A estranha derrota – BLOCH (MB-P)

BLOCH, Marc. A estranha derrota. Rio de Janeiro: Zahar, 2011. Resenha de: [Autoria não identificada]. O desmoronamento francês frente ao inimigo alemão no século XX. Marinha do Brasil/Proleitura, 2016/2017.

O autor desta obra, Marc Léopold Benjamin Bloch nasceu no dia 6 de julho de 1886 em Lyon, França. Estudou na Sorbonne, onde formou-se em História. Participou das duas grandes guerras do século XX. A frente dessas duas batalhas reuniu, com sua visão de historiador, memórias de guerra, transformadas em livro e publicadas após a sua morte. As obras de Marc Bloch desencadearam uma verdadeira “Revolução da historiografia francesa”, influenciando gerações de historiadores. Na obra em análise (A estranha derrota), mesmo em condições desfavoráveis, utilizou da experiência particular das duas guerras para observar e debruçar-se sobre a derrota francesa. Longe de abordar uma história política e nacionalista, Bloch analisa a história em sua totalidade, não permitindo que os males do momento contaminassem sua capacidade de reflexão.

Marc Bloch participou dos acontecimentos que culminaram na ocupação da França pela Alemanha de Hitler, em maio de 1940. Com olhar totalmente crítico e reflexivo, peculiar a todo historiador, este autor analisa os aspectos da derrota francesa e sua rendição. O principal argumento desenvolvido por Bloch para explicar a derrota é que as classes dirigentes, Estado- Maior do Exército, sociedade morosa e forças políticas, não se preparam adequadamente para fazer frente à Blitzkrieg (guerra relâmpago alemã). Os generais franceses ainda se pegavam a táticas e ao compasso de 1918, enquanto Hittler ao contrário, utilizava seus tanques Panzer como ponta de lança na guerra, além de intensa utilização do poderio aéreo. Os franceses negligenciarem, também, a tecnologia alemã e sua tática de guerra, depositaram confiança demais na linha Maginot, linha de fortificações e de defesa construída pela França.

Uma das principais teses desenvolvidas pelo autor é a critica à ortodoxia militar francesa, presente em 1940. A forma como as ações de guerra eram traçadas sofria de certa letargia intelectual na execução, não permitindo uma eficiente organização das forças em campo de batalha, sendo frequente às tropas serem surpreendidas pelos avanços das forças inimigas. Além disso, observava os estados-maiores mal organizados com seus serviços de informação, e constituído por militares longevos. Outro ponto de vista do autor para explicar a derrota encontrava-se na política econômica permeada pela burguesia que se via ameaçada pela ofensiva das novas camadas sociais que, de certa forma, ameaçava esse grupo político e econômico acostumado a comandar. Logo, Marc Bloch denuncia a derrota intelectual como um mal presente, não só no alto-comando militar, mas que permeou toda civilização francesa e que levou à derrota frente ao poder de Hitler. As ações dos chefes militares ou os que agiam sob seus nomes, não pensaram a guerra, em outros termos: o triunfo dos alemães foi, essencialmente, uma vitória intelectual e talvez este seja o motivo mais grave desta derrota.

2 Cumpre registrar como o autor fez valer sua experiência no campo de batalha para registrar os fatos, mostrando que a história é filha de seu tempo. Para ele, não haveria descontinuidade entre passado e presente, mas um tempo contínuo, em que o passado ajudava a compreender o presente e o presente, por sua vez, ajudava a compreender o passado. E aí está o ponto fulcral que deixou de ser observado pela sociedade francesa frente ao inimigo. Era preciso problematizar esta nova guerra e aprender com o passado, como por exemplo, concepções de novas estratégias militares para suplantar o inimigo alemão. Duas guerras jamais serão iguais! Faz-se apenas uma crítica a esta obra, no qual o historiador dá ênfase à morosidade militar, sendo, também, as estruturas políticas e econômicas responsáveis por regular o uso da força na defesa dos interesses de um país. A História e os fatos são múltiplos em suas estruturas, em suas causas e sem determinismos, ou seja, multifacetadas.

Portanto, o autor faz um apanhado de toda sua experiência militar e de maior historiador do século XX para analisar a capitulação francesa frente ao poderio de guerra alemão.

Testemunha ocular, tratou do caótico cotidiano do conflito e da responsabilidade da sociedade francesa na vitória do nazismo. Lições do passado coadunadas com ações contemporâneas poderiam ditar um destino diferente daquele que foi registrado durante a Segunda Guerra Mundial para o povo francês, comprovando a frase do filósofo grego Heráclito de Efeso: “Ninguém se banha duas vezes na água do mesmo rio.”

Autoria não identificada

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A estranha derrota – BLOCH (P-HMP)

BLOCH, Marc. A estranha derrota. Tradução de E. Aguiar. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2011. 170 p. Resenha de: MARTINEZ, Paulo Henrique. Perseu – História, Memória, Política, n.9, p.332-333, maio 2013.

A história do tempo presente vai crescendo dia após dia no interesse do público leitor, de editores de livros, da mídia e, claro, da produção de pesquisas nas universidades. A sua avaliação crítica nasce com ela e também vai se impondo como necessidade inescapável. A edição brasileira de A estranha derrota deriva dessa demanda de conhecimento do passado.

O autor do livro, o historiador francês Marc Bloch (1886-1944), foi combatente nas duas guerras mundiais e com os olhos atônitos pela derrota francesa diante da máquina de guerra nazista, em maio de 1940, procurou mobilizar a experiência pessoal nos campos de batalha e as habilidades de professor e investigador da história social e econômica europeia na explicação desse acontecimento traumático para muitas gerações: a derrota fulminante que as tropas alemãs impuseram ao exército francês.

O livro revela mais do que a história do tempo presente, hoje buscada e propagada pela historiografia. Escrito em 1940, vemos o historiador do imediato, imerso no acontecimento que pretende estudar com criteriosos métodos investigativos e a segurança de suas habilidades profissionais. Marc Bloch fez do episódio uma porta de entrada para conhecer todas as fissuras sociais da sociedade, das instituições culturais francesas e da organização do Estado. Todas elas compõem o mosaico de causas profundas cristalizadas nessa derrota militar.

Não se trata apenas de um livro de história da Segunda Guerra Mundial, em um dos seus fatos mais decisivos.

Não se trata também de uma narrativa da derrota, naquelas circunstâncias, fragmentada em suas possibilidades, mas, sim, do relato de uma experiência pessoal amarga, descrita no trecho denominado “O depoimento de um vencido”.

As ambições do autor são grandes e também modestas quando afirma, na “Apresentação do testemunho”: “ninguém poderia pretender tudo ter observado ou conhecido. Que cada um diga francamente o que tem a dizer. A verdade nascerá dessas sinceridades convergentes”.

O que esse livro nos oferece é uma análise da fragilidade e do esboroamento de uma sociedade imersa em ilusórias autoconfiança e percepção de si e do seu tempo. Eis aqui a matéria-prima do historiador, as dificuldades na compreensão do momento em que se vive e os riscos que tal incompreensão carrega em um ventre escuro. A observação atenta e a composição surgida na análise de diferentes registros, reunidos no calor dos acontecimentos, sustentam o estudo do fato militar e de seu significado cultural e político. A trajetória pessoal do autor jogou papel decisivo. O historiador meticuloso era pesquisador de variada documentação da história da vida rural europeia e da França, sobretudo nas Idades Média e Moderna. O historiador meticuloso, repito, foi apanhado no turbilhão das ocorrências que, simultaneamente, se sucedem na frente de batalha, na retaguarda – na qual ele atua com desesperada dedicação – do alto comando militar e das conveniências da política internacional que pairam sobre o continente europeu e que se projetam para além dele. O profissional habituado ao exame de diversificados registros de informação e da organização do território – elementos estratégicos na guerra – viu-se, estupefato, na contingência de cuidar do próprio destino, ao lado de seus companheiros de farda e da população civil: evadir-se, impedir a captura, aceitar a inutilidade e a ausência de qualquer resistência, buscar recomporse, rapidamente, atuar onde fosse esperado e necessário. Uma experiência melancólica para o indivíduo e para o seu país.

O relato e a análise dos dias de combate, da debandada das tropas e da capitulação ocupam a maior parte das páginas. Tudo derivado da causa direta e profunda, a incapacidade do comando militar francês, um grupo humano como qualquer outro, passível de educação, de crítica e de responsabilidades.

O autor logo nos adverte: “em nenhum grupo humano os indivíduos são tudo”. As peculiaridades individuais acentuam-se no momento em que o grupo está integrado a “uma comunidade fortemente constituída”, o exército e a nação francesa. O foco do problema desloca-se prontamente para a dimensão social e cultural da vida francesa na primeira metade do século XX. É a derrota intelectual o fato grave e não a derrota militar. Esta, diz Bloch, ocorreu diante da incapacidade dos chefes e comandantes que “não souberam pensar a guerra”. Eis a razão de o livro não conter uma “história crítica da guerra” ou Nº 9, Ano 7, 2013 334 da campanha no norte da França. É “toda uma formação intelectual que deve ser recriminada”, aquela das escolas superiores e das instituições, guardiãs de tradições retransmitidas e da autoconfiança dos franceses.

A crítica incide sobre a incompreensão que a França tinha da época em que vivia e não sobre indivíduos e instituições que lhe davam sustentação. As mudanças tecnológicas acumuladas nos últimos 50 anos, antes que estalasse o conflito na Europa, haviam mudado radicalmente o ritmo e a noção de tempo e das distâncias. Os alemães guerrearam sob o signo da velocidade e da potência de seus armamentos notáveis, como tanques, aviões, motocicletas e caminhões.

O efeito psicológico dos bombardeios aéreos, disseminando o pânico e a insegurança entre comandantes e comandados. Técnicas e psicologia, dois campos de estudo que a sensibilidade analítica e a obra do historiador Marc Bloch incorporaram com argúcia na fundamentação crítica da história rural e da história das mentalidades. Um profundo conhecedor da tecnologia rural e da vida camponesa não poderia deixar de atentar para o contraste com as conquistas técnicas da sociedade industrial. Um profundo conhecedor dos efeitos psicológicos na vida social não poderia deixar de atentar para o significado dos novos ritmos inscritos no tempo histórico, como exemplifica a observação de que as tropas alemãs “não marchavam a pé”.

Na incompreensão brotariam o despreparo, a lentidão e a inação. Estas contagiaram os comandos e as tropas da França, incapazes de efetivo planejamento e de reação. Foi uma “guerra acelerada”, de movimentos rápidos, transpondo com agilidade e facilidade as posições fixas no solo francês, como a linha Maginot, cujo componente psicológico foi a sensação de desordem e de medo que a todos dominou. Enfim, a consequência de “uma cândida ignorância da verdadeira análise social” e das dificuldades de lidar com a surpresa. O conhecimento histórico exibe aqui todo o seu potencial, o da ciência da mudança, das mudanças estruturais, sociais, psíquicas, econômicas, tecnológicas que introduzem novos fatores na vida das sociedades. E não foram as duas guerras mundiais distintas entre si, na duração e no ritmo dos conflitos? A ocupação da Polônia em poucas semanas não demonstrara isso? Os bombardeios aéreos na Espanha não foram um prenúncio do que poderia ocorrer? E qual é a razão dessa incompreensão, que subsistiu nos oito meses seguintes? Diz Bloch: o falso culto da experiência do passado, a reparação de erros e a reedição de métodos de 1914-1918 não poderiam desaguar em “boa interpretação do presente”. A derrota intelectual desencadearia as sucessivas derrotas seguintes: política, psicológica, militar, o armistício, Vichy e, por fim, a ocupação alemã.

Menos extenso é o “Exame de Consciência de um francês”, a terceira e última parte do testemunho. Nela encontramos o prolongamento do teste335 munho do soldado no exame de consciência do cidadão, esses dois pilares do Estado nacional e da organização das nações. Aos sentimentos nacionais, Bloch agrega o exercício consciente do ofício do historiador e faz despontar uma “nova ordem de problemas: aqueles do próprio pensamento” e da preparação mental da sociedade. Marc Bloch rende tributo à sua geração, a da III República francesa, e a coesão social e moral são evocadas como fator de compreensão do presente pela instrução para a ação coletiva e da nação. Foi alguma “preguiça de saber” a responsável por uma funesta complacência da França para consigo mesma, leal aos modos de vida do passado. Segundo Bloch, tratava-se, agora, de restabelecer a coerência entre pensamento e ação política, ajustando-se à nova era, a da máquina e do progresso técnico. Ele vaticina: “E para fazer o novo é preciso, antes de mais nada, instruir-se”. O foco da crítica volta-se para a educação que lançou os homens da França na estranha derrota: de um lado, o culto excessivo do patriotismo, do civismo e do militarismo e, de outro, a ausência da análise social nos programas escolares, impregnados pela política. Reformar a preparação intelectual do país, a tarefa para o pós-guerra, um desafio para as jovens gerações de franceses.

Diante do espírito do soldado alemão, nutrido nas grandes celebrações coletivas da nação, na Alemanha de Hitler, Bloch sugere a “boa preparação mental para lutar” e para compreender os antagonismos. O conhecimento histórico adquire relevância social e política, como tomada de consciência das coletividades humanas. Não pode haver bons cidadãos sem boa história. E esta não pode existir sem o compromisso e a dedicação profissional dos seus artífices: os historiadores e os professores de História.

É lamentável que a edição brasileira de A estranha derrota não tenha acompanhado as edições francesa e espanhola. Estas trazem, além do texto publicado pela primeira vez em 1946, uma reunião de “Escritos clandestinos”, fruto do período da França ocupada e o movimento de resistência, no qual Bloch militou até sua prisão, seguida do fuzilamento, pelos invasores, em 1944. Ali figura um escrito sobre a reforma do ensino, estimulante diálogo com A estranha derrota. Dos anexos, os editores reproduziram os elogios militares recebidos por Marc Bloch, entre 1915 e 1940, as epígrafes que o autor selecionara para o livro inacabado, e que não esperava póstumo, e o poema que encarnou sua angústia na guerra: “O general que perdeu seu exército”. O livro publicado por Jorge Zahar Editor traz ainda o “Testamento” espiritual que Bloch escreveu em março de 1941.

A estranha derrota amargou o ostracismo, mesmo entre historiadores.

Foi na década de 1970 que o colaboracionismo francês durante a Segunda Guerra deixou de ser tabu político e intelectual. O intervalo entre a terceira (1961) e a quarta edição (1990), de onde provém a edição brasileira, é revelaN º 9, Ano 7, 2013 336 dor do alcance dessa interdição crítica. Curiosamente, o fato remete à citação de Pascal, presente no livro: “O silêncio é a maior perseguição”. As gerações do pós-guerra tardariam em acolher o retorno de Marc Bloch.

Paulo Henrique Martinez – Professor no Departamento de História da Faculdade de Ciências e Letras de Assis − Universidade Estadual Paulista. Contato do autor: martinezph@uol.com.br.

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A estranha derrota – BLOCH (RTA)

BLOCH, Marc Leopold Benjamim. A estranha derrota. Tradução: Eliana Aguiar. Rio de Janeiro: Zahar, 2011. Resenha de: OLIVEIRA, Marlíbia Raquel. Vencidos pelo mofo: Marc Bloch e a França derrotada. Revista Tempo Amazônico, Macapá, v.1, n.1, p.98-100, jan./jun., 2013.

Um dos acontecimentos mais extraordinários durante a Segunda Guerra (1939-1945) foi a derrota da França frente ao exército de Hitler em 1940. Sem duvida, a rápida capitulação daquele país foi por muito tempo alvo de críticas e espantos e, ainda hoje, é vista por muitos franceses como algo insuportável, vergonhoso.

Por que a França, detentora de um respeitado corpo militar, que havia saído vitorioso da Primeira Grande Guerra (1914-1918) sofreu tão duro e humilhante golpe? Quem nos responde a este e a outros questionamentos é Marc Bloch em sua obra A Estranha Derrota. Contemporâneo ao fato, o autor reunia as características e motivos necessários para redigir a história que se desenrolava diante dos seus olhos. Bloch escreveu baseando-se na sua experiência como historiador, militar e, acima de tudo, como um “bom e autêntico cidadão francês”.

Como historiador profissional era consciente de seu ofício e, portanto, da importância de registrar tal fato histórico. Neste sentido, preocupou-se severamente em não impregnar sua análise por um subjetivismo nacionalista. Como militar, mostrou-se comprometido com os deveres para com a sua pátria. Seu discurso era sustentado pela realidade vivida nas duas guerras, pois ele havia atuado no conflito desencadeado em 1914 e a partir de 1939 voluntariou-se para servir nas tropas francesas mesmo possuindo argumentos suficientes que poderiam livrá-lo das obrigações para com o exército nacional. Sendo um cidadão francês, fato do qual muito se orgulhava, Bloch demonstrou a tristeza de um povo vencido que, absurdamente, parecia conformado com a ocupação do seu território e submissão ao regime nazista.

A Estranha Derrota trata-se de um testemunho escrito entre julho e setembro de 1940 por Bloch em uma casa de campo depois da rendição francesa à Alemanha. Os manuscritos que dariam origem ao livro ficaram cuidadosamente escondidos até o final da guerra. A obra foi publicada pela primeira vez em 1946, mas só veio a alcançar sucesso editorial na década de 1990. Nela, o autor fez uma pertinente análise sobre os motivos que fizeram os franceses perderem a guerra. Ele, que junto com Lucien Febvre, fundou a Revista Annales, ousou historiograficamente ao escrever quase em tempo real uma história dos seus próprios dias cujo final ainda era desconhecido. Marc Bloch nasceu em 1886 e morreu fuzilado pela Gestapo em 1944. Nessa época ele estava vinculado ao movimento clandestino que visava libertar a França.

A versão brasileira publicada em 2009 está dividida em três partes somadas a quatro outros documentos relevantes. A primeira parte traz a “Apresentação do Testemunho”, onde o autor justifica o seu relato sobre a derrota. Na segunda, apreciamos “O depoimento de um vencido” em que é descrito o difícil dia-a-dia na guerra e, por último, temos o “Exame de consciência de um francês” onde são apontas as falhas conjuntas cometidos pela população da França. É interessante resaltar que em nenhum momento Bloch eximiu os vários setores da sociedade francesa da responsabilidade que culminou na derrota do seu país. Segundo ele, o povo francês de modo geral, ou seja, civis e militares, possuíam sua parcela de culpa na tragédia e ele, humildemente assume que também não era uma exceção diante de tal regra.

Bloch apresenta ao leitor uma serie de fatores que levaram ao colapso da França. Entre eles podemos destacar, o excesso de burocracia exigido pelo exército francês, a precariedade dos serviços de inteligência e informação que prejudicavam significativamente o contato entre as várias divisões militares bem como a tomada de decisões a tempo suficiente de serem executadas e, a apatia da população francesa frente a guerra. O país não estava preparado nem de forma bélica tão pouco psicologicamente. Os franceses não desejavam a guerra e diante dela faltou heroísmo, compromisso com a nação que de forma pouco honrosa assistiu a rápida desistência no campo de batalha e a traição de muitos dos seus filhos. Os franceses pareciam terem sido atacados de surpresa quando na verdade não foram.

Outro fator apontado como contribuinte para a derrota foi a falta de “camaradagem” entre o exército francês e inglês. Sobre isto, o autor de certa maneira defende os ingleses, afinal, como eles poderiam confiar na França tendo ela um exército tal mal organizado?

Essa realidade seria para Bloch, aquela que mais afetou negativamente a França durante toda a guerra. A desorganização do exército, percebida desde os mais altos comandos e que se estendeu até entre os soldados mais rasos, o indignava.

Em seu texto, ele enfatizou as falhas nas ações tomadas pelo alto comando. Este era formado por militares com idade avançada, veteranos da Primeira Guerra Mundial advindos da Escola de Guerra francesa, ainda arraigados às antigas doutrinas militares das primeiras décadas do século XX. No dito grupo, em menor número, podíamos encontrar jovens comandantes que por terem sido formados na mesma academia militar, infelizmente também carregavam consigo um pensamento estratégico-militar atrasado, “cheio de mofo”.

O exército francês demorou a entender que as armas e medidas adotadas em 1914 já não seriam suficientes para garantir uma vitória em 1940, afinal, lutavam contra as inovações tecnológicas já adotadas pelo exército do Terceiro Reich. Os tempos eram outros, as noções de tempo, espaço e as armas de guerra haviam mudado. Enquanto a França fazia uma guerra “velha” os alemães utilizavam a mais recente tecnologia bélica desenvolvida. Sendo assim, fica claro para nós que faltou inovação por parte dos franceses.

A estranha derrota, escrita em primeira pessoa por um dos maiores historiadores franceses, possui uma narrativa por vezes comovente de alguém que participou de forma ativa da guerra. O fato de Marc Bloch estar refugiado sem poder ter acesso a fontes documentais não desmerece a grande relevância dessa obra. Tampouco um certo sentimentalismo em sua análise não fez com que ele deixasse de lado o trabalho crítico do historiador.

Bloch deixou registrado o seu desejo e esperança de ver a França libertada. Infelizmente ele não sobreviveu para assistir a esse acontecimento, mas lutou até a morte acreditando nisso. Sem dúvida, trata-se de um incrível testemunho desse francês que nas entrelinhas do seu tempo deixou evidente uma personalidade forte e admirável caráter.

Referências

BLOCH, Marc Leopold Benjamim. A estranha derrota. Tradução: Eliana Aguiar. Rio de Janeiro: Zahar, 2011.

Marlíbia Raquel de Oliveira Graduanda em História pela UFS. Bolsista do Programa de Educação Tutorial – PET/História/UFS. Integrante do Grupo de Estudo do Tempo Presente – GET/CNPq/UFS. Email: marlibia@getempo.org. Colabora no Projeto “Memórias da Segunda Guerra em Sergipe” coordenado pelo Prof.Dr. Dilton Maynard (PROHIS/PPGHC).

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[IF]

A Estranha Derrota – BLOCH (CCRH)

Juarez José Tuchinski dos Anjos

BLOCH, Marc. A Estranha Derrota. Tradução de Eliana Aguiar. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2011. (167p.) Resenha de: ANJOS, Juarez José Tuchinski dos. Pela história e pela França. Cadernos do CRH, Salvador, v.25 n.64 Jan./Apr. 2012.

PELA HISTÓRIA E PELA FRANÇA: o testemunho de Marc Bloch

Ler Marc Bloch está entre os exercícios intelectuais que mais renovam o desejo de ser historiador. Por outro lado, é atividade que propõe constantemente um problema inerente ao ofício: o da responsabilidade que temos com os homens e mulheres do nosso tempo, junto dos quais, somos também atores do que um dia será, para outros historiadores, a história que buscarão compreender. Poucas vezes pensamos nisso. Num momento de crise, Marc Bloch pensou, com extraordinária sobriedade. Sua reflexão sobre a questão – ou antes, seu testemunho, como ele próprio preferiu chamá-lo – está agora disponível para os leitores brasileiros que acolhem a primeira tradução de A Estranha Derrota. Diferentemente da maioria das obras de Bloch, essa, a princípio, não é uma pesquisa historiográfica. Ao menos, no sentido de Os Reis Taumaturgos ou A Sociedade Feudal. Mas, sob outro prisma, toda ela é um escrito de história, na qual o autor é também ator, o historiador é, ao mesmo tempo, testemunha que pensa e interroga o próprio testemunho, por força da prática de um ofício onde aprendeu e ensinou a realizar a “triagem entre o verdadeiro e o falso; a olhar e observar muito” (p. 11). Como todo testemunho, esse teve também um contexto de produção que precisa ser visitado.

Entre julho e setembro de 1940, no começo do Regime de Vichy na França (o período em que o país esteve ocupado pelo exército alemão, com um “governo fantoche” centralizado na cidade de Vichy), Marc Bloch escreveu um testemunho sobre os eventos ocorridos nos meses anteriores: a guerra na França e a rendição de sua nação às tropas de Hitler. Embora ainda não estivesse sob ameaça direta, sentia – e isso se lê nas entrelinhas – que poderia ser uma das vítimas em potencial do poder contra o qual seu escrito era uma forma de reação. O manuscrito foi entregue a amigos seus, um dos quais precisou enterrá-lo no quintal de casa, para que não fosse destruído. Um ano depois de Bloch ter sido fuzilado, o texto foi, literalmente, desenterrado e entregue à sua família. A exemplo da Apologia da História, foi também transformado em livro, embora só tenha alcançado sucesso na década de 1990.

A edição brasileira consta de cinco partes. Além do escrito que lhe dá o título, contém outros três do punho de Bloch: o seu Testamento, redigido em 1941; as possíveis epígrafes por ele escolhidas para o prefácio de A Estranha Derrota e uma crítica em versos intitulada O General que perdeu seu exército. O texto que completa a obra é sobre Marc Bloch. Trata-se dos seus Elogios Militares¸ que pediu para serem lidos em seu funeral.

Sua preocupação, no primeiro capítulo, foi realizar a “Apresentação do Testemunho”, onde oferece elementos para a crítica do seu relato. Creio que tais elementos podem ser resumidos em quatro. Em primeiro lugar, trata-se do testemunho de um historiador que sabe que, em toda experiência histórica, e particularmente nessa em que foi ator, ninguém pode “pretender tudo ter observado ou conhecido. Que cada um diga francamente o que tem a dizer. A verdade nascerá dessas sinceridades convergentes.” (p. 31). Em segundo lugar, é o testemunho de um judeu “se não pela religião, que não pratico, aliás, como nenhuma outra, ao menos por nascimento” (p. 12). E prossegue, no mesmo momento em que o governo de Vichy se comprometia a entregar os judeus que viviam na França: “Só reivindico minha origem num único caso: diante de um antissemita.” (idem). A terceira credencial que o autoriza a testemunhar a derrocada da França está no fato de ser, também ele, francês, apaixonado por seu povo e seu país. “Nasci aqui, bebi na fonte de sua cultura, fiz do seu passado o meu, só respiro bem sob seu céu e tenho me esforçado, por meu lado, para defendê-la o melhor que puder.” (p. 14). Por fim, a credencial que lhe permitiu ser testemunha ocular, estar no front e nos bureaux: ser capitão do exército que, na guerra anterior, lutara por seu país e que, na Segunda, mesmo podendo ser dispensado pela idade, resolveu continuar (idem). Essas são, no seu conjunto, o que ele designa como “as delimitações de minha experiência”, onde, não obstante, pôde “observar no cotidiano os métodos e os homens” (p. 31). E é sobre esses homens e seus métodos que ele se propõe, nas duas partes seguintes, a testemunhar.

O segundo capítulo – O Depoimento de Um Vencido – faz análise incisiva das causas que levaram a França à derrota. De quem é a culpa? Do comando. Mas, como historiador, Marc Bloch delimita o que se esconde sob essa designação abstrata: “os erros de comando foram, fundamentalmente, os de um grupo humano” (p. 34). E esse grupo de homens foi cometendo uma série de erros e equívocos: escolha inadequada da estratégia de defesa (p. 44), má organização dos serviços de informação (p. 48), “pensamento em atraso” (p. 51), desperdício de forças humanas (p. 60), a aliança com a Inglaterra, frustrada pelo sentimento da anglofobia (p. 68), e o desânimo dos chefes (p. 104). Essas causas, no conjunto, têm origem no que ele define como uma grande crise de gerações que levou França a pensar que venceria a Segunda Guerra com as mesmas táticas e técnicas da Primeira, enquanto os alemães viviam a guerra servindo-se dos meios e recursos do próprio tempo. Assim, Bloch “testemunha”, reafirma aquilo que tantas vezes, como historiador, foi alvo de seus combates: o desconhecimento do passado e a incorreta compreensão da História como receita para o presente (contra a qual ele e Lucien Febvre lutaram durante suas trajetórias acadêmicas), impedem de viver e agir adequadamente nesse mesmo presente, “pois a História é, por essência, ciência da mudança. Ela sabe e ensina que dois eventos nunca se repetem de modo absolutamente igual, pois as condições nunca coincidem exatamente.” (p. 110). E arremata afirmando que o historiador “do mesmo modo, sabe muito bem que, se no intervalo de duas guerras seguidas, a estrutura social, as técnicas, a mentalidade se modificaram, as duas guerras jamais serão iguais”. (p. 111) Compreender o passado, assim, poderia ter ajudado os líderes da França a agirem de modo diferente, naquele presente. E terem, quem sabe, mais chances de êxito na guerra que precisaram travar.

O terceiro capítulo – “Exame de Consciência de um Francês” – trata daquilo que Marc Bloch considera “raízes de um mal-entendido grande demais para não ser incluído entre as principais razões do desastre” (p. 116). Ele passa a tratar da apatia do povo francês em face de um inimigo e de uma guerra que, desde o início, esteve fadada ao fracasso, pela falta de engajamento dos franceses, um mal entendido amor à Pátria (p. 129) – alicerçado na crença de que as cidades abertas seriam preservadas, as crianças seriam poupadas, as cidades patrimônio seriam preservadas, a paz seria alcançada se, simplesmente se rendessem – que apressou o fim de uma luta que mal começara. Bloch, que morreria vítima da guerra, não faz apologia da Guerra. Antes, mostra que ela, indesejada, deveria ter sido assumida para evitar o mal maior que a ocupação representou na França, situação em que “a sorte da França deixou de depender dos Franceses. (p. 156). E conclui: “Depois que as armas que não empunhamos com a necessária firmeza caíram de nossas mãos, o futuro de nosso país e de nossa civilização constitui exatamente o que está em jogo nesta luta, na qual não somos, na maioria, mais do que expectadores um pouco humilhados.” (idem).

Bloch lamentava, sobretudo, a humilhação de uma guerra que, agora, parecia-lhe, de fato, uma estranha derrota.

Como todo testemunho histórico, o texto de Bloch precisa ser relativizado no que diz respeito a uma visão bastante marcada pela experiência militar que o leva a ser tão exigente com os outros como, por hábito, o era consigo mesmo. Entretanto, A Estranha Derrota ainda conserva o vigor que motivou sua escrita: denunciar como, muitas vezes, a preguiça, a falta de comprometimento com as realidades nas quais estamos imersos, que produzimos e podemos modificar, podem ser o maior mal para a vida daqueles que amamos. A condição de ator histórico, que Marc Bloch destaca e propõe, é um desafio para todo historiador, que tem, por característica fundamental, se “interessar pela vida” (p. 11).

 

 

Recebido para publicação em 14 de julho de 2011
Aceito em 05 de outubro de 2011

Juarez José Tuchinski dos Anjos  Mestre em Educação pela Universidade Federal do Paraná, na linha de História e Historiografia da Educação. Doutorando em Educação pela mesma universidade. Desenvolve pesquisas em torno das seguintes temáticas: História da Educação, História da Infância e da Criança, História das Práticas de Educação não escolarizadas. juarezdosanjos@yahoo.com.br

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Os Reis Taumaturgos: o caráter sobrenatural do poder régio França e Inglaterra | Marc Bloch

Será desnecessário apresentar Marc Bloch aos historiadores. As pessoas que têm por ofício remexer o passado e seus vestígios de vida humana bem sabem a presença de nosso autor. Sentem-na tão forte em sua formação cotidiana que parecem, já familiarizados, dispensar o auxílio e a recorrência da procura. O historiador dos Annales, assim como os mortos renascentes da história, marca a historiografia e sua posteridade, funda discípulos e princípios, conduz da maneira mais humilde e sincera a apologia da história ou o ofício de historiador. Nosso livro é uma obra sua e não a menos genial. Talvez, a mais famosa. De leitura clássica e indispensável. Seu conteúdo: obra de ciência, de artista metódico, fonte de um renovar de história onde ainda história inexistia. Os reis taumaturgos e seus escrofulosos_ símbolos da mais alta magia e da crença; do poder e do sagrado, da ilusão e da cura.

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Tudo tem início num propósito novo. Trata-se de estudar, em pleno ambiente intelectual dos anos 20 do século passado, a história de um milagre. Refazer grande parte do percurso da Idade Média e da Época Moderna para compreender o rito de cura das escrófulas (adenite tuberculosa), efetuado pelos reis de Inglaterra e França através do toque de suas mãos, regiamente diferenciadas. Ou, para ser mais exato e explícito, “fazer história com aquilo que, até o presente, era apenas anedota”(p.43). E sua história revela-se profunda. Da anedota, extrai matéria interminável de compreensão da humanidade persistente naqueles tempos antigos. Mais do que extração, aprofunda-se em novo estudo de história política e mental.

No interior da obra, vários temas sobressaltam e se fazem presentes ao conjunto da história deste milagre. Dá-se especial atenção à importância do imaginário coletivo, do poder das crenças e atitudes mentais dos homens, assim como se volta à demarcação do campo de disputas políticas travadas no processo de ascensão das casas principescas européias; a relevância do sagrado para caracterizar o ambiente religioso e mágico destas épocas, oscilantes entre o catolicismo pio da Igreja, os projetos e intenções nem sempre espirituais do poder laico e as tradições e anseios da cultura popular. Adentra a história de um milagre régio e de sua apropriação do sagrado, disputa e delimitação de diferenças e penetrações entre o espiritual e o secular, rei e papa, sacerdote e leigo_ História de sagração e poder, fé e crença. Enfim, passado, mais uma vez, que se vê profundo porque profundos são os desejos de vida humana na história.

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A obra dividi-se em três livros. O primeiro, intitulado “as origens”, remonta aos primórdios das monarquias de França e Inglaterra. Servindo-se do famoso “mito das origens”, que tanto rodeia e seduz os historiadores, mesmo entre os mais astutos e conscientes, explicar-se-á o surgimento e a fundamentação permanente do ato de cura régia, no século XI, na França Capetíngia, e no século XII para os ingleses Plantagenet.

Mas, talvez, o indício mais significativo do primeiro tomo seja a caracterização do rito de cura em seus aspectos políticos e mentais: o desejo de cura dos escrofulosos, a imagem sagrada transposta ao rei através da consagração eclesiástica (principalmente com a unção), a delimitação da ambivalência atribuída pela cultura popular à certa salvação de sua saúde_ o sagrado enquanto sinônimo de “capaz de curar”_ e a longa tradição mágica presente em meio à gente comum.

O segundo livro, maior da obra, trata, primeiramente, do desenvolvimento do rito de cura régia durante a Baixa Idade Média, procurando “evocar o aspecto perceptível sob o qual esse poder corporificou-se aos olhos dos homens durante aquele período.”(p.91). O rei levava suas mãos às partes enfermas dos doentes e, logo após o toque, fazia o sinal da cruz. Eram essas, com pequenas variações, em suma, as ações básicas do rito. Contudo, apesar de simples, não deixavam de possuir imensa popularidade. “Tanto os reis de França quanto os da Inglaterra pretendiam ter o poder de curar”, e junto deles, acrescenta Marc Bloch, “todas as classes estavam representadas na multidão sofredora que acorria ao rei”.(p.101). Ao que tudo indica, a crença no poder taumatúrgico dos reis passaria ilesa pelos tempos conturbados dos séculos XIV e XV. É que a multidão atribuía às personagens régias divindade demais para conformar-se com a opinião de que seus soberanos fossem apenas simples senhores temporais. E, nisso, não estavam sós: também a medicina da época concordava em legitimar a prática régia dentro de quadros válidos para a saúde humana. Contudo, ainda, como sempre, existem contraditores. E aí tem-se a presença marcante do movimento Gregoriano, a disputar, primeiro com o Império e depois com o Regnum, as prerrogativas do sagrado. Por fim, ainda houve as tentativas de imitação dos reis ingleses e franceses por parte de alguns soberanos alhures.

Encontra-se também no mesmo livro o estudo de outra prática taumatúrgica. Só que, dessa vez, rito seguido apenas pelos soberanos Plantagenet. Trata-se das curas efetuadas pelos anéis medicinais benzidos pelos reis bretões, anéis que saravam da epilepsia e de distúrbios musculares. Em verdade, tínhamos, para todos estes atos mágicos e sagrados, o mesmo motivo: segundo Bloch, “o conceito de realeza sagrada e miraculosa (…), profundamente enraizado nas almas, permitiu que o rito do toque (assim como o dos anéis) sobrevivesse a todas as tempestades e a todos os assaltos”. (p.131).

Desta forma, vários temas perpassam a sedimentação do rito e as características essenciais com que o conceito de realeza sagrada e maravilhosa se mostrou. Dentre eles, destaca-se a dúbia condição assumida pela realeza diante da dignidade espiritual, quer dizer, “os reis sabiam muito bem que não eram de todo sacerdotes; mas eles também não se consideravam leigos; em torno deles, muitos de seus súditos partilhavam desse sentimento”.(p.149). Também, aspecto importante da santidade atribuída ao trono, a sagração real se fazia presente na devoção que lhe era dedicada. A unção régia, por seu lado, fornecia a razão desejada para demarcar a característica sagrada dos reis, que os situava, vez em quando, ao mesmo patamar dos sacerdotes de Roma. Vê-se, ao lado destas características, a própria definição e legitimidade do poder real: “Todo mundo sabia que para fazer um rei, e para fazê-lo taumaturgo, era necessário preencher duas condições(…) a ‘consagração’ e a ‘linhagem sagrada’”(p.169).

No desenrolar das práticas e discursos de legitimação, a monarquia condensa seus aparatos de símbolos e identidades. Em França, perpetuam-se as legendas do ciclo monárquico (Santa âmbula, as flores-de-lis e a auriflama) e as superstições que rodeavam a figura régia(o sinal de pele e a defesa inata contra os leões). Porque, “nessa época, o sucesso do maravilhoso de ficção explica-se pela mentalidade supersticiosa do público a que se destinava.”(p.187). Enfim, tem-se todo um arcabouço de sofisticação e moldagem do exercício do poder, correspondente, nos dizeres de Bloch, “aos progressos materiais das dinastias ocidentais”. Voltando à taumaturgia do toque das escrófulas, a evolução de signos atribuídos ao poder real é levada adiante pela aproximação, em França, da figura régia a S. Marcoul, santo curador deste mal que tanto afligia as almas. O que se mostra é a interpenetração de crenças populares que devotavam ao santo, assim como ao rei depois de sagrado, a capacidade sobrenatural. Além dos dois, somente aos “sétimos filhos” era concedido o dom taumatúrgico sobre os escrofulosos.

Contudo, apesar do avanço simbólico e material, sérios problemas surgiriam no século XVI para trajetória das casas reais européias. A Renascença e o Movimento Reformista compõem um novo tipo de pensamento humano e espiritual para os homens da Época Moderna. Mas, a crença maravilhosa da dádiva real ainda permaneceria viva até pelo menos o final do Antigo Regime. E nesse persistir, segundo Bloch, podemos entender melhor o desabrochar do absolutismo de Luís XIV na França e a profundidade do drama político inglês vivido no século XVII.

A Reforma havia complicado a vida política européia, e o rito do toque não escaparia às disputas que então se faziam entre os partidários da antiga fé e os novos seguidores da religião reformada. Primeiro abalo que se seguiria de outros. “Na verdade, a idéia do milagre régio estava relacionada a toda uma concepção do universo”, diz Marc Bloch. “Ora, não há dúvida de que, desde a Renascença e sobretudo no século XVIII, essa concepção tenha pouco a pouco perdido terreno.”(p.252).

As dinastias francesas e inglesas advindas após a Guerra dos Cem Anos e a Guerra das Duas Rosas passariam a tirar vantagem e também a sofrer os abalos de um lento, porém, progressivo, processo de secularização das consciências e das instituições políticas. As transmutações da história monárquica inglesa no século XVII imporiam vida curta ao rito miraculoso dos reis- médicos em território Saxão. A prática tem seu fim no início do século XVIII, já sob os Hannover.

O fim do rito francês demora ainda algum tempo. Tem-se, então, a incômoda passagem do pensamento ilustrado e da Revolução de 1789. Segundo o autor, “a decadência do milagre régio está intimamente ligada a esse esforço dos espíritos, pelos menos da elite, para eliminar da ordem do mundo o sobrenatural e o arbitrário e, ao mesmo tempo, conceber sob uma faceta unicamente racional as instituições políticas.”(p.252). O ocaso do rito em França se dá no século XIX sob reinado de Carlos X, situação onde a crença no milagre régio era ainda aceita apenas por parte do público arraigado às práticas antigas. Aqui se faz sentir toda a persuasão do céptico e irreligioso século XIX, onde o desencantamento do mundo redobrara a descrença nos corações dos homens.

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São várias as indicações que Jacques Le Goff nos oferece, em seu prefácio da obra de Marc Bloch, para melhor entendermos Reis taumaturgos. Num resumo de tópicos, Le Goff aponta os possíveis itens da vida intelectual e prática de Bloch que teriam influenciado a feitura da obra: as reminiscências da Grande Guerra, o ambiente da universidade de Estrasburgo, o contato mais próximo com os medievalistas alemães, e também a influência e ajuda do irmão médico. Por outro lado, no próprio interior da obra, destaca o grande objetivo do autor: “o que Marc Bloch quis foi fazer a história de um milagre e, simultaneamente, a da crença nesse milagre”; ou melhor, a ‘história total de um milagre’(p.16). Traça, assim como se tentou fazer nesta resenha, um resumo do livro e de seus aspectos propriamente discursivos. E, por fim, analisa a ‘instrumentária conceitual’ de nosso autor e os itens relevantes à historiografia contemporânea que ainda estariam presentes no conteúdo da obra.

Desses aspectos, alguns tem importância destacada. Hoje, compreende-se a enorme dívida que os historiadores contemporâneos contraíram ao fundador da Escola dos Annales. Pode-se aglomerar nesta dívida a relevância que se atribuiria posteriormente pelas ciências humanas à história em longa duração, ao método comparativo e à antropologia histórica_ todos métodos e conceitos utilizados e mesmo fundados por Marc Bloch neste seu livro. Por outro lado, e seguindo ainda a opinião de Jacques Le Goff, “mais que a história das mentalidades, o caminho que Marc Bloch nos oferece explicitamente é o de uma nova história política(…) é o apelo ao retorno da história política, mas uma história política renovada, uma antropologia política histórica de que os Reis Taumaturgos serão o primeiro e sempre jovem modelo”(p.47).

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Nos últimos anos, têm-se dado especial atenção, no âmbito da Historiografia da Europa Moderna, aos problemas e às especificidades do conceito de Absolutismo. O propósito deliberado de “resenhar” o livro abre-nos espaço de revelar faceta mais concentrada, porém, não menos importante, do conteúdo intelectual desta obra de Marc Bloch. De fato, o que Reis Taumaturgos teria a nos dizer a respeito desse conceito tão controverso e debatido?

Ora, a mais óbvia e prática correlação que se pode estabelecer entre esta história de um milagre régio e o conceito de Absolutismo é a possibilidade de se imaginar historicamente a força e o poder que detiveram estes seres, considerados, ao mesmo tempo, humanos e sagrados. Por outro lado, no decorrer de seu livro, Marc Bloch destaca intencionalmente a estreita correspondência que houve entre o sucesso da crença no milagre e o progredir, lento e definido, dos avanços materiais e simbólicos das monarquias francesa e inglesa durante a Baixa Idade Média e a Época moderna.

Contudo, é possível ainda mais estender o alcance da obra. O que se entrevê em algumas passagens é a ligeira demarcação, por parte do autor, do que ele próprio denomina ser uma “história profunda”; quer dizer, história que interpreta a crença neste milagre como sinônimo de todo um arcabouço de pensamento e entendimento do mundo que orbitaria sob parâmetros completamente singulares e historicamente determinados. A secularização das consciências e atitudes, assim como a “racionalização” da vida, tão marcantes em nossa sociedade contemporânea, só poderá ser esboçada no decorrer de nossa história, assim como na de Bloch, quando chegamos, a pouco e pouco, cada vez mais perto de nosso tempo. E somente a vemos perfeitamente delineada após o século XVIII. Para a Idade Média e para boa parte da Moderna, o que se vê em solo europeu é um mundo, ou uma forma de pensar o mundo, que pode ser definida como julgamento desvendado de um universo encantado e maravilhoso: fonte de todo o sagrado e sobrenatural.

O Absolutismo do Rei-Sol e a Monarquia de Direito Divino só poderiam ter razão de existir na atitude dos homens se, por meios possíveis, concedermos a eles a capacidade de aceitar como válidas práticas e crenças do “divino”. O que há de sagrado nos gestos e atitudes de Luís XIV para que se imagine o Todo-Poderoso conceito de amplitude do poder real? Nada haveria, por certo, se ao menos não fosse concedida a seus súditos a possibilidade do sagrado. E nisso, Marc Bloch nos ajuda a ver melhor a dificuldade de trabalho do historiador, estudioso que detém a incomensurável tarefa de escarafunchar alteridade com os mortos, tendo que, a cada vez em que olha pela janela de seu gabinete de estudos para o mundo de fora, saber lidar com a impressão aterrorizante e bela do contraste.

Le Goff vê em Marc Bloch homem “racionalista, herdeiro das luzes”, e assim justifica a necessidade do último livro de nosso autor (“interpretação crítica do milagre régio”), em que se procura entender ‘como se acreditou no milagre régio’. Para além das críticas ao, talvez, excessivo apego de Bloch, discípulo de Durkheim, às explicações racionais e científicas dos fenômenos sociais, o que fica já é o bastante. Se, às vezes, se podem encontrar dúbias colocações do autor a respeito da honestidade ou da sinceridade dos Reis e de seus fiéis seguidores no ato de cura _ o que o leva à inevitável conclusão de que tudo teria sido um “erro coletivo”_ o que se entrevê ao final é sempre a mesma seguridade abarcadora de todo um modo de compreensão do mundo que, ao cabo, afetaria Reis e súditos. Mundo maravilhoso e sagrado, mas, não destituído de intenções políticas deliberadas ou, pelo contrário, muitas vezes indicador de desejos e atitudes humanas em todas as esferas da vida_ seja pela vivência econômica, social ou sensível.

Talvez, assim como assinalou nosso prefaciador, encontremos certa hesitação conceitual no vocabulário de Marc Bloch (particularmente, para mim, na recorrência com que aparecem na obra conceitos vagos de nacionalidade na Idade Média e Tempos Modernos). Mas, em suma, trata-se de obra fundamental no campo das idéias e concepções políticas que, a seu turno, submete um novo olhar sobre a história.

Por fim, por meio deste livro, podemos utilizar, sem medo de usufruir indevidamente, a erudição histórica de dez séculos e a reflexão sutil de um dos maiores historiadores do século XX.

Referência

BLOCH, Marc. In: Reis Taumaturgos_ o caráter sobrenatural do poder régio: França e Inglaterra. Prefácio de Jacques Le Goff. Tradução: Júlia Mainard. São Paulo, Cia das Letras. 2 a Reimpressão, 1999.


BLOCH, Marc. Os Reis Taumaturgos: o caráter sobrenatural do poder régio França e Inglaterra. Prefácio de Jacques Le Goff. Tradução: Júlia Mainard. São Paulo: Companhia das Letras, 1999. Resenha de: GASPAR, Tarcísio de Souza. A Ilusão e a Cura – Reis Taumaturgos, Marc Bloch. Cantareira. Niterói, n.8, 2005. Acessar publicação original [DR]