panorama interpretativo dela, e se esboçam algumas observações críticas gerais.
À guisa de conversa
O que mais dá nas vistas quando se abre, pela primeira vez, o livro de Fraser e Jaeggi e até provoca um leve estranhamento durante os primeiros progressos da leitura é a peculiar forma discursiva em que o livro se apresenta. Trata-se mesmo de uma “conversa”, conforme advertido pelas autoras já no subtítulo do livro. Mas se trata de uma conversa apenas entre aspas, pois o debate entre elas não se configura, de fato, como uma conversa propriamente dita: falada e espontânea, informal e cotidiana.
Trata-se, antes, de uma conversa escrita (não só transcrita): e escrita com a intenção de constituir um livro, não um livro qualquer, mas um livro plenamente teórico, um livro de teorização crítica da sociedade capitalista. Uma conversa, portanto, minuciosamente organizada em quatro aspectos básicos. Em primeiro lugar, ela põe em foco uma temática ampla e complexa, mas bem demarcada e sistematicamente abordada, abarcando o capitalismo, a própria teorização crítica do capitalismo e, ademais, a práxis política anticapitalista. Em segundo lugar, o livro se desenrola num nível de profundidade teórica deliberadamente restringido, ainda que elevado, pois, mesmo que pretenda ser plenamente teórico, não pretende esgotar a teorização que empreende, nem aprofundá-la tanto que se torne acessível exclusivamente a acadêmicos familiarizados com esse tipo de teorização, inacessível, porém, para grande parte do público potencial. Em terceiro lugar, a “conversa” se caracteriza por uma intencional e constante moderação do seu nível de polemização, considerando que as duas autoras ostentam e mantêm entre si muitas divergências fortes, inclusive divergências de saída (dentre as quais se destaca a divergência quanto a conceber o capitalismo como ordem social institucionalizada, como defende Fraser, ou como forma de vida, como defende Jaeggi 1 ), mas não querem travar a “conversa”, nem a espichar exageradamente, nem a tornar árida com a multiplicação de ressalvas, objeções e encruzilhadas teóricas. E, em quarto lugar, o livro apresenta uma exposição cujo desenvolvimento é articulado em quatro grandes blocos, ou capítulos, bem delimitados e estreitamente justapostos na seguinte sequência: conceituação – historicização – crítica teórica – contestação política (sempre do capitalismo).
Intentando constituir um livro teórico e organizadíssima nos seus aspectos básicos, a “conversa” se faz, então, altamente formal e inteiramente acadêmica.
Por isso, o seu público potencial é formado, sobretudo, por acadêmicos, intelectuais e outros leitores excepcionais, mas não só pelos que já têm alguma intimidade com a teorização crítica do capitalismo. Não se trata, em todo caso, de obra dirigida prioritariamente a “leigos”: inclusive nesse aspecto, a ligação da teoria com a práxis não é, aqui, concebida como imediata; há certo hiato entre o terceiro e o quarto capítulo, entre a crítica teórica e a contestação política, hiato que não é intransponível, mas não pode ser suprimido nem ignorado, de modo que os destinatários preferenciais de Capitalismo em debate são os que transitam em palcos e plateias de debates teóricos.
Retomada de produções acadêmicas individuais anteriores
A maior parte da obra reapresenta, de maneira resumida, mas consideravelmente detalhada, os principais conceitos, explicações, teses e pressuposições de ambas as produções acadêmicas. Assim, quem ainda não travou contato com o que Fraser e Jaeggi, cada uma individualmente, já haviam publicado relativamente à crítica do capitalismo encontra, em Capitalismo em debate, um acesso adequado, amplo e instigante à particular crítica do capitalismo de cada uma das autoras.
No entanto, a obra não se circunscreve a uma reapresentação do já apresentado por cada uma delas alhures. Capitalismo em debate mescla a essa reapresentação, aqui e acolá e até em abundância, novos aprofundamentos, desdobramentos e esclarecimentos teóricos. Justamente a forma de “conversa” que tem a obra possibilita e convida a isso: cada uma das duas interlocutoras, recorrentemente, pressiona a outra a mais bem elaborar alguns aspectos da sua própria crítica do capitalismo, o que conduz, então, a alguns ganhos teóricos de reflexividade, abrangência e clareza.2 Há, ainda, inovações teóricas na obra em relação ao que as autoras haviam teorizado até então 3 Assim, proporciona-se, a quem já havia travado contato com a crítica do capitalismo de Fraser e/ou com a de Jaeggi, a possibilidade de retomar as suas leituras anteriores, levantar novamente questões que essas leituras lhe suscitaram e colocá-las perante a nova obra, tentando encontrar na última respostas para as primeiras, ainda que, nesse movimento, possa, com muita probabilidade, confrontarse com uma segunda onda de questões.
Outra vantagem da forma de “conversa” da obra é que se produz permanentemente a possibilidade de diversas comparações entre as duas críticas. Podem-se comparar os conceitos-chave empregados por cada uma das autoras. Podem-se comparar as explicações fundamentais que cada uma delas dá sobre: ontologia social do capitalismo; desenvolvimento temporal e diversificação espacial do capitalismo; distinção e articulação das dimensões específicas de uma crítica abrangente do capitalismo; análise das lutas sociais anticapitalistas hodiernas. Podem-se comparar, ainda, as teses centrais que cada uma delas articula quando se põem a explorar os terrenos da teoria social, da economia política, da metacrítica social e da análise empírica. E se podem comparar as mais importantes pressuposições subjacentes a cada uma das duas críticas do capitalismo, pressuposições metodicamente trazidas à tona e bastante discutidas em Capitalismo em debate. Além da diversidade do que pode ser submetido à comparação, também são diversos os critérios que podem ser utilizados para comparar: pode-se comparar à luz, por exemplo, dos critérios de fecundidade teórica, capacidade elucidativa, agudeza crítica e conectividade com a práxis política atual. Aliás, as próprias autoras usam, com frequência, os mencionados critérios para exigirem, uma da outra, respostas satisfatórias a várias questões abordadas no livro.
Retomando as suas próprias produções acadêmicas, Fraser e Jaeggi procedem, além do mais, a uma relativa sistematização das suas críticas do capitalismo, as quais se encontravam, até então, dispersas numa vasta lista de artigos e livros. E isso diz respeito principalmente a Fraser, que tem uma carreira acadêmica mais extensa e mais numerosas publicações que Jaeggi e, além disso, está mergulhada, já há uns bons dez anos, num processo de elaboração de uma nova crítica do capitalismo, publicando os seus resultados parciais de modo intermitente e numa prolífica sequência cumulativa, o que lhes impõe o aspecto de partes formadoras de um complexo mosaico ainda inconcluso. Trata-se de uma crítica do capitalismo nova, inclusive, em relação àquela que a mesma Fraser, até então, elaborara 4 e que não era, como a de agora, centrada: (a) nas divisões institucionais axiais que estruturam a sociedade capitalista em diversas esferas funcional, ontológica e normativamente específicas, mas interdependentes; (b) nas várias tendências de crise do capitalismo produzidas pelas incompatibilidades fundamentais e irredutíveis da lógica própria da economia capitalista, de um lado, com as lógicas próprias do poder público, da reprodução social e da natureza não humana, de outro; (c) nas lutas sociais travadas nas fronteiras entre a economia capitalista e os seus imprescindíveis planos de fundo político, sociorreprodutivo e natural. Esse ambicioso projeto teórico de Fraser, no entanto, não havia sido, até agora, realizado de modo concentrado (num grande livro) e rigorosamente sistemático, mas numa comprida fieira de artigos distribuídos entre diferentes revistas e livros, 5 de maneira que, em razão da própria forma artigo, ela não havia conseguido, até agora, conferir à sua nova crítica do capitalismo uma exposição completa e unificada. Apesar do seu currículo acadêmico menos volumoso, também Jaeggi se caracteriza pela mesma dispersão da sua interlocutora – uma dispersão, vale notar, nem errática, nem inconsciente, nem insuscetível à síntese. De fato, também Jaeggi elaborou a sua crítica do capitalismo de modo fragmentário. Num primeiro livro, ela elaborou o seu critério ético para a crítica do capitalismo, a saber, a alienação. Depois, num artigo, elaborou o arcabouço conceitual e explicativo da sua crítica da ideologia. Noutro artigo, veio a elaborar a sua metacrítica, que propõe uma teorização do capitalismo que indissoluvelmente entremeie análise e crítica e seja, ao mesmo tempo, funcional e ética. Elaborou, num terceiro artigo, um conceito funcional e ético de trabalho. Em seguida, noutro livro, elaborou a sua teoria social, centrada nas formas de vida. Elaborou, ainda, num quarto artigo, um conceito amplo de economia, economia como conjunto de práticas sociais específicas, mas inseparavelmente atreladas a outros tipos de práticas sociais e, enquanto conjunto, completamente partes, fundamentalmente características e parcialmente constitutivas de uma forma de vida específica; e assim por diante.6 Portanto, também à crítica do capitalismo de Jaeggi, faltava uma exposição completa e unificada.
Isso ocasionava, para o público leitor, uma expressiva dificuldade para compreender, de modo sistemático, ambas as críticas do capitalismo, já que elas mesmas foram elaboradas pelas suas autoras de maneira paulatina e fragmentária (mas não incoerente).Capitalismo em debate, não obstante, concede a ambas uma significativa chance de se fazerem sistemáticas enquanto teóricas críticas do capitalismo. Essa chance, contudo, é limitada, pois a sistematização não pode, nesse tipo de livro, escrito à guisa de conversa, ser exaustiva, nem definitiva, no que tange a aprofundamento, desdobramento e clarificação do previamente publicado.
A sistematização alcançada é, nesse sentido, relativa: trata-se de alinhavar o já publicado, recuperando explicitamente a sua coerência interna, indo, de vez em quando, um pouco além do já escrito anteriormente, sempre na medida do permitido pela forma “conversa”.
O pronunciado protagonismo de Fraser
A chance de sistematizar as suas dispersas contribuições anteriores para a crítica do capitalismo foi, de fato, aproveitada pelas duas autoras, mas Fraser, visivelmente, a aproveitou muitíssimo mais que Jaeggi. Talvez haja uma razão genética, editorial, para isso: o livro fora encomendado pelo editor estadunidense, ao que tudo indica, como uma homenagem à longeva, profícua e influente carreira acadêmica de Fraser, por ocasião do seu septuagésimo aniversário, em 2017. Ainda que as autoras tenham decidido alterar o propósito do livro proposto pelo editor, dedicando-o, então, ao estágio atual das suas pesquisas, cujo foco é justamente o capitalismo, é nítido que Jaeggi desempenha, predominantemente, o papel de uma entrevistadora, embora saia uma entrevistadora bastante erudita, perspicaz e crítica. Mesmo quando seria esperado que fosse dela a fala principal, o impulso do protagonismo de Fraser, rapidamente, desponta, se imiscui e se instala.
Nos capítulos I e II, que versam, respectivamente, sobre a conceituação e a historicização do capitalismo, o palco é quase unicamente de Fraser. Jaeggi se restringe, quase completamente, a estimular a sua interlocutora a reapresentar (e, aqui e ali, aprofundar, desenvolver e clarificar) duas grandes propostas suas (da própria Fraser): (a) a proposta de conceituação do capitalismo como uma ordem social cuja especificidade histórica reside na institucionalização de uma esfera econômica que é separada das esferas da reprodução social, do poder público e da natureza não humana, mas que é, ao mesmo tempo, dependente dessas três esferas “não econômicas”, ainda que denegue a imprescindível importância econômica que elas possuem e ainda que denegue a parasitação, o esgotamento e a devastação que impõe a elas; (b) a proposta de historicização do capitalismo como uma sequência (retrospectivamente reconstruível como sendo direcional) de regimes de acumulação privada de capital que não se circunscrevem à esfera econômica, mas são, ao mesmo tempo, regimes socio-rreprodutivos, políticos, socioecológicos e racializadores, quer dizer, os regimes de acumulação mercantil, liberal, administrado pelo Estado e financeirizado/neoliberal também abrangem, como componentes “não econômicos” essenciais, mas mantidos no plano de fundo, formas específicas de feminilização do “cuidado” e de seguridade social, formas específicas de configuração das relações entre os poderes privados econômicos e os poderes públicos políticos (nacionais e transnacionais), formas específicas de “natureza histórica” e formas específicas de subjetivação/sujeição política e de expropriação econômica.
Já o capítulo III seria, supostamente, o capítulo em que Jaeggi tomaria o protagonismo na “conversa”, já que se trata de um capítulo dedicado à metacrítica do capitalismo, ou seja, à reflexão sobre os critérios fundamentais com base nos quais se critica o capitalismo e sobre os tipos gerais de crítica do capitalismo. Enquanto Fraser, até então, na sua produção acadêmica anterior, havia se abstido largamente de escrever sobre a crítica do capitalismo, tendo se concentrado em escrever diretamente sobre o próprio objeto da crítica do capitalismo, é de Jaeggi, possivelmente, a principal elaboração da Teoria Crítica recente em termos de metacrítica do capitalismo. Seria, pois, esperado que, nesse capítulo, a voz preponderante fosse a de Jaeggi. Jaeggi chega a retomar a sua metacrítica do capitalismo já no início do capítulo, definindo, assim, os termos da discussão, de modo que a discussão passa, então, a girar em torno de três tipos gerais de crítica do capitalismo, distinguidos uns dos outros pela adoção de um de três critérios fundamentais: a crítica funcional põe em foco as tendências de crise do capitalismo; a crítica moral, a exploração e/ou a injustiça impostas pelo capitalismo; e a crítica ética, a alienação que o capitalismo produz.Definidos desse modo os termos da discussão, Fraser passa, no entanto, a fazer preponderar a sua voz. Primeiro, Fraser concorda com Jaeggi em que não é possível uma crítica puramente funcional do capitalismo, em que toda crítica funcional está ligada, explícita ou implicitamente, a algum ponto de vista normativo e, portanto, a algum tipo de crítica moral e/ou ética, ainda que o desenvolvimento teórico da crítica propriamente normativa se apresente como tímido e fugaz. A partir daí, no entanto, começam a mostrar-se divergências e diferenças entre as duas autoras. Por exemplo, Jaeggi defende que Marx não procedeu a uma crítica diretamente moral do capitalismo, mas Fraser sustenta que há, em Marx, uma dimensão moral explícita, relacionada à justiça política, ou a uma injusta (pois classista) destinação institucionalizada do excedente social. A obstinada oposição que Jaeggi faz a uma crítica moral é, então, contrastada com a insistência de Fraser numa crítica moral centrada nas dominações estruturais não só de classe, mas também de gênero e raça. Além disso (e muito mais importante), Fraser passa a apresentar a sua própria concepção de crítica ética do capitalismo, contrapondo-a abertamente à particular concepção de Jaeggi. E isso leva Fraser a retomar tanto a sua própria conceituação como a sua própria historicização do capitalismo, já desenvolvidas nos dois capítulos anteriores, para salientar-lhes as nuanças propriamente éticas.
Não obstante, é no capítulo III, sem dúvida, que Jaeggi é mais bem-sucedida em expor a sua própria crítica do capitalismo, ao menos nos seus traços gerais: uma crítica baseada em dois critérios entrelaçados, o critério funcional das contradições imanentes e tendências objetivas de crise e o critério ético não essencialista e não substantivo, mas antes processual e formal, da alienação – alienação como obstáculo à liberdade social. Trata-se de uma crítica que, em última análise, põe em relevo a irracionalidade inerente ao capitalismo como uma ordem social que sistematicamente bloqueia experiências sociais e processos de aprendizagem e, assim, distorce profundamente as reações sociais às suas próprias crises, o que acaba por causar e proliferar relações sociais alienadas e fenômenos de estranhamento. Nessa medida, o capítulo III é o capítulo de Jaeggi, ainda que, nele, o desempenho discursivo de Fraser não fique atrás do da sua interlocutora. No capítulo IV, Fraser reassume mais enfaticamente o seu protagonismo no livro. Isso ocorre porque a crítica do capitalismo de Fraser dispõe de uma elaboração acerca das lutas sociais que é muito mais rica e clarificadora do que a de Jaeggi. Essa elaboração se desenvolve em três vertentes diferentes e, não obstante, interligadas. A primeira vertente é a da ressignificação e ampliação do conceito clássico de “lutas de classe” através do conceito novo de “lutas de fronteira” – o que representa uma contribuição original de Fraser para a renovação do marxismo e da Teoria Crítica. Na “A turbulência que se aprofunda ao nosso redor” Cadernos de Filosofia Alemã, São Paulo | Jan./Jun..2020 129 segunda vertente, Fraser realiza uma apropriação crítica do conceito de “movimento duplo” de Karl Polanyi que o transforma num “movimento triplo”, constituído de três amplas tendências de desenvolvimento que atravessam toda a história do capitalismo e se relacionam umas com as outras de maneiras diferentes ao longo dessa história, a saber, as tendências de mercadorização, proteção social e emancipação. Já na terceira vertente, Fraser elabora o diagnóstico acerca do “neoliberalismo progressista” como a corrente política neoliberal hegemônica até há pouco, bem como acerca do recente arruinamento da hegemonia neoliberal sob a pressão geral de movimentos regressivos e emancipatórios, os primeiros alimentando o “populismo reacionário” de extrema-direita, os últimos nutrindo o “populismo progressista” de uma esquerda da qual se espera que possa unir toda a classe trabalhadora em sentido amplo, abarcando todos os expropriados e explorados num bloco contra-hegemônico que vise a uma transformação estrutural da ordem social capitalista. Jaeggi levanta importantes discordâncias e ressalvas a essa tripla elaboração de Fraser. Por exemplo, ela parece adotar uma compreensão mais aguda e mais dramática do racismo, do sexismo e da homofobia que caracterizam os atuais movimentos regressivos e os seus porta-vozes partidários de extrema-direita, em contraposição à proposta de Fraser de compreender essas gravíssimas atitudes sociopolíticas como reações reacionárias à crise da hegemonia neoliberal, suscetíveis, em princípio, ao esclarecimento e à mudança. Além disso, Jaeggi ressalta a necessidade de uma crítica da ideologia hoje, em contraposição à proposta de Fraser de recuperar o conceito de “hegemonia” de Antonio Gramsci. Em todo caso, nesse capítulo final, Jaeggi acaba por restringir-se a comentar as vastas propostas de Fraser.
Uma explicação do predomínio discursivo de Fraser
É possível explicar, com uma combinação de razões filosóficas e razões relativas à peculiar forma discursiva de Capitalismo em debate, a precedência que a crítica do capitalismo de Fraser exerce continuadamente sobre a de Jaeggi ao longo do livro. Ao conceituar o capitalismo como uma ordem social institucionalizada, Fraser monta um quadro conceitual que lhe rende algumas expressivas vantagens em relação a Jaeggi. Em primeiro lugar, o quadro conceitual de Fraser é consideravelmente menos abstrato que o de Jaeggi, o qual tem como cerne os conceitos de forma de vida, prática social, problema e processo de aprendizagem. Em segundo lugar, o quadro conceitual de Fraser é não só aberto à historicização – o de Jaeggi também o é –, mas também inerentemente dependente dela, ou seja, somente pode ser desdobrado teoricamente (e, assim, elucidar o seu próprio objeto) mediante uma narrativa abrangente do desenvolvimento histórico do capitalismo – o que não ocorre com o quadro conceitual de Jaeggi, cujo desdobramento teórico é significativamente independente de narrativas históricas, precisamente porque é de uma abstração elevadíssima. Em terceiro lugar, o quadro conceitual de Fraser tem como critérios da crítica a estabilidade estrutural (ou a sustentabilidade funcional), a não dominação de classe, gênero e raça e a autodeterminação coletiva socioeconômica, critérios com os quais Fraser consegue criticar o capitalismo de modo, ao mesmo tempo, mais simples, mais fértil e mais convincente do que Jaeggi com os seus critérios de êxito na compreensão e resolução de problemas e não alienação (ou apropriação). E, em quarto lugar, o quadro conceitual de Fraser é capaz de esclarecer imanentemente as lutas sociais de outrora e de hoje de modo abrangente e nuançado, quer dizer, oferece um panorama sistemático delas ao longo de toda a história capitalista, tanto no centro como na periferia do capitalismo mundial e em cada um dos períodos específicos dessa história; e oferece, ainda, um discernimento criterioso daquelas lutas conforme se posicionem em relação à mercantilização da sociedade, à proteção da sociedade contra a mercantilização e à emancipação de grupos sociais que permanecem estruturalmente dominados na sociedade capitalista.
Justamente em virtude dessas características do seu quadro conceitual, a crítica do capitalismo de Fraser se sobressai à de Jaeggi na “conversa”. Efetivamente, numa conversa (ainda que seja uma conversa só entre aspas), tende a perder espaço quem discursa muito abstratamente: discursos muito abstratos são mais adequadamente desdobrados em formas de escrever não dialógicas nem inclinadas à altercação oral, quer dizer, em formas de escrever mais monográficas, ensaísticas ou tratadísticas. Nesse sentido, é razoável supor que o quadro conceitual menos abstrato de Fraser tenda a ser propício ao desdobramento do seu particular discurso em Capitalismo em debate, enquanto o quadro conceitual muito mais abstrato de Jaeggi tenda ao contrário. Mesmo no capítulo I e no III, os mais abstratos do livro, a menor abstração do quadro conceitual de Fraser lhe proporciona bastante espaço discursivo. Além disso, as temáticas às quais se dedicam os dois outros capítulos do livro são francamente favoráveis a Fraser: no capítulo II e no IV, dedicados, respectivamente, à história do capitalismo e às lutas anticapitalistas atuais, é quase óbvio que Fraser se destaque muito mais que Jaeggi, dado que, entre as duas, é apenas Fraser que oferece uma crítica do capitalismo eminentemente histórica e explícita e sistematicamente ligada à práxis política anticapitalista.
Estamos conversados?
A forma de “conversa” que as autoras deram ao seu livro lhes permite sempre abrir e abordar uma gama formidável de temas e problemas, ao mesmo tempo que nem sempre lhes permite dar vazão à sua veia teórica na medida necessária. Essa constrição formal da reflexão teórica impõe a Capitalismo em debate três importantes limitações: a primeira diz respeito à relação da teorização que as autoras oferecem com a economia política e, em particular, com a teorização de Karl Marx; a segunda, à clarificação da religião nas suas (perigosas) relações com o capitalismo; e a terceira, à elucidação dos supostos populismos hodiernos. Tais limitações podem ser formuladas através das seguintes questões, que, no livro, ficam intocadas: Que traços fundamentais teria uma nova economia política que levasse a sério seja a concepção expandida de capitalismo de Fraser, seja a concepção alargada de economia de Jaeggi? Permaneceriam sustentáveis as bases do edifício teórico da crítica marxiana da economia política ante as novas, mais profundas e mais complexas concepções de trabalho, natureza, acumulação, contradição, crise, classe, luta de classes, democracia, sociedade e socialismo de Fraser? Como precisamente essas concepções de Fraser impactam as centrais conceituações marxianas de valor e mais-valor? Que lugar a religião ocupa na sociedade capitalista? Ela chegaria a constituir, para Fraser, uma esfera social própria com a qual a economia, assim como com a reprodução social, a política e a ecologia, manteria uma relação de separação, dependência e denegação; ou, para Jaeggi, uma forma de vida de escopo limitado, mas de forte resistência, sob a modernidade como uma abrangente forma de vida secularizada? Ou se circunscreveria ela a um resíduo de eticidade pré-moderna que, embora essencialmente incompatível com a secularidade moderna, pode ser e, de fato, é reaproveitado na sociedade capitalista para fins hegemônicos (diria Fraser, quiçá) ou ideológicos (talvez dissesse Jaeggi)? E que é populismo? Os atuais presidentes estadunidense e brasileiro (Donald Trump e Jair Bolsonaro), por exemplo, são mesmo populistas? Não seria mais adequado caracterizá-los como autoritários ou até fascistas? O que diferiria, hoje, o populismo do autoritarismo e do fascismo? Sem embargo dessas limitações gerais, Capitalismo em debate tem como virtude principal a de ser um livro tempestivo, um livro que liga estreita e profundamente a reflexão teórica ao seu contexto social, um livro que cabe ler justamente em meio à “turbulência que se aprofunda ao nosso redor” (p. 9). Ao final da leitura, permanecem ressoando as palavras de Fraser: “a crise não será resolvida com o ajuste desta nem daquela política. O caminho para a sua resolução só pode ser o da transformação estrutural profunda dessa ordem social”; palavras, aliás, reverberadas por Jaeggi: “sem um projeto emancipatório para além das alternativas às quais as pessoas parecem presas agora, as coisas podem ficar feias” (pp. 241-242).
Referências
FRASER, N. (2013).Fortunes of feminism : from state-managed capitalism to neoliberal crisis. London; New York: Verso.
FRASER, N. (2014). Behind Marx’s hidden abode: for an expanded conception of capitalism.New Left Review, 86, pp.141-159.
FRASER, N. (2016). Contradictions of capital and care.New Left Review, 100, pp.99117.
FRASER, N. (2018a).Crise de legitimação? Sobre as contradições políticas do capitalismo financeirizado. Tradução de José Ivan Rodrigues de Sousa Filho.Cadernos de Filosofia Alemã: Crítica e Modernidade, 23 (2), pp.153-188.
FRASER, N. (2018b). Do neoliberalismo progressista a Trump – e além. Tradução de Paulo S. C. Neves.Política & Sociedade: Revista de Sociologia Política, 17 (40), pp.43-64.
FRASER, N. (2018c). From exploitation to expropriation: historic geographies of racialized capitalism.Economic Geographic, 94 (1), pp.1-17.
FRASER, N. (2020). What should socialism mean in the twenty-first century? Socialist Register, 56, pp.282-294.
FRASER, N., & Honneth, A. (2003). Redistribution or recognition? A politicalphilosophical exchange. Translated by Joel Golb, James Ingram, and Christiane Wilke.London; New York: Verso.
JAEGGI, R. (2008). Repensando a ideologia. Tradução de Emil Sobottka e Giovani Saavedra.Civitas, 8 (1), pp.137-165.
JAEGGI, R. (2014).Alienation. Translated by Frederick Neuhouser and Alan E. Smith.New York: Columbia University Press.
JAEGGI, R. (2015). O que há (se de fato há algo) de errado com o capitalismo? Três vias de crítica do capitalismo. Tradução de Nathalie Bressiani.Cadernos de Filosofia Alemã, São Paulo: Crítica e Modernidade, 20 (2), pp.13-36.
JAEGGI, R. (2017).Pathologies of work.Women’s Studies Quarterly, 45 (3-4), pp.5976.
JAEGGI, R. (2018a).Critique of forms of life. Translated by Ciaran Cronin. Cambridge; London: The Belknap Press of Harvard University Press.
JAEGGI, R. (2018b). Um conceito amplo de economia: economia como prática social e a crítica ao capitalismo. Tradução de Alessandro Pinzani.Civitas, 18 (3), pp.503522.
* Trata-se de uma citação da obra resenhada, situada na página 9.
Notas
1 Há outras três divergências centrais entre as autoras, a saber: primeiro, ao passo que Jaeggi parece manter uma considerável abertura para uma teoria da modernidade, ainda que não desenvolva uma, Fraser parece ater-se completamente à teorização do capitalismo, sem preocupar-se em caracterizálo como formação social moderna e em distingui-lo de formações sociais pré-modernas. Segundo, enquanto Jaeggi abraça uma crítica ética do capitalismo que, malgrado formal, é enfática, já que focada na alienação, Fraser assume uma crítica ética do capitalismo que é bastante tímida e parece ser mais política que ética, já que enfoca a autodeterminação coletiva quanto às mais importantes questões econômicas. Terceiro, se Fraser não hesita em conceber os movimentos sociais hodiernos, inclusive os regressivos, como reações diferentes ao neoliberalismo hegemônico, Jaeggi reluta em aceitar tal concepção e não descarta hipóteses que explicam os movimentos sociais regressivos por prismas predominantemente simbólicos, real ç ando, por exemplo, o racismo inveterado, a misoginia visceral, a homofobia entranhada e o ressentimento social que os impulsionaria
2 Por exemplo, quanto à conceituação do capitalismo, Fraser aprofunda reflexivamente a sua própria concepção ao explicitar que ela emprega duas metodologias distintas e que, no entanto, não correspondem a duas, mas a uma única ontologia social, ainda que diversificada para dar conta das diversas esferas sociais em que se divide estruturalmente a sociedade capitalista. Trata-se de uma metodologia estrutural-institucional e de uma metodologia de teoria da ação. Já quanto à historicização do capitalismo, Fraser desdobra a sua concepção, tornando-a mais abrangente, ao apontar um novo regime de acumulação capitalista, vigente do século XVI ao XVIII, anterior ao capitalismo liberal e concorrencial do século XIX, a saber, o capitalismo mercantil. Ademais, Fraser clarifica, quanto à conceituação do capitalismo, que a sua concepção não é meramente funcionalista, mas é também normativa; além do mais, clarifica, quanto à historicização do capitalismo, que o ideal seria elaborá-la de modo conjunto e sistemático, mostrando como as relações profundamente instáveis que a economia capitalista, de um lado, mantém com o poder público, a reprodução social e a natureza não humana, de outro, desenvolvem-se, ao mesmo tempo, distinta e combinadamente.
3 Por exemplo, em relação à crítica teórica do capitalismo, Fraser inova ao afirmar que a sua crítica do capitalismo tem não só uma dimensão funcionalista (focada em contradições estruturais e tendências de crise) e uma dimensão moral (focada em dominações institucionalizadas de classe, gênero e raça), mas também uma dimensão ético-estrutural que diz respeito à falta de autodeterminação coletiva no que se refere a questões econômicas centrais que moldam profundamente a forma de vida abrangente, sobretudo a questão do controle e do emprego do excedente social. E, em relação à contestação política do capitalismo, Fraser também inova ao afirmar que há uma crise de legitimação em curso, uma crise da hegemonia (do senso comum político) neoliberal, sendo que, em artigo publicado três anos antes, afirmara que faltava precisamente tal crise de legitimação.
4 As obras mais emblemáticas da fase anterior da crítica do capitalismo de Fraser são: Fraser & Honneth (2003) e Fraser (2013).
5 Ver, por exemplo, os seguintes artigos: Fraser (2014), Fraser (2018a), Fraser (2016), Fraser (2018b), Fraser (2018c), Fraser (2020).
6 Ver Jaeggi (2014), Jaeggi (2008), Jaeggi (2015), Jaeggi (2018a), Jaeggi (2018b), Jaeggi (2017).
José Ivan Rodrigues de Sousa Filho – Universidade Federal de Santa Catarina. E-mail: ivanrsfilho@hotmail.com
O velho Marx: uma biografia de seus últimos anos (1881-1883) | Marcello Musto
Karl Marx seguramente figura entre os autores mais debatidos e analisados nos últimos cem anos. A vasta bibliografia que toma o pensamento de Marx por objeto poderia sugerir que falta pouco a ser dito de forma original. No entanto, a produção intelectual em torno de Marx parece escapar a este itinerário lógico e surge como uma fonte inesgotável de reflexões que, de diferentes maneiras, segue instigando e propiciando um renovado debate. É esta capacidade de constante atualização que alimenta as diversas tradições no âmbito das culturas marxistas e, mesmo, o renovado (e variado) interesse do pensamento crítico de forma geral.
Se é inegável, por um lado, que a vida e obra de Marx jamais deixaram de ser objeto de pesquisa ao redor do mundo, por outro, no período aberto após o fim da União Soviética e o ocaso do chamado “socialismo real”, o legado do pensador alemão parecia encontrar-se numa encruzilhada fatal. A crise econômica de 2008 mudou sensivelmente este cenário, renovando o interesse em Marx e o afirmando como um dos autores mais debatidos no século XXI. Não apenas suas análises e elaborações teóricas ganharam um novo impulso junto ao grande público, mas também sua trajetória de vida desperta curiosidade, como atesta o sucesso do filme O jovem Karl Marx, dirigido por Raoul Peck e lançado em 2017. Neste contexto, o livro O velho Marx: uma biografia de seus últimos anos (1881-1883), escrito por Marcello Musto e publicado em 2018 pela editora Boitempo, surge como uma importante contribuição na busca por preencher lacunas e por aprimorar a nossa compreensão do legado de Marx. Leia Mais
Gênero e Desigualdades: os limites da democracia no Brasil | Flávia Biroli
Como garantir a maior participação política (nas diferentes esferas) das minorias? De que maneira é possível superar as dificuldades enfrentadas pelas mulheres (como limitação temporal, causada pelo acúmulo de responsabilidades do trabalho doméstico, cuidado e maternidade) para um maior envolvimento político? Que direitos ainda são negados às mulheres e às pessoas LGBTQI+ pela democracia 1 brasileira? Como os feminismos têm contribuído para uma sociedade mais igualitária no que tange aos direitos e à participação política? Quais foram os avanços, os limites e as desigualdades ao longo das últimas décadas no Brasil? Essas e muitas outras questões foram respondidas por Flávia Biroli no livro Gênero e Desigualdades: os limites da democracia no Brasil, publicado no ano de 2018, no qual enfatiza, como anunciado no título, as limitações, as desigualdades e as relações de gênero presentes na democracia brasileira, a partir de uma análise que entrelaça local/global e as diferentes teorias feministas.
Flávia Milena Biroli Tokarski é formada em Comunicação Social pela Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita (UNESP), e possui mestrado e doutorado em História pela Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP). Ao longo de seus anos de pesquisadora e professora no Instituto de Ciência Política da Universidade de Brasília (UnB), tem se dedicado às temáticas da democracia, política, estudos de gênero e teoria feminista, sobretudo, com enfoque nas áreas de mídia e política. Suas principais publicações, além do livro resenhado aqui, são: Caleidoscópio convexo: mulheres, política e mídia (2011, publicado com Luis Felipe Miguel), Autonomia e desigualdades de gênero: contribuições do feminismo para a crítica democrática (2013), Família: novos conceitos (2014) e Feminismo e Política (2014, também com Luis Felipe Miguel). Leia Mais
O Velho Marx: uma biografia de seus últimos anos (1881-1883) | Marcello Musto
Nas últimas décadas, sobretudo após o desmembramento da URSS, muitos críticos do marxismo alçaram sucesso editorial. Não foram poucos os que, assim como Francis Fukuyama, declararam “o fim da História”. O que se seguiu foi uma recusa às abordagens e aos conceitos que adotavam uma interpretação a partir das estruturas socioeconômicas e da categoria de “classe”, para uma divisão das pautas sociais e temas que movimentos políticos, mais individualizados e fragmentados, apropriaram-se a partir de uma perspectiva liberal. Nessa conjuntura, certos clichês acadêmicos foram repetidos à exaustão, a ponto de perder sua base crítica. Reducionismos recorrentes acerca do marxismo defendiam que essa corrente de pensamento seria economicista, determinista, eurocêntrica e teleológica.
Novas pesquisas e trabalhos de divulgação buscam contribuir para o campo teórico do marxismo, que sempre se mostrou muito rico em argumentos socioeconômicos e em percepções histórico-conjunturais. É nesse sentido que o trabalho O Velho Marx: uma biografia de seus últimos anos (1881-1883), publicado no Brasil pela editora Boitempo, em 2018, do sociólogo e filósofo italiano Marcello Musto, é essencial para fortalecer os campos de pesquisa das humanidades, sobretudo a pesquisa histórica, com o propósito de superar os limites impostos pelos chavões já mencionados. Leia Mais
Olga Benario Prestes: uma comunista nos arquivos da Gestapo | Anita Leocadia Prestes
Publicado em abril de 2017, quando completam 75 anos da morte de Olga Benário, o livro Olga Benário Prestes: uma comunista nos arquivos da Gestapo não é o primeiro trabalho em que a historiadora Anita Leocadia Prestes se dedica ao reconhecimento da história de luta que é herdeira, possuindo sólida bibliografia publicada sobre o trabalho e a vida política de Luiz Carlos Prestes, com quem dividiu por décadas, para além dos laços de sangue, a trajetória de luta pela causa comunista.
Nesse novo trabalho a autora se dedica à história de sua mãe, Olga Benário, militante comunista assassinada pelo governo nazista, após sofrer anos de prisão e trabalho forçado em campos de concentração. Anita Prestes nos apresenta a história de luta e resistência da jovem Olga, acessível por meio da documentação organizada em oito dossiês da Gestapo, que somam cerca de duas mil páginas sobre a prisioneira Olga Benario (Processo Benario). O dossiê em questão abarca o período de cerca de seis anos em que Olga esteve sob custódia da Polícia Secreta Alemã. A obra de Anita Prestes é resultado da pesquisa a essa documentação, digitalizada e disponibilizada para consulta pública desde 2015 por meio do Projeto Russo-Alemão para digitalização de documentos alemães nos arquivos da Federação Russa. Leia Mais
Diferença entre a filosofia da natureza de Demócrito e a de Epicuro – MARX (C)
MARX, Karl. Diferença entre a filosofia da natureza de Demócrito e a de Epicuro. Tradução de Nélio Schneider. São Paulo: Boitempo, 2018. Resenha de: RECH, Moisés João; TAUFER, Felipe. Conjectura, Caxias do Sul, v. 24, 2019.
Karl Marx, nascido em 5 de maio de 1818, em Trier, província alemã do Reno, estudou Direito na Universidade de Bonn e, em 1841, doutorou-se em Filosofia pela Universidade de Jena. Sua tese de doutoramento corrobora essa sua afinidade com o estudo filosófico, embora revele um Marx muito diferente do militante comunista. Marx escreve sua tese sob uma Prússia arcaica, com o objetivo de assumir o cargo de professor na Universidade de Berlim, que foi frustrado em razão da situação política prussiana.
Sua tese de doutorado, Diferença entre a filosofia da natureza de Demócrito e a de Epicuro, ganhou sua tradução para o português através da editora Boitempo. Com tradução direta do alemão, o texto conserva a afinidade com o original e proporciona acesso a mais um escrito para os leitores de língua portuguesa daquele que foi um dos principais intelectuais e revolucionários do século XIX.
A tese não é um corpo literário único em razão de ter sido encontrada incompleta, mas, a despeito da incompletude, ela revela um antigo projeto de Marx de resgatar as filosofias epicuristas, estoicas e céticas, de destacá-las como chave para compreender a filosofia grega em geral, haja vista que eram tidas como resquícios pós-aristotélicos “sem importância” para a história da filosofia.
A tese é dividida em duas partes: a primeira, intitulada “Diferença entre a filosofia da natureza de Demócrito e a de Epicuro em termos gerais”, conta com cinco capítulos. Porém, o Capítulo IV apresenta a exposição de notas dispersas de Marx, e o Capítulo V, que se destinaria à síntese da primeira parte, foi totalmente extraviado. Esse ponto é uma certa interrupção no manuscrito. A segunda parte, intitulada “Diferença entre a filosofia da natureza de Demócrito e a de Epicuro em termos específicos”, apresenta cinco capítulos completos. O achado incompleto ainda conta com um apêndice sobre a polêmica entre Plutarco e Epicuro.
No primeiro capítulo da primeira parte, Marx estabelece seu objeto de estudo. “Parece suceder à filosofia grega o que não deve suceder a uma boa tragédia: ter um fim insosso”. (p. 29). Com essas palavras, Marx busca indicar que Aristóteles, para certos intérpretes da história da filosofia, marcou o fim da filosofia grega, assim, “epicuristas, estoicos e céticos são encarados como um suplemento quase inconveniente, totalmente desproporcional a suas formidáveis premissas”. (p. 29). Dessa forma, mediante questionamentos à tradição filosófica e à concepção hegeliana apresentada em sua Introdução à história da filosofia, Marx ressalta a importância desses sistemas filosóficos sob o argumento de que são esses mesmos sistemas “arquétipos do espírito romano, a forma em que a Grécia migrou para Roma”. (p. 30). Em outras palavras, se os sistemas pré-socráticos “são mais significativos e mais interessantes pelo conteúdo” (p.31), os pós-aristotélicos “o são pela forma subjetiva” (p. 31), que consiste no suporte espiritual dos sistemas filosóficos, quase esquecido por suas “determinações metafísicas”. (p. 31).
Trata-se, para Marx, de demonstrar como a diferença entre os sistemas de Demócrito e de Epicuro deve ocupar um lugar maior na discussão metafísica da história da filosofia. Por razões de economia textual, reserva-se para uma análise mais detalhada a exposição total desses dois sistemas e a relação com a filosofia grega em geral. Com efeito, a especificidade da proposta de Marx é somente a relação entre a o núcleo da filosofia da natureza de Demócrito e Epicuro, e, por essa razão, o autor denuncia o preconceito arraigado à identificação da física democrítica com a epicurista.
No segundo capítulo da primeira parte, “Pareceres sobre a relação entre a física de Demócrito e a de Epicuro”, Marx cita comentários de Posidônio, Nicolau e Sólon a respeito da filosofia da natureza de Demócrito e Epicuro. Ainda apresenta como Cícero, Plutarco e Leibniz criticam a filosofia epicurista em benefício da democrítica. Assim, finaliza o capítulo mostrando que todos esses estudantes de filosofia de natureza antiga “concordam em que Epicuro tomou sua física emprestada de Demócrito”. (p. 36).
Na sequência, em “Dificuldades quanto à identidade da filosofia da natureza de Demócrito e Epicuro”, encontra-se um esboço de contraste entre as duas filosofias. Trata-se de um capítulo de maior importância dentro da economia discursiva da obra em razão de ser e embasamento para o argumento central de Marx. A primeira divergência salta à vista na questão da “verdade e convicção do saber humano”. (p. 37, grifo no original). Marx contrapõe o ceticismo de Demócrito desenvolvido na concepção de como “se determina a relação entre o átomo e o mundo que se manifesta aos sentidos” (p. 38, grifo no original) ao dogmatismo de Epicuro. Tudo se passa como se Demócrito assumisse que a aparência do mundo sensível é subjetiva, pois os verdadeiros princípios são o átomo, e o vácuo e tudo o mais é opinião. (p. 38). O fato é que a dogmática de Epicuro toma o mundo como manifestação objetiva. Afinal, nada pode contradizer as sensações. (p. 40).
A segunda divergência: “a relação entre a ideia e ser, o relacionamento de ambos”. (p. 46, grifo no original). Para Marx Demócrito entende que a “a necessidade se manifesta na natureza finita como necessidade relativa, como determinismo”. (p. 51, grifo no original). A contraposição, dessa vez, reside no fato de Epicuro afirmar que “acaso é uma realidade que só tem valor de possibilidade”. (p. 52). O acaso, como uma possibilidade abstrata, é o que torna os fenômenos físicos possíveis, e não, necessários. Admitido todo o possível, como possível tem-se que “o acaso do ser apenas é traduzido em acaso do pensar”. (p. 53, grifo no original). Eis outra dificuldade para quem visa a identificar as duas filosofias da natureza. Aqui mora a tal interrupção no manuscrito.
Na segunda parte, “Diferença entre a filosofia da natureza de Demócrito e a de Epicuro em termos específicos”, Marx diferencia as características do átomo no vácuo em Epicuro e Demócrito. Para o primeiro, há uma tríplice característica: a) queda em linha reta; b) desvio em linha reta; e c) repulsão dos muitos átomos. Para o segundo não há a possibilidade de um “desvio em linha reta”. Essa característica atribuída por Epicuro ao átomo é determinante na diferenciação de sua física em relação à de Demócrito.
A “declinação do átomo” – que Marx designará como a “alma do átomo” – é a particularidade abstrata que possibilita a autonomia do movimento; a possibilidade de liberdade e contingência – ao contrário da necessidade de Demócrito. (p. 78-79). Enquanto Demócrito atribui ao átomo um “princípio espiritual” (p. 78), Epicuro desenvolve a noção de declinação – de desvio em linha reta como possibilidade da contingência e da liberdade na física. “A particularidade abstrata só pode operar seu conceito […] abstraindo da existência com que ela se depara”. (p. 79, grifo do autor).
De fato, o desvio é uma libertação de sua existência relativa da linha reta. Marx destaca que “a contradição entre existência e essência, entre matéria e forma, que reside no conceito de átomo, está posta no próprio átomo individual, quando este é dotado de qualidades […] o átomo é estranhado no seu conceito”. (p. 101). Outra maneira de dizer que a natureza contraditória do conceito de átomo deriva das qualidades – tamanho, forma e peso – adotadas pela posição de Epicuro, em contraposição à Demócrito que ignora tal contradição. Para Epicuro é “por meio das qualidades, [que] o átomo adquire existência que contradiz seu conceito, [e] é posto como existência exteriorizada, diferenciada de sua essência”. (p. 86, grifo do autor). Essa diferenciação faz a contradição no conceito de átomo alcançar “sua mais gritante realização”. (p. 101).
No capítulo sobre o tempo, há uma argumentação a respeito da natureza do tempo. Em Demócrito o tempo é irrelevante para o átomo. Não tem função em seu sistema. Mas, quando a consciência filosófica questiona se a substância (átomos) é temporal invertem-se os termos: o tempo torna-se algo substancial, i.e., suprime seu conceito. (p. 103-104).
Na contramão, para Epicuro o tempo está ausente do mundo da essência, assim “torna-se a forma absoluta da manifestação”. (p. 104, grifo do autor). Marx destaca que o tempo é determinado como accidens do accidens, “é a mudança enquanto mudança refletida em si mesma, variação como variação”. (p. 104). Significa dizer que o tempo não existe em si, mas enquanto uma decorrência (acidente) do movimento e do repouso, ele é a “mutabilidade do mundo sensível agora como mutabilidade, sua variação como variação, essa reflexão da manifestação em si mesma, formada pelo conceito de tempo, tem sua existência isolada na sensualidade consciente” (p. 105), a sensualidade do ser humano é “o tempo encarnado, a reflexão existente do mundo dos sentidos em si mesma”. (p. 105, grifo do autor). Marx deixa claro que para Epicuro o tempo, como accidens do accidens, é determinado pelos acidentes dos corpos percebidos pelos sentidos, em que “a percepção dos sentidos refletida em si é, aqui, portanto, a fonte do tempo e o próprio tempo” (p. 106); pois a reflexão dos acidentes na percepção dos sentidos humanos e sua reflexão em si mesmos são a mesma coisa. (p.107).
Em “Os meteoros”, há uma crítica às concepções astronômicas de Demócrito sobre os corpos celestes, pois “não há como extrair delas alguma coisa filosoficamente interessante”. (p. 111). A teoria dos meteoros de Epicuro demonstra ser mais profícua para debates filosóficos contemporâneos. Em oposição a todo o pensamento filosófico grego – especialmente de Aristóteles –, que estabelecia uma ligação entre os corpos celestes e os deuses e suas qualidades, Epicuro afirma que é uma tolice humana atribuir a Atlas a sustentação do céu, ou seja, é uma tolice humana divinizar os corpos celestes. (p. 115). Além disso, a teoria dos meteoros de Epicuro tem uma forte vinculação ética, o que não é raro para o pensamento grego que estabelecia uma ligação entre cosmo e polis. Assim, Marx afirma que “essa teoria é, para Epicuro, questão de consciência”. (p. 115).
Para Epicuro a teoria dos meteoros carrega a possibilidade, por outros meios, de fundamentar uma ética. Sendo assim, Marx defende que “essa teoria é, para Epicuro, questão de consciência”. (p. 115). Dessa forma, salta à vista uma tese de fundo: ao estabelecer as diferenças entre Demócrito e Epicuro, Marx encontra a autoconsciência da filosofia epicurista. (p.
31). Se para Epicuro a contradição entre forma e matéria, entre essência e aparência é constitutiva da possibilidade de declinação do átomo e, por consequência, da liberdade, logo se percebe que, nos corpos celestes, “foram resolvidas todas as antinomias entre forma e matéria, entre conceito e existência, que constituíra o desenvolvimento do átomo” (p. 121); de tal forma que os meteoros “declinam da linha reta, formam um sistema de repulsão e atração”. (p. 122).
Os corpos celestes são os átomos que se tornam reais, uma vez que a particularidade foi interiorizada, e a contradição, cessada. Contudo, no momento da reconciliação entre forma e matéria, a autoconsciência da “forma abstrata” se “proclama como o verdadeiro princípio, hostilizando a natureza que se tornou autônoma”. (p. 123). Os meteoros são a própria universalidade na qual a natureza se torna autônoma. Em contrapartida, sua constituição pela “forma abstrata” origina a particularidade abstrata que é a autoconsciência em sua ataraxia. (p. 124). “A absolutidade e a liberdade da autoconsciência constituem o princípio da filosofia epicurista”. (p. 124).
Ao final da obra, há um apêndice com o título “Crítica à polêmica de Plutarco contra a teologia de Epicuro” do qual restaram apenas fragmentos do texto original. Nesse apêndice, Marx faz remição direta a textos de Kant e Schelling, uma das poucas vezes que cita diretamente textos desses dois filósofos do idealismo alemão, ao tratar sobre a prova ontológica de Deus.
O texto revela um jovem em sua formação intelectual, com preocupações muito distantes das que o tomarão, na maturidade; mas revela igualmente nova dimensão de seu pensamento, que auxilia na reconstituição e reapropriação de seu legado intelectual: um materialismo que se abre à liberdade. A recente publicação em português da tese de doutoramento de Marx vem auxiliar os pesquisadores e estudiosos marxianos, além de contribuir, fundamentalmente, com o aprofundamento de suas ideias e de sua figura no cenário nacional.
Moisés João Rech – Docente do curso de Direito da Universidade de Caxias do Sul (UCS). Mestre e Bacharel em Direito pela Universidade de Caxias do Sul (UCS). Doutorando em Filosofia pelo PPGFil-UCS. Integrante do Observatório do Direito da mesma instituição. E-mail: mjrech7@gmail.com
Felipe Taufer – Mestre em Filosofia e Bacharel em Administração pela Universidade de Caxias do Sul (UCS). Doutorando em Filosofia pelo PPGFil-UCS. E-mail: fe.taufer@hotmail.com Orcid ID: http://orcid.org/0000-0002-4137-9999
Cidades sitiadas: o novo urbanismo militar GRAHAM (RTF)
GRAHAM, Stephen. Cidades sitiadas: o novo urbanismo militar. São Paulo: Boitempo, 2016. Resenha de: PIRES, João Augusto. Engenharias da guerra cotidiana. Revista Territórios & Fronteiras, Cuiabá, v. 11, n. 1, jan.-jul., 2018.
Vou ao mercado e sou interpelado pela balconista que solicita meu C.P.F (Cadastro de Pessoas Física). Os números ditados me mapeiam. Fornecem os dados necessários para que o mercado me localize no espaço global. Atento a esse risco, desligo o GPS do meu smartfone e saio a caminhar entre a multidão da cidade. Andando pela área central de Campinas/SP, iludido pelo anonimato na multidão, percebo olhos mecânicos acompanhando os meus e demais passos apressados. Distante da massa, no enclausuro quase sempre solitário do âmbito doméstico, agoniado com o sentimento de medo do outro, pago, conforme o combinado, um miliciano que circula nos quarteirões do bairro em que moro. Cansado do estado de vigília, procuro nas escuras salas de cinema o lançamento do mês. Mais uma vez um filme hollywoodiano, agora chamado “Os vingadores”.
As imagens lançadas nessa micro-história talvez não sejam nenhum exagero. O medo, (de)compostos com os mecanismos de vigilância, povoam, em diferentes proporções, a vida cotidiana de todos. Portanto, a compreensão das relações sociais e dos dispositivos simbólicos e materiais que montam essa realidade pressupõem algo além de seis segundos de atenção. As complexas dinâmicas e faces assumidas pelo capitalismo na contemporaneidade exigem, como antes, obras de fôlego capazes de revelar as conexões do nosso sistema mundial integrado. Eis o que promove a coleção “Estado de Sítio”, editada pela Boitempo e sob coordenação do filósofo Paulo Arantes.
A parceria entre a editora e o consagrado pensador nos brinda com excelentes trabalhos, nacionais e internacionais, os quais inspiram a reflexão – a la izquierda – sobre questões pulsantes no social. Participam do conjunto, por exemplo, Cinismo e falência da crítica, escrito por Vladimir Safatle o qual se preocupa com a racionalidade cínica em nossa vida social. Rituais de sofrimento, de Silvia Viana, que se interessa pelos reality shows e a ritualização do sofrimento do outro, como também soma ao seleto grupo de escritos que pensam o atual estado de sítio o trabalho de Paulo Virilio, Guerra e cinema, que discute a relação intrínseca entre a sétima arte e os conflitos bélicos.
Dentre essas e tantas outras produções, Cidades Sitiadas: o novo urbanismo militar, assinado pelo professor da Universidade de Newcastle, Stephen Graham, contribui com a proposta lançada pelo grupo editorial e nos possibilita a reflexão sobre a convivência das tecnologias de guerra no espaço urbano. Operando com um arcabouço teórico capaz de esmiuçar a infinidade de vestígios e estilhaços da guerra urbana, Graham, nos deixa ver as operações discursivas, o investimento financeiro e os impactos culturais proporcionados pelo desejo bélico na sociedade contemporânea.
Com a ideia foucaultiana de “efeito bumerangue” em mãos, o autor consegue lançar críticas sobre as estratégias e armas desenvolvidas para os conflitos bélicos no Oriente Médio que retornam as cidades dos centros capitalistas do Norte reforçando uma sensibilidade beligerante, a qual se antecipa com seus carros fortes, arquiteturas e treinamentos virtuais para o combate eminente. Nesse mesmo sentido, Graham recupera os relatórios das agências de investimento e pesquisa em armas nos Estados Unidos e Israel apresentando a promíscua relação entre a iniciativa privada, o pentágono e o corpo militar do exercito norte-americano. Munido dessas informações, analisa a maneira pela qual as engenharias de guerra usadas em operações militares fora do espaço estadunidense e afins, remontam a urbe militarizada no interior destes mesmos países que promovem a guerra ao terror.
Uma quantidade significativa de documentos coletados pelo autor preenchem as páginas do livro e nos deixa ver as pulsões sensíveis que dinamizam o flanco bélico na contemporaneidade. Temos, como assinala Mike Dives, a possibilidade de compreender, a cada capítulo do livro, a “geografia urbana vista da perspectiva de um drone a 8 mil metros de altura. Um relato assombroso e fundamental a partir da zona de conflito global”. Graham, não perde de vista os games, as propagandas de agências de segurança privada, as entrevistas e reportagens assinadas pelo alto escalão militar, as conferências e relatórios técnicos do exército norte-americano, os livros, os mapas, as pesquisas quantitativas, os filmes e as tecnologias de guerra que, em conjunto, orquestram nossos conflitos cotidianos. O autor trama sua narrativa dividindo o livro em dez extensos capítulos de modo que os três primeiros se concentrem no aprofundamento da ideia do “novo urbanismo militar” – sua constituição histórica e as bases matérias que o conformam – e os demais em estudos de casos, os quais permitem uma análise pormenorizada das implicações culturais, políticas e econômicas da atual urbanização bélica.
De início percebemos já no primeiro capítulo que no decorrer do século XX “a guerra volta à cidades”, pois, como anuncia o autor, tendo um pouco mais da metade da população mundial vivendo no espaço urbano “a permeação da violência política organizada dentro e pelas cidades e pelos sistemas citadinos é complicada pelo fato de que muitas mudanças urbanas “planejadas”, mesmo em tempos de relativa paz, envolvem em si mesmas níveis bélicos de violência, desestabilização, ruptura, expulsão forçada e aniquilação de locais” (GRAHAM, 2016, p. 69). Assim, a medida que as relações sociais passam a se ambientar, cada vez mais, no interior das populosas e extensas metrópoles urbanas vemos nascer estratégias de organização imediatamente belicista. As subjetividades do ser citadino forjam-se no processo de um conflito eminente, por isso o desejo direcionado à segurança, as armas e as tecnologias de vigilância. Nesse ínterim, agências de pesquisa, o exército militar, empresas de segurança privada, universidades e o Estado tornam-se agentes protagonistas nesse contexto, haja vista que, conforme demonstra Graham, são essas instituições as principais operadoras da guerra urbana. Ao final do primeiro capítulo notamos as engenharias bélicas que servem tanto para as sofisticadas tropas combatentes no Oriente Médio quanto para as forças militares nas grandes metrópoles.
Em sequência, Graham se atêm a ordem do discurso que cria “mundos maniqueístas” dividindo o bom cidadão civilizado do ocidente e o mau bárbaro do oriente. Nesse segundo capítulo vemos as narrativas projetadas sobre o outro, as quais se sustentam em estereótipos e estigmas desumanizantes. Esse discurso, anota o autor, “de ‘almas perdidas’ em ‘cidades perdidas’ promove um ‘outro’ essencializado demonizado” (IBID., p.103), por isso passível de apreensão ou mesmo de morte. Notase que este alguém, antes distante, pertencente a etnias, facções ou Estados nacionais longínquos, no mundo global em que imperam, paulatinamente, as regiões metropolitanas cosmopolitas, vive agora na esquina ao lado. Deste modo, formam-se geografias, reais e imaginadas, com um sentimento de ódio, dissolvido entre às pulsões xenófobas, racistas e homofóbicas. O espaço urbano, “invadido” pelo diverso e diferente, quando insuflado pelos discursos raivosos, passa a uma progressiva negação por determinada ala conservadora da população estadunidense – muitos deles eleitores do partido republicano e entusiasta das políticas do ex-presidente George W. Bush.
Acredita, segundo relato extraído por Graham da Naval War College Review, que “esse ambiente urbano em expansão se tornou hoje uma vasta coleção de prédios deteriorados, uma imensa placa de Petri de doenças antigas e novas, um território onde a lei há tempo foi substituída pela quase anarquia, em que a única segurança possível é a obtida pela força bruta.” (IBID., p.113). As cidades, do extremo oriente e das capitais monetárias do Norte, tornam-se, nesse início de século XXI, ícone do confronto ao terror, dessa forma as “zonas selvagens” que contaminam o urbano estão passíveis de serem sítidas, quando não controladas e vigiadas pelos agentes da ordem.
Após apresentar os dados e as investidas bélicas no urbano no decorrer do século XX e início do XXI e atentar-se, no segundo movimento do texto, às tramas discursivas que sustentam as operações militares nesse espaço, no terceiro capítulo, Graham dedica-se a sua tese do “novo urbanismo militar”. As páginas que compõem essa parte são centrais para o desdobramento do restante do livro, haja vista que o autor empenha em demonstrar as bases do atual imaginário urbano e a maneira pela qual ele está circunscrito a um culto bélico, em distintas dinâmicas e proporções, na sociedade contemporânea. Aqui vemos Graham estreitar as relações teóricas entre Foucault, Deleuze, Agamben e Davis para construir o argumento dos sete elementos constitutivos, que inter-relacionados, configuram essa nova realidade militar do espaço urbano.
Prefigura dentre os dispositivos simbólicos desse ambiente a contraposição do rural, ligado ao nacionalismo e o bem-estar autêntico para o militarismo patriótico, contra o urbano promíscuo e degradante, onde também há a presença do outro selvagem. Esse sentimento, relacionado a uma prática de controle comercial e militar, compõem com as tecnologias de informação as quais interagem construindo uma subjetividade “cidadão-consumidor-soldado”. Conforme anota Graham, “poucas pessoas levam em consideração como os poderes militares e imperiais permeiam todos os usos do GPS” (IBID., p. 128), pois nesse estado de sítio, importa identificar, rastrear, mapear e manter corpos e circulações sob controle. Nesse sentido, a mídia cumpre importante tarefa nessa composição, tendo em vista que a espetacularização da guerra fica a cargo das grandes corporações da imprensa as quais ratificam os discursos bélicos. Isso, por sua vez, implica no surto de segurança o qual favorece a rápida expansão de corporações militares privadas – “Os gastos internacionais com segurança interna hoje ultrapassam ramos estabelecidos, como a indústria cinematográfica e a indústria musical, em receita anual” anuncia a edição de dezembro de 2007 do Economic Times da Índia” (IBID., p.139). Esse elemento converte finanças para a segurança privada e de espaços privilegiados do urbano – condomínios, edifícios, shoppings e etc. –, mas também cria um ramo de negócio no qual investe na infraestrutura hipermilitarizada de pontos de fluxo e conexão do mercado global – portos, aeroportos, bolsa de valores, arenas de esporte e etc. As fronteiras das “cidades mundiais” estão sob a mira da alta tecnologia, pois “as arquiteturas da globalização se fundem perfeitamente nas arquiteturas de controle e guerra” (IBID., p.143). Por último, Graham destaca a combinação do nacionalismo ressurgente pós 11 de setembro e o uso permissivo da força militar, no mesmo instante e proporção, em determinadas áreas das cidades norte-americanas e do Oriente Médio. Portanto, a “disjunção entre soldados rurais e guerras urbanas, a indiferenciação de tecnologias de controle civis e militares, o tratamento de ataques contra cidades como eventos de mídia, o surto de segurança, a militarização do movimento [entre as zonas de mercado], as contradições entre culturas nacional e urbana de medo e comunidade, e as economias políticas dos novos espaços estatais de violências” (IBID., p.155), interagem e orquestram as experiências do novo urbanismo militar.
Nos capítulos dedicados a estudos específicos, Graham retoma as ideias trabalhadas nas primeiras partes do livro e lança mão, no quarto ponto em especial, do conceito das “fronteiras onipresentes” para demonstrar a organização de sistemas digitais de segurança conectados em escala global, capaz de cartografar, separar e controlar mercadorias e pessoas. Vemos o trabalho de “mineração de dados” pessoais usados para a criação de fronteiras seguras garantidas por bases biométricas. No capítulo seguinte o desconforto se atenua, pois Graham nos deixa diante dos “sonhos de um robô da guerra” cultivado pelas agências de inteligência, governo e exército norte-americano. A cada subitem lemos as operações militares organizadas para o progresso das tecnologias de guerra. O autor assinala os desejos que impulsionam as criações de armas biológicas, soldados robôs, equipamentos inteligentes e computadores de guerra para o controle e eliminação do outro. No sexto capítulo, “Arquipélago de parque temático”, Graham volta a atenção as construções urbanas e os games usados para treinamento militar. Acompanhamos o investimento na constituição de pequenos núcleos urbanos estruturados para a simulação de cidades árabes, os quais, muita das vezes, estão servidos de civis figurantes ou de simuladores gráficos interativos. Nesse entremeio, o autor demonstra a relação entre a indústria de jogos eletrônicos e as forças militares estadunidense, uma troca intensa de estímulos haja vista que essas empresas aprimoram, em termos psíquicos, a experiência de guerra – “de fato, 40% daqueles que se alistam no Exército já tinham jogado America’s Army.” (IBID., p.282). Em “lições de urbicídios” e “desligando cidades”, sétimo e oitavo capítulo respectivamente, Graham demonstra a estratégia de eliminação de espaços urbanos operados, principalmente no Oriente Médio, na Faixa de Gaza e Cisjordânia em especial, pelos exércitos estadunidense e israelense. Nos deparamos com as altas cifras investidas na destruição ou na inoperação do espaço urbano. O penúltimo capítulo ganha a cena os modelos automobilísticos de Veículos Utilitários Esportivos (SUV, sigla em inglês) que retroalimentam o imaginário de guerra no espaço urbano.
Graham, revela como esses carros estão intrinsecamente ligados ao pensamento bélico que se evidencia na sua forma estética e força mecânica. A indústria petroleira e as marcas de automóveis também operam na mesma lógica da guerra, mesmo porque ter um SUV significar participar, ou de alguma maneira financiar, o confronto. Por fim, após uma assombrosa submersão nos interstícios da política bélica, no último capítulo, caminhamos entre as “Contrageografias” que tentam denunciar e desmontar o jogo comandado pela cultura de guerra nas cidades contemporâneas. Assim, Graham revela as estratégias assumidas por grupos ativistas e coletivos organizados para subversão no estado de sítio. Entusiasmado com as ocupações públicas, o autor se arrisca em formas de contra-ataque as instituições e símbolos do poder bélico.
As análises desenvolvidas pelo autor se constituem, principalmente, a partir da experiência estadunidense, em determinados momentos inglesa e israelense, e quase sempre dos conflitos orquestrados pelo governo norte-americano no Oriente Médio, com ênfase no Iraque, Afeganistão e Palestina. Vezes ou outra, Graham se arrisca em fazer paralelos com outros países de regiões mais pobres. Apesar de indicar, logo na introdução, o percurso metodológico, as mediações teóricas e os objetivos do trabalho, os quais, diga-se de passagem, contribuem para aqueles(as) que queiram pensar os conflitos urbanos na contemporaneidade, o enfoque dados nos capítulos me obrigou a reler e a somar informações – mesmo que o autor e tradutor cuidasse de alguns pontos necessários – sobre a conjuntura política dos Estados Unidos, bem como os pormenores dos conflitos na região do meio Oriente. Os impasses com a contextualização se formava devido a composição do livro feita por textos acadêmicos, alguns publicados em periódicos, outros expostos em palestras e comunicações, direcionados a um público minimamente habituado com a temática. Informações complementares ou lacunares durante a leitura, foram feitas por minha conta, isso se deve porque o lançamento em inglês, datado de 2010, foi arranjado para a massificação das ideias de Graham entre os anglófonos que convivem com os alardes dos noticiários de guerra, os conflitos urbanos e as experiências de alto controle e segurança em seus respectivos países. Detalhes que possibilitam uma melhor visualização das políticas de segurança pública no EUA, as leis antiterror, as relações entre o Estado norte-americano e a indústria bélica, são alguns aspectos que, para aqueles que estão na região sul da América, talvez sejam indispensáveis para o entendimento dos pormenores das ideias lançadas pelo autor.
Além dessa consideração, acrescento que apesar da potente abordagem, colocando diferentes áreas das ciências humanas em dialogo, ele deixa algumas lacunas em suas análises. Penso em especial na contribuição historiográfica para o saber urbanístico, o qual confrontaria, em certa medida, a noção de “novo urbanismo militar”, haja vista que a ideia de militarização do espaço urbano prescreve a tempos remotos.
Apesar de citar brevemente, no primeiro capítulo, importantes referências da História que observam as cidades no período dos impérios coloniais, o autor não leva a adiante os estudos sobre as restruturações urbanas e as influências dos saberes médicos e militares no desenho das cidades modernas. Uma devida atenção a esta bibliografia lhe acrescentaria argumentos para pensar o vínculo histórico intrínseco entre formas de controle, em grande medida militarizados, e o espaço urbano. Os itens defendidos, no terceiro capítulo principalmente, como princípios do novo urbanismo formulam-se a partir de um contingente histórico o qual mereceria maior atenção.
Termino de ler o livro, ligo o computador para me distrair nas infovias e me (as)salta os olhos na primeira tela a oferta do mês – “livros com 25% de desconto, só aqui na livraria X”. Nas horas seguintes é anunciado em meu celular a feira de livros que ocorrerá na próxima semana com uma estante de publicações da Boitempo. Logo após enviar, via e-mail, para um amigo a resenha que preparei sobre o livro de Graham, o Youtube me apresenta um cardápio de palestras, entrevistas e conversas com o autor. Fui, novamente, rastreado.
João Augusto Neves Pires1 – Endereço profissional: Rua Ariovaldo Silveira Franco, 237 – Mirante, Mogi Mirim – SP, 13801-005 E-mail prof.joaoneves@gmail.com .
Sem maquiagem: o trabalho de um milhão de revendedoras de cosméticos / Ludmila C. Abílio
O Brasil é, hoje, o terceiro maior mercado mundial de produtos de higiene pessoal, perfumes e cosméticos. Segundo dados do setor, no ano de 2013, o país ficou atrás apenas dos Estados Unidos e do Japão e à frente de gigantes como a China. A previsão é que o Brasil ocuparia, até o primeiro semestre de 2016, o segundo lugar no ranking. No Brasil, a campeã de vendas nesse setor é a Natura. A enorme quantidade de pessoas vendendo produtos cosméticos revela o crescimento exponencial desse setor. No mundo são cerca de 95 milhões de vendedoras. O Brasil tem, atualmente, 4,5 milhões. Somente a Natura tinha, em 2007, 400 mil pessoas revendendo seus produtos. Em 2014, já tinha chegado à marca de 1,3 milhões. O sucesso da Natura adveio, principalmente, da adoção, desde 1974, do “Sistema de Vendas Diretas” (SVD). As vendas nesse formato não exigem postos físicos de trabalho; elas ocorrem através de relações interpessoais, com “consultoras” que vão de porta em porta apresentar os catálogos aos clientes. Esse sistema é antigo no Brasil, mas, no último decênio cresceu de modo avassalador. O Brasil ocupa hoje a quarta posição nessa área, ficando atrás apenas dos Estados Unidos, Japão e China. O volume de negócios do setor movimentou mundialmente o montante de US$ 169 bilhões em 2013; no Brasil chegou à marca de R$ 41,6 bilhões.
Vendo esses expressivos números, uma pergunta logo vem à baila: será que o crescimento do setor de perfumes e cosméticos no Brasil está sendo acompanhado no mesmo ritmo de melhorias salariais e de trabalho para os indivíduos que dele fazem parte?
Será que o negócio do SVD, que vem crescendo em ritmo galopante, tem realmente gerado lucros e benefícios para os revendedores, conforme divulgam amplamente as empresas que operam nesse sistema? O recente livro de Ludmila Costhek Abílio aponta que não.Escolhendo como objeto de estudo uma das mais importantes empresas de cosméticos do país, a Natura, a autora revela que a empresa tem conquistado lucros exorbitantes adotando uma “estratégia de negócios” que acarreta inúmeras condições adversas para quem está na ponta –baixa remuneração, informalidade, indistinção entre tempo de trabalho e de não trabalho, instabilidade, precariedade, exploração do trabalho, flexibilidade, adoecimento, sofrimento, falta de reconhecimento etc. Ludmila tira a maquiagem da Natura e revela que o SVD dessa empresa é uma atividade que, sob o amparo legal, tem a aparência de um “não trabalho”, mas que, na prática, tem a concretude de um trabalho pesado, precário, extremamente extenuante, ausente de normas e de vínculos empregatícios reconhecidos, e o mais grave: “não pago”.
A pesquisa de Ludmila desnuda friamente a “contradição” que permeia a relação entre a Natura e as revendedoras: de um lado, a “visibilidade” da marca; de outro, a condição “invisível” das consultoras, que estão em toda parte, mas que não têm o trabalho reconhecido, nem visto como tal. Em outras palavras, o que fica visível na relação entre a Natura e o seu exército de um milhão de revendedoras (menos de 5% dos consultores são homens) é que muito embora essas mulheres não sejam reconhecidas como trabalhadoras pela empresa, a verdade é que sem elas os atuais lucros da Natura não existiriam. A Natura conseguiria manter o mesmo valor de mercado e a sua alta margem de lucro se assalariassem um milhão de revendedoras com direitos e garantias trabalhistas? A resposta de Ludmila Abílio é, obviamente, um “não”,pois a acumulação,o sucesso comercial e os lucros galopantes da Natura advêm justamente da exploração do trabalho, da flexibilização, da extração de valor do excedente, da informalidade, ou seja, do duro trabalho “não pago” às revendedoras.
Na primeira parte da obra, Ludmila realizou um fecundo panorama sobre os perfis socioeconômicos das “profissionais” e a relação que elas mantinham com as vendas. Para atingir o seu objetivo, a autora realizou entrevistas com consultoras das mais variadas regiões e posições sociais. Ao longo da pesquisa, Ludmila percebeu que o perfil socioeconômico das revendedoras é bastante heterogêneo, englobando estratos da classe baixa, média e alta. Ludmila apontou que as pessoas de baixa renda formam a maioria das empregadas no ramo do SVD. E o motivo não é difícil de entender. Deve-se, grosso modo, à voracidade do capitalismo que aumenta cotidianamente a fileira dos desempregados e tende a puxar para baixo o poder de compra dos mais pobres. A Natura se apresenta para muitos indivíduos como uma verdadeira “tábua de salvação”. Para as mulheres que estão empregadas no trabalho formal (domésticas, faxineiras e babás, por exemplo), a Natura é tida como um complemento de renda; já para as centenas de desempregadas, ela é vista como a única fonte de renda. O que se revela surpreendente no estudo de Ludmila é que as revendedoras de baixa renda são as que amargam, no geral, tanto os “menores lucros” como os “maiores prejuízos” decorrentes dos altos índices de inadimplência. Aqui, cabe advertir que a Natura repassa para as revendedoras todos os riscos (de estocagem e de inadimplência) envolvidos na atividade.
Assim como a população pobre, a classe média também não é homogênea. Em relação à venda dos produtos, Ludmila dividiu a classe média em dois grupos. O primeiro é constituído por mulheres que fazem das vendas sua ocupação e principal fonte de renda. São mulheres que empregam vários dias da semana e horas do dia para a venda de Natura. São mulheres que trabalham duramente para subir no ranqueamento da empresa e, assim, serem premiadas com viagens, troféus, bijuterias, cosméticos etc. As entrevistas de Ludmila revelaram que, de uma maneira geral, esse grupo é formado por mulheres que largaram sua profissão para se dedicar exclusivamente à Natura. O que torna trágico para essas mulheres é o fato de que se antes a atividade gerava um razoável lucro, hoje, devido ao aumento do número de revendedoras, muitas se arrependem de terem largado o trabalho formal.
O segundo grupo de vendedoras no interior da classe média é constituído por mulheres que não apresentam a venda dos produtos da Natura como a sua principal fonte de renda. De acordo Ludmila Abílio, 70% das revendedoras da Natura têm outra atividade principal. O que, na realidade, significa horas de trabalho para além de sua própria jornada, a banalização do “trabalho para além do trabalho”. Nesse grupo estão incluídas centenas de mulheres que vendem os produtos em seus locais formais de trabalho, mas sem maiores pretensões salariais e de carreira dentro da Natura. São mulheres, portanto, que optaram por uma dupla (ou tripla?) jornada –trabalho fora de casa, trabalho de dona de casa e venda dos produtos –, combinando a venda dos produtos com outras atividades. A existência de trabalho formal e estável possibilita queas vendas dessas consultoras sejam mais estáveis e rentáveis com pequeno índice de inadimplência. De modo geral, essas mulheres, que já detém uma profissão, não procuram se qualificar como “vendedoras” da Natura. Preferem preservar a identidade de sua ocupação principal, de seu trabalho formal. As vendas aparecem para esse estrato de mulheres como passatempo ou como uma oportunidade para consumir produtos por um preço menor, apagando-se, assim, todo o complexo e cruel processo de vendas envolto.
Além de expandir seu mercado consumidor e trabalhador para as classes baixas e médias, a Natura também alcançou estratos da elite. Há poucos anos, criou o “setor Crystal” para congregar consumidoras e vendedoras de altas rendas. Este setor funciona de forma diferente dos demais. Ao invés de 500 a 800 consultoras por cidades, a Natura destina, em média, 40 apenas por área. As consultoras são mulheres jovens, de nível superior, que vêm da elite ou circulam por ela. O ingresso ao seleto grupo se dá por meio de convites.Geralmente, a venda dos produtos não ocorre por meio do catálogo, mas através de reuniões e festas organizadas pelas vendedoras. Mas, por que mulheres de alta renda procuram essa atividade? As respostas, obviamente, são diversas: para terem maior “independência financeira”; preencherem o tempo; aumentarem o círculo de amizade com as pessoas da mesma posição social; ou até mesmo porque acreditam nos valores da empresa, sua filosofia vinculada ao capitalismo verde, que cultua a “sustentabilidade” e se apresenta como “politicamente correta”. Para muitas pessoas, a Natura representa a prova do “Brasil que dá certo!”. A análise de Ludmila Abílio em relação ao comportamento das vendedoras dessa classe social é mordaz: embora não se sintam “trabalhadoras”, todas as ações envolvidas no processo de venda dos produtos levam essas socialitesdesempenharem exatamente a mesma atividade pela qual as suas empregadas domésticas recorrem para complementar a renda familiar.
Na primeira parte do livro também foram trabalhadas outras questões que atingem as revendedoras da Natura, independentemente de sua posição social. A principal delas é que as consultoras raramente sabiam identificar quanto ganhavam por seu trabalho, quanto gastavam (“investiam”) com a compra dos produtos ouquanto tempo dedicavam à atividade. No geral, as contas feitas pelas revendedoras se mostravam complicadas e confusas, pois misturavam a venda dos produtos com o consumo próprio–que, surpreendentemente, se revelou, através da pesquisa, altamente excessivo, para não dizer desnecessário. E esse consumo supérfluo tem uma explicação simples: as vendedoras da Natura são constantemente envolvidas a se tornarem elas mesmas propaganda da marca. Cabe ressaltar que, além de incentivar as vendedoras a se constituírem em vitrines vivas dos artigos que vendem (na verdade, agentes não pagas pelo marketing que realizam), o estímulo da Natura ao consumo também se dá por meio de “pontuação”, com a qual a empresa encoraja as mulheres a “investirem” em maciços estoques de produtos que, na maioria, não são vendidos. Essas mulheres se constituem, assim, no dizer de Ludmila Abílio, em “trabalhadoras-consumidoras”, à medida que trabalham para consumir e consomem para trabalhar. Vale enfatizar que o trabalho de Ludmila –embora trate da relação e da situação de trabalho de um conjunto de mulheres numa empresa específica, a Natura –não deve ser entendido como mais um “estudo de caso”. O seu trabalho extrapola em muito essa definição. E este é justamente o brilhantismo da obra, quea fez ser a vencedora, em 2013, do prêmio Mundos do Trabalho, da Associação Brasileira de Estudos do Trabalho (ABET) e do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA).
Na segunda parte da obra, Ludmila demonstrou claramente que a exploração econômica envolvida no SVD não ocorre de maneira acidental ou por acaso. A exploração faz parte da própria “gestão de negócios” das empresas desse ramo. Elas acumulam capital através da extração de valor do excedente, ou seja, acumulam capital através do duro trabalho (“não pago”) de seus próprios vendedores. Ludmila, ao tratar do caso específico da Natura, a insere nesse contexto mais amplo de exploração e precarização do trabalho que caracteriza hoje as políticas neoliberais. Ou seja, a autora parte do trabalho invisível, não reconhecido de mais de um milhão de mulheres para pensar na relação deste com a acumulação da Natura. A enorme disparidade entre o lucro da empresa e a “riqueza distribuída” para as consultoras fica visível, por exemplo, nos relatórios anuais da Natura. No Brasil, a receita líquida da Natura em 2014 foi de R$ 7,640 bilhões e o lucro líquido de R$ 732,8 milhões. No ranking das marcas mais valiosas em 2014, a Natura ficou em sexto lugar, superando, inclusive, a Petrobras. À frente da Natura estão apenas: Itaú, Bradesco, Skol, Banco do Brasil e Brahma. Por outro lado, essa bonança financeira não é sentida pelas trabalhadoras. No Relatório Anual de 2013,por exemplo, a companhia apresentou o rendimento anual médio de R$ 4.138 para as vendedoras, o que correspondia ao ganho de R$ 345 por mês. Vale salientar que, como toda média, esses números são problemáticos, pois as vendedoras não vendem necessariamente da mesma forma, nem a mesma quantia todos os meses, além de que existirem mulheres que pagam mais do que ganham por causa do assíduo consumo dos produtos.
No começo dos anos 1990, no auge das políticas neoliberais, diversas pessoas passaram a pregar basicamente duas teses. A primeira advogava a “inevitabilidade” das terceirizações, flexibilizações e desregulações trabalhistas para garantir a sobrevivência do “mercado”. A segunda dizia respeito à primazia do imaterial e à perda de centralidade do trabalho. Mas será que houve, de fato, um “adeus ao trabalho”? Ludmila responde que não. Para autora, é um equívoco pensar na tese do “fim do trabalho”. À bem da verdade, os trabalhadores estão todos aí em nosso redor –motoboys; atendentes de telemarketing; assalariados dos fast food; trabalhadores dos hipermercados; terceirizados de toda ordem, entre outros. É só olhar para os países do Terceiro Mundo –onde se encontram 2/3 da população mundial que trabalha –que se encontrará milhões desses trabalhadores. O momento atual representa uma “mutação do trabalho”, mas não a sua eliminação.
Os trabalhadores de hoje estão inseridos numa “nova morfologia” do trabalho que reduziu o operariado industrial de base taylorista/fordista e ampliou, a partir da lógica da flexibilidade toyotizada, contingentes de terceirizados, subcontratados, temporários e precarizados. Esse “novo proletariado” não está mais, em sua maioria, na indústria, mas sim no setor de serviços. O trabalho desse “novo proletariado”, just in time, toyotizado, está cada vez mais precário, intensificado, flexível, instável, rotativo, baixo remunerado, informal, desregulado e ausente de normas e vínculos empregatícios reconhecidos. São pessoas que trabalham por mais tempo, mais intensamente e também em formas que muitas vezes não são reconhecidas ou contabilizadas como trabalho. Ludmila Abílio, ao procurar entender como mais de um milhão de mulheres se envolveram em um negócio pouco rentável, que demanda investimento monetário e tempo e que permeia tanto o tempo de trabalho como o tempo do lazer, traz uma importante contribuição para entender a história recente do trabalho, mais precisamente a “nova morfologia” do trabalho e o seu desenho multifacetado, resultado das fortes mutações que vem abalando o mundo produtivo do capital nas últimas décadas.
Referências
ABÍLIO, Ludmila Costhek. Sem maquiagem: o trabalho de um milhão de revendedoras de cosméticos. São Paulo: Boitempo, FAPESP, 2014.
Rafael Leite Ferreira – Doutor em História pela Universidade Federal de Pernambuco(UFPE). Professor da Unibra -Centro Universitário Brasileiro. Lattes: http://lattes.cnpq.br/0295848610110162. Email: rafaleferr@hotmail.com
ABÍLIO, Ludmila Costhek. Sem maquiagem: o trabalho de um milhão de revendedoras de cosméticos. São Paulo: Boitempo, FAPESP, 2014, 238p. Resenha de: FERREIRA, Rafael Leite. O sistema de vendas diretas da Natura: O hiato entre a acumulação da empresa e a precarização do trabalho. Em Perspectiva. Fortaleza, v.4, n.1, p.275-280, 2018.Acessar publicação original [IF].
Por que gritamos golpe? Para entender o impeachment e a crise política no Brasil | Ivana Jinkins, Kim Doria e Murilo Cleto
Examinar processos sócio-políticos “à quente”, em meio ao desenrolar das tramas, é um desafio posto aos historiadores dedicados ao chamado Tempo Presente, campo do conhecimento ainda alvo de fortes críticas, desconfianças e de sua própria precariedade, pois os que incursam nele podem estar munidos de perspectivas construídas anteriormente ao “agora”, mas desprovidos do conhecimento profundo sobre detalhes mais recentes. Embora Marc Bloch tenha, desde o século passado, comprovado que o presente pode e deve ser investigado pelos profissionais da história, ao desvelar as razões pelas quais, segundo ele, a França sucumbiu tão rapidamente ao nazismo em 1940 no seu icônico A Estranha Derrota, ainda existe resistência, dentro e fora do ofício, em reconhecer essa possibilidade e esse dever. Leia Mais
Rap e política. Percepções da vida social brasileira | Roberto Camargos
Originalmente escrita como dissertação de mestrado na Universidade Federal de Uberlândia, Rap e política é resultado de intensa pesquisa, que mereceu mais de um prêmio antes mesmo de ser publicado. Seu autor, Roberto Camargos, é, atualmente, doutorando na Universidade Federal de Uberlândia, a mesma universidade em que fez a graduação e o mestrado. Para a pesquisa que resultou nesta publicação, pesquisou centenas de músicas daquele gênero, gravadas entre 1990 e 2005, num trabalho que demandou muita pesquisa e apuro crítico.
O autor começa discordando das posições críticas que desautorizam o rap como arte, expressão cultural, comportamento etc., afirmando que é necessário Leia Mais
Sem maquiagem: o trabalho de um milhão de revendedoras de cosméticos | Ludmila Costhek Abílio
O Brasil é, hoje, o terceiro maior mercado mundial de produtos de higiene pessoal, perfumes e cosméticos. Segundo dados do setor, no ano de 2013, o país ficou atrás apenas dos Estados Unidos e do Japão e à frente de gigantes como a China. A previsão é que o Brasil ocuparia, até o primeiro semestre de 2016, o segundo lugar no ranking. No Brasil, a campeã de vendas nesse setor é a Natura. A enorme quantidade de pessoas vendendo produtos cosméticos revela o crescimento exponencial desse setor. No mundo são cerca de 95 milhões de vendedoras. O Brasil tem, atualmente, 4,5 milhões. Somente a Natura tinha, em 2007, 400 mil pessoas revendendo seus produtos. Em 2014, já tinha chegado à marca de 1,3 milhões. O sucesso da Natura adveio, principalmente, da adoção, desde 1974, do “Sistema de Vendas Diretas” (SVD). As vendas nesse formato não exigem postos físicos de trabalho; elas ocorrem através de relações interpessoais, com “consultoras” que vão de porta em porta apresentar os catálogos aos clientes. Esse sistema é antigo no Brasil, mas, no último decênio cresceu de modo avassalador. O Brasil ocupa hoje a quarta posição nessa área, ficando atrás apenas dos Estados Unidos, Japão e China. O volume de negócios do setor movimentou mundialmente o montante de US$ 169 bilhões em 2013; no Brasil chegou à marca de R$ 41,6 bilhões. Leia Mais
Paris: Capital da Modernidade | David Harvey
Conhecido como um dos grandes intérpretes do Marxismo na atualidade, David Harvey revela-se, também, como um dos maiores expoentes da chamada Critical Geography. Formado pela University of Cambridge, onde obteve seu doutorado em 1961, este geógrafo britânico tem especial afeição pelo estudo e pela análise das transformações econômicas, sociais, históricas e culturais do espaço urbano. Professor emérito de antropologia da City University of New York, Harvey explora em suas pesquisas o domínio dos diferentes circuitos do capital e os processos relacionados à intensificação do sistema de crédito e consumismo ostentatório, focando-se no estudo dos atores da produção do espaço. Essas problemáticas atravessam o caleidoscópio de suas análises: em Social Justice and the City, de 1973, ele já demonstrava um fascínio por temas relacionados ao planejamento urbano, à desigualdade de renda entre bairros ricos e pobres e à formação espacial da cidade. Por meio de uma crítica contundente, ele desenvolveu a ideia de que a formulação de uma teoria contrarrevolucionária em Geografia só seria possível via marxismo. Suas investigações têm contribuído para demonstrar como o capitalismo aniquila o espaço, no intuito de garantir sua própria reprodução, como se pode constatar em Condition of Postmodernity, de 1989. Como um dos mais destacados especialistas desse campo, Harvey também produziu reflexões a respeito das crises econômicas do capitalismo (The enigma of Capital, publicado em 2010) e das características atuais do imperialismo (The New Imperialism, publicado em 2003). Publicado originalmente em 2003, Paris: capital da Modernidade revela a preocupação do autor com questões relacionadas ao denominado “direito à cidade” (Henri Lefebvre), elemento constitutivo de sua trajetória. David Harvey esteve no Brasil em junho de 2015, para lançar a versão traduzida dessa obra no Seminário Internacional Cidades Rebeldes, momento em que debateu questões relacionadas às atividades econômicas, aos hábitos sociais, às estruturas de poder e à consolidação da expansão do sistema capitalista. Leia Mais
Feminismo e Política: uma introdução | Felipe Luis Miguel e Flávia Biroli
O objetivo dos autores em Feminismo e Política: uma introdução, como o nome sugere, é propor uma discussão introdutória referente à teoria política feminista, apontando e discutindo as diferenciadas vertentes do movimento feminista, bem como as suas contribuições no combate às desigualdades e na busca de uma sociedade mais justa. A obra, publicada em 2014, é organizada no formato de uma pequena coletânea, que é composta por onze artigos.
Luis Felipe Miguel e Flávia Biroli são os organizadores e os autores dos estudos. Luis Felipe Miguel é doutor em Ciências Sociais pela Universidade Estadual de Campinas – Unicamp, professor titular do Instituto de Ciência Política da Universidade de Brasília – UNB, onde coordena o Grupo de Pesquisa sobre Democracia e Desigualdades – Demodê. O estudioso é autor de livros como: Mito e discurso político[1] ; Política e mídia no Brasil [2] ; O nascimento da política moderna [3] ; Mídia, representação e democracia [4] ; Coligações partidárias na nova democracia brasileira [5] ; Caleidoscópio convexo: mulheres, política e mídia [6] ; Teoria política e feminismo: abordagens brasileiras [7] ; Teoria política feminista: textos centrais [8] ; Desigualdades e democracia: o debate da teoria política [9] ; Coligação e disputas eleitorais na Nova República [10]; Encruzilhadas da democracia [11] , [1]2 . Leia Mais
O alfaiate de Ulm: uma possível história do Partido Comunista Italiano – MAGRI (RBH)
MAGRI, Lucio. O alfaiate de Ulm: uma possível história do Partido Comunista Italiano. Boitempo, São Paulo: 2014. 415p. Resenha de: POMAR, Valter. Revista Brasileira de História, São Paulo, v.36, n.73, set./dez. 2016.
O alfaiate de Ulm é a última obra de Lucio Magri (1932-2011), intelectual comunista italiano e um dos responsáveis pela criação de Il Manifesto, periódico lançado em 1969 e que segue sendo publicado (http://ilmanifesto.info/).
O alfaiate de Ulm pode ser lido em várias claves: relato autobiográfico e testamento político, panorama do século XX, ensaio sobre a história e as perspectivas do movimento comunista italiano (especialmente o apêndice, um documento de 1987 intitulado “Uma nova identidade comunista”).
O movimento comunista da Itália tem gênese histórica distinta, onde confluem as características próprias daquele país, o impacto da revolução russa de 1917, a luta contra o fascismo e as batalhas da Guerra Fria.
Nesse contexto, o Partido Comunista não foi apenas uma organização política: foi também uma instituição cultural com imenso enraizamento na classe trabalhadora, na juventude e na intelectualidade, que teve na obra de Antonio Gramsci sua feição teórica mais conhecida e reconhecida.
Apesar disso tudo – ou por causa disso tudo, como fica claro da leitura de O alfaite de Ulm – o Partido Comunista Italiano cometeu suicídio em 1989.
Diferente das pequenas seitas militantes, que conseguem sobreviver em condições variadas e inóspitas, os partidos de massa parecem sobreviver apenas em determinadas condições. E como demonstra Lucio Magri, várias das condições que tornaram possível a existência de um forte comunismo reformista italiano e europeu desapareceram com a União Soviética e com a reestruturação capitalista simultânea à ofensiva neoliberal.
Dito de outra forma, a força das duas grandes famílias da esquerda europeia (o reformismo social-democrata e o reformismo comunista), assim como o brilho dos grupos de ultraesquerda que viviam à sombra daquele duplo reformismo, dependiam das condições “político-ecológicas” existentes na Europa enquanto durou a chamada bipolaridade entre União Soviética e Estados Unidos.
Quando esse conflito cessou, com a vitória dos Estados Unidos, a social-democracia experimentou uma deriva neoliberal, e o reformismo comunista, uma deriva social-democratizante.
Claro que esse não foi um processo uniforme. Uma das qualidades de O alfaiate de Ulm é apresentar uma interpretação do que teria ocorrido no caso italiano. Vale destacar esta palavra: interpretação. Há muitas outras interpretações, e sempre haverá o que estudar acerca das desventuras em série que atingiram o movimento comunista, o conjunto da esquerda e da classe trabalhadora, especialmente na Europa dos anos 1980 e 1990. A Itália constitui caso destacado, em boa medida pelo fato de lá estar baseado o tantas vezes denominado de maior partido comunista do Ocidente.
O alfaiate de Ulm pode ser lido com muito proveito por quem tem interesse em compreender os dilemas da classe trabalhadora, da esquerda brasileira e especialmente do Partido dos Trabalhadores.
Época e circunstâncias muito diferentes, obviamente. A começar pelo fato de que as variáveis internacionais que fortaleciam o reformismo social-democrata e comunista na Europa produziam efeitos muito distintos na América Latina e no Caribe, inclusive no Brasil.
Isso ajuda a entender por que, na mesma época em que o PCI cometia suicídio, abandonando suas tradições e até mesmo seu nome, o Partido dos Trabalhadores estava convertendo-se em força hegemônica na esquerda brasileira.
Guardadas essas diferenças, é impossível não enxergar certas semelhanças entre os dilemas vividos pelo Partido Comunista Italiano nos anos 1970 e 1980 e os impasses vividos mais de 20 anos depois pelo Partido dos Trabalhadores brasileiro.
Os dilemas do PCI são descritos detalhadamente em O alfaiate de Ulm. Segundo Lucio Magri, a “peculiaridade do PCI … era a de ser um ‘partido de massas’ que ‘fazia política’ e agia no país, mas também se instalava nas instituições e as usava para conseguir resultados e construir alianças” (p.333).
Magri demonstra que a atuação na institucionalidade não foi apenas uma estratégia. Mais do que isso, converteu o PCI em parte estrutural do Estado italiano, naquilo que Magri chama de um “elemento constitutivo de uma via democrática. Uma medalha que, no entanto, tinha um reverso” (p.333).
Esse “reverso”, que soa tão familiar aos que acompanham as vicissitudes atuais da esquerda brasileira, é assim apresentado por Lucio Magri:
Não me refiro apenas ou sobretudo às tentações do parlamentarismo, à obsessão de chegar a todo custo ao governo, mas a um processo mais lento. No decorrer das décadas, e em particular em uma fase de grande transformação social e cultural, um partido de massas é mais do que necessário, assim como sua capacidade de se colocar problemas de governo. Mas, por essa mesma transformação, ele é molecularmente modificado em sua própria composição material. (p.333)
Talvez esteja nisto a maior contribuição de O alfaiate de Ulm: essa abordagem profundamente histórica da vida de um partido político, ou seja, a compreensão de que a história de um partido só pode ser adequadamente compreendida como parte da história de uma sociedade, enquanto processo integrado entre as opções estritamente políticas, as tradições culturais e as relações sociais mais profundas, num ambiente nacional e internacional determinado.
A descrição que Lucio Magri faz do processo de seleção e promoção dos dirigentes partidários fala por si:
a formação de novas gerações, mesmo entre as classes subalternas, ocorria sobretudo na escola de massas e mais ainda por intermédio da indústria cultural; os estilos de vida e os consumos envolviam toda a sociedade, inclusive os que não tinham acesso a eles, mas alimentam a esperança de tê-lo; as “casamatas” do poder político cresciam em importância, mas descentralizavam-se e favoreciam aqueles que ocupavam as sedes; a classe política, mesmo quando permanecia na oposição e incorrupta, à medida que a histeria anticomunista diminuía, criava relações cotidianas de amizade, amálgama, hábitos e linguagem com a classe dirigente. (p.333)
Essa “mescla de costumes” da “classe política” com a “classe dirigente”, como sabemos, não é uma peculiaridade italiana. Tampouco seus efeitos organizativos, assim descritos por Magri:
as seções não estavam mais acostumadas a funcionar como sede de trabalho das massas, de formação cotidiana de quadros; eram extraordinariamente ativas apenas na organização das festas do Unità, e mais ainda nos períodos de eleição nacional e local; as células nos locais de trabalho eram poucas e delegavam quase tudo ao sindicato. Nos grupos dirigentes, a distribuição dos papéis havia mudado muito: o maior peso e a seleção dos melhores haviam se transferido das funções políticas para as funções administrativas (municípios, regiões e organizações paralelas, como as cooperativas). Portanto, mais competência e menos paixão política, mais pragmatismo e horizonte político mais limitado. Os intelectuais sentiam-se estimulados para o debate, mas sua participação na organização política havia declinado e o próprio debate entre eles era frequentemente eclético. A exceção era o setor feminino, em que um vínculo direto entre cúpula e base criava uma agitação fecunda. (p.334)
Noutras palavras, Lucio Magri descreve como as transformações “moleculares” causaram uma metamorfose no Partido Comunista: pouco a pouco foi deixando de ser um fator de subversão, transformando-se em peça importante na engrenagem do Estado e da política italiana. Uma peça diferente das outras, como demonstraria a Operação Mãos Limpas, a qual confirmaria que o PCI soubera resistir à corrupção sistêmica. Mas uma peça da engrenagem, como demonstra o fato de o PCI não ter sobrevivido ao colapso da estrutura política italiana.
Nesse sentido, a interpretação feita por Lucio Magri parece demonstrar que o Partido Comunista Italiano não foi vítima do fracasso, mas sim do sucesso da “estratégia” que alguns denominaram, na Itália e aqui no Brasil, de “melhorista”.
Essa estratégia não apenas melhorou a vida da classe trabalhadora italiana, como converteu o comunismo numa força influente e vista como ameaçadora pela classe dominante e pelos Estados Unidos, que atuaram tanto aberta quanto secretamente para evitar o êxito da aliança entre o PCI e a Democracia Cristã. Lucio Magri trata dessas operações, especialmente visíveis no caso Aldo Moro.
Bloqueado pela direita, o PCI tentou – sob a direção de Berlinguer – uma saída pela esquerda. Os capítulos que tratam dessa fase são talvez os mais interessantes de O alfaiate de Ulm, em parte por discutirem se a história poderia ter seguido um caminho diferente.
Como sabemos, entretanto, não foi isso o que ocorreu. Ao longo dos anos 1970 e 1980, alteraram-se profundamente os parâmetros dentro dos quais se movera a política no pós-Segunda Guerra Mundial, tanto na Itália quanto no mundo. O PCI não conseguiria chegar ao poder nos marcos daqueles parâmetros em vias de desaparecimento. Não conseguiria tampouco defendê-los frente à ofensiva neoliberal e à crise do socialismo. Nem conseguiria sobreviver para atuar nas novas condições.
Lucio Magri descreve, num tom profundamente autocrítico e em certo momento impiedoso consigo mesmo, as opções feitas pela maioria dirigente do PCI, que levaram à mudança do nome e das tradições políticas e culturais do Partido. Mostra como havia energias vivas na base militante do comunismo italiano, energias que não foram suficientes para dar vida ao projeto da Refundação Comunista.
Enfim, pelo que descreve, pelas conclusões a que chega e pelas perguntas que deixa, O alfaiate de Ulm de Lucio Magri é leitura mais do que relevante para os que têm interesse em compreender os dilemas atuais do Partido dos Trabalhadores e do conjunto da esquerda e os rumos da política brasileira neste terceiro milênio.
Valter Pomar – Doutor em História Econômica, Universidade de São Paulo (USP). Professor de economia política internacional no Bacharelado de Relações Internacionais da Universidade Federal do ABC. Universidade Federal do ABC. São Bernardo do Campo, SP, Brasil. E-mail: pomar.valter@gmail.com.
[IF]
O homem que amava os cachorros | Leonardo Padura
O livro de Leonardo Padura é uma daquelas obras de ficção que tem o poder de apequenar o historiador/leitor, pela sua narrativa de tirar o fôlego. Só mesmo uma obra despretensiosa quanto à História ciência poderia navegar tão livremente pelos personagens e contextos históricos. A narrativa, todavia, prende o leitor justamente pelo que traz de história e pelo respeito à história acontecimento, a história dos personagens entrelaçada no contexto em que se encontravam.
O respeito à história é garantido no que para o historiador é algo fundamental: no trato com as fontes bibliográficas e documentais, algo que consumiu do autor mais de cinco anos de trabalho, a colaboração de diversas pessoas em Cuba, no México, na Espanha, na Rússia, na França, na Dinamarca, no Canadá e na Inglaterra. Isso garantiu – conforme Padura em nota de agradecimento ao final do livro – a “fidelidade possível (…) aos episódios e à cronologia da vida de Leon Trotski” e uma “presença esmagadora da história em cada uma de suas páginas” (p.587), mesmo tratando-se de um romance. Leia Mais
Diários de Berlim, 1940-1945 | Marie Vassiltchikov
Há seis anos começava a guerra.
Parece o tempo de
uma vida
Missie Vassiltchikov, Berlim, setembro de 1945
Mestre no escutar e no escrever, Truman Capote legou ao mundo da Cultura uma participação indelével, baseada na sua incrível capacidade de ver, mentalizar e, na sequência, descrever detalhadamente fatos havidos, por ele percebidos no instantes em que aconteciam ou recriados tempos depois. Entrou para a História assim.
O século 20 tem mais destes autores – muitos dos quais compõem o que hoje conhecemos por New Journalism, por exemplo -, tão ou mais famosos que Capote. Mas, singular que ele só, o século 20 tem gentes que não atingiram (nem almejavam isso) o que podemos chamar de Grande Mídia – nem eram jornalistas. Marie Vassiltchikov é uma dessas figuras. Princesa russa (bem nascida, portanto), poliglota, viajada, Missie (como era conhecida) também foi refugiada de guerra civil, funcionária de serviços diplomáticos e, o mais impressionante, um olhar atento voltado e situado no coração do Nazismo, essa chaga da Humanidade da qual tanto já lemos, tanto já expurgamos, tanto já discorremos e, paradoxalmente, tanto ainda temos a descobrir. Leia Mais
Riqueza e miséria do trabalho no Brasil III – ANTUNES (CCRH)
Ricardo ANTUNES, Riqueza e miséria do trabalho no Brasil III. São Paulo: Boitempo, 2014. Resenha de: FESTI, Ricardo Colturato. Cadernos CRH, v.28 no.75 Salvador Sept./Dec. 2015.
O terceiro volume de Riqueza e Miséria do Trabalho no Brasil deu continuidade a um ousado projeto de pesquisa e reflexão realizado por dezenas de pesquisadores e estudantes e foi organizado e dirigido pelo sociólogo e professor da UNICAMP, Ricardo Antunes. Inicialmente intitulado “Para onde vai o mundo do trabalho? As formas diferenciadas da reestruturação produtiva no Brasil”, o projeto consolidou-se enquanto um trabalho coletivo de investigação teórica e empírica que, nestas duas últimas décadas, produziu inúmeras dissertações e teses acadêmicas, além de um amplo diálogo entre pesquisadores nacionais e estrangeiros, e resultou numa coleção que já publicou dois volumes.
O livro em questão está divido em três partes. A primeira, “O sistema global do capital e a corrosão do trabalho”, é dedicada às reflexões mais globais sobre as novas modalidades do trabalho no Brasil e no mundo. A segunda, “As formas de ser da reestruturação produtiva no Brasil e a nova morfologia do trabalho”, apresenta os resultados das pesquisas empíricas e analíticas sobre os vários ramos da economia, num esforço de compreender as particularidades da reestruturação produtiva do capital e suas consequências para o mundo do trabalho brasileiro. Já a terceira parte, “Os sindicatos na encruzilhada: ação e resistência dos trabalhadores”, reúne os artigos relacionados ao mundo sindical, aos movimentos dos trabalhadores e às suas reações a essas mudanças.
Umas das qualidades dessa coleção está na proximidade teórica encontrada na multiplicidade de textos, teses e opiniões, criando um fio condutor entre os autores e seus capítulos. Essa coerência teórica, nem sempre comum em coletâneas de textos, reflete uma posição metodológica e epistemológica frente à realidade concreta, entendida, não enquanto um caos incognoscível e explicável por tipologias externas à própria realidade, mas enquanto um movimento do real concreto, que pode ser explicado pelo cientista social a partir da abstração das totalidades parciais e dos complexos que compõem o todo, no caso, a própria sociedade capitalista. As determinações e mediações que compõem esse metabolismo social nem sempre são evidentes e, por isso, a teoria se confronta sempre com essa realidade na busca de sua afirmação/atualização.
Esse é o esforço de István Mészáros em “Marx, nosso contemporâneo, e seu conceito de globalização”, na primeira parte do volume III. O autor analisa, em seu artigo, alguns aspectos centrais do capitalismo contemporâneo, ressaltando a atualidade da teoria marxista. Também encontramos nos artigos de Alain Bihr, Jesus Ranieri, Patrícia Collado, Giovanni Alves e Caio Antunes um esforço em atualizar e problematizar alguns conceitos marxianos, tais como “trabalho abstrato”, “trabalho imaterial”, “fetichização”, “alienação” e “estranhamento”, a partir das novas questões postas pelo atual estágio da sociedade do capital.
Segundo Mészáros, há mais de três décadas o sistema capitalista tem-se mostrado incapaz de resolver (ou adiar) as suas próprias crises e contradições, tornando-as acumulativas e, portanto, estruturais. Essa crise não se resume à esfera econômica, mas “revela-se, certamente, como verdadeira crise de dominação em geral” (p. 29). A queda crescente da produtividade global e o aumento espantoso do desperdício, para a obtenção de maior acumulação de capital, são alguns aspectos da manifestação dessa crise estrutural. No mundo do trabalho, as consequências são devastadoras: a intensificação crescente do trabalho, o reaparecimento do “mais-valor absoluto” em países que incluem as “democracias ocidentais” (para não falar das periferias), o aumento das jornadas de trabalho (principalmente em países como Japão, Alemanha e Itália), o aumento do desemprego e da informalidade, a flexibilização das leis trabalhistas, a terceirização etc.
Nessa sociedade da “produção destrutiva”, o italiano Pietro Basso, em “A jornada de trabalho no início do século”, destaca e analisa os fenômenos do prolongamento das jornadas médias de trabalho e da emergência daquilo que Nilo Netto, outro coautor do livro, denomina de walmartização. Segundo Basso, se, nos anos 1990, o prolongamento da jornada média de trabalho ocorria por meio do recurso das horas extras – muitas vezes com o consentimento dos próprios trabalhadores e/ou seus sindicatos –, a partir dos anos 2000, passou a ocorrer, nos países de capitalismo avançado, como é o caso da França e da Alemanha, um aumento efetivo da jornada de trabalho.
A walmartização, nome advindo das formas de relação de trabalho e gestão inauguradas pelo hipermercado Walmart, é uma combinação entre os elementos do velho taylorismo (altos investimentos tecnológicos e parcelamento das funções) e do toyotismo (o just in time e a obsessão do desperdício zero), acrescidos por um componente novo, que não estava presente em seus modelos genuínos: a baixíssima remuneração salarial dos empregados do hipermercado e de toda a cadeia de produtores e fornecedores. O mais dramático desse “modelo de gestão” walmartizado é que a precariedade de seus empregados se sustenta com a precariedade do conjunto da classe trabalhadora, pois esta, devido aos seus baixos salários, é a principal consumidora do Walmart.
A extensão dessa precariedade objetiva para uma precariedade que envolve a esfera da subjetividade é analisada pela socióloga francesa Danièle Linhart em “Modernização e precarização da vida no trabalho”. A autora elabora o conceito de precariedade subjetiva para explicar o fenômeno de mal-estar, sofrimento e insegurança verificados em trabalhadores assalariados de empregos estáveis, como é o caso dos funcionários públicos. Na sociedade contemporânea, afirma a autora, “o assalariado é um indivíduo, uma pessoa sozinha, sem ajuda, confrontado com imposições e ideais não ajustados às realidades concretas do trabalho” (p. 52). A precariedade subjetiva está, portanto, relacionada tanto com a perda de uma identidade de classe entre os trabalhadores quanto com o enfraquecimento da ação coletiva e sindical. Esses dois processos deram lugar, nas últimas décadas, a uma complexa relação em que o capital passou a mobilizar, canalizar e formatar, a seu favor, a subjetividade dos assalariados.
Por fim, ainda na primeira parte do livro, o texto de Patrícia Villen, inspirado nos trabalhos de Basso, recoloca o problema da imigração no Brasil a partir de uma perspectiva do trabalho. Sua preocupação expressa uma opção metodológica presente nesses três volumes: a necessidade de uma intersecção entre os estudos sobre o mundo do trabalho com outras áreas das ciências sociais, tais como gênero, raça-etnia, sexualidade, geração-juventude etc.
A segunda parte do livro, composta por dez artigos, constitui um mapeamento das formas de ser da reestruturação produtiva e da nova morfologia do trabalho no Brasil. Os textos expressam pesquisas empíricas feitas nos setores da construção civil, telemarketing e telecomunicações, educação, trabalho informal, trabalhadores da arte, agroindústria e hipermercados.
Sávio Cavalcante e Selma Venco nos conduzem a uma reflexão sobre os ramos de telemarketing e telecomunicações. O primeiro autor, em seu artigo “O setor de telecomunicações no Brasil: tendências da prestação de serviços e da situação do trabalho na década de 2000”, oferece-nos uma caracterização e um mapeamento dos estudos publicados ao longo da década de 2000 sobre as telecomunicações. Já Selma Venco, em “Novos contornos da divisão internacional do trabalho: um jogo de xadrez no planeta?”, analisa como as empresas de telemarketing, de desenvolvimento de softwares e de telerradiologia utilizam-se de uma força de trabalho qualificada e barata, encontrada em países da periferia, como são os casos do Brasil e da Argentina, para impulsionar seus lucros, criando, assim, novas formas de divisão internacional do trabalho.
O trabalho informal de rua é analisado por Bruno Durães num artigo resultante de uma pesquisa de fôlego realizada conjuntamente com as professoras da Universidade Federal da Bahia, Graça Druck e Iracema Guimarães. Entrevistando 191 trabalhadores de rua, a pesquisa abrangeu vendedores ambulantes, camelôs, taxistas, vendedoras de acarajé, motoristas de transporte escolar e trabalhadores autônomos. Esses trabalhadores se inserem, segundo Durães, “quase sempre em uma imediaticidade exorbitante”, tendo que vender algo hoje para comer amanhã, ou, simplesmente, vender hoje para pagar o que comeu ontem. A conclusão do autor é que esses trabalhadores de rua não são autônomos (como muitos deles se reconhecem), pois estão inseridos na condição de funcionalidade e subsunção ao capital, “na condição de trabalhador gratuito e de exército de reserva”.
O mundo rural, em particular a agroindústria, é objeto de estudos de três autoras. Maria A. de Moraes Silva reflete sobre a nova morfologia do trabalho nos canaviais paulistas, enquanto Maira Augusta Tavares expõe as consequências da intensificação e do prolongamento da jornada de trabalho nesse setor. Num terceiro artigo, Claudia Mazzei Nogueira analisa as condições de trabalho da Sadia/Brasil Foods no segmento avícola, no Oeste Catarinense. Ela demostra como a intensificação do processo de trabalho ocorre nesse setor, numa articulação das dimensões de gênero com a exploração do trabalho, numa evidente piora das condições de vida das mulheres.
Os leitores encontrarão, também, nesta segunda parte do livro, um artigo de Fábio Villela sobre o trabalho na construção civil e uma reflexão acerca do “intelecto coletivo”, conceito extraído dos Grundrisse de Karl Marx. Na área da educação superior, Maria Izabel da Silva, em colaboração com Nogueira, analisa o trabalho docente voluntário. E, por fim, Maria Aparecida Alves apresenta sua reflexão sobre a precarização do trabalho na área de apoio técnico aos espetáculos do Theatro Municipal de São Paulo.
Na terceira parte do livro, dedicada às ações e resistências dos trabalhadores, encontraremos artigos que analisam tanto os setores mais estáveis e tradicionais, de forte barganha sindical, quanto os novos e precários do mundo do trabalho e as suas dificuldades na impulsão das lutas sindicais no Brasil.
O artigo de Sidartha Sória, “Sindicalismo e fundos de pensão no governo Lula…”, aborda a formação de uma elite sindical que, desde o final do segundo governo de FHC, passou a defender ideologicamente e a gerir fundos de pensão como uma extensão das atividades sindicais no mundo financeiro. Advindos da burocracia dos sindicatos do setor bancário, mas, também, de telecomunicações e urbanitário, dentre outros, essa elite sindical se consolidou e se expandiu nos dois mandatos presidenciais de Lula, compondo, inclusive, parte significativa dos núcleos de decisões desses governos. O estudo de Sória contribui para uma reflexão mais ampla sobre os caminhos percorridos por um amplo grupo de militantes, que, no passado, compuseram o novo sindicalismo, mas que se tornaram, ao passar dos anos, similar ao que ocorreu com a direção majoritária do PT, em “serviçais qualificados do capital”.
Porém, se uma parte do sindicalismo se converteu, durante o lulismo, em acionistas do mercado financeiro, através dos fundos de pensão, encontramos, justamente nos setores mais precarizados e fragmentados da classe trabalhadora brasileira, novos potenciais de luta e resistência. Esse é o tema que tanto Ruy Braga como Paula Marcelino tratam em seus textos. Em “A formação do precariado pós-fordista no Brasil: limites do atual modelo de desenvolvimento periférico”, Braga, com seu conceito de precariado, busca compreender a forma de ser e agir da fração mais precarizada do operariado brasileiro, que, desde os anos 1950, tem como característica a sua inquietação social e política.
Por fim, vale ressaltar a importância política do artigo que abre o terceiro volume desta coleção, escrito por Ricardo Antunes e Graça Druck e intitulado “A epidemia da terceirização”. No momento em que o livro é lançado, em meio à maior crise política do governo Dilma Rousseff e de uma significativa ofensiva ideológica dos setores reacionários, o projeto do ex-deputado federal Sandro Mabel (PMDB), o PL 4330/2004, era aprovado na Câmara dos Deputados e seguia para apreciação do Senado. O artigo faz uma análise crítica ao projeto e alerta para o fato de que, caso ele seja sancionado, a precarização do trabalho no Brasil dará um salto significativo, com um aumento exponencial da terceirização em todos os níveis e setores. A escolha desse texto como abertura do livro revela o comprometimento político e social dos intelectuais que participam deste projeto acadêmico e sua clara opção por uma sociologia comprometida com a classe trabalhadora.
Ricardo Colturato Festi – Doutorando em sociologia. Professor de Sociologia do COTIL-UNICAMP. Pesquisa sobre movimento operário brasileiro e a problemática da consciência de classe. Tem experiência na área de Sociologia, com ênfase em sociologia do trabalho, atuando principalmente nos seguintes temas: movimento operário, controle operário, marxismo, pensamento social. E-mail: ricardofesti@gmail.com.
Poder e desaparecimento: os campos de concentração na Argentina | Pilar Calveiro
Pilar Calveiro nasceu na Argentina em 1953. Envolvida em militâncias sociais e políticas, foi presa pela ditadura civil-militar que governou o país no período de 1976 a 1983. No prelúdio do livro, o poeta Juan Gelman, descreve:
“Em 7 de maio de 1977, um comando da Aeronáutica sequestrou Pilar Calveiro em plena rua e a levou ao que ficou conhecido como “Mansão Seré” […]Naquele dia começou seu percurso de um ano e meio num inferno que continuou em outros campos de concentração” (p.19)
Ao contrário da enorme maioria dos detidos em campos de concentração argentinos (cerca de 90% dos 15 a 20 mil pessoas que por isso passaram, segundo a própria autora), Pilar Calveiro sobrevive. Mais tarde, realiza doutorado em ciência política pela Universidade Nacional do México, parte da qual resulta nesse livro, lançado na Argentina em 2001. Atualmente, é professora e pesquisadora na Universidade Autônoma de Puebla (México).
Apesar dessa vivência, Calveiro não baseia seu livro unicamente no seu depoimento. Suas principais fontes são o testemunho de cinco outros sobreviventes. De acordo com ela
“Cada depoimento é um universo completo, um homem completo falando de si e dos outros. Seria suficiente tomar apenas um deles para abarcar os fenômenos aos quais quero me referir. Ainda assim, para mostrar a vivência a partir de diferentes sexos, sensibilidades, militâncias, lugares geográficos e capturadores, e mesmo fazendo referência a outros depoimentos, tomarei basicamente os seguintes: Graciela Geuna (sequestrada no campo de concentração de La Perla, Córdoba, correspondente ao III Corpo do Exército), Martín Gras (sequestrado na Esma, Capital Federal, correspondente à Marinha da República Argentina), Juan Carlos Scarpatti (sequestrado e foragido de Campo de Mayo, província de Buenos Airese, campo de concentração correspondente ao I Corpo do Exército), Claudio Tamburrini (sequestrado e foragido da Mansão Seré, província de Buenos Aires, correspondente à Força Aérea) e Ana María Careaga (sequestrada em El Atlético, Capital Federal, correspondente à Polícia Federal)”. (p.42)
O livro de Pilar Calveiro não se resume, contudo, à transmissão desses testemunhos, mas à, a partir deles, refletir sobre os desaparecimentos na ditadura argentina e sobre o fenômeno repressivo em si. Retomando o prelúdio de Gelman “este livro é uma façanha. Pilar Calveiro atravessou a situação mais extrema do horror e teve a difícil capacidade de pensar a experiência” (p.20). Ao fazê-lo, “Sua leitura contribui para a reflexão sobre a história não só da Argentina, mas dos outros países do Cone Sul, que não pode ser relegada ao esquecimento”, escreve a historiadora da USP Maria Helena Capelato, na orelha do livro.
A edição brasileira do livro tem apresentação da pesquisadora de pós-doutorado em História Social da USP Janaína de Almeida Teles intitulada “Ditadura e repressão no Brasil e na Argentina: paralelos e distinções”. Nesta, aponta algumas semelhanças e diferenças entre os processos ocorridos nos dois países. Se em ambos os casos havia uma noção de que os militares estariam salvando o país de uma ameaça inimiga, o “poder desaparecedor” descrito por Calveiro para a Argentina seria no Brasil mais um “poder torturador”. Em alguns casos, em especial no combate a guerrilha do Araguaia, a ditadura brasileira também usou a tática de eliminação total do “inimigo”. Porém, em geral, se caracterizava por “seu caráter centralizado e seletivo, permeado por preocupações com sua legitimidade institucional” (p. 14). Assim, no Brasil, o governo se preocupava em dar um ar de legitimação legal, mesmo que manipulada, às suas ações, enquanto na Argentina estava mais cristalizada a ideia de que diante de um inimigo tão perigoso, métodos excepcionais poderiam ser utilizados. Portanto, na Argentina
“o eixo do mecanismo desaparecedor era a obtenção de informação necessária para multiplicar os desaparecimentos até acabar com o ‘inimigo’”. No modelo brasileiro, por sua vez, o foco era a seletividade e a obtenção de informações para desestruturar grupos oposicionistas.” (p. 17)
Pilar Calveiro divide o livro em duas partes. A primeira, mais curta, “Considerações Preliminares”, fornece um panorama do contexto prévio ao golpe que levou o general Jorge Videla ao governo em 1976. A segunda parte, “Os campos de concentração” descreve e discute o funcionamento, a lógica e o significado dos campos de concentração argentinos.
“Considerações Preliminares” apresenta primeiramente a ascensão das forças armadas, e depois a situação das guerrilhas, vistas pela ditadura como o principal inimigo interno. Desde a década de 1930, as forças armadas cresciam em peso político e autonomia.
“Assim, ao longo de 45 anos os militares reiteradamente “salvaram” o país – ou melhor, os grupos dominantes do país. Por outro lado, setores importantes da sociedade civil também reclamaram e exigiram essa salvação. Em 1976, não havia nenhum partido político na Argentina que não tivesse apoiado algum dos numerosos golpes militares ou dele participado.” (p. 25)
Assim, o apelo às forças armadas ao reestabelecimento da ordem (e as características fundamentais de um governo militarizado) não era inédito na Argentina de 1976, quando a crise do peronismo fazia em especial as classes médias clamarem por serem “salvas”.
As guerrilhas, cujos membros formariam grande parte da população sequestrada proliferaram nos anos 1970, sejam de caráter guevarista ou peronista. Calveiro, porém, tece críticas ao autoritarismo interno a elas, o que teria colaborado, junto à repressão por parte do peronismo de direita a partir de 1974, para que já estivessem bastante enfraquecidas em 1976.
A segunda e mais extensa parte do livro inicia-se com uma ideia fundamental do texto: “Sempre o poder mostra e esconde, e se revela tanto no que exibe quanto no que oculta” (p. 38). Portanto, os mecanismos de desaparecimentos deviam ser escondidos (já que não eram legais), mas somente parcialmente. Para Calveiro, “para disseminar o terror, cujo efeito imediato é o silêncio e a inação, é preciso mostrar uma fração daquilo que permanece oculto”. (p. 53). A autora então esclarece que o sequestro, a tortura e o desaparecimento já eram prática corrente ao menos desde 1966, mas a partir de 1976, o desaparecimento deixa de ser uma das formas para se tornar a própria definição da repressão na ditadura argentina.
Uma característica importante é que os campos de concentração não eram operados por um grupo seleto. Pelo contrário, havia um esforço em incluir grande número de oficiais, de modo a implicar a todos no processo, em cumplicidade geral. O resultado disso era, além de evitar delações, que seres humanos sem “natureza assassina” participassem ativamente de “um maquinário, construído por eles mesmos, cujo mecanismo os levou a uma dinâmica de burocratização, rotineirização e naturalização da morte” (p. 45). O relato de Calveiro nos remete, ao conceito de banalidade do mal, desenvolvido por Hannah Arendt em Eichmann em Jerusalém, autora com cuja obra o livro de Pilar Calveiro está em constante diálogo.
Nas páginas seguintes, Calveiro descreve os procedimentos do desaparecimento. A iniciar pelo sequestro, realizado por grupos que geralmente desconheciam o motivo da operação e a tortura (choques elétricos e abusos sexuais eram comuns). Cabe salientar que a missão principal da tortura (que começava antes mesmo da inserção do prisioneiro no campo) era “”alimentar” o campo com novos sequestrados” (p. 67). Seguidas as primeiras seções de tortura, ocorria o confinamento no campo (novamente, os guardas geralmente não sabiam quem eram os prisioneiros, somente sabiam que eram “perigosos”), período no qual podiam ocorrer novas torturas, e finalmente o assassinato e desaparecimento dos corpos. Esta é a parte menos conhecida. Um dos métodos envolvia a aplicação de soníferos e o despejo dos corpos (ainda vivos) no mar. Ao longo de todo o processo, imperava a burocracia, a impessoalidade e a divisão de tarefas. Em Modernidade e Holocausto, Zygmunt Bauman afirma que
“O uso da violência é mais eficiente e menos dispendioso quando os meios são submetidos a critérios instrumentais e racionais e, assim dissociados da avaliação moral dos fins. […] A dissociação é, de modo geral, resultado de dois processos paralelos, ambos centrais ao modelo burocrático de ação. O primeiro é a meticulosa divisão funcional do trabalho […] o segundo é a substituição da responsabilidade moral pela técnica.” (BAUMAN, 1998, p. 122)
Atenta a essas semelhanças, Calveiro afirma que isso não se deveria a uma cópia ou inspiração nos campos nazistas ou stalinistas mas consequência de serem poderes totalizantes.
Outra característica apontada pela autora que reforça esse caráter totalizante é a auto-representação de muitos torturadores como deuses, ao ponto de impedirem o suicídio mesmo de prisioneiros cujo destino (morte) já estava selado. Havia uma necessidade de reafirmar o poder da repressão sobre cada mínimo aspecto da vida (e da morte) dos sequestrados.
O aspecto fragmentário do processo, com diferentes grupos operativos trabalhando em paralelo e até concorrendo entre si causava uma sensação de completa ausência de lógica (por exemplo, na escolha de quem iria morrer e quando) e desarmava tentativas de resistência. No entanto, “O fragmentário não se opõe ao totalizante; pelo contrário, eles se combinam e se sobrepõe, sem encontrar nenhuma consistência ou coerência.” (p. 82). Tal afirmação é reforçada por Hannah Arendt, quando afirma, sobre a burocracia nazista que “todos esses organismos, enormemente poderosos, competiam ferozmente uns com os outros – o que em nada ajudava suas vítimas” (ARENDT, 1999, p. 85).
Analisado o funcionamento concreto do “poder desaparecedor”, Pilar Calveiro se dedica ao componente ideológico que o sustenta, ao qual chama de “Um universo binário”.
“As lógicas totalitárias são lógicas binárias, que concebem o mundo como dois grandes campos contrários: o próprio e o alheio. […] entende que o diferente constitui um perigo iminente ou latente, que deve ser extirpado. [..,] pretende, em última instância, eliminar as diversidades e impor uma realidade única e total representada pelo núcleo duro do poder, o Estado.” (p. 88) “Na concepção militar, a Argentina estava em guerra: uma guerra contra a subversão, travada dentro e fora das fronteiras nacionais. Os militares se apressaram a declará-la, e a guerrilha aceitou o desafio.” (p, 89)
Assim, na ótica militar, não desapareciam pessoas, mas sim subversivos, que seriam sempre: guerrilheiros, servindo interesses estrangeiros, perigosos, imorais; se mulheres, cruéis e sem moral sexual. No caso dos mais perigosos não só sem religião, mas judeus. “Reduzidos, como todos os outros objetos de gerenciamento burocrático, a meros números desprovidos de qualidade, os objetos humanos perdem sua identidade.”(BAUMAN, 1998, p. 127)
Portanto, os campos de concentração procuravam retirar por completo a humanidade do prisioneiro. Calveiro, porém, defende que “apesar da eficiência da técnica concentratória, quase sempre há uma parte do homem que é devastada e outras que resistem; essas são as partículas que escapam” (p. 102). Isso permite problematizar o universo binário e mais, possibilita formas de resistência e fuga. Em relação a esses mecanismos, Calveiro afirma que
“É preciso acrescentar que existiram diversas formas de fugir do dispositivo concentracionário, não apenas a fuga física, sendo que todas elas estiveram associadas à preservação da dignidade, à ruptura da disciplina e à transgressão da normatividade, sabotando os objetivos do campo.” (p. 108)
Assim, a autora descreve várias formas de fuga e resistência, desde a fuga concreta, a colaboração falsa ou parcial, a solidariedade interna, até o riso como reafirmação da vida.
Aproximando-se da parte final do livro, Calveiro reafirma, tal como Hannah Arendt teve que fazer no caso Eichmann, que “Ao encarar os desaparecedores como parte do cotidiano social, sua responsabilidade não se esfuma; apenas os situa num lugar que envolve e questiona toda a sociedade.” (p.134). Arendt completaria que “essa normalidade era muito mais apavorante do que todas as atrocidades juntas” (ARENDT, 1999, p. 299).
Essa reflexão faz com que a análise não possa se prender somente aos que participaram diretamente nos desaparecimentos, devendo se estender a sociedade toda: “O campo de concentração, […], só pode existir numa sociedade que escolhe não ver, por sua própria impotência; uma sociedade “desaparecida”, tão siderada como os próprios sequestrados.” (p. 135). Calveiro descreve como o golpe teve respaldo social. “Se havia algo que não tinha como ser alegado naquele momento era o desconhecimento” (p. 136). A tortura, os sequestros e a necessidade de eliminação do Outro não eram novidade e já estavam até certo ponto naturalizadas. “A noção do Outro, perigoso, que deve ser destruído, estava profundamente enraizada nas representações e práticas políticas.” (p. 138).
Poder e desaparecimento, portanto, está muito distante de ser somente um testemunho da ditadura (o que já seria válido). Tampouco se limita a uma análise do “poder desaparecedor” na Argentina no período 1976-1983, o que realiza brilhantemente. Pilar Calveiro é capaz, apesar ou talvez justamente por ter sido vítima da repressão autoritária de analisar, a partir da experiência argentina, o fenômeno do autoritarismo totalizante, o que, levando em conta seus paralelos e particularidades, colabora para a compreensão das ditaduras civis-militares que assolaram o Cone Sul nas décadas de 1960,70 e 80.
Ao final do livro, Calveiro afirma:
“a melhor forma para desconhecer que a realidade dos campos de concentração esteve estreitamente relacionada com a sociedade de então e com a atual é esquecê-los, decidir que o mundo e o país deram voltas suficientes a ponto de chegar a outro lugar. Anistia, como amnésia, vem de a-mnses-is, “esquecimento”” (p. 151).
A mensagem não poderia ser mais evidente para um Brasil que ainda se debate em relação à memória e aos aspectos ainda hoje remanescentes da sua ditadura mais recente.
Referências
ARENDT, Hannah. Eichmann em Jerusalém: um relato sobre a banalidade do mal. Tradução José Rubens Siqueira. São Paulo: Companhia das Letras, 1999.
BAUMAN, Zygmunt. Modernidade e Holocausto. Tradução Marcus Penchel. Rio de Janeiro: Zahar, 1998.
CALVEIRO, Pilar. Poder e desaparecimento: os campos de concentração na Argentina. Tradução Fernando Correa Prado. São Paulo: Boitempo, 2013.
Michel Ehrlich – Estudante de graduação em História (bacharelado e licenciatura) pela Universidade Federal do Paraná (UFPR).
CALVEIRO, Pilar. Poder e desaparecimento: os campos de concentração na Argentina. Tradução Fernando Correa Prado. São Paulo: Boitempo, 2013. Resenha de: EHRLICH, Michel. Cadernos de Clio. Curitiba, v.6, n.1, p.197-206, 2015. Acessar publicação original [DR]
Cypherpunks: liberdade e o futuro da internet – ASSANGE (RTA)
ASSANGE, Julian. Cypherpunks: liberdade e o futuro da internet. Trad. Cristina Yamagami. São Paulo: Boitempo, 2013. Resenha de: PELLEGRINI, Ramon Trindade; PELLEGRINI, Rafael Trindade. Marco Civil: Liberdade e o Futuro da Internet. Revista Tempo e Argumento, Florianópolis, v. 6, n.12, p. 265 ‐ 270, mai./ago. 2014.
Cypherpunks: liberdade e futuro da internet, publicado pela Editora Boitempo, no ano de 2013, é uma obra criada a partir das reflexões de Julian Assange, em parceria com Jacob Appelbaum, Andy Müller‐Maguhn e Jérémie Zimmermann, fruto dos debates registrados no programa The World Tomorrow1, apresentado pelo próprio Assange. Um livro que suscita a reflexão sobre a vigilância de informações pela internet por parte dos governos, principalmente o estadunidense. Nas palavras do autor, este exemplar “não é um manifesto, não há tempo para isso [trata‐se de] um alerta” (ASSSANGE, 2013, p. 25), pois o futuro do mundo, para ele, é o futuro da internet: As únicas pessoas que serão capazes de manter a liberdade que tínhamos, digamos, vinte anos atrás […] são aquelas que conhecem intimamente o funcionamento do sistema. Então só uma elite high‐tech rebelde é que será livre (ASSANGE, 2013, p. 157). Esta mensagem é um aviso imediato ao que está acontecendo na rede, mas quem é o personagem que a emite? Julian Assange é um ativista e hacker australiano que se autointitula cypherpunk, ou seja, um militante político que opera através do ciberespaço. Ficou mundialmente conhecido em 2010, quando divulgou, pela WikiLeaks, em parceria com jornais como The Guardian (Grã‐Bretanha), Der Spiegel (Alemanha), The New York Times (Estados Unidos), Le Monde (França) e El Pais (Espanha), mais de 70 mil relatórios militares secretos sobre a guerra do Afeganistão – os Diários da Guerra do Afeganistão –; mais de 400 mil relatos de campo na guerra do Iraque – os Registros de Guerra do Iraque – e mais de 250 mil relatórios diplomáticos das embaixadas dos Estados Unidos ao redor do mundo – o Cablegate. Foi o maior vazamento de documentos oficiais da história. Mas o que vem a ser a WikiLeaks? A WikiLeaks é uma organização com características de jornalismo investigativo. Possui uma robusta criptografia para dar anonimato a suas fontes, além de uma incrível base de dados que permite ao leitor ter acesso a milhões de documentos confidenciais em tempo integral, de sua nação e do mundo. São chamadas informações classified (confidenciais), isto é, documentos oficiais arquivados na internet, que podem interferir diretamente no plano material, dado o conteúdo explicitado. São exemplos: o vídeo do helicóptero “Apache” assassinando indivíduos ditos terroristas; os diários das guerras do Afeganistão e Iraque na “luta contra o terror”, bem como a opinião de diplomatas estadunidenses acerca de inúmeros governantes mundiais e suas formas de governo. É acerca destas complexidades na rede virtual que Assange discorre nessa obra. Como o livro acompanha o diálogo sobre inúmeros assuntos relacionados à internet e seu controle, propomos não dividi‐lo em capítulos, mas examiná‐lo segundo suas características principais, traçando um paralelo com o marco civil no Brasil. Inicialmente, Assange (2013, p. 20) enfatiza que, “o mundo deve se conscientizar da ameaça da vigilância para a América Latina e para o antigo Terceiro Mundo. A vigilância não constitui um problema apenas para a democracia e para a governança, mas também representa um problema geopolítico”. Neste sentido, são os serviços de segurança do Estado os beneficiários diretos do exercício do poder de controle e repressão. É neste cenário que o projeto de lei marco civil da internet está inserido. Mas do que se trata? A Lei 12.965/14, conhecida como marco civil da internet, foi analisada e votada pelo Congresso; depois, pelo Senado e, por fim, sancionada pela presidenta Dilma Rousseff, dia 24 de abril de 2014, entrando em vigor dois meses depois, marcando significativamente os direitos à internet no Brasil. Sucintamente, trata‐se de uma espécie de constituição de sítio virtual, estabelecendo direitos e deveres para usuários e provedores de internet no País, tais como: neutralidade na rede, ou seja, garantia de que o tráfego terá a mesma qualidade e velocidade, independente do tipo de navegação; não‐suspensão da conexão à internet, salvo por débito e sua manutenção da qualidade contratada; privacidade, significando que informações pessoais e registros de acesso só poderão ser vendidos mediante autorização do usuário; segurança dos registros de conexão dos usuários, propondo que os dados sejam guardados pelos provedores durante um ano sob sigilo completo, podendo ser acessados exclusivamente por ordem judicial. Segundo a coordenadora do Intervozes, Beatriz Barbosa, o principal problema enfrentado pelo marco civil diz respeito ao artigo 15, que obriga as empresas de telecomunicações a guardar, por um ano, todos os dados de tráfego na rede. Segundo a pesquisadora, a lei prevê que estas informações só possam ser acessadas por decisão judicial. Mesmo assim, a obrigação: viola a privacidade do usuário [e] acaba levando ao risco de uma vigilância em massa e é uma limitação à própria liberdade de expressão (que é uma base fundamental do projeto). O fato de saber que toda sua movimentação na internet está sendo armazenada para eventuais investigações faz com que a pessoa se comporte de forma diferente2. Já o coordenador‐geral do Sindicato dos Jornalistas Profissionais do Distrito Federal, Jonas Valente, afirma veementemente que, “motivado pela vigilância institucionalizada de um evento internacional, o governo aprova uma lei avançada, mas em que o simples fato de guardar os dados viola a minha privacidade”3. Desses vieses, entendemos que o ponto nevrálgico do marco civil está no artigo 15 da Constituição, ou seja, no armazenamento de dados pessoais que poderiam favorecer a vigilância maciça da internet pelo governo. A obra de Assange é significativa para tal análise, pois observa que, apesar de estarem constantemente vigiados quando na rede, são os próprios usuários que, muitas vezes, fornecem suas informações particulares. É nesse contexto, permeado de inovações tecnológicas, sobretudo na área informativa, que ocorre a vigilância por parte dos governos e corporações. Uma simbiose de controle e poder que revela o cenário sombrio e orwelliano em que vivemos. Segundos os cibermilitantes, “o Facebook e a Google podem ser considerados extensões dessas agências, [Uma vez que] têm acesso a todos os dados armazenados” (ASSANGE, 2013, p. 72). Isto significa que, se o sujeito for usuário dessas empresas, as agências de monitoramento, possivelmente, captarão informações como: com quem se comunica, seus interesses e objetivos, até preferência sexual, religiosa e crenças filosóficas. Demodé, o alerta observado por Beatriz Barbosa e Jonas Valente, no que tange ao marco civil, se coaduna com esta análise. Para os cypherpunks, a rede virtual, que há pelo menos 25 anos foi apresentada aos civis como instrumento essencial de dinamização produtiva/reprodutiva das relações capitalistas, se transformou, paulatinamente, em zona de guerra. Para o autor, as mudanças na internet ao longo dos anos modificaram não apenas os relacionamentos interpessoais, mas as formas de ação dos Estados. Consequentemente, as forças governamentais “e seus aliados (corporações) se adiantaram para tomar o controle do nosso novo mundo, se [agarrando] como uma sanguessuga às veias e artérias das nossas novas sociedades” (ASSANGE, 2013, p. 26‐27). A interceptação dessas informações provenientes de todos os rincões do planeta evidencia que todos, indistintamente, são vigiados e o medo é um elemento fundamental para a sustentação desse controle. Desse modo, “é necessário instilar medo nas pessoas para que elas compreendam o problema antes de uma demanda suficiente ser criada para solucioná‐lo” (ASSANGE, 2013, p. 83). Noutras palavras, o medo gera lucro, principalmente com o aumento da sofisticação e a redução do custo da vigilância em massa, ou seja, enquanto o crescimento populacional dobra, aproximadamente, a cada 25 anos, a vigilância duplica a cada 18 meses (ASSANGE, 2013, p. 55). O último viés de discussão é acerca da criptografia, que consiste na prática de se comunicar em código. Esta é uma ferramenta que, segundo os ativistas, pode ser uma arma eficaz de combate à tirania do Estado. Para Sérgio Amadeu, estamos entrando na era da “resistência criptopolítica [onde] a criptografia torna‐se instrumento político a ser amplamente incorporado pelos movimentos de resistência ao poder da análise e à biopolítica de modulação executada pelas grandes corporações, de tecnologia e de rede”4. Para Assange (2013, p. 27‐28), com esse mecanismo: as pessoas podem se fundir para criar regiões livres das forças repressoras do Estado externo, […] porque a criptografia […] não se deixa abalar pela petulância dos Estados nem pelas distopias da vigilância transnacional. […] A criptografia é a derradeira forma de ação direta não violenta, [pois] é mais fácil criptografar informações do que descriptografá‐las. Há quem desconfie dos aplicativos criptografados, afirmando que os dados dos usuários já estão sob a tutela de corporações e governos. Esta é a grande polêmica em torno do marco civil da internet no Brasil. O artigo 15 fere o direito à liberdade de expressão? Este decreto limita nosso direito de navegar pela rede? É certo que estamos frente a uma grande encruzilhada, longe de um fim imediato. Diante das condições objetivas suscitadas, a obra de Assange fornece informações cruciais para nos posicionarmos neste cenário histórico, marcado por uma vigilância exacerbada dos meios de comunicação, sobretudo da internet.
Referências
ASSANGE, J. Cypherpunks: liberdade e o futuro da internet. Trad. Cristina Yamagami. São Paulo: Boitempo, 2013. BRASIL. Lei 12.965/14, de 23 de abril de 2014. Estabelece princípios, garantias, direitos e deveres para o uso da Internet no Brasil. Disponível em: www.jusbrasil.com.br/legislacao/117197216/lei‐n‐12‐965‐de‐23‐de‐abril‐de‐2014. Acesso em: 23 jun. 2014.
2 Disponível em: http://www.folhapolitica.org/2014/04/apoiadores‐do‐marco‐civil‐admitem.html Acesso em: 18 jun. 2014.
3 Disponível em: http://www.folhapolitica.org/2014/04/apoiadores‐do‐marco‐civil‐admitem.html Acesso em: 18 jun. 2014.
4 Disponível em: http://www.revistaforum.com.br/digital/137/marco‐civil‐da‐internet‐liberdade‐na‐rede‐vai‐acabar/ Acesso em: 23 jun. 2014.
Ramon Trindade Pellegrini – Mestrando do Programa de Pós‐Graduação em Memória: Linguagem e Sociedade, da Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia; compõe o quadro de pesquisadores do Grupo de Estudos de Ideologia e Lutas de Classe (Geilc), bolsista da Capes/CNPq. Brasil ramonpellegrini1@gmail.com.
Rafael Trindade Pellegrini – Graduando em História pela Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia (Uesb); compõe o quadro de pesquisadores do Grupo de Pesquisa Natureza, Cultura e Complexidade, bolsista da Capes/CNPq. Brasil rafatpellegrini@gmail.com.
Occupy: movimentos de protesto que tomaram as ruas – HARVEY (C)
HARVEY, David et al. Occupy: movimentos de protesto que tomaram as ruas. Trad. de João Alexandre Peschanski. São Paulo: Boitempo; Carta Maior, 2012. Resenha de: SILVESTRIN, Darlan. Conjectura, Caxias do Sul, v. 18, n. 3, p. 185-191, set/dez, 2013.
Esta obra é uma coletânea composta por singulares artigos de escritores, críticos, historiadores e jornalistas, acerca dos manifestos ocorridos em escala mundial, no ano de 2011. Para a realização dessa, foram utilizados recursos gráficos de baixo custo e, fundamentalmente a colaboração dos autores que cederam seus trabalhos sem custo algum, da mesma forma os tradutores, essenciais para esse desenvolvimento. A comercialização desta obra não visa a aspectos lucrativos, mas tão-somente sociais.
Precedente analítico do atual cenário de manifestações populares ocorrentes no Brasil e no mundo, essa publicação, embora remetida aos manifestos de 2011 e 2012, aborda com a devida criticidade questões relevantes que ocasionaram motivações populares de protestos por todo o Globo. O capitalismo notavelmente pode ser considerado o grande opressor da sociedade. Assim como propulsiona o desenvolvimento econômico, precariza, num ritmo acelerado, as disparidades sociais, e tudo isso é dirigido por agentes políticos que parecem ignorar completamente os anseios da população. As atuais reivindicações denotam novas configurações, a começar pelo uso das redes sociais na divulgação das pautas, organização e convocação do povo para as ruas. Constata-se que os procedimentos para lutar podem ser outros, mais modernos e caracterizados pelo acesso instantâneo à informação, entretanto, o espírito e o desejo eminente por mudanças continuam sendo os mesmos. Leia Mais
Os cangaceiros: ensaio de interpretação histórica | Luiz Bernardo Pericás
Muitos trabalhos sobre o cangaço, principalmente sobre Lampião, já foram publicados. O cangaço serve e serviu de tema para diversas pesquisas acadêmicas ou de intelectuais não vinculados aos centros universitários, cordelistas, romancistas e cineastas. Em 2010 foi publicado o livro “Os cangaceiros: ensaio de interpretação histórica” do historiador Luiz Bernardo Pericás. Apesar de ter uma trajetória de pesquisa aparentemente um pouco distante dos cangaceiros, Pericás foi mais um que se encantou com o tema e realizou uma brilhante pesquisa cujo resultado é o excelente livro citado.
O livro aqui resenhado teve como meta analisar as diversas explicações dadas ao fenômeno do cangaceirismo. Assim, algumas generalizações são desconstruídas rompendo com interpretações românticas, fatalistas e deterministas acerca do tema. Um dos elementos mais importantes do livro (e talvez a contribuição mais positiva) foi o de tirar (ou ao menos contestar) os cangaceiros do enquadramento do banditismo social, defendido por Eric Hobsbawm. Além disso, não podemos deixar de lembrar que Pericás procurou analisar o que foi escrito sobre outros cangaceiros que circularam no sertão nordestino antes de Lampião: Antonio Silvino, Sinhô Pereira, Jesuíno Brilhante e Lucas da Feira. Leia Mais
Cansaço, a longa estação – PERICÁS (CTP)
PERICÁS, Luiz Bernardo. Cansaço, a longa estação. São Paulo: Boitempo, 2012. Resenha de: RUBBO, Deni Ireneu Alfaro. Punaré e Baraúna na Terra do Sol. Cadernos do Tempo Presente, n. 07 – 07 de abril de 2012.
Cada suspiro é um gole de vida de que a gente se desfaz.
Juan Rulfo
Luiz Bernardo Pericás é um escritor que dispensa apresentações. Apesar da pouca idade, seus diversos livros e artigos no Brasil e no exterior têm tornado um dos principais historiadores brasileiros marxistas da atualidade, com estudos sobre a obra de personalidades políticas intrigantes do cenário latino-americano como Che Guevara e José Carlos Mariátegui assim como, uma análise majestosa sobre o fenômeno do cangaço. E como se não bastasse, paralelamente, o autor tem acumulado em sua trajetória diversas obras de cunho literário, não menos instigantes que suas pesquisas. Em tempos de profissionalização e especialização, ser historiador e romancista, ao mesmo tempo, é seguir um caminho diferente do habitual, fora do compasso – e por isso mesmo faz que seja algo tão interessante e desafiador.
Não há dúvida que para aqueles que puxarem o livro e lerem as primeiras páginas de Cansaço, a longa estação, o novo romance do autor, rapidamente serão seduzidos em não parar, absorvidos integralmente por duas apaixonantes estórias de encontros e desencontros no sertão onde o tempo é uma “lentidão insana”. Todavia, se por um acaso o leitor conseguir resistir ao charme poético desse romance, ao encanto dos dois personagens, mesmo assim devera preparar-se para realizar a leitura de uma sentada só, como estratégia. Afinal, como enunciava o rebelde Walter Benjamin, “nem todos os livros se leem da mesma maneira”; e romances, por exemplo, “existem para serem devorados”. Como se pode perceber, trata-se de realçar uma estratégia da incorporação: “lê-los é uma volúpia da incorporação. Não é empatia.
O leitor não se coloca na posição do herói, mas se incorpora ao que sucede desde”.2
O romance é dividido em duas partes: a história de Punaré e de João Baraúna. Ambos em busca de um amor: Cecília (ou Cecica). A linguagem do livro, embora encontre um palavreado excêntrico, fruto do sertão “adusto e delirante”, paradoxalmente, não interrompe o rolar das linhas. Ao final da trama, a sensação é de que as palavras “estranhas”, ou pelo menos a imensa maioria, são fatalmente familiarizadas pelo fluxo da história narrada e pelas imagens que se vai facilmente criando. De qualquer modo, o leitor terá em mãos um glossário no final do livro para eventuais consultas, mas vale a pena mesmo seguir a orientação de Flávio Aguiar que assina a orelha do livro: “a melhor experiência é deixar-se levar pela música áspera e dissonante das palavras reunidas num fraseado melódico ao mesmo tempo fluido e truncado. Como, de resto, é a vida no sertão”.
Punaré. Cabloco silencioso, mas que “em cada artéria, fluía sangue quente”, trabalha duro todo dia na enxada para ajudar os pais, precocemente envelhecidos. O que ainda o motiva viver é a paixão pela rapariga Cecília. Porém, é uma paixão dividida com outro cabloco: João Baraúna. Existe uma tensão psicológica constante, como se em qualquer momento Punaré fosse emboscado pela vingança Baraúna, já que uma peleja de facão fez com que o primeiro atingisse com um punhal a face do segundo.
A paixão por Cicica divide o espaço emocional de Baraúna para com Deodoro (o boi) e Corisco (o cachorro). Como no afamado Vidas Secas de Graciliano Ramos, em que a cachorra baleia assume uma posição humana, ambos, cachorro e boi “serviam como vínculo ao mundo real, dois seres de pouca carne e muito osso, que, como ele, se agarravam a qualquer coisa para continuar vivos e de pé”.3
O desejo de fazer seu próprio destino, pedir a moça em casamento, apesar da circunstância infeliz, desfavorável e improvável, faz com que Baraúna escolha ir embora da casa de seus pais, carregando consigo os dois amigos. Depois de uma visita ao índio e ancião Simão, “o mago das matas”, “o homem santo”, e antes de finalmente chegar à casa de sua amada, o cachorro e a ovelha morrem durante o caminho, por motivos diferentes, transtornando o personagem.
João Baraúna. Assim como o primeiro personagem de que o leitor já está sintonizado, Baraúna “fazia tudo sozinho, vida de solitário”. A reputação de bandido, de assassino, de “cavaleiro do apocalipse”, não fazia o menor sentido, era “tudo mal-entendido”. Na verdade, a feiura desde menino o fez um sujeito desprezado, desrespeitado, achincalhado…
Na idade adulta, Baraúna trabalhava para o coronel Borges, “maioral e senhor da região”, e por ali que conhece e se encanta por Cecília, e que teve desde então reciprocidade. Não obstante, assim como Punaré, que teve suas melhores e únicas companhias mortas de maneira trágica, Baraúna tem o mesmo destino: o pai assassinado. Em transe,“começaria a partir daí seu vagabundear incessante: não haveria retorno…”.
Depois de vingar-se da morte de seu pai, matando os capangas, visita o mesmo ancião Simão, e, finalmente, parte para “sequestrar” a filha de Manuel, que se deixa levar espontaneamente em nome da aventura.
Na verdade, o sertão, ambiente do romance por excelência é mais uma circunstância do que qualquer outra coisa. A centralidade do livro talvez gravite com mais potência no amor e na solidão, na esperança e melancolia que vivenciam os personagens desse enigmático triângulo amoroso. O amor por Ceci é uma tentativa desesperada de livrar-se da solidão. No mesmo esteio, as figuras com que Punaré e Baraúna tiveram mais sensibilidade emocional e afetiva, ao morrerem, proporcionam um poço terrível de angústia e lamentação para os nossos personagens: o choro explosivo é o de desespero da solidão, do cansaço da exploração e opressão que não passa.
O princípio motor dos três personagens é o princípio da esperança e o sonho acordado daquilo que ainda-não-existe (noch-nicht-sein), de que falava Ernst Bloch. Sabemos que na enquete sobre o amor que o movimento surrealista maravilhosamente realizou outrora, uma das perguntas dizia: “Você acredita na vitória do amor admirável sobre a vida sórdida ou da vida sórdida sobre o amor admirável?”. Na terra do sol, do sertão sem mar, o amor não é admiração, mas a redenção de uma longa estação.
Notas
2 Walter Benjamin, 1995: 275.
3 Luiz Bernardo Pericás, 2012:21.
Referências
BENJAMIM, Walter. Rua de mão única. São Paulo: Brasiliense, 1995.
BLOCH, Ernst. O princípio da esperança. Rio de Janeiro: UFRJ, 2005.
PERICÁS, Luiz Bernardo. Cansaço, a longa estação. São Paulo: Boitempo, 2012.
Deni Ireneu Alfaro Rubbo – Mestrando do Programa de Pós-Graduação de Sociologia da Universidade de São Paulo (PPGS/USP) e bolsista CNPq.
Os jacobinos negros: Toussaint L’Ouverture e a revolução de São Domingos | Cyril Lionel Robert James
I. Sobre o Sr. Cyril Lionel Robert James [2]
O historiador, romancista e jornalista Cyril Lionel Robert James nasceu em janeiro de 1901 na ilha de Trinidad. Teve uma infância e juventude privilegiada, marcada por uma excelente formação escolar e pela prática esportiva do cricket. Com apenas 19 anos deu início a sua carreira docente, lecionando literatura, na Royal Queen’s College.
Em 1932, aos 31 anos, muda-se para a Grã-Bretanha, devido a sua paixão e conhecimento sobre cricket tornasse repórter esportivo do Manchester Guardian. Na terra da rainha, filia-se ao Partido Trabalhista Independente, (Independent Labour Party) e, em 1938, aderiu a IV Internacional Comunista, entrando em contato, mais intensamente, com as ideias de Leon Trotsky.
É notória a influência que as teses marxistas, em especial as interpretações trotskista, exercerão em suas obras “A Revolução Mundial 1917-1937”, publicada em 1937, e os “Jacobinos negros” de 1938. Vale destacar, que nesse período, a Europa passava por grande instabilidade política, devido à ascensão do nazi- -fascismo e pelo totalitarismo stalinista na URSS.
Por conta da Segunda Guerra Mundial, James refugia-se nos Estados Unidos, onde deu prosseguimento a suas atividades acadêmicas e políticas. Membro fundador do Partido Socialista dos Trabalhadores (Socialist Workers Party ou SWP) publicou em 1948 o manifesto “Uma resposta revolucionária ao problema do negro nos Estados Unidos”.
Devido a sua militância, em 1953, James foi expulso dos Estados Unidos. Ele decidiu voltar à Inglaterra, onde permaneceu até 1958, quando, então, retorna a Trinidad. Em sua terra natal, envolve-se na luta pela libertação anti-colonialista britânica. Ainda na década de 1950 publica a obra “Navegantes, Renegados e Náufragos: Herman Melville e o mundo em que vivemos” em 1953.
A década de 1960 foi bem movimentada para o nosso autor, no campo político James se envolve nos movimentos de independência na África e em Trinidad, é entusiasta dos ideais do Pan-Africanismo e da integração das ilhas caribenhas em uma – Federação das Índias Ocidentais.
No tocante a carreira acadêmica e produção intelectual publica em 1960, “Política Moderna”, em 1962, “Partidos Políticos Livres nas Índias Ocidentais” e, em 1963, “Além da Fronteira”. Em 1968, vem o convite para lecionar na prestigiada Universidade de Columbia nos Estados Unidos.
Durante a década de 1970, James retorna para a Inglaterra e ainda encontra fôlego para publicar “Nkruma e a Revolução de Gana” em 1977. Na década de 1980 retorna para Trinidad aonde veio a falecer em 1989, deixando como legado, uma produção acadêmica respeitada e de referência para estudos nas ciências humanas, bem com, um exemplo de vida marcado pela entrega a militância e a seus ideais.
II. Sobre a obra: Os jacobinos negros: Toussaint L’Ouverture e a revolução de São Domingos
Em 1938 James, residindo em Londres, publica “Os jacobinos negros” (The black jacobins), a obra trás questões referentes à revolução negra de São Domingos e a sua relação com a sua principal liderança: Toussaint L’Ouverture. No Brasil o texto terá sua primeira tradução apenas em 2000, feita por Afonso Teixeira Filho, com uma edição revisada em 2007 pela Editora Boitempo. Em suas 400 páginas a estrutura física do livro está dividida em 13 capítulos acompanhados de um apêndice intitulado “De Toussaint L’Ouverture a Fidel Castro”.
Para maior compreensão do livro, temos que levar em conta o contexto em que foi escrito: descrédito do liberalismo, auge do nazi-fascismo e predominância das teorias eugênicas. Tal cenário acabou motivando o autor a escrever um texto, que denunciava o estado de opressão em que vivam os africanos e seus descendentes, seja na África ou em outras partes do globo, tornando a posteriori leitura obrigatória para estudos sobre a diáspora Africana.
Embora o ano de publicação date de 1938 James já havia escrito sobre o assunto antes, em 1932. O trabalho de levantamento bibliográfico e de fontes foi grandioso, sendo necessário até “importar da França livros que trataram seriamente desses eventos tão célebres na história daquele país.” [3]. A pesquisa também contou com correspondências e relatórios oficiais, compêndios de história do comercio colonial, narrativas de viajantes, dados estatísticos e biografias.
Ainda no tocante a função social da obra e sua importância para a interpretação histórica, James nos aponta, que a grande virtude contida no “Os jacobinos negros” é a ênfase dada ao protagonismo dos escravos no processo revolucionário, nas palavras do autor: “foram os próprios escravos que fizeram a revolução.” [4] , tendo especial destaque a figura do líder do movimento – “foi quase totalmente trabalho de um único homem: Toussaint L’Ouverture” [5] .
III. A tese central
A viabilização da revolução no Haiti deve-se, em parte, ao fato dos escravos já se encontrarem, em certa mediada, organizados e disciplinados, devido o sistema fabril, já implantada, no século XVIII, nas lavouras da ilha. Para o autor:
Trabalhando e vivendo juntos em grupos de centenas nos enormes engenhos de açúcar que cobriam a Planície do Norte, eles estavam mais próximos de um proletariado moderno do que qualquer outro grupo de trabalhadores daquela época, e o levante foi, por essa razão, um movimento de massas inteiramente preparado e organizado [6]. (Grifo nosso)
Observa-se que para o autor, já no século XVIII, havia entre os escravos do Haiti uma consciência de classe, que os permitiu se organizarem para combater a exploração colonial. Deve-se destacar também, que os revoltosos tinham o desejo de libertar-se da tirania a que eram submetidos, deste modo, se insurgiam contra os maus tratos, ainda nos navios negreiros – “Morriam não apenas por causa do tratamento, mas também de mágoa, de raiva e de desespero. Faziam longas greves de fome; desatavam as suas cadeias e se atiravam sobre a tripulação numa tentativa inútil de revolta.” [7]
III. Leitura Marxista Revolta escrava ou uma luta de classes?
Mesmo para os leitores que não tem contato com a biografia de James, a terminologia empregada por ele, deixa claro que se trata de uma leitura fundada no marxismo. Não são poucos os conceitos empregos em seu texto: proletariado, imperialismo, luta de classes, revolta das massas trabalhadoras, exploração dos escravos, dos trabalhadores – constituem a interpretação dado pelo nosso autor para o problema em que se dispões a analisar além das citações a Lênin e a Trotsky.
É possível afirmarmos, diante do seu livro, bem como de sua biografia, que James, como filiado ao Partido Trabalhista Independente, militante da IV Internacional, fundador do Partido Socialista dos Trabalhadores (SWP) e integrante ativo de diversos movimentos sociais, de que demarcou sua interpretação sobre a História a partir de sua leitura da “teoria da revolução permanente” proposta por Leon Trotsky.
Respondendo a questão feita acima, se partirmos da leitura de nosso autor sobre o fato histórico que ocorreu no Haiti, foi à demonstração de uma luta de classes. Tal leitura recebeu diversa criticas, uma das mais conhecidas no Brasil foi feita pelo professor Dr. Jacob Gorender
As rebeliões, no começo do século XIX, no continente americano, só podiam ter caráter antiescravista e anticolonialista. No mundo atual, o cenário internacional é sacudido pelas lutas anticapitalistas e antiimperialistas. Trata-se de etapas históricas profundamente diversas. Não obstante, o anacronismo não prejudica o texto que se segue ao Preâmbulo.[]8
Não podemos deixar de mencionar a crítica feita pelo professor Jacob Gorender ao preâmbulo datado de 1980, em que James liga as rebeliões escravas no Haiti com as lutas operárias do século XX cometendo aquele que é considerado o maior dos pecados para o historiador: o Anacronismo. Todavia dentro de uma abordagem histórica e social, entendemos que devemos contextualizar o autor e sua obra com sua leitura de vida, nos parece que a escrita de “Os jacobinos negros” e o prefácio de 1980, antes de um texto acadêmico é um esforço militante, que tem como pretensão denunciar, conforme o próprio autor, a “perseguição e opressão” que vivem os africanos e os afro- descendentes.
VI. O caso Haiti
Em 1789, a colônia francesa das Índias Ocidentais de São Domingos representava dois terços do comércio exterior da França e era o maior mercado individual para o tráfico negreiro europeu. Era parte integral da vida econômica da época, a maior colônia do mundo, o orgulho da França e a inveja de todas as outras nações imperialistas. A sua estrutura era sustentada pelo trabalho de meio milhão de escravos.[9]
Basta ligar a televisão, sintonizar o radio ou acessar a internet e entrar em contato com as notícias que vem do Haiti. Logo nos depararmos com as palavras: tragédia, caos, crise, fome, morte, doenças. Estas informações quando soam aos nossos ouvidos nos faz refletir – como uma colônia produtora de açúcar, café, anil, cacau, algodão, entre outros produtos, responsável por dois terços do comércio exterior da França, que em 1789, exportou 11 milhões de libras [10], fracassou no projeto de Estado-nação livre da miséria e das desigualdades? James propôs uma resposta.
Para o nosso autor, o fracasso do projeto Haiti não se deve apenas a falta de diversidade econômica, uma vez que, a produção primária dominava a paisagem, não havendo maiores perspectivas de geração de riqueza, em especial ao desenvolvimento industrial.
Na análise de James o isolamento ou quarentena imposta pelas potências imperialistas e até mesmo as nações latino-americanas, foram responsáveis pelo atrofiamento econômico da ilha caribenha, não permitindo o desenvolvimento de uma economia mais sólida, tendo por consequência o agravamento das desigualdades históricas já bem conhecidas pela massa trabalhadora do Haiti.
V. Considerações finais
Compreendemos o texto de Cyril Lionel Robert James, como sendo um esforço para responder questões que não se restringem somente ao caso da independência do Haiti, mas como uma leitura sobre a exploração do trabalho escravo e as formas de relação do sistema escravista e colonial na América.
Para finalizarmos, podemos dizer que ainda hoje, o texto serve como instrumento de análise para entendermos as relações de trabalho em muitos países latino-americanos, onde encontramos cada vez mais latente essa realidade apregoada pelo método capitalista de exploração, proposta pela manutenção dos grandes latifúndios, das monoculturas de exportação e da exploração da mão de obra dos trabalhadores do campo.
Notas
2. Informações extraídas da comunicação feita pelo doutorando, Unesp/Franca, Rubens Arantes no curso “A escravidão na cultura ocidental”; e pela comunicação de: SILVA, Tiago Hilarino Christophe da. Um marxista caribenho: o pensamento e a práxis de Cyril Lionel Robert James. Texto integrante dos Anais do XIX Encontro Regional de História: Poder, Violência e Exclusão. ANPUH/SP-USP. São Paulo, 08 a 12 de setembro de 2008. Cd-Rom.
3. JAMES, C. L. R. Op. cit., p. 11.
4. Idem, p. 14.
5. Idem, p. 15.
6. Idem, p. 99.
7. Idem, p. 23.
8. GORENDER, Jacob. O épico e o trágico na história Haiti. Estudos Avançados. V. 18, n. 50, 2004, p. 296.
9. JAMES, C. L. R. Op. cit., p. 15.
10. Idem.
Carlos Alexandre Barros Trubiliano1 – Doutorando em História Política da Universidade Julho de Mesquita (Unesp – Campus Franca)/ Bolsista FAPESP. E-mail: trubiliano@hotmail.com
JAMES, C. L. R. Os jacobinos negros: Toussaint L’Ouverture e a revolução de São Domingos. São Paulo: Boitempo, 2010. Resenha de: TRUBILIANO, Carlos Alexandre Barros. Albuquerque – Revista de História. Campo Grande, v. 4, n. 7, p. 225-230, jan./jun., 2012.
Estrutura social e formas de consciência II: a dialética da estrutura e da história – MÉZÁROS (TES)
MÉSZÁROS, István. Estrutura social e formas de consciência II: a dialética da estrutura e da história. Tradução de Rogério Bettoni. São Paulo, Boitempo, 2011. 370 p. Resenha de: NEVES, Renake Bertholdo David. Revista Trabalho, Educação e Saúde, Rio de Janeiro, v.9, n.3, nov. 2011.
O mais novo livro do filósofo húngaro István Mészáros lançado pela Boitempo, na coleção Mundo do Trabalho, tem como escopo fundamental demonstrar a relação dialética descoberta por Marx entre estrutura social e história, objeto de relevância primordial para as ciências humanas e sociais.
Mészáros faz uma apurada e erudita análise da relação contida na metáfora base-superestrutura, isto é, a relação fundamental entre o modo de produção, a base material da sociedade, e a consciência social, manifesta em suas diversas formas – arte, religião, moral, política etc. O autor evidencia a concepção dialética expressa no modelo de base e superestrutura, refutando as acusações de ‘determinismo econômico’ imputado a Marx, e mostra que a metáfora deve ser entendida como uma totalidade cujas partes não estão simplesmente interconectadas, nem são igualmente importantes: formam um todo estruturado, com uma ordem interna adequada e uma hierarquia determinada, ainda que, em conformidade com o caráter intrínseco a um complexo dialético, devam ser apreendidas como dinamicamente em mutação.
O autor deixa claro que, na concepção dialética de Marx, cada elemento da vida social teve de ser explicado em termos de sua gênese e transformação histórica. Reconhece a importância do famoso ‘Prefácio’ de 1859 à Contribuição à crítica da economia política, admitindo que ele traz uma avaliação concisa da relação entre base e superestrutura, mas também recorre largamente aos Grundrisse ea O capital a fim de fundamentar seu argumento.
O filósofo explicita que não existe correspondência mecânica entre a materialidade e as ideias, mas uma interrelação dialética tripla que constitui o intercâmbio entre base e superestrutura: primeiro, as relações de produção conformam a estrutura econômica da sociedade; segundo, sobre essa base material, erige-se uma superestrutura jurídica e política; por fim, o terceiro fator essencial nesse intercâmbio é constituído pelas diversas “formas ideológicas” que se arquitetam como “formas sociais determinadas de consciência e, como tais, correspondem à superestrutura jurídica e política” (p. 127).
O exame da evolução da superestrutura jurídica e política ganha destaque nessa análise sobre a relação entre a estrutura material e as formas de consciência. Mészáros sublinha que essa forma normativa se desenvolve como tal apenas em sociedades que se diferenciaram em classes, e não pode ser confundida com a ‘superestrutura’ em seu sentido primordial, sendo uma forma historicamente específica de superestrutura e que adquirirá proeminência a partir do advento do sociometabolismo do capital.
A superestrutura jurídica e política é definida, ao mesmo tempo, como um regulador do intercâmbio social e um “usurpador a serviço dos usurpadores da riqueza social” (p. 99). O aporte de Mészáros sobre o tema joga por terra o mito capitalista do Estado mínimo, do laissez-faire, pois apresenta categoricamente como o Estado no capitalismo alcançou sua preponderância no curso do desenvolvimento da produção generalizada de mercadorias e da instituição prática de relações de propriedade adequadas à manutenção desse tipo de produção da riqueza social, não podendo deixar de prescindir de seu caráter centralizador e burocrático, que a tudo invade, para garantir a reprodução ampliada do capital, inclusive por meio do aparato militar. A origem do Estado moderno, constata Mészáros, não é resultado de uma determinação material supostamente unilateral – explicação bastante usual nas concepções marxistas vulgares -, mas se constituiu dialeticamente por meio de sua necessária interação recíproca com a base material do capital. Portanto, o Estado não apenas foi moldado pela estrutura material da sociedade, mas também moldou (e molda) a acumulação do capital, assumindo a função de ser a estrutura de comando geral do sistema do capital diante da incontrolabilidade da dinâmica centrífuga de uma produção que subsome o valor de uso ao valor de troca e que está sempre orientada para a acumulação.
Mészáros defende que a continuidade da normatividade da superestrutura jurídica e política é radicalmente inconciliável com a ideia de emancipação comunista; isso não significa que na sociedade dos ‘produtores associados’ seja possível a ausência de uma normatividade, pois o recuo progressivo das barreiras naturais exige a intervenção crescente dos fatores superestruturais, porém de maneira autoconsciente, não na forma alienada dos sistema do capital. A superação do Estado é, portanto, condição necessária, entretanto não suficiente, para a transição rumo a uma sociedade socialista. Caminho que não é fácil, sustenta Mészáros, em face dos exemplos das sociedades do Leste Europeu, onde o Estado se reconstituiu mais poderoso do que nunca.
Por sua vez, a relação entre base e superestrutura não pode ser dissociada de outra ideia cara ao filósofo lukácsiano: a de uma ontologia do ser social permeada por uma teleologia do trabalho. O autor assinala que o fundamento estrutural de todos os processos sociais “é a objetividade trans-histórica das determinações ontológicas sociais” (p. 49), uma vez que o metabolismo social é radicado no metabolismo entre humanidade e natureza. E nesse metabolismo, o trabalho cumpre a função de mediação ativa, sempre com um pôr teleológico. Contudo, o materialismo histórico, alerta Mészáros, só pode conceber a “teleologia objetiva e com fim aberto do trabalho em si” (p. 55), e jamais pode invocar a ideia de uma progressão de estágios ‘logicamente necessária’ no desenvolvimento histórico real. Esse foi um dos grandes equívocos manifestos nas concepções idealistas da história, que acabaram por tratar a teleologia em geral como uma forma de teologia, elaborando suas explicações em termos de ‘causas finais’, identificando-as com a manifestação do “propósito divino na ordem da natureza” (p. 55). A refutação dos pontos de vista idealistas do processo histórico, no entanto, se deterá com maior apuro em um capítulo dedicado às filosofias da história de Kant e Hegel, cuja teleologia do processo histórico está carregada de aspectos teológicos, mas tributários das limitações de um horizonte social determinado – a ascensão do modo de produção capitalista -, e não de um quadro teológico conscientemente assumido, como era o caso em santo Agostinho, Joaquim de Flora ou Friedrich Schlegel. Mészáros mostrará como os sistemas teleológicos desses pensadores são incompatíveis com a teleologia presente no pensamento marxiano, incidindo em uma teologia que congela a história em um ponto do tempo ‘ideologicamente conveniente’, auto-legitimando a sociedade burguesa: a história é “trazida para um fim”, em vez de representar o quadro explicativo de toda a teoria, como o é em Marx. O principal fio condutor da crítica dessa teleologia da história apologética do capital será o excelente exame sobre a fusão entre necessidade natural e necessidade histórica realizada por esses filósofos e também pela economia política. Tal síntese, como demonstra a análise de Mészáros, transforma aquilo que é historicamente específico em algo alegadamente natural, tornando eterno o “controle social metabólico do capital” e dando ao capitalismo um caráter supra-histórico. O autor, contudo, faz questão de pontuar que esses pensadores empreenderam a apologia do capital na fase ascendente do modo de produção capitalista, quando, apesar do impacto alienante que ele ocasionou sobre as diversas esferas da vida humana, houve o maior progresso produtivo de toda a história até então e uma extensão da igualdade e liberdade a todos os indivíduos – mesmo que apenas formalmente -, ao mesmo tempo em que o antagonismo de classes não era tão agudo. Tal apologética é muito distinta daquela perpetrada por cientistas e filósofos que vêm realizando suas investigações e reflexões já na fase descendente do sociometabolismo do capital, uma vez que, nesse último caso, a apologia é realizada contra todas as evidências das contradições insolúveis e dos antagonismos de classes explosivos desse modo de produção. Mészáros assinala que a “busca da verdade” é abandonada em detrimento da defesa dos interesses de reprodução e acumulação do capital.
O autor pondera que o conceito de mudança estrutural que exprime uma visão histórica aberta, em direção a um futuro “estruturalmente alterável”, sobre a base das determinações estruturais objetivas do desenvolvimento em desdobramento em si, é absolutamente incompatível com o ponto de vista do capital.
O ser humano, assinala Mészáros, torna-se sujeito histórico no desenvolvimento progressivo de sua capacidade para superar os graves obstáculos da necessidade, seja ela natural ou “histórica autoimposta”, alienante. É nesse processo de autoconstituição do sujeito ativo da história que se pode identificar o processo histórico de transformação emancipadora da humanidade de que falava Marx.
O grande confronto histórico de nosso tempo enfrentado todos os dias pelos sujeitos históricos é o antagonismo estrutural fundamental entre capital e trabalho. A defesa da transformação emancipadora que desmistifica criticamente o fetichismo do capital só poderia surgir em um momento determinado, no início da fase descendente do desenvolvimento do sistema do capital. A ordem reprodutiva societal alternativa possui uma fundamentação objetiva, constituindo sua viabilidade a partir das “potencialidades positivas necessariamente malogradas do capital”, como o tempo disponível proporcionado pela incrível produtividade do trabalho que o capitalismo engendrou, mas que não pode ser realizado como um ‘reino da liberdade’ num sistema que se orienta pela acumulação cega.
O estudo de Mészáros responde não apenas a uma preocupação teórica fundamental para as ciências humanas e sociais. O empenho em apresentar como se dão as determinações histórico-sociais, de demonstrar a diferença entre aquilo que é particular e universal, e entre o que é especificamente histórico e aquilo que é trans-histórico (e de que nada há no que se refere ao mundo dos homens que possa ser tomado como supra-histórico) também vem suprir outro anseio, pois a apreensão do movimento histórico real possibilita importante arma para a “necessária intervenção emancipadora” dos seres humanos. A referência à 11ª tese sobre Feuerbach de Marx, aliás, será constante ao longo de todo o livro: “Os filósofos apenas interpretaram o mundo de diferentes maneiras; o que importa é transformá-lo”.
Renake Bertholdo David das Neves – Universidade Federal Fluminense (UFF), Rio de Janeiro, Brasil. E-mail: renake@yahoo.com
[MLPDB]O 18 Brumário de Luís Bonaparte – MARX (CTP)
MARX, Karl. O 18 Brumário de Luís Bonaparte. São Paulo: Boitempo, 2011. Tradução Nélio Schneider. Resenha de: MAZA, Fábio. O 18 Brumário de Luís Bonaparte de Karl Marx Cadernos do Tempo Presente, São Cristóvão, n. 04 – 04 de julho de 2011.
A Boitempo Editorial tem se esmerado em reeditar as obras de Marx e Engels. Através da Coleção Marx-Engels, vem apresentando ao leitor brasileiro uma série de escritos traduzidos diretamente do alemão. Além de títulos que já se encontravam disponíveis em língua portuguesa, a Boitempo publicou textos como Sobre o suicídio2 inédito no Brasil. Agora traz seu décimo título, “a célebre análise de Marx sobre o processo que levou da Revolução de 1848 para o golpe de Estado de 1851 na França”.3 De fato, O 18 de Brumário de Luís Bonaparte é um livro notável e obteve uma fortuna nas ciências sociais que poucas obras ousaram conquistar.4 As razões dessa ventura se devem a vários fatores de difícil síntese em uma resenha. Contudo ao reler o 18 Brumário percebe-se que a obra não perdeu força e pode jogar luz sobre os limites da representação política parlamentar. Como isso não quero retornar a uma anacrônica classificação do tipo “democracia burguesa”, expediente utilizado ainda por certa esquerda esquizofrênica reduzida a guetos. Mesmo assim, não se pode deixar de se ater aos acontecimentos que tem sacudido o norte da África e o Oriente Médio e perceber a forte demanda por democracia em vários países da região. Ou ainda, os acontecimentos da Grécia e Espanha que vem questionando as estruturas formais da democracia e exigindo ampliação dos mecanismos democráticos das decisões políticas e econômicas. Seja em Madri, Barcelona ou Atenas o que está em jogo é uma ampliação da democracia para além do revezamento entre partidos conservadores ou socialdemocratas no poder.
É claro que a realidade que Marx analisou tem muito pouco haver com o que acontece em nossa época. Em primeiro lugar por que a constituição de organizações diversas que fazem parte das democracias ocidentais hodiernas não existia à época de Marx ou estavam por se constituir. Depois Marx deixa claro em sua análise sagaz e detalhada que no período de 1848 a 1851 todas as armas forjadas pela burguesia contra o feudalismo começavam a se voltar contra ela. Assim se expressa o autor a respeito dos mecanismos democráticos na República Parlamentarista sobre o domínio burguês: Ela [a burguesia] compreendeu que todas as assim chamadas liberdades civis e todos os órgãos progressistas atacavam e ameaçavam a sua dominação classista a um só tempo na base social e no topo político, ou seja, que haviam se tornados “socialistas”.5 Esse trecho mais do que apontar a faceta caricatural que a burguesia assumia nesse instante de sua história, introduz-nos em um tema dos mais caros ao livro. Na descrição, quase cronológica dos acontecimentos entre 1848 a 1851, Marx aponta de como cada classe ou fracção de classe se apoio nos ombros dos seus antecessores para em seguida trai-los em causa própria. O único sujeito social golpeado por todos teria sido o proletariado. Em seguida a pequena-burguesia democrática via-se superada pelos republicanos burgueses e esses acutilados pelo Partido da Ordem. Assim, afirma Marx que ao se apoiar nos “ombros” do Partido da Ordem, esse ao encolhê-los deixa os republicanos burgueses se estatelado no chão.
Essa descrição, aqui bastante resumida, não dá conta do grau de complexidade do jogo político e dos conflitos sociais envolvidos no período e os quais Marx analisa com maestria. O autor pondera a cada passo as alianças que são feita e desfeitas em várias oportunidades. Assim se a pequena burguesia democrática abando o proletariado a sua própria sorte nas jornadas de junho de 1848, quase dois anos depois buscará seu apoio para as eleições complementares de 10 de março de 1850. Por sua vez com a vitória dos candidatos social-democratas na mesma eleição, Bonaparte “se viu novamente confrontado com a Revolução” e não lhe restou alternativa a não ser se curvar diante do Partido da Ordem.
Em todos esses casos – cujos exemplos são reduzidos aqui devido ao espaço – Marx analisa a incapacidade dos diversos grupos de tomarem o poder em suas mãos. Como uma linguagem ácida e irônica Marx aponta a “covardia” da pequena-burguesia, dos republicanos liberais e mesmo do Parido da Ordem de estenderem o controle do poder político a toda a sociedade. Esse tipo de situação pavimentou o caminho para que um aventureiro tomasse em definitivo o controle político em suas mãos.
Aqui temos, portanto, o quadro que permitiria a construção de um conceito caro para as Ciências Sociais: o Bonapartismo. O conceito nos remete a uma “manifestação extrema daquilo que, em escritos marxistas recente sobre o Estado foi chamado de „autonomia relativa‟…”6 Uma forma de governo que desautoriza o poder legislativo no Estado democrático e que “efetua a subordinação de todo o poder ao executivo”.7 Mas essa descrição não nos autoriza a concluir a natureza mais profunda desse fenômeno. O bonapartismo é antes de tudo “produto de uma situação em que a classe dominante da sociedade capitalista já não é capaz de manter seu domínio por meio constitucionais e parlamentar.”8 Não se trata de um conceito abstrato, mas fruto de uma análise balizada “no calor dos acontecimentos”. O 18 Brumário será a primeira tentativa de “aplicar” os “fundamentos praxiológicos da concepção materialista da história” à “fenômenos sócias concretos”9 Marx tem plena consciência dos limites históricos impostos tanto ao proletariado quanto à burguesia e nesse sentido vislumbra no conflito de classes o motor que levaria Bonaparte ao golpe de estado.
[…] ao tachar de heresia “socialista” aquilo que antes enaltecera como “liberal”, a burguesia confessa que seu próprio interesse demanda que seja afastada do projeto de governar a si própria; que, para estabelecer a tranquilidade no país, sobretudo o seu Parlamento de burgueses devia ser silenciado; que, para preservar o seu poder intacto, o seu poder político devia ser desmantelado; que os burgueses privados só poderiam continuar a explorar as demais classes e desfrutar sem percalços a propriedade, a família, a religião e a ordem se sua classe fosse condenada à mesma nulidade política que todas as demais classes.10 Portanto, diante do perigo da Revolução, da ameaça ao seu poder social, a burguesia abre mão do poder político. É assim que o Estado parece emergir como autônomo, como “mediador ostensivo.”11 A independência do Estado não poder ser vista como algo “suspenso no ar”. Sua autonomia é “pura aparência, se se atentar para o conteúdo concreto da política por ele levada a efeito.”12 Em todo o relato de Marx ele recheia seu texto como desfile de personagens políticas que servindo outros grupos sociais e em particular o Partido da Ordem, após o golpe de Bonaparte passaram a servir ao seu governo. Além disso, alguns autores nos fazem lembrar que a ditadura de Bonaparte teria se assentado no campesinato da pequena propriedade (Miliband; Pistone; Marcuse).A edição da Boitempo traz uma novidade impar. Trata-se de um prólogo assinado por Herbert Marcuse escrito para edição de 1965 do 18 Brumário em Frankfurt.13 Sua publicação pela primeira vez no Brasil permite um enriquecimento analítico da obra Marx a luz das reflexões de um autor do século XX e que viveu os percalços do fascismo e da guerra.
Marcuse faz diversas considerações sobre os acontecimentos do golpe de Bonaparte, mas irei me ater a um aspecto de sua análise que me parece muito rico, pois leva-nos a perceber que Marx conhecia muito bem os limites do proletariado no tempo da Revolução de 1848. Também nos esclarece quanto ao estilo da escrita presente em o 18 Brumário. Marcuse acredita que Marx tinha plena consciência da derrota e, portanto o “desespero” faz “parte da teoria e da sua esperança.”14 Peço licença ao leitor para citar a saborosa passagem em que Marcuse defende a tese explicitada no trecho acima: […] contra a vontade de quem a escreveu, a obra se torna alta literatura. A linguagem torna-se conceito da realidade, o qual, mediante a ironia, resiste ao horror dos eventos. Diante da realidade, nenhuma fraseologia, nenhum clichê- nem mesmo os do socialismo […] o escárnio e a sátira constituem a aparência real da sua verdade […] estupidez, ganância, baixaria e brutalidade que perfaz a política deixa a seriedade sem fala.15 Como discordar de Marcuse se justamente Marx faz desfilar em seu texto um cortejo fantasmagórico de personagem que se apresentam como caricaturas de um passado mais “glorioso”. Como não aceitar que a linguagem de Marx é irônica e por isso mesmo, como ácido, dissolve manobras políticas e personagens desnudando suas figuras esquálidas. O estilo de Marx – alta literatura – é marca indelével nessa obra. Como não concordar com Marcuse quando Marx, ao tratar de Ledru-Rollin – um montagnard que se refugia no exterior – descreve sua situação assim: “na distancia, sua figura arrebatada do chão da ação parecia aumentar de tamanho na mesma proporção em que o nível da Revolução baixava […]”.16 Cabe por fim falar de alguns aspectos problemáticos na presente edição da Boitempo. Além de erros de grafia, há graves falhas nas notas que acompanham o texto. Em resenha para a revista Carta Capital17 Pompeu apontou, por exemplo, a nota na página 18 que nos remete para 70 que simplesmente não existe, pois a última nota é 69. Mas também podemos observar vários outras incorreções. A nota 20 da página 55 indica a nota 9 da página 34 quando na verdade deveria ser nota 8, enquanto na mesma página 55 a nota 21 nos remete a nota 1 quando deveria ser a nota 9. Os exemplos poderiam se multiplicar. Assim, tamanho descuido com a edição pode induzir o leitor desavisado a erros e prejudicar a compreensão de muitos fatos que dão suportes as análise de Marx.
Notas
2 MARX, Karl. Sobre o suicídio. Tradução Rubens Enderle e Francisco Fontanella. Boitempo Editorial, São Paulo, 2006.
3 http://www.boitempo.com/livro_completo.php?isbn=978-85-7559-171-0
4 IANNI, Octavio. Apresentação. O 18 Brumário e Cartas a Kugelmann, Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2002. 7ª edição.
5 MARX, Karl. O 18 Brumário de Luís Bonaparte – tradução nélio schneider. São Paulo: Boitempo, 2011, p. 80
6 MILIBAND, Ralph. Bonapartismo. Dicionário do Pensamento Marxista. Tom Bottomore. Jorge Zahar Editor, Rio de Janeiro, 1997, p.35.
7 PISTONE, Sergio. Bonapartismo. Dicionário de Política. Noberto Bobbio. Editora Universidade de Brasília. Brasília. DF. 1992.p 118.
8 MILIBAND,Ralph, Op.cit.
9 BRAGA, Ruy. O 18 Brumário de Luís Bonaparte. Karl Marx. São Paulo: Boitempo, 2011.
10 O 18 Brumário de Luís Bonaparte. Karl Marx – tradução nélio schneider. São Paulo: Boitempo, 2011, p. 81
11 MILIBAND, Ralph, Op.cit
12 PISTONE, Sergio, Op.cit
13 Na verdade trata-se de um epílogo da edição alemã de 1965 e que na presente edição da Boitempo passa ser prólogo.
14 MARCUSE, Herbet. Prólogo. O 18 Brumário de Luís Bonaparte. Karl Marx. São Paulo: Boitempo, 2011, p.13
15 MARCUSE, Herbet. Prólogo. O 18 Brumário de Luís Bonaparte. Karl Marx. São Paulo: Boitempo, 2011. p. 13
16 MARX, Karl. Op.cit.p 68 17 POMPEU, Renato. O escrito e o lido. Carta Capital. nº 647, 25 de maio de 2011.
Fabio Maza – Doutor em Ciências: História Social pela Universidade de São Paulo. Professor do Departamento de História da Universidade Federal de Sergipe. E-mail: fabiomaza@uol.com.br
Occupy. Movimentos de protesto que tomaram as ruas – HARVEY et al (CEFP)
HARVEY, David et al. Occupy. Movimentos de protesto que tomaram as ruas. São Paulo: Boitempo, Carta Maior, 2012, 87p. ALMEIDA, Maria Cecília Pedreira de. Cadernos de Ética e Filosofia Política, São Paulo, v.18, n12, p.267-270, 2011.
O 18 de Brumário de Luís Bonaparte | Karl Marx
O marxismo é geralmente associado e descrito, por muitos críticos, como determinismo econômico. Em que pese o assento dado por Marx à análise econômica da sociedade, tal interpretação não é capaz de apreender a relação dialética entre as bases materiais de existência, diretamente ligadas à atividade econômica, e o exercício do poder politico, bem como a dinâmica do desenvolvimento da luta de classes. Neste sentido, O 18 de Brumário de Luís Bonaparte, publicado em 1852, é uma demonstração da aplicação do método dialético materialista à análise e síntese dos acontecimentos que se desenrolaram no decorrer de quase quatro anos. O dinamismo da luta de classes e a relação dialética entre base e superestrutura, evidenciados no destaque dado aos aspectos políticos e às disputas decorrentes deles vão de encontro às acusações de determinismo econômico. Leia Mais
Contextos da justiça: Filosofia política para além de liberalismo e comunitarismo – FORS (NC-C)
FORST, Rainer. Contextos da justiça: Filosofia política para além de liberalismo e comunitarismo. Trad. Denilson Luis Werle. São Paulo: Boitempo, 2010. Resenha de: MELO, Rúrion. Automonia, justiça e democracia. Novos Estudos CEBRAP, São Paulo, n.88, Dez, 2010.
Um dos traços mais característicos da “renovação” da teoria crítica hoje é o enfrentamento dessa tradição de pensamento com o problema da legitimidade e da dimensão normativa das instituições políticas1. Cada vez menos os temas considerados pelas teorias críticas da sociedade permitem que se conclua pela “impossibilidade da democracia”2, levando antes à formulação de novos diagnósticos vinculados a uma concepção de crítica social mais radicalmente política e pluralista. Quando Seyla Benhabib alerta que “a negligência quanto a uma tal teoria política e democrática é um dos principais pontos cegos da teoria crítica da Escola de Frankfurt”3 e Jean Cohen e Andrew Arato chamam atenção insistentemente para o fato de que “a teoria crítica não pode mais manter seus propósitos práticos sem uma teoria política”, uma vez que “a crítica da razão funcionalista precisa ser complementada por uma teoria da democracia”4, esses autores sintetizam uma mudança fundamental na relação entre teoria social e filosofia política partilhada por diversos autores explicitamente filiados à tradição de pensamento que, desde Theodor Adorno e Max Horkheimer, se tornou conhecida como teoria crítica da sociedade5. Essa mudança teórica no projeto original esteve orientada, em linhas gerais, à investigação das “bases normativas da teoria crítica”6, ao vínculo entre o “potencial radical da democracia” e o “legado da Escola de Frankfurt”7, à retradução do núcleo crítico-emancipatório no interior da “programática democrática”8.
Para entendermos melhor o que estaria em jogo nessa mudança de projeto teórico, podemos recorrer brevemente à caracterização do que Axel Honneth chamou de “fraqueza teórica” da primeira geração da teoria crítica, ou seja, àquela formulação ligada principalmente aos nomes de Horkheimer e Adorno. Embora ambos tivessem recusado a referência de Marx à categoria do “trabalho” como conceito determinante da análise crítica da sociedade e da respectiva orientação emancipatória, os principais representantes da primeira geração permaneceram fechados diante de “todas as tentativas de considerar o processo histórico de um ponto de vista outro que não o do desenvolvimento do trabalho social”9. Esse fechamento acabou levando à desconsideração da dimensão da ação social, na qual convicções morais e intuições político-normativas se constituem independentemente, e priorizou, na interpretação dos processos sociais, as funções de expansão e reprodução do trabalho social. Em suma, subsistiria um “reducionismo funcionalista”, já presente em Marx, responsável por restringir a história humana a uma concepção instrumental de ação. A segunda geração começou a questionar decisivamente os déficits teóricos nos fundamentos normativos da primeira teoria crítica, lançando mão, sobretudo, de outro tipo de ação social que pudesse ao menos ser concebido ao lado do trabalho, e assim abrir caminho à análise da integração social e da dimensão normativa da interação social.
Jürgen Habermas foi o autor dessa tradição que primeiro trouxe à consciência teórica o diagnóstico de que “se esgotou a utopia da sociedade do trabalho”10 e pensou explicitamente o projeto futuro da teoria crítica segundo a necessidade de “superar o paradigma produtivista, sem abrir mão das intenções do marxismo ocidental”11. Representante mais importante da segunda geração da teoria crítica, Habermas desenvolveu diagnósticos significativos sobre a esfera pública e temas da moral, do direito e da democracia, buscando eliminar o que entendeu ser o déficit nos fundamentos normativos da crítica social. Também Axel Honneth, não obstante procurasse superar vários aspectos da teoria habermasiana, seguiu explicitamente a crítica ao paradigma produtivista, estabelecendo, agora na terceira geração, uma rica articulação entre crítica e filosofia social. Sua teoria do reconhecimento pretende compreender as formas de reivindicação política assim como a natureza específica dos conflitos e das lutas existentes nas sociedades contemporâneas. Uma das preocupações centrais de seu principal livro,Luta por reconhecimento, consistiu em investigar a lógica dos conflitos sociais, insistindo na necessidade de apresentar a dinâmica de tais conflitos a partir de sua gramática moral implícita12.
A renovação representada pelas segunda e terceira gerações da teoria crítica implicou, portanto, a inclusão de categorias que permitissem explicar mais adequadamente as novas formas de luta política e de mobilização cultural que ampliaram os sentidos da emancipação e configuraram atualmente os dilemas e os desafios da democracia contemporânea. Abandonaram-se necessariamente as orientações emancipatórias presas ao paradigma produtivista e se estabeleceu um rico diálogo entre a crítica da sociedade e concepções normativas preocupadas com questões de justiça política e social, com a dinâmica política de esferas públicas autônomas, com a participação da sociedade civil e com as lutas por reconhecimento (em que estão envolvidos os dilemas criados por diferenças culturais, orientação sexual, gênero, raça etc.) , ou seja, âmbitos de conflitos sociais que requerem uma reflexão renovada sobre a moral, a política e o direito.
Essa rápida e esquemática referência à história da teoria crítica tem o intuito de posicionar o livro de Rainer Forst, Contextos da justiça, no interior dessa mesma tradição teórica. Podendo ser considerado membro de uma “quarta geração” da teoria crítica, Forst voltou-se essencialmente para as questões do pensamento político contemporâneo e foi responsável por uma rigorosa reconstrução de um dos mais importantes debates filosóficos da atualidade no campo das teorias normativas. Suas preocupações teóricas giram em torno da articulação entre crítica social e filosofia normativa, da reconstrução dos temas clássicos do pensamento político moderno e do enfrentamento dos dilemas contemporâneos ligados às questões de justiça, tolerância, cidadania e direitos humanos13. Esse rico estoque de problemas indica de certo modo que aquele ponto cego denunciado por muitos autores entre a filosofia política e a tradição da teoria crítica vem sendo superado desde a segunda geração14. O passo inicial mais significativo de Forst resultou no exaustivo estudo sobre a justiça política e social a partir de uma visão sistemática e crítica do conhecido debate entre liberais e comunitaristas.
Contextos da justiça, que acabada de ser publicado no Brasil em rigorosa tradução de Denilson Luis Werle, procura analisar criticamente as respostas oferecidas à questão da justificação das normas que tornam legítimas relações jurídicas, políticas e sociais no interior de uma comunidade política. Além de contribuir para o esclarecimento dos conceitos fundamentais das teorias da justiça, Forst pretende também superar a oposição consolidada entre liberalismo e comunitarismo, apresentando uma proposta de solução conceitual própria. Seguindo uma rígida oposição entre os dois polos que compõem o debate analisado, os liberais procuraram fundamentar moralmente uma teoria da justiça abstraindo os contextos sociais concretos e priorizando as liberdades individuais em face de concepções substantivas do bem. Os comunitaristas, por sua vez, criticaram essa tese liberal da prioridade do justo perante o bem e enfatizaram o enraizamento da justificação normativa de concepções de justiça em autocompreensões e tradições constitutivas das comunidades políticas, de modo que só poderiam ser considerados justos aqueles princípios que resultam de um determinado contexto comunitário, e somente ali podem pretender validade. Todas as teorias que sublinham a prioridade do justo diante do bem acabam se mostrando “indiferentes ao contexto”, ao passo que a teoria comunitarista reforça uma posição “obcecada pelo contexto” (p. 11). Forst, indo além dessa oposição, acredita ser necessário formular uma teoria crítica da justiça capaz de justificar o ancoramento dos princípios normativos nos valores, nas práticas e nas instituições da comunidade política, compatibilizando dessa maneira os aspectos universalistas com a reivindicação de validade daqueles princípios para a autocompreensão e instituições sociais específicas.
A solução conceitual de Forst para os dilemas criados no interior do debate sobre a justiça leva em consideração quatro “contextos de problemas teóricos” em que aspectos da justificação normativa oferecidos por liberais ou comunitaristas podem se mostrar mais ou menos adequados. O próprio conteúdo do livro, portanto, divide-se nesses quatro planos conceituais críticos. Primeiramente, abordam-se criticamente a constituição do self e os pressupostos de uma concepção atomista de pessoa, típicos da formulação liberal; em segundo lugar, Forst critica a neutralidade do direito diante de visões de mundo e concepções sobre a vida boa que caracteriza a tese liberal da prioridade do justo sobre o bem; em seguida, o texto apresenta uma análise crítica da aposta comunitarista na força eticamente integradora da comunidade política; em quarto lugar, por fim, analisa criticamente a teoria moral universalista e seu vínculo a contextos concretos de justificação. Em cada um desses planos se esclarecem as posições antagônicas de justificação da justiça, as quais permaneceriam, numa “perspectiva horizontal”, meramente excludentes.
Forst pretende mostrar a possibilidade de “superar” tais oposições tradicionais segundo uma “perspectiva vertical” a partir de sua tese dos “contextos da justiça”. Uma teoria crítica da justiça precisa antes considerar as necessidades que podem surgir no contexto de socialização dos indivíduos e serem justificadas publicamente em dimensões ao mesmo tempo diferenciadas e interrelacionadas. Argumentos universalistas, pretensões de neutralidade jurídica e dimensões axiológicas compõem os contextos de reconhecimento e de justificação pública nos âmbitos da moral, do direito, da ética e da política. “Eles formam”, comenta Forst,
[…] quatro “contextos” de reconhecimento recíproco – como pessoa ética, pessoa do direito, cidadão(ã ) com plenos direitos, pessoa moral – que correspondem a diferentes modos de justificação normativa de valores e de normas em diferentes “comunidades de justificação”. A análise do debate entre teorias deontológico-liberais “que se esquecem dos contextos” e teorias comunitaristas “obcecadas pelo contexto” levou, com isso, a uma diferenciação de quatro contextos normativos nos quais as pessoas estão “situadas” (p. 275).
Desse modo, aquelas clássicas oposições entre “eticidade” e “moralidade”, bem e justiça, são vinculadas a processos de justificação da normatividade em que formas de vida culturais e políticas e determinações substantivas da justiça encontram-se atreladas a direitos e procedimentos imparciais. “Portanto”, segue o autor, “princípios de justiça são aqueles que são justificados de modo universal e imparcial na medida em que correspondem, de maneira apropriada, aos interesses, necessidades e valores concretos daqueles atingidos por eles” (p. 276). Pretende-se assim evitar uma “cegueira” em face dos contextos, bem como apontar os limites das orientações contextualistas que desconhecem o núcleo universalista das reivindicações por justiça. A harmonização desses diferentes contextos requer uma teoria da justiça que possa reuni-los de um modo mais adequado.
A reconstrução do debate entre liberais e comunitaristas apresentada no livro evita, por conseguinte, a mera defesa de uma ou outra posição, privilegiando avaliá -los como abordagens parciais para o problema da justiça. Para que seja suficientemente abstrata e concreta ao mesmo tempo, uma teoria crítica da justiça assume o vínculo essencial entre pessoas e comunidades e parte do ancoramento dos princípios de justiça a toda comunidade política. A oposição normativa entre universalismo e contextualismo só pode ser superada se trouxermos para o centro da discussão a questão de quais conceitos de pessoa e comunidade estão em jogo. A solução conceitual de Forst complementa criticamente as proposições globais tradicionais ao distinguir quatro conceitos de pessoa (pessoa ética, pessoa de direito, cidadão e pessoa moral) e de comunidade (ética, jurídica, política e moral) que correspondem a quatro contextos normativos diferentes e entrelaçados de modo complexo:
A identidade ética das pessoas é reconhecida e protegida juridicamente numa sociedade e, na verdade, por meio do direito estatuído de modo político autônomo no interior de uma comunidade política de membros com plenos direitos – direito esse que possui um conteúdo moral em seu cerne, que respeita a integridade de pessoas morais (p. 276).
O propósito crítico da diferenciação e da articulação dos diversos contextos consiste menos na separação entre o plano ético, jurídico, político e moral, do que na possibilidade de “comprovar a compatibilidade dos direitos individuais com o bem da comunidade, da universalidade política com a diferença ética, do universalismo moral com o contextualismo”, permitindo desse modo “evitar oposições falsas” (p. 13).
Podemos chegar às diferenciações internas que compõem os contextos aludidos considerando as relações entre pessoa e comunidade. A teoria liberal tendeu a desvincular o indivíduo de seus contextos de socialização ao priorizar uma concepção abstrata de pessoa como portadora de direitos ou como pessoa moral. As críticas republicanas e comunitaristas mostraram, ao contrário, que toda pessoa se individualiza nas comunidades em que são integradas. Porém, não sabemos ainda a quais comunidades pertencem as pessoas e quais são as normas e os valores que as integram. Se para o liberal a justiça está fundada num conceito abstrato de pessoa de direito – como portadora de direitos subjetivos e como sujeito de direito -, para o defensor do contextualismo toda pessoa está integrada eticamente a uma determinada comunidade de valores. Embora Forst também não acredite ser necessário reduzir um âmbito ao outro, “verticalmente” é possível justapô -los de acordo com contextos de justificação diferentes e igualmente legítimos: enquanto considero a comunidade político-jurídica e sua integração normativa segundo uma concepção política e pública de justiça, compreendo os indivíduos como pessoas que portam direitos; já as comunidades éticas se integram por diferentes tipos de concepções do bem – e não com base na imagem abstrata e universal da pessoa de direito -, de modo que a pessoa ética se torna, dessa perspectiva, membro de determinadas comunidades com as quais a identidade do self está vinculada. As relações éticas (constituídas por visões de mundo e concepções de bem ) não substituem relações jurídicas (em que se trata de atentar para direitos e deveres que formam a estrutura de relações reguladas juridicamente). Como diz Forst, “uma coisa é reconhecer uma pessoa como igual portador de direitos; outra coisa é reconhecê -la em todas as suas qualidades” (p. 40). O direito igual justifica-se segundo normas e princípios que pretendem ser universalmente válidos sem que recorramos a concepções de bem e valores particulares. Não importa quais concepções éticas e valores estão em jogo, normas jurídicas (bem como normas morais) têm de valer “para todos”: no caso do direito, as normas jurídicas valem para todos os parceiros do direito considerados membros de uma comunidade jurídica; normas morais, por sua vez, valem para todas as pessoas morais consideradas membros da comunidade dos seres humanos. A validade de normas éticas, contudo, depende da identificação dos indivíduos com determinados valores que formam suas identidades do ponto de vista de sua história de vida.
Um dos principais conceitos utilizados por Forst nas quatro dimensões como mediação para redefinir os conceitos de pessoa de direito, cidadania ou de uma moral universalista em contextos intersubjetivos diferenciados é o de autonomia. “Segundo esse conceito”, afirma Forst,
[…] as pessoas como agentes são, no sentido prático, seres “autônomos” autodeterminantes quando agem de forma consciente e fundamentada. Como tais são responsáveis por suas ações: podem ser questionadas acerca das razões pelas quais agiram. Como pessoas responsáveis, são aquelas “que se justificam” e esperamos que tenham considerado suas razões para agir, sendo capazes de justificá -las. Nesse sentido, as pessoas autônomas são razoáveis em termos de razão prática: possuem razões para agir que podem ser justificadas para elas mesmas e comunicadas e defendidas diante de outras, de modo que essas razões […] possam ser compartilhadas (p. 305).
Contudo, também uma diferenciação nos “contextos da autonomia” poderá nos mostrar quais questões práticas e quais respostas autônomas podem se apoiar em razões capazes de ser publicamente reconhecidas. A “autonomia ética” está ligada à validade de valores éticos e à autorealização da pessoa; a “autonomia jurídica” é característica de pessoas de direito e é assegurada a todos os destinatários do direito; a “autonomia política” é exercida pelo cidadão considerado autor dos direitos; e a “autonomia moral” é pressuposta nas pessoas como autoras e destinatárias de normas morais. A justificação normativa exercida nos distintos contextos pode validar argumentos e princípios de justiça em referência à autorealização ética, à liberdade pessoal de ação, à autolegislação política ou à autodeterminação moral. Em tais contextos novamente a própria constituição do self (em que a pessoa ética é considerada membro de uma comunidade constitutiva da identidade) pode se distinguir da pessoa de direito (membro de uma comunidade de direito), bem como o cidadão (que pertence à comunidade política) desempenha um papel diferente daquele da pessoa moral (pertencente à comunidade moral de agentes moralmente autônomos). Liberais e comunitaristas não compreenderam justamente que nenhuma dessas concepções de autonomia pode pretender ser a única válida como base da justiça. Por essa razão, a tarefa da análise crítica é saber como integrá-las, compatibilizá-las e perceber quando entram em conflito “de modo que uma dimensão não seja sacrificada em nome das outras” (p. 306).
O livro não se limita à analise crítica dos argumentos normativos sobre a justiça. Há também um importante balanço sobre os princípios de legitimação do poder político em sociedades complexas e pluralistas. Forst amplia o quadro de discussão analisando princípios de justificação pública ao debater com as correntes deliberativas da democracia, com a crítica feminista do liberalismo, dilemas multiculturais e com a literatura sobre a sociedade civil. Sua intenção é pensar criticamente os pressupostos socioculturais das sociedades democráticas, ou seja, entender como os cidadãos se compreendem como membros de uma comunidade política e sob quais condições justificam publicamente normas que retiram sua legitimidade de discursos democráticos. A crítica de Forst implica pensar a relação entre cidadania e justiça social a partir de um ethos democrático constitutivo das práticas de justificação da normatividade sem cair, contudo, na oposição liberal/comunitarista. Mesmo que os próprios cidadãos precisem se compreender como participantes e responsáveis na regulação e na ação políticas, não são os valores éticos compartilhados que orientam legitimamente suas pretensões por reconhecimento e realização de direitos. Orientam-se antes pelo ideal de cidadania ativa, de modo que ethos da democracia não consiste senão na realização das dimensões da própria autonomia do cidadão.
Forst mantém, assim, uma atitude crítica diante das teorias normativas existentes. Na verdade, Contextos da justiça não pretende ir além dessa análise exaustiva das justificações normativas contidas nos discursos teóricos que compõem o amplo debate entre liberais e comunitaristas, ficando para seu outro livro a tarefa de compatibilizar uma reconstrução teórica com a dimensão histórica, como no caso, por exemplo, dos fenômenos da tolerância15. De todo modo, não há teoria crítica sem que se enfrente as teorias capazes de representar da melhor maneira os problemas de nossa época. Assim como fez Marx em seu tempo ao empreender uma “crítica da economia política”, a tarefa atual implica necessariamente uma crítica das mais importantes correntes teóricas vigentes – embora não mais da economia política, mas sim da filosofia política contemporânea com sua pauta de problemas e desafios ligados à moral, ao direito e à democracia.16 E para tanto, a análise crítica não oferece uma “nova” teoria da justiça, apenas acusa a parcialidade das oposições vigentes, reconstruindo seu sentido. Nessa relação com a filosofia política, a teoria crítica também não precisa abrir mão dos fundamentos normativos em que se apoiam tais teorias, bastando justificá -los de forma mais adequada em face dos complexos contextos da justiça.
Notas
1 Cf. NOBRE, M. “Teoria crítica hoje”. In: KEINERT, M. e outros (orgs.). Tensões e passagens: filosofia crítica e modernidade. São Paulo: Singular/Esfera Pública, 2008, pp. 265-83.
2 AVRITZER, L. “Teoria crítica e teoria democrática”. Novos Estudos Cebrap, nº 53, 1999, pp. 167-188. [Links]
3 BENHABIB, S. Critique, norm, and utopia: a study of the foundations of critical theory. Nova York: Columbia University Press, 1986, p. 347. [Links]
4 ARATO, A. eCohen, J. “Politicsand the reconstruction of the concept of civil society”. In: HONNETH, A. e outros (orgs.) .Zwischenbetrachtungen: Im Prozess der Aufklärung. Frankfurt/M: Suhrkamp, 1989, p. 493. [Links]
5 Cf. HONNETH, A. “Teoria crítica”. In: GIDDENS, A. e TURNER, J. (orgs.) . Teoria social hoje. São Paulo: Editora da Unesp, 1999, pp. 503-52. Ver também Nobre, M. A teoria crítica. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2004.
6 BENHABIB, op. cit., p. ix. [Links] Ver também BAYNES, K.The normative grounds of social criticism: Kant, Rawls, Habermas. Nova York: Albany, 1991. [Links]
7 BOHMAN, J. Public deliberation: pluralism, complexity, and democracy. Massachussetts: MIT, 1996, p. 20. [Links]
8 WELLMER, A. “Bedeutet das Ende des’realenSozialismus’auchdasEnde des Marxschen Humanismus?”. In: Endspiele: Die unversöhnliche Moderne. Frankfurt/M: Suhrkamp, 1993, p. 91. [Links]
9 HONNETH, op. cit., p. 517. [Links]
10 Cf. HABERMAS, J. “Volkssouveränität als Verfahren”. In:Faktizität und Geltung. Frankfurt/M: Suhrkamp, 1998, p. 602.
[11] Ibidem. “Ein Interview mit der New Left Review“. In: Die Neue Unübersichtlichkeit. Frankfurt/M: Suhrkamp, 1985, p. 217.
12 Cf. HONNETH. A. Luta por reconhecimento: a gramática moral dos conflitos sociais. Trad. Luiz Repa. São Paulo: Editora 34, 2003.
13 Cf. FORST, R. Toleranz im Konflikt. Frankfurt/M: Suhrkamp, 2003; Ibidem. “Os limites da tolerância”. Trad. Mauro Soares. Novos Estudos Cebrap, nº 84, 2009, pp. 15-29; Ibidem. Das Recht auf Rechtfertigung. Frankfurt/M: Suhrkamp, 2007; Forst e outros (org). Sozialphilosophie und Kritik. Frankfurt/M: Suhrkamp, 2009. Ver também seu programa de pesquisa social desenvolvido ao lado de Klaus Günther, “Innenansichten: Über die Dynamik normativer Konflikte”. In: Forschung Frankfurt 2/2009. O subtítulo de seu próximo livro (no prelo) remete a uma junção explícita entre filosofia política e teoria crítica, a saber, “perspectivas de uma teoria crítica da política”. Cf. Forst. Kritik der Rechtfertigungsverhältnisse: Perspektiven einer kritischen Theorie der Politik. Frankfurt/M: Suhrkamp (no prelo).
14 Os limites existentes nessa “virada normativa” não foram desconsiderados mesmo por aqueles que se preocupam com uma renovação da tradição da teoria crítica. Cf. Honneth. “Das Gewebe der Gerechtigkeit. Über die Grenzen des zeitgenössischen Prozeduralismus”. In: Das Ich im Wir: Studien zur Anerkennungstheorie. Frankfurt/M: Suhrkamp, 2010, pp. 51-77.
15 Cf. FORST, R. Toleranz im Konflikt, op. cit.
16 Cf. o programa de pesquisa apresentado em Forst e Günther, op. cit.
Rúrion Melo – Professor de Teoria Política do Departamento de Ciências Sociais da Unifesp e pesquisador do Núcleo Direito e Democracia do Cebrap.
Apologia dos bárbaros: ensaios contra o império – DAVIS (RBH)
DAVIS, Mike. Apologia dos bárbaros: ensaios contra o império. São Paulo: Boitempo, 2008. 351p. Resenha de: RAMPINELLI, Waldir José. Revista Brasileira de História. São Paulo, v.29, n.58, dez. 2009
O livro Apologia dos bárbaros, do historiador estadunidense Mike Davis, professor da Universidade da Califórnia, reúne escritos publicados entre 2001 e 2007 que analisam, sob diferentes perspectivas, a política interna e externa dos Estados Unidos, especialmente após os atentados de 11 de setembro de 2001.
Davis divide o trabalho em cinco partes, tendo por critério temas afins. No entanto, a linha de continuidade que perpassa a estrutura do livro é uma crítica perspicaz e fundamentada à Casa Branca, ao Congresso, ao Poder Judiciário, ao Pentágono, aos partidos políticos e às organizações sindicais que estão a serviço do grande capital e não dos interesses da população dos Estados Unidos.
Davis não acredita na afirmação de que “os estadunidenses colheram o que semearam” com os atentados às Torres Gêmeas, já que as principais vítimas daquela tragédia foram as secretárias, os contadores, os entregadores de lojas de conveniências, os lavadores de janelas, os corretores da bolsa e os bombeiros, pessoas que “não conceberam ou implementaram nossas políticas secretas, antidemocráticas e criminosas no mundo muçulmano” (p.24). Responsáveis diretos pelos atentados, entre tantos, seriam, por exemplo, Madeleine Albright, secretária de Estado de Bill Clinton, que, ao responder a uma pergunta em rede nacional de TV sobre as 500 mil crianças mortas no Iraque como resultado das sanções impostas pelo governo dos Estados Unidos, asquerosamente afirmou: “Acredito que o custo compensou”. E o maior responsável de todos – George W. Bush – foi escolhido presidente por uma maioria na Suprema Corte e não pelos eleitores, tendo adotado poderes de guerra contra todos, em toda parte e para sempre, sem precedentes na história nacional dos Estados Unidos e, quiçá, mundial.
O autor de Apologia dos bárbaros não vê grandes diferenças entre o Partido Republicano e o Democrata, já que ambos estão ligados aos donos do poder econômico. Os socialistas estadunidenses, diz Davis, há anos vêm de monstrando que os democratas não passam de um partido capitalista com verniz social-democrata. No entanto, as elites formadas por sindicalistas e por militantes dos direitos civis encontram sempre um pretexto para o velho vício, qual seja, a opção pelo mal menor. A história mostra, por exemplo, que a maioria democrata no Senado 1) vendeu a Bill of Rights (a Constituição dos Estados Unidos aprovada em 1787); 2) endossou cortes marciais e campos de concentração; 3) acatou a não assinatura do Protocolo de Kyoto e do Tratado sobre Mísseis Antibalísticos; 4) apoiou a militarização da fronteira mexicana e deu carta branca ao presidente George W. Bush para intervir na guerra suja da Colômbia; 5) aprovou, por meio do Comitê de Inteligência do Senado, a opção do uso de armas nucleares de ‘pequeno alcance’ contra o dito Eixo do Mal. Por fim, o democrata Joe Lieberman, ex-candidato à vice-presidência de Al Gore, defendeu com mais ênfase que os próprios republicanos o direito de invadir o Iraque, e Carl McCall promoveu sua campanha para governador de Nova York exibindo fotos em que aparecia disparando um fuzil M-16 em um campo de treinamento ‘antiterrorismo’ israelense.
Uma política externa intervencionista compromete a própria democracia interna dos Estados Unidos. John Hobson, em seu Estúdio del imperialismo, criticava, no início do século XX, a voracidade da classe dominante inglesa em suas colônias espalhadas pelo mundo, ao tempo em que mostrava que essa mesma elite, no afã de acumular sem limite, destruía a democracia interna londrina. O ‘Ato Patriota’, aprovado em 26 de outubro de 2001, 45 dias após os ataques do 11 de setembro, nada mais é que um conjunto de leis destinadas a aumentar a regulação, o controle e a fiscalização das atividades cotidianas dos cidadãos estadunidenses, exacerbando o poder de policiamento do governo. James Petras o denominou de “fascismo amistoso”. Noam Chomsky vai mais longe, chegando a dizer que “não devemos nos esquecer que os próprios Estados Unidos são um Estado líder do terrorismo”.
Mike Davis, ao analisar a destruição de New Orleans pelo furacão Katrina, mostra que todos os aspectos da catástrofe foram moldados por desigualdades de classe e raça. Pesquisadores de várias universidades do sul dos Estados Unidos vinham chamando a atenção das autoridades para a possibilidade do rompimento dos diques por falta de manutenção. No entanto, nada se fez para sanar o problema, já que a cidade era povoada por 75% de afro-americanos e tinha altos índices de pobres, criminosos e desempregados. Foi a negligência federal, e não a fúria da natureza, a maior responsável pelo assassinato de New Orleans.
Utilizando-se do desastre natural, políticos inescrupulosos, especuladores imobiliários gananciosos e brancos racistas apostaram em uma higienização da metrópole do jazz. Um deles, Finis Shellnut, afirmou que “o furacão obrigou os pobres e os criminosos a saírem da cidade, e esperamos que eles não voltem. A festa dessa gente está quase no fim e agora eles terão de encontrar outro lugar para morar” (p.237). Outro, Joseph Canizaro, com laços pessoais que o ligam ao círculo interno da Casa Branca, disse que “essas pessoas pobres não têm condições de voltar para nossa cidade, assim como não tiveram condições de deixá-la. Então, não traremos todas de volta” (p.236).
O governo Bush também aproveitou o pretexto do Katrina para atacar os sindicatos independentes, sobretudo aqueles que defendiam os direitos dos trabalhadores e pressionavam pela contratação de moradores para recuperar New Orleans. Com isso, favoreceu as grandes corporações, como o Wal-Mart, que, combinando a tecnologia just in time com as características mais selvagens do capitalismo, tornou-se a empresa-símbolo da exploração. “Conhecida por pagar salários miseráveis e fraudar as horas extras de seu 1 milhão de empregados nos Estados Unidos”, comenta Davis,
o Wal-Mart age de forma ainda mais sinistra no estrangeiro, pressionando incessantemente seus milhares de fornecedores em Bangladesh, na China e na América Central para que reduzam os custos do trabalho e suprimam direitos trabalhistas. O Wal-Mart é, sem dúvida, o maior empregador indireto de mão de obra semiescrava ou infantil do planeta. A ‘walmartização’ tornou-se, portanto, sinônimo de ‘corrida ao fundo do poço’, completa abolição dos direitos do trabalhador e da cidadania. (p.158)
O historiador Mike Davis critica os livros didáticos das escolas estadunidenses por sua ocultação da história. A “Operação Bagration”, de junho de 1944, por exemplo, que leva esse nome em homenagem a um herói russo de 1812, foi um ataque soviético decisivo contra a retaguarda da poderosa Wehrmacht de Hitler. Para Davis, foi a batalha decisiva pela libertação da Europa do nazifascismo. No entanto, não se encontra uma palavra sobre essa operação nos livros básicos de história nos Estados Unidos. E isso tudo, apesar de essa ofensiva de verão soviética – chamada pelo historiador Jon Erickson de “o grande terremoto militar” – ter sido muito mais grandiosa que o desembarque na Normandia, tanto em escala de forças envolvidas quanto em custo direto infligido aos alemães. “Na luta contra o nazismo, cerca de quarenta Ivans morreram para cada soldado Ryan“. “De fato”, diz Davis que
a maioria dos norte-americanos é espantosamente ignorante a respeito dos ônus dos combates e das baixas da Segunda Guerra Mundial. E mesmo a minoria que compreende algo da grandiosidade do sacrifício soviético tende a julgá-lo nos termos dos estereótipos crus do Exército Vermelho: uma horda bárbara conduzida por um sentimento cruel de vingança, um frenesi por estupros e um nacionalismo russo primitivo. (p.282)
O Pentágono, diz Davis, deveria estudar a história das colônias conquistadas e perdidas, dos impérios erguidos e derrubados, evitando, assim, a atual carnificina iraquiana. Bastava ler as cartas de Gertrude Bell e os diários de Winston Churchill, os homens que transformaram três prósperas e etnicamente distintas províncias do Império Otomano em um infeliz território britânico. Churchill, então secretário de Estado de Guerra e da Aeronáutica (1920), utilizou a estratégia dos bombardeios com armas químicas, como as bombas de gás mostarda, para economizar dinheiro e soldados na dominação do Iraque. Graças ao gás venenoso e aos tanques, os britânicos recuperaram o controle da região, em setembro de 1920, sem deixar de lado as expedições punitivas pelos territórios rebeldes, queimando vilarejos, executando suspeitos, confiscando mantimentos e aplicando multas. Mais tarde, a força aérea britânica bombardeou regiões do Iraque, como o baixo Eufrates, já não para reprimir tumultos e sim para pressionar os vilarejos a pagar seus impostos. Em fins de 1921, Churchill observou com satisfação que seus aeroplanos haviam passado a ser temidos e continuou a defender o uso do gás venenoso no Iraque e em toda a região. Questionado por um coronel, subordinado seu, sobre os horrores causados pelos efeitos dos bombardeios, Churchill o repreendeu severamente dizendo que “não entendo essa aversão ao uso de gás. Sou totalmente a favor do uso de gás venenoso contra tribos incivilizadas” (p.114). Certamente, foi esse o mestre maior de Saddam Hussein. Apesar de tais métodos genocidas, a Grã-Bretanha saiu derrotada da região.
Algumas ausências sentidas no trabalho foram as de Noam Chomsky, James Petras, Michael Klare e Immanuel Wallerstein, que trabalham igualmente as relações dos Estados Unidos no mundo.
Apologia dos bárbaros mostra como a revolução revoluciona a contrarrevolução. Por isso, o livro é importante para entender a política interna e externa dos Estados Unidos. Enfim, um livro que ajuda a entender os meandros do império.
Waldir José Rampinelli – Professor do Departamento de História da UFSC; doutor em Ciências Sociais – Política (PUCSP). Depto. de História. Centro de Filosofia e Ciências Humanas – UFSC. Cidade Universitária. 88040-900 Florianópolis – SC – Brasil. E-mail: rampinelli@globo.com.
[IF]Cinismo e Falência da Crítica – SAFATLE (FU)
SAFATLE, V. Cinismo e Falência da Crítica. São Paulo: Boitempo, 2008. Resenha de: ROCHA, Rubens José da. Filosofia Unisinos, São Leopoldo, v.10, n.3, p.345-347, set./dez., 2009.
Dialética Cínica
Hegel, Weber, Adorno, Lacan, Lyotard, Deleuze, Searle, Sloterdijk, Agamben e Zizek são alguns contrapontos teóricos que permitem a Vladimir Safatle compor, no livro Cinismo e Falência da Crítica, um vasto campo de coordenadas históricas para validar a tese sobre o cinismo como “categoria adequada” para análise de “formas hegemônicas de vida na fase atual do capitalismo”. A passagem abaixo exprime claramente a estratégia de argumentação presente nos seis ensaios que compõem o livro:
Partindo da noção de forma de vida como conjunto de sistemas de ordenamento e justificação de processos de interação social nas esferas do trabalho, do desejo e da linguagem, este livro procura insistir na convergência de mutações profundas que ocorrem nos modos de socialização do desejo, assim como nos modos de reprodução material da vida e de constituição de critérios de funcionamento e crítica da linguagem (Safatle, 2008, p.201).
O primeiro ensaio, Dialética, Ironia, Cinismo, propõe um recenseamento da crítica de Hegel à ironia romântica e aos modos de interversão cínica da lei, sugerindo um encaminhamento dialético para a tese central sobre o cinismo. De acordo com Vladimir, a racionalidade cínica deixa transparecer uma estrutura pautada pela estabilização da passagem incessante da norma para a infração, criando um estado de anomia que Hegel define como interversão da lei social (Umschlagen).1 A estabilização desse estado de anomia permite aos agentes sociais legitimar a ação cínica de maneira explicitamente contraditória com o seu fim, como se a norma que a regula portasse em si mesma, no momento de sua aplicação, o elemento transgressivo que a nega. Uma contradição que dá origem à flexibilidade identitária das formas de vida hegemônicas nas sociedades de consumo, capaz de dissolver perversamente os conflitos gerados pela lógica capitalista.
Em virtude desta contradição, o segundo ensaio, Was Ist Zynismus, mostra a pertinência da fórmula cínica de Sloterdijk “eles sabem o que fazem, e continuam a fazê-lo” (Safatle, 2008, p.69). Invertendo a fórmula de Marx, “eles não sabem, mas o fazem”, a fórmula cínica aponta para a obsolescência de categorias como reificação e alienação da falsa consciência, quando se trata de compreender os processos de racionalização nas sociedades de consumo. Esta obsolescência se deve ao fato de a contradição legitimada do comportamento cínico já não implicar, como supõe a fórmula de Marx, o desconhecimento do princípio objetivo que orienta a ação social. Tanto o princípio objetivo quanto o sentido da ação são transparentes à racionalidade cínica, embora esta negue voluntariamente o princípio que a orienta. Esta consciência da contradição é o que permite definir a ideologia cínica, não imediatamente pelo que se pensa, mas antes pelo o que se faz:
Poderíamos aqui concordar com Slavoj Zizek e afirmar que tudo isso só demonstra como a fórmula cínica ignora que o desconhecimento ideológico não está na dimensão do “saber” da consciência, mas na estruturação das condições de significação da práxis, ou seja, na dimensão do “fazer” (Safatle, 2008, p.83).
No terceiro ensaio, Sobre um Riso que não reconcilia, o cinismo aparece sob a forma da identificação irônica ou do humor, isto é, como figura da ação social que constrói seus padrões de racionalidade com base em um pretenso poder de aniquilamento da lei. Observa-se aqui um esforço de articular as formas de identificação social, os modos de ironização do sentido no ato de enunciação e a torção performativa do sentido pela ação. A articulação entre estas três esferas, que refletem a relação entre trabalho, linguagem e desejo, será retomada ao longo de todo o livro até o clímax do penúltimo ensaio, Sexo, Simulacro e Políticas da Paródia. Assim como as identificações irônicas, a ironização do sentido é um sintoma específico do que, numa dimensão social mais ampla, aparece como polimorfismo da crítica, transformada em falsos atos de perversão da lei social.
Analogamente à racionalidade cínica, o modelo clássico de crítica é considerado um exemplo de “ideologia que pode funcionar exatamente por não se tomar a sério” (Safatle, 2008, p.100). A crítica não conseguiria escapar à lógica performativa da contradição cínica pelo fato de esta já supor, como dispositivo interno de legitimação, a transparência da inadequação entre a práxis e o princípio que a fundamenta. Portanto, ao integrar o dispositivo de legitimação da racionalidade cínica, a busca da crítica pela transparência da totalidade dos mecanismos de produção do sentido, que tem por objetivo apontar para o erro, a ilusão ou a insinceridade da intenção, confrontando-a com a ação ou com os atos de fala que supostamente a enunciam, deixaria de cumprir a promessa de transformar as estruturas sociais, impedindo seus agentes de formular uma saída para o impasse criado pelo estado de anomia social.
Dialética, Weber e Lacan
No primeiro ensaio da segunda parte, Por Uma Crítica da Economia Libidinal, Vladimir propõe um novo recenseamento, desta vez a fi m de ressignificar a dimensão social de alguns conceitos-chave da teoria das pulsões de Freud. Em linhas gerais, o autor apresenta aqui uma teoria social de dupla orientação, Adorno e Lacan, que procura mostrar como a validação material do consumo desarticula tanto os dispositivos ideológicos da ética do trabalho (Weber), como os imperativos repressivos fundamentados na figura do supereu paterno (Freud), cedendo lugar a uma nova figura da ação social, que Lacan define como supereu materno. Ao conjugar-se com a plasticidade da forma mercadoria, o supereu materno regula, através de uma ética do gozo, as expectativas de satisfação do desejo nas sociedades de consumo, determinando as formas de racionalidade que se colocam a serviço de uma lógica de administração do desejo. O autor defende, a partir daí, que, aliada à ética do gozo, a interversão cínica transformou-se “na verdadeira mola propulsora da economia libidinal da sociedade de consumo” (Safatle, 2008, p.128). Este passo teórico permite-lhe descrever as principais mudanças estruturais que, a partir da década de 1920, desencadearam a transformação dos padrões de racionalidade que orientam os modos de socialização do desejo.
Assim, essa ironização absoluta dos modos de vida com sua lógica de autonomização da aparência nada mais é do que a posição subjetiva que internalizou a desvinculação geral entre imperativo de gozo e conteúdos normativos privilegiados a essa nova figura social do supereu (Safatle, 2008, p.134).
No último ensaio, o cinismo aparece como sintoma do esgotamento da autoprodução crítica da cultura. Ao ignorar que a natureza contraditória da racionalidade cínica já não supõe a adequação da intenção ao valor ou à norma, mas se alimenta da própria impossibilidade de adequação, como modo de legitimação de suas práticas discursivas, o modelo clássico de crítica esgotaria também seu poder de orientar as exigências de racionalidade no campo da produção estética. Aplicada às formas de fetichização do desejo, a crítica camufla a contradição legitimada da racionalidade cínica que, mesmo nos momentos mais sublimes de transgressão, como na música de Arnold Schoenberg, não é capaz de abandonar completamente os valores supostamente aniquilados, como o demonstrará mais tarde a reincidência do sistema tonal na flexibilidade paródica de John Adams e Thomas Adès.
Notas
1 “Action itself is this inversion (Verkehrung) of what was known into its contrary, into what is; it turns the law of character and knowledge into the law of their opposite [Umschlagen], with which the former is bound up in the essence of the substance” (Hegel, 2008, p.667).
Referências
HEGEL, G.W. 2008. The Phenomenology of Spirit. Disponível em: http://web.mac. com/titpaul/Site/Phenomenology_of_Spirit_page.html, acesso em: 09/12/2009.
Rubens José da Rocha – IFAC-UFOP. Ouro Preto, MG, Brasil. E-mail: ens_rubens@yahoo.com.br
[DR]
O universalismo europeu: a retórica do poder | Immanuel Wallerstein
Em O universalismo europeu (tradução do original de 2006, The european universalism) Wallerstein confronta o realismo da construção das relações internacionais contemporâneas com uma necessidade humanista de produção de alternativas aos modelos hegemônicos de sistema-mundo. A partir deste conceito – sistema-mundo -, forjado em obras anteriores suas, o autor busca sistematizar uma série de argumentos que compõem críticas à globalização e aos discursos universalistas que a acompanham, explicitando de que forma estes discursos representam visões européias particulares universalizadas junto aos processos de expansão econômica, política, cultural e militar de países da Europa ocidental e dos Estados Unidos sobre o restante do mundo. Este “universalismo europeu” é incorporado à própria historiografia ocidental como narrativa central da evolução dos povos e países em direção à formação de um sistema-mundo moderno fundado nas relações entre Estados-nação e no valor do “desenvolvimento” e do “progresso” como processos que devem levar, necessariamente, às formas de organização social identificadas como “civilizadas”, exemplificadas pelas sociedades européias em diferentes períodos históricos. Leia Mais
O universalismo europeu: a retórica do poder – WALLERSTEIN (HH)
WALLERSTEIN, Immanuel. O universalismo europeu: a retórica do poder. São Paulo: Boitempo, 2007, 146p. Resenha de: MULLER, Paulo Ricardo. Revista Brasileira de Política Internacional. v.52, n.1, Brasília Jan./June 2009.
Em O universalismo europeu (tradução do original de 2006, The european universalism) Wallerstein confronta o realismo da construção das relações internacionais contemporâneas com uma necessidade humanista de produção de alternativas aos modelos hegemônicos de sistema-mundo. A partir deste conceito – sistema-mundo -, forjado em obras anteriores suas, o autor busca sistematizar uma série de argumentos que compõem críticas à globalização e aos discursos universalistas que a acompanham, explicitando de que forma estes discursos representam visões européias particulares universalizadas junto aos processos de expansão econômica, política, cultural e militar de países da Europa ocidental e dos Estados Unidos sobre o restante do mundo. Este “universalismo europeu” é incorporado à própria historiografia ocidental como narrativa central da evolução dos povos e países em direção à formação de um sistema-mundo moderno fundado nas relações entre Estados-nação e no valor do “desenvolvimento” e do “progresso” como processos que devem levar, necessariamente, às formas de organização social identificadas como “civilizadas”, exemplificadas pelas sociedades européias em diferentes períodos históricos.
O universalismo europeu deve ser substituído por um “universalismo universal”, ou seja, um projeto de sistema-mundo que busque incorporar e representar valores largamente compartilhados tanto na escala das relações interpessoais quanto na escala das relações interestatais. As condições sociais para a construção de um universalismo total são apontadas pela análise de situações de disputa entre a visão expansionista do modelo europeu de civilização e visões alternativas que buscaram relativizar a superioridade evolutiva auto-atribuída do ocidente em relação a outros contextos geopolíticos. Ao explicitar estas disputas, Wallerstein desmistifica a posição hegemônica da Europa ocidental e dos Estados Unidos no sistema-mundo moderno mostrando processos histórica e socialmente localizados de construção e consolidação desta posição por meio de mecanismos de poder econômico, político e militar. Estes mecanismos são analisados nos três capítulos centrais dos livros, respectivamente dedicados aos discursos universalistas do colonialismo, do orientalismo e da cientificidade, mostrando como estes discursos articulam valores que se reproduzem, contemporaneamente, na globalização, nos direitos humanos e na democracia.
Ao relacionar estes discursos com diferentes períodos históricos, o autor procura desconstruir a retórica que legitima o status quo das relações de poder na arena internacional, mostrando que os processos de dominação se consolidam em meio a debates e questionamentos do cerne dos argumentos que afirmam a universalidade do modelo ocidental de desenvolvimento e civilização. É a função da análise do debate sobre o “direito de intervenção” (droit d’ingérence) agenciado pelo colonialismo espanhol para justificar a imposição de práticas cristãs aos ameríndios sob o argumento de que as práticas pagãs seriam contrárias às “leis naturais”. Também é o que fica expresso na análise sobre a constituição do orientalismo como doutrina política que justifica o colonialismo na Ásia sob o argumento de que as “civilizações orientais” – as sociedades asiáticas dotadas de códigos escritos: China, Império Otomano, Índia e Pérsia – teriam estancado seu progresso rumo à modernidade por não articularem os valores universais pregados pelo cristianismo e pelo ideário civilizatório.
Estes argumentos são reiterados contemporaneamente pelos movimentos de dominação e expansão econômica e geopolítica dos países ricos sobre o restante do mundo, desta vez em nome dos direitos humanos dos grupos mais fracos em países com conflitos civis ou em nome da implantação da democracia nestes países, ou ainda da inclusão de um número cada vez maior de pessoas na globalização de mercado. A pergunta que o livro nos traz é: quem tem o direito de intervir em nome dos direitos humanos ou da democracia, se ao fazê-lo também o direito básico à autodeterminação é desrespeitado? Em uma época que sinaliza uma crise de legitimidade das potências dominantes, a resposta sugerida é a de que os questionamentos ao “universalismo europeu” ainda hegemônico possam resultar em estruturas de relações internacionais que não tenham apenas os Estados como atores centrais, mas também redes sociais que promovam encontros entre diferentes visões de mundo, e a partir da constatação dos valores compartilhados nestes espaços, construir uma proposta de “universalismo universal”.
Paulo Ricardo Muller – Mestrando em Antropologia Social pela Universidade Estadual de Campinas – Unicamp. E-mail: paulomuller@gmail.com.
Caio Prado Junior, o Sentido da Revolução | Lincoln Secco
A obra de Caio Prado Júnior foi um marco na história do pensamento brasileiro. Ao lado de Gilberto Freyre, autor de Casa-Grande e Senzala (1933); de Sérgio Buarque de Holanda, autor de Raízes do Brasil (1936), Caio Prado Júnior marcou esta geração de grandes intelectuais brasileiros da década de 1930, com a publicação de Evolução Política do Brasil (1933).
Caio Prado Júnior partilhou – assim como inúmeros intelectuais de sua geração – da ousada preocupação de tentar entender a realidade brasileira como uma totalidade dotada de sentido, através de grandes obras de síntese. Esta perspectiva foi em parte abandonada pelas gerações seguintes que em nome de uma crescente especialização do conhecimento passaram a produzir trabalhos de caráter cada vez mais fragmentário. Leia Mais
Adam Smith em Pequim | Giovanni Arrighi
Giovanni Arrighi é velho conhecido nos meios intelectuais das Ciências Sociais brasileiras, principalmente devido a sua obra mais conhecida O longo século XX, publicada pela Editora Contraponto, do Rio de Janeiro. No ano passado (2007), Arrighi lançou nova obra, onde continua sua interpretação sobre os canais de acumulação de capital em escala mundial, especialmente aquela calcada especificamente no crescimento da China contemporânea. A obra, que foi editada no Brasil neste ano de 2008, chama-se Adam Smith em Pequim, e foi editada pela Editora Boitempo. Na edição nacional, há um interessante prefácio de Theotonio dos Santos.
A temática discutida baseia-se na seguinte indagação de Adam Smith: haverá um momento onde chegaria ao fim a supremacia econômica de um determinado continente, ou “raça”, sobre a maior parte das outras – com o crescimento do poder político e econômico de todos os povos atingindo um patamar mais ou menos similar? Haverá um tempo onde as diferentes culturas regionais do mundo poderão encontrar-se numa arena onde as forças econômicas nas quais se apóiam terão um grau mais ou menos parecido de força, extinguindo-se a dominação internacional de uns povos sobre outros? Traduzindo em termos mais concretos: poderá o crescimento do poder chinês pôr em xeque o papel que os Estados Unidos ainda têm (ou tinham, na própria análise de Arrighi) hoje no mundo? Leia Mais
A finança mundializada: raízes sociais e políticas/configuração/ conseqüências | François Chesnais
Livro-chave para a compreensão da economia internacional – e em particular do sistema financeiro internacional – a obra compõe-se de uma coletânea organizada pelo professor François Chesnais. Ela dá seguimento ao pensamento do autor, cujas obras lançadas no Brasil foram: A mundialização financeira – gênese, custos e riscos, pela Xamã, e Tobin or not Tobin? Uma taxa internacional sobre o capital, pela Universidade Estadual de São Paulo.
O livro conta com o prefácio do professor Luiz Gonzaga Belluzzo que expõe a face real da globalização neoliberal: uma intrincada rede de interesses construída pelos mercados financeiros internacionais, sob a necessidade voraz de reprodução do capital que gera ilusões de riqueza. Outrossim, ele expõe o contraponto na economia brasileira, em decorrência das remessas de lucros por empresas de serviços públicos como telefonia, eletricidade, etc., as quais agora necessitam de investimentos governamentais, ou seja, dos contribuintes para atender as chamadas áreas “não rentáveis”. Leia Mais
Estado e Burguesia no Brasil: origens da autocracia burguesa | Antônio Carlos Mazzeo
Uma primeira associação ao título surge de maneira fácil, quase imediata: ao estudar as relações entre estado e burguesia na formação social brasileira, Antônio Carlos Mazzeo remonta à ideia originariamente expressa por Marx e Engels, em seu Manifesto Comunista, a qual serve de epígrafe a esta resenha e norteia nosso entendimento primário dos conceitos utilizados pelo autor ao apresentar suas ideias. Antônio Carlos Mazzeo é um autor marxista, que utiliza, em primeira instância, a análise de Marx e Engels para desenvolver sua apreensão das características da formação histórica da sociedade brasileira. Leia Mais