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Biografias e Trajetórias: vidas por escrito / Escritas do Tempo / 2020
Escritas biográficas e trajetórias: desafios no campo historiográfico
A biografia deixou de ser um pária no campo do conhecimento histórico acadêmico. Depois de vários anos de desdém pelo gênero, por parte das correntes dominantes da historiografia científica, hoje assistimos a uma proliferação de livros, artigos, teses de doutorado, dissertações de mestrado e trabalhos de conclusão de cursos de graduação na área de História que se voltam para a análise ou a construção de biografias. Obviamente, essa popularização de estudos biográficos aponta para importantes desafios e questionamentos que exigem nossa atenção: o que constitui uma biografia histórica? Que problemas teóricos, metodológicos, historiográficos e éticos as pesquisas biográficas ajudam (ou não) a resolver? Em quais âmbitos a investigação biográfica dá sinais de saturação e quais demandam mais investimentos?
De modo geral, verificamos que os principais caminhos trilhados pelos estudos biográficos, levados a cabo por profissionais de História, são a construção de biografias de personagens considerados representativos de um determinado grupo ou processo; a pesquisa sobre indivíduos que, ao contrário de representar, põem em xeque — por sua singularidade — a coerência e a homogeneidade de coletivos e movimentos; a análise de biografias sobre determinadas pessoas que verifica como essas foram construídas e disputadas nas memórias coletivas mais ou menos institucionalizadas.
Também é notável a capacidade da biografia de cruzar fronteiras, tanto as geográficas (quando se leva em conta os deslocamentos físicos e mentais dos personagens estudados) como as cronológicas (já que a duração das vidas não se limita a marcos temporais consagrados) e disciplinares. Sobre esse último ponto, a noção de espaço biográfico, de Leonor Arfuch (2010), aponta para uma multiplicidade de formas canônicas, inovadoras e novas dentro de tais manifestações, dando conta de biografias, autobiografias, memórias, testemunhos, histórias de vida, diários íntimos, correspondências, cadernos de notas e de viagens, rascunhos, lembranças de infância, autoficções, romances, filmes, registros artísticos e midiáticos, entre outras formas e suportes.
Os textos que compõem esse dossiê exemplificam as potencialidades da biografia, constituindo-se em uma excelente amostra do que vem sendo produzido no Brasil e no exterior nessa área. Iniciamos com um texto teórico, A biografia à prova da identidade narrativa, de François Dosse — um dos maiores especialistas no gênero na atualidade — traduzido por André Furtado e Emmanuel Wambergue. Nele, o autor tece uma excelente discussão em torno da percepção que o biógrafo precisa ter na redação de uma biografia. Para Dosse, só é possível chegar ao biografado acessando suas identidades plurais, levando em conta um mosaico de tramas, sentidos, temporalidades e ações. Os organizadores desse dossiê e a Escritas do Tempo agradecem por sua contribuição. Seguimos por artigos que examinam, a partir de referenciais e fontes diversas, vidas e memórias de professoras, desportistas, cangaceiros, intelectuais, médicos, operários, cantoras e mães de santo que viveram em espaços e períodos diversos.
Em Narrativas em três tempos: biografias em Octávio Tarquínio de Souza, Raimundo Magalhães Júnior e Ruy Castro, Manoel Messias Alves de Oliveira e Wilton C. L. Silva analisam parte da produção literária de três importantes biógrafos brasileiros, de períodos distintos, apresentando as características estruturais de suas obras e discutindo as relações entre literatura e História dentro do gênero biográfico.
Nas fronteiras entre o espaço biográfico e a literatura, o artigo de Flávio Weinstein Teixeira, De começos e anexações: primeiras apropriações de Álvaro Lins em Portugal, busca reconstituir as relações e as formas pelas quais se dá a recepção da obra de Álvaro Lins no campo intelectual e literário em Portugal, tendo como base de pesquisa a imprensa periódica desse país.
Assim como o campo literário, a trajetória de intelectuais também é uma seara bastante frutífera para a análise de obras e personagens. O discurso anisiano à luz de Pierre Bourdieu, de Karen Fernanda da Silva Bortoloti, submete as propostas de reforma educacional de Anísio Teixeira, defensor de um projeto de educação integral e para todos, a partir dos conceitos bourdieusianos de campo e capital cultural, identificando as estratégias discursivas que buscavam consolidar o campo educacional e legitimar a relevância do capital cultural para a reconstrução do país em um momento de grandes mudanças estruturais.
Assim como o projeto educacional reflete uma identidade sobre o país que somos ou gostaríamos de ser, os personagens icônicos da cultura popular também têm sua memória ligada aos desejos e às expectativas coletivas. Os artigos de Marcos Edilson Araújo Clemente, Lampião e o cangaço: trajetórias de vida, histórias como flagelo (1920–1938) e de Nathan Pereira Barbosa, Raça, Futebol e Identidade Nacional: disputas e atualizações da memória em torno das narrativas biográficas de Pelé, situam-se nessa confluência. No primeiro, Virgulino Ferreira da Silva, o notório cangaceiro Lampião, é identificado como uma representação das tensões e das contradições encontradas nos sertões do Nordeste do Brasil, em meio às formas de consolidação do poder político e econômico republicanos nas primeiras décadas do século XX. No segundo, apresenta-se um balanço de diferentes narrativas sobre Edson Arantes do Nascimento, o mítico jogador de futebol, cuja trajetória apresenta-se como base para determinados projetos de nação e de identidade nacional nas biografias analisadas.
A reflexão sobre projetos políticos, processos de exclusão e autoritarismo confluem-se nos dois artigos seguintes: Victor Klemperer: uma testemunha ocular, de Juliana Aparecida Lavezo, e “Que fizeram com meu pai?”: sindicalismo e ditadura no Amazonas, de César Augusto Bubolz Queirós. Juliana Lavezo utiliza-se da escrita autobiográfica de Victor Klemperer, professor universitário judeu-alemão, enquanto literatura testemunhal de uma vítima de nazismo, para problematizar tal relato e seu lugar na contemporaneidade, enquanto César Queirós busca dar visibilidade aos processos de resistência e repressão vivenciados na ditadura civil-militar brasileira (1964–1985) a partir da trajetória de Antogildo Pascoal Viana — presidente do Sindicato dos Estivadores no período da deflagração do golpe —, que foi uma das primeiras vítimas do aparato repressivo que se instaurava.
Utilizando-se das possibilidades analíticas da História Oral, Priscila Cabral de Sousa e Vera Lúcia Caixeta, com Considerações acerca das vivências de uma professora nordestina, dão visibilidade à experiência de vida de uma educadora que, distante do padrão das “grandes personagens históricas”, pertence às margens. Em seu relato, coloca sua vivência enquanto autoexpressão de uma identidade construída a partir de uma vida feminina e de suas formas de existência e resistências em território maranhense.
A História Oral também é o referencial teórico que fundamenta os artigos de Bruno Barros dos Santos e Rogério de Carvalho Veras, Maria Bonita de Tocantinópolis: história de vida de uma mãe-de-santo do norte tocantinense e de Daniel Lopes Saraiva, “Cá entre nós”: trajetória e memória de Wanda Sá. Bruno Santos e Rogério Veras adentram o campo do sagrado ao analisarem a vida de Rosário, mãe-de-santo da tenda São Jorge Guerreiro, mais conhecida como Maria Bonita da cidade de Tocantinópolis. O texto mescla um conjunto de narrativas míticas sobre caboclos, encantados e pombas giras na construção de sua identidade pessoal. Daniel Saraiva utiliza-se da trajetória artística da cantora Wanda de Sá, que integrou a geração que frequentava os primeiros shows do então embrionário movimento bossa novista, e que, em sua carreira e suas gravações, nas continuidades e nas rupturas, permite entender algumas dinâmicas da vida cultural brasileira.
Por sua vez, Felipe Augusto dos Santos Ribeiro, com Entre biografias e trajetórias de pesquisa(dores): memória operária e reflexões de um historiador nativo, faz um exercício de ego-história, refletindo, enquanto “historiador nativo”, sobre uma experiência de pesquisa relativa à memória operária. O artigo pontua desafios, inseguranças e aprendizados acumulados, ao mesmo tempo em que estimula o debate sobre novas formas narrativas na historiografia e as interrelações entre sujeito e objeto de pesquisa.
Por fim, Fernanda Dayara Salamon e Alfredo dos Santos Oliva, em A construção da subjetividade de C.G. Jung em “Memórias, sonhos, reflexões” (1957), colaboram com uma reflexão sobre a escrita autorreferenciada, a partir da autobiografia do psicanalista suíço, em que discorreu sobre sua vida, sua obra, seus sentimentos e suas experiências, enquanto campo privilegiado para discutir os processos de subjetivação na escrita de si, entendida como uma auto-organização afetiva e emocional.
Convidamos as leitoras e os leitores a percorrerem essas reflexões que, certamente, irão satisfazer aqueles e aquelas que buscam formas inovadoras de pensar a História.
Referência
LEONOR, Arfuch. O espaço biográfico: dilemas da subjetividade contemporânea. Trad. Paloma Vidal. Rio de Janeiro: EdUERJ, 2010.
Geovanni Gomes Cabral – Docente da Universidade Federal do Sul e Sudeste do Pará (Unifesspa). Doutor em História pela UFPE. Editor da Revista Escritas do Tempo.
Benito Bisso Schmidt – Docente do Departamento de História (desde 1994) e do Programa de Pós-Graduação em História (desde 2003) da UFRGS. Doutor em História pela UNICAMP.
Wilton Carlos Lima da Silva – Docente da Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho, UNESP, Campus de Assis. Doutor em História pela UNESP/ASSIS.
CABRAL, Geovanni Gomes; SCHMIDT, Benito Bisso; SILVA, Wilton Carlos Lima da. Apresentação. Escritas do Tempo, Pará, v.2, n.4, 2020. Acessar publicação original [DR]
Futebol, biografias e memórias / Revista Eletrônica História em Reflexão / 2018
O período que vai de 2007 a 2016 foi cognominado, em coletânea recente, de “a década esportiva” (Spaggiari; Machado; Giglio, 2016). O balizamento temporal desses dez anos faz alusão, por suposto, ao intervalo que se estende entre o anúncio da Copa do Mundo no Brasil pela FIFA e a realização dos Jogos Olímpicos de verão na cidade do Rio de Janeiro, ocorridos há três anos atrás.
No referido decênio, como sabemos, o país assistiu a uma série de convulsões político-sociais. O otimismo, o crescimento, a inclusão e as promessas até então reinantes, e que incluíam os megaeventos esportivos na agenda das transformações e promoções por que passava a nação, parecem ter sido levados de roldão pela onda conservadora e pelo abalo institucional vivenciado em tal conjuntura histórica, a se arrastar até os dias de hoje.
Não cabe aqui, nos limites dessa apresentação, discorrermos sobre esse ponto, mas talvez valha a pena pinçar desse quadro de múltiplas, sucessivas e desencontradas crises das instituições de poder ao menos um aspecto que pode ser considerado positivo. Dentro daquilo que nos compete, tal aspecto diz respeito ao contexto dos grandes eventos de esportes transcorridos no país, com especial atenção ao futebol.
O estudo de Campos (et. al., 2017), dedicado a mapear a presença do futebol nas Ciências Sociais e Humanas no decorrer do século XXI, traz um levantamento que pode ser tomado como alvissareiro para a consolidação desse subcampo disciplinar no país. A despeito da persistência das disparidades regionais, apontadas criticamente pela equipe de pesquisa associada ao GEFuT – Grupo de Estudos em Futebol e Torcidas, da Escola de Educação Física / UFMG –, a investigação mostrou um incremento quantitativo notável na produção científica com temática futebolística nos últimos anos.
Talvez seja problemático postularmos aqui os efeitos de um “legado acadêmico” – apropriação do termo nativo, supostamente beneficente, da organização promotora da segunda Copa do Mundo realizada no Brasil em 2014 –, mas é indubitável que a visibilidade do megaevento planetário estimulou a criação de grupos e projetos de pesquisa; propiciou a realização de fóruns e reuniões em associações de pós-graduação; e motivou a organização de dossiês e artigos nos periódicos científicos centrados no temário do futebol.
Se a consolidação de tais estudos vai-se mostrar duradoura, apenas os próximos anos e as futuras pesquisas de mapeamento irão dizer. De todo modo, é de se esperar que a quantidade de novos trabalhos implique em elevação de qualidade e em adensamento analítico, bem como que a curva ascendente apontada pela equipe do GEFuT reverta-se, pelo menos no médio e no longo prazo, na estabilização dessa seara de investigações.
Para as gerações que hoje começam a lidar com o objeto, trata-se de uma forma otimista de dizer que o futebol doravante não será mais “tema menor”. Tampouco que o mesmo carecerá de seriedade e legitimidade no rol dos assuntos relevantes, tal como parte da Academia e do senso-comum quis, durante bom tempo, nos fazer acreditar.
Um dos sinais da afirmação e da consolidação dos estudos futebolísticos é o interesse dos pesquisadores em fase de formação na pós-graduação dos cursos de História e de Ciências Sociais em se dedicar a este assunto. Mais do que contabilizar números de dissertações e teses defendidas, um caminho possível para aferir o estado da arte é levantar os dossiês que vêm sendo organizados ultimamente nas revistas discentes de pós.
A título de exemplificação, invoquemos os volumes que resultaram em publicações no ano de 2018. Um primeiro exemplo é o da Revista Mosaico, dirigida pelos alunos do Programa de Pós-Graduação em História Política e Bens Culturais (CPDOC-FGV), que se intitulou “Diálogos com o futebol” [1]. O segundo, denominado “História dos esportes e do lazer”, foi uma iniciativa da Revista discente Hydra, vinculada à pós-graduação em História da Universidade Federal de São Paulo / UNIFESP [2].
O presente dossiê, cuja chamada foi lançada no ano passado, vem ao encontro dessa tendência que consideramos positiva e sintomática do interesse de mestrandos e doutorandos pela abordagem acadêmica do futebol. Pertencente ao Programa de Pós-graduação em História da Universidade Federal da Grande Dourados (UFGD), sediado no estado de Mato Grosso do Sul, o periódico eletrônico discente História em Reflexão, criado há mais de dez anos (2007) e publicado com regularidade semestral, também elegeu para tematização em 2019 o futebol.
Convidados pela editora da revista Kelen Katia Prates Silva, mestranda do Programa, a delinear as diretrizes do supracitado dossiê, amadurecemos inicialmente qual seria o escopo preferencial por definir. Com o critério preliminar da exclusão dos temas relativamente explorados em publicações precedentes, orientamo-nos pelo capítulo de balanço feito pela professora da UFF, Simoni Lahud Guedes, acerca da produção científica concernente ao eixo “Esporte, lazer e sociabilidade” (2010), em coletânea organizada pela Associação Nacional de Pós-Graduação em Ciências Sociais, a ANPOCS.
No tocante à antropologia do futebol, a pesquisadora destaca duas temáticas que avultaram nos últimos anos, tornando-se recorrentes, em função de sua visibilidade e de sua percepção mais abrangente como “problema social”. A primeira concerne às identidades construídas por meio do futebol, com mais ênfase para a relação identitária do país com a Seleção Brasileira e com as Copas do Mundo, à luz das chamadas “comunidades imaginadas”, de que falava Benedict Anderson para pensar a emergência do nacionalismo no contexto pós-colonial dos países do sudoeste asiático.
O segundo assunto destacado por Guedes na sua apreciação de conjunto relaciona-se às torcidas organizadas, cujo envolvimento com a pauta da opinião pública atinente à violência urbana vem demandando da Academia estudos de relativização dos estigmas, da naturalização de comportamentos desviantes e do etos associado a estes agrupamentos juvenis na contemporaneidade.
Tendo em vista os avanços reflexivos na exploração da identidade nacional e da violência no futebol, consideramos de modo alternativo um dossiê com foco futebolístico capaz de cobrir um ângulo novo do assunto e, ao mesmo tempo, de não deixar de incitar questões tradicionais e caras ao terreno da historiografia.
Nesse sentido, elegemos dois flancos de abrangência: a relação dual entre história e memória, sempre importante como suporte conceitual na elaboração teórica dos historiadores; e a biografia, dimensão de igual importância na reflexão em torno da escrita historiográfica, em função do que pressupõe para o entendimento da relação entre indivíduo, sociedade e temporalidade, ou, para usarmos os termos críticos de Bourdieu, para desconstruir sua “ilusão biográfica”.
Ambos os temas sugeridos consistem em questões frequentes de interpelação, quer aos estudiosos do futebol tout court, quer aos historiadores que se dedicam a analisar as fronteiras de seu métier profissional com outras áreas. O dossiê Futebol, biografias e memórias mobiliza, pois, um ponto de partida metodológico para refletir sobre o estudo da prática deste esporte profissional, a saber, a escrita de sua história vis-à-vis a narrativa dos jornalistas esportivos.
O aquecimento do mercado editorial com livros sobre futebol, especialmente na conjuntura dos megaeventos esportivos, é uma das expressões mais candentes dos desafios de se pensar uma história científica desta modalidade esportiva, face a um volumoso material preexistente, com a capacidade de fornecer dados e informações abundantes, mas dotados de objetivos e métodos diversos daqueles almejados pelos historiadores profissionais. Assim, embora com objetos convergentes, os objetivos de cientistas sociais e jornalistas muitas vezes divergem quando se trata de procedimentos de pesquisa relacionados ao futebol.
Em artigo seminal sobre os usos do gênero biográfico na história e no jornalismo, Benito Bisso Schmidt (1997) detém-se na gama de aproximações e de afastamentos entre as duas áreas, mediadas pela literatura ou pelo que Walter Benjamin compreende como a “arte de narrar”. Ao abordar a emergência da biografia na vida contemporânea, Bisso salienta, entre os jornalistas, o advento do new journalism nos Estados Unidos, em meados do século passado, bem como o modo pelo qual as biografias são exploradas, porquanto suscitam a curiosidade e despertam de sedução no imaginário coletivo em face da vida privada de personalidades e homens célebres.
Em contrapartida, os historiadores assistiram a uma retomada dos relatos biográficos desde fins dos anos 1970, quando a historiografia deixa de lado postulados estruturalistas e críticas ao positivismo da história oficial, também chamada dos grandes vultos, para apostar no potencial de abordagens históricas que podem, no limite, ajudar a reconstituir painéis históricos inteiros. O reconhecimento do papel do sujeito na história permite a recuperação das histórias de vida de anônimos, seja os egressos da cultura popular do Renascimento – como no caso do moleiro Menocchio de Carlo Ginzburg – seja os personagens saídos da cavalaria medieval – como no episódio do marechal Guillaume, enfocado por Georges Duby.
Não é o momento apropriado, nos limites de uma Apresentação, para aprofundar a longitude dessa discussão. Nosso intuito consiste apenas em sublinhar a pertinência do debate escolhido para esse dossiê, bem como sua relevância de fundo, na medida em que se trata de articular os estudos futebolísticos com a agenda de questões biográficas e memorialísticas com que a historiografia se depara de maneira cíclica.
Para este número, após o cumprimento das etapas constitutivas do “fazimento editorial”, quais sejam, a divulgação da chamada, a submissão dos autores, o parecer por pares cegos, a retificação dos originais em atendimento às avaliações, o cumprimento dos prazos e a padronização final dos textos à guisa de publicação – o presente dossiê chegou à seleção de 8 artigos aprovados, somados a uma entrevista e a uma resenha.
Além de uma contribuição em espanhol, submetida por trio de pesquisadores uruguaios, observa-se o alcance nacional do dossiê, em termos de diversidade regional, institucional, disciplinar e de titulação dos autores cujos textos foram afinal aprovados. Haja vista que a maioria das biografias tende a enfocar futebolistas que se tornaram ídolos esportivos, o presente dossiê contempla análises de personagens históricos, como Pelé e Garrincha, chegando até os dias de hoje, com o caso de Neymar Jr.
Outro alvo tematizado no dossiê são os livros apologéticos que narram a saga dos clubes de futebol, via de regra escritos por aficionados e memorialistas. Estes, na linha dos antiquaristas, voltam-se para o passado das suas agremiações clubísticas, em busca de datas, anedotas, mitos de origem e feitos extraordinários protagonizados por figuras lendárias do seu panteão.
Ainda no quesito do memorialismo, o dossiê conta com uma contribuição que se debruça sobre a trajetória do torcedor-símbolo de um modesto clube de Pelotas, o Farroupilha. Neste trabalho, o argumento incide na construção da persona abnegada, cujos sacrifícios altruísticos em prol do time do coração exemplificariam o lídimo amor clubístico, à primeira vista autêntico e incondicional.
Dois outros artigos perscrutam as origens futebolísticas por meio dos espaços, um deles com foco no futebol de várzea paulistano, outro com respeito à introdução da prática nas praças públicas da cidade de Fortaleza. Aqui lança-se luz no caráter espacial do jogo, seguido por modificações bruscas desses mesmos espaços ao longo do século XX e no início do século XXI, relegando-as à condição de esquecimento.
Não obstante, tais artigos chamam ao mesmo tempo a atenção para a imbricação dos dois episódios com as abordagens contemporâneas que entendem a relação espaço-temporal na chave não somente dos documentos, mas também dos monumentos, com destaque para os lugares de memória a que se referia Pierre Nora.
Last but not least, o dossiê completa-se com a publicação de uma entrevista e de uma resenha, sendo ambas voltadas para as práticas e representações do futebol feminino no Brasil. Esta temática, não custa repetir, vem cada vez mais galvanizando pesquisadores interessados em revisitar a escrita da história deste esporte à luz dos estudos de gênero e das questões que se colocam para a mulher e para o corpo feminino na contemporaneidade.
Por fim, não podemos deixar de reiterar nosso agradecimento ao generoso convite de Kelen para a organização do dossiê que ora vem a público, após quase um ano de labor e de preparação.
Notas
1. Disponível em: http: / / bibliotecadigital.fgv.br / ojs / index.php / mosaico / issue / view / 4166.
2. Disponível em: http: / / www.hydra.sites.unifesp.br / index.php / pt / numeros / 75-numero-5-volume-3-dezembro2018
Referências
CAMPOS, Priscila (et. al.). “Produção sobre futebol nas ciências humanas e sociais: um mapa a ser analisado. In: CORNELSEN, Élcio Loureiro; CAMPOS, Priscila; SILVA, Sílvio Ricardo da. Futebol: linguagens, artes, cultura e lazer. Rio de Janeiro: Jaguatirica, 2017.
GUEDES, Simoni. “Esporte, lazer e sociabilidade”. In: DUARTE, Luiz Fernando Dias (Org.). Horizontes das ciências sociais no Brasil: antropologia. São Paulo: ANPOCS, 2010.
SCHIMDT, Benito Bisso. “Construindo biografias…historiadores e jornalistas: aproximações e afastamentos”. In: Estudos Históricos. Rio de Janeiro, n. 19, 1997, p. 3-21.
SPAGIARI, Enrico; MACHADO, Giancarlo; GIGLIO, Sérgio (Orgs.). Entre jogos e copas: reflexão de uma década esportiva. São Paulo: Intermeios / Fapesp, 2016.
Bernardo Buarque de Hollanda – Professor da Escola de Ciências Sociais (FGV-CPDOC)
Raphael Rajão Ribeiro – Doutorando em História Política e Bens Culturais (FGV-CPDOC)
HOLLANDA, Bernardo Buarque de; RIBEIRO, Raphael Rajão. Apresentação. Revista Eletrônica História em Reflexão. Dourados, v. 12, n. 24, jul. / dez., 2018. Acessar publicação original [DR]
Museus, sujeitos e itinerários | Anais do Museu Histórico Nacional | 2018
O dossiê “Museus, sujeitos e itinerários” reúne estudos que investigam as relações entre sujeitos, seus itinerários biográficos e profissionais e os museus, especialmente em perspectiva histórica. Campo, intelectual, mediador e rede de sociabilidade são algumas das categorias operacionais utilizadas na bibliografia brasileira e internacional sobre museus e Museologia, oferecendo oportunidades de conhecer as ideias e práticas de indivíduos no âmbito da formação de coleções, do funcionamento dos museus e na conformação disciplinar da Museologia.
Naturalistas, artistas, historiadores, arquitetos, conservadores de museus, educadores, escritores, advogados, entre outros povoam esse universo no Brasil. Entretanto, alguns personagens são constantemente visitados pelos pesquisadores, a ponto de haver identificação entre as instituições museológicas e seus gestores. Isso decorre de uma história dos museus que privilegia a atuação de seus diretores, majoritariamente homens. E como é característico das operações da memória, na visibilidade de determinados sujeitos, outros são deixados na penumbra. Leia Mais
Por nomes e sobrenomes: biografias, acervos pessoais e história da família na produção dos espaços / Revista Espacialidades / 2017
Religiões, religiosidades e biografias: indivíduos e crenças / Revista Brasileira de História das Religiões / 2016
Caro leitor,
A Chamada Temática, aqui publicada, consiste em estabelecer a importância dos estudos biográficos para o estudo das religiões, religiosidades e crenças. Enfatizamos a importância em investigar a trajetória do sujeito concreto, inserido na história, com capacidade de influenciar o meio no qual vive ou viveu. A partir do estudo de biografia e contexto (LEVI, 1998), destacamos a singularidade dessas trajetórias, relacionando o individual com o contexto histórico. Este indivíduo é / foi alguém atuante, pertence a uma crença instituída que lhe dá / deu suporte e permite / permitiu seu discurso e sua prática como tradução do grupo ao qual pertence / pertencia. Quando o indivíduo fala a partir de sua adesão religiosa o faz utilizando códigos referenciais, morais, comportamentais do grupo em que é elemento participante. Utilizar a biografia como documento implica relacionar a história do indivíduo ao seu papel enquanto agente histórico, de intermediário entre as crenças instituídas pelo grupo, do qual participa, e as práticas na sociedade em que vive. Nossa proposta foi materializada nos sete artigos que compõem a Temática.
Maria Betania Albuquerque e Dannyel Teles de Castro analisam a trajetória de vida e os saberes construídos por Rosalina, uma curadora da ilha de Colares, no Pará e como ocorrem os processos de construção e transmissão desses saberes. As práticas de cura realizadas por Rosalina englobavam elementos de diversas tradições (umbanda, esoterismo, Nova Era) configurando um hibridismo religioso e um constante processo de bricolagem de seus saberes.
André Leonardo Chevitarese e Rodrigo Pereira abordam a trajetória de vida de Joãozinho da Gomeia, dirigente de uma casa de candomblé fluminense de origem interétnica Angola que funcionou entre a década de 1940 até 1971, no Rio de Janeiro.
A biografia de Jacobina Maurer, conhecida como a principal liderança do movimento Mucker, do Rio Grande do Sul é abordada por Haike Roselane Kleber da Silva.
Edilece Souza Couto analisa a trajetória de Dom Jerônimo Tomé da Silva, segundo arcebispo do período republicano na Bahia (1893-1924) no contexto das mudanças socioeconômicas e religiosas da primeira república.
Magno Francisco de Jesus Santos discute a trajetória polissêmica do arcebispo Dom Luciano José Cabral Duarte, a partir de seu envolvimento com os camponeses da região da Cotinguiba, em Sergipe nas ações de reforma agrária na década de 1960 e suas relações com o Governo Militar.
O artigo de Elisangela Oliveira Ferreira apresenta a trajetória do missionário negro, João de Deus Penitente, que pregou em uma vasta região das capitanias de Minas Gerais, Bahia e Sergipe, no século XVII. Sua motivação era ensinar a doutrina cristã aos seus “irmãos pretos” que, de acordo com ele, viviam pelo interior do Brasil desamparados da fé católica.
Wilton Carlos Lima da Silva Lima Silva, Rogério de Carvalho Veras analisam e estabelecem analogias entre biografias protestantes e discurso hagiográfico de longa tradição na literatura cristã, a partir de três biografias de protestantes brasileiros publicadas entre 1935-1950.
Finalizando a edição temos artigos livres e resenha.
Agradecemos a todos os autores que enviaram suas contribuições e desejamos boa leitura!
Solange Ramos de Andrade
Renata Siuda-Ambroziak
Organizadoras
ANDRADE, Solange Ramos de; SIUDA-AMBROZIAK, Renata. Apresentação. Revista Brasileira de História das Religiões. Maringá, v.9, n.26, set. / dez., 2016. Acessar publicação original [DR]