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História da organização do trabalho escolar e do currículo no século XX: ensino primário e secundário no Brasil – SOUZA (C)
SOUZA, Rosa Fátima de. História da organização do trabalho escolar e do currículo no século XX: ensino primário e secundário no Brasil. São Paulo: Cortez, 2008. Resenha de: BERGOZZA, Roseli Maria. História da educação: uma forma de aprender. Conjectura, Caxias do Sul, v. 14, n. 2, p. 255-260, maio/ago, 2009.
A autora Rosa Fátima de Souza, licenciada em Pedagogia pela Universidade Federal de Uberlândia, atualmente é professora e pesquisadora no Programa de Pós-Graduação em Educação Escolar da Unesp (SP), Pós-Doutora pela University of Wisconsin (EUA) Obteve o título de Mestre pela Universidade de Campinas (SP). Realizou estágio de Doutorado na Universitad Autónoma de Barcelona. Seus trabalhos têm versado especialmente sobre temas como: cultura escolar, história do Ensino Fundamental e do Médio (nomenclatura atual), do currículo e do patrimônio histórico escolar. É livre-docente pela Unesp desde 2006.
A obra é composta por quatro capítulos, constituídos por estudos específicos sobre a história do ensino no Brasil. O primeiro capítulo aborda as transformações ocorridas no currículo da então escola primária entre os anos de 1890 e 1960. O segundo analisa a configuração do currículo predominante na Primeira República. O terceiro examina as transformações ocorridas na educação, entre as décadas de 30 e 60, contemplando as reformas educacionais de 1931 e 1942. O último capítulo aborda os Ensinos Fundamental e Médio, seguindo a lógica das novas concepções educacionais vigentes na época, amplamente difundidas no País, a partir da década de 60, como, por exemplo, a cultura técnica e científica, a educação para o trabalho e as transformações na cultura escolar brasileira.
Inicialmente, a autora faz uma reflexão histórica sobre as transformações da cultura escolar brasileira no século XX e traça um panorama mundial sobre os procedimentos didáticos e as tendências pedagógicas, anteriores ao século XX. Educar o povo seria uma preocupação central do projeto educacional republicano, e caberia à escola primária moldar o novo cidadão, para conviver com a nova e moderna sociedade. Nesse período, a crença no poder da escola tornouse uma ideia muito difundida, tendo a escola primária a atribuição de moldar o caráter das crianças, “incutindo-lhes especialmente valores, virtudes, normas de civilidade, e de amor ao trabalho”, ajudando na construção e consolidação da Nação brasileira. A veiculação desses valores cívico-patrióticos se fazia necessária, de tal forma que, segundo a autora, se buscou fazer da escola primária uma instituição eminentemente republicana.
Muitas das análises realizadas pela autora levam em consideração a realidade e dados relativos ao Estado de São Paulo. Porém, sempre que possível, estabelece relações com as transformações da cultura escolar no Brasil.
Em 1890, a reforma inicia pela Escola Normal, ampliando os programas e excluindo a educação religiosa, reafirmando a laicidade da escola pública e adotando o método intuitivo como marco de renovação educacional. Em 1892, com a mudança no sistema de eleições dos 14 milhões de habitantes estimados na época, só era permitido votar a quem soubesse ler e escrever. Por esse emotivo a maioria da população brasileira encontrava-se fora da participação política, posto que a taxa de analfabetismo aproximada, na época, era de 85% da população, caracterizando, assim, um grande problema a ser resolvido na incipiente República.
Souza considera que a institucionalização da escola pública primária no Brasil, no início do século XX, ocorreu por um processo de múltiplas diferenciações, incluindo os critérios de seleção escolar que eram rígidos e reveladores de contradições: seria uma educação voltada para o povo, mas altamente hierarquizada e excludente. No entanto, as Escolas Normais tiveram um papel determinante na formação do magistério primário de acordo com os ideais da escola republicana e da moderna pedagogia.
Segundo Souza, olhar para as práticas de ensino nos permite olhar também para a cultura escolar primária. Os exemplos que a autora utiliza mostram a identidade cultural, peculiar das escolas primárias. Essas foram sendo construídas através dos hábitos diários, como, por exemplo, a formação de fila para entrada na escola, o canto do Hino Nacional, a chamada, o registro, no caderno, do cabeçalho, as respostas em coro, as arguições orais, a exigência de silêncio. Como não nos é possível reconstruir o universo escolar, olhar para as práticas nos possibilita uma relativa aproximação com a cultura escolar primária.
Destacam-se, também, as práticas simbólicas que, realizadas nas instituições escolares, contribuíram para consolidar as ideias, os valores e as representações sociais ligadas à constituição de nacionalidade, como o respeito aos símbolos nacionais, o sentimento patriótico e, principalmente, o reconhecimento do valor social e cultural da escola.
A divulgação e a publicidade da escola no meio popular também se deram pelas comemorações cívicas, religiosas, festas de encerramento, exposições de trabalhos, preleções, dentre outras. Nessas celebrações, as instituições escolares contribuíram para a preservação da memória nacional, além de agir sobre o imaginário e os sentimentos das famílias, dos alunos, propiciando uma grande visibilidade para a escola perante a sociedade.
Na década de 20, surgiram novas práticas, como, por exemplo, a constituição de corpos saudáveis e viris, o ideal de patriotismo, o canto orfeônico criado para desenvolver o gosto artístico pela poesia e pela música nacionais.
Na década de 30, o ensino primário foi organizado sob os princípios da Escola Nova. No texto, a autora relaciona nomes importantes do movimento escolanovista brasileiro, os quais passaram pela direção do ensino público de São Paulo, como, por exemplo, Lourenço Filho, Fernando de Azevedo, Sud Mennucci e Almeida Júnior.
A nova pedagogia escolanovista explicitava a orientação através de indicações metodológicas já descritas no Código de Educação do Estado de São Paulo, em 1933, como, por exemplo, “o ensino terá como base essencial a observação e a experiência pessoal do aluno, e dará a este largas oportunidades para o trabalho em comum, a atividade manual, os jogos educativos e as excursões escolares”.1 De acordo com a autora, os princípios doutrinários da Escola Nova reagiram contra a determinação sistemática e lógica dos programas, principalmente os utilizados pela escola primária, que foi um dos temas centrais nos projetos de modernização da sociedade brasileira, propagado pelos republicanos.
O então ensino secundário no Brasil tinha suas bases nos seminários e colégios jesuítas fundados na época colonial. Com as reformas pombalinas de 1759 e 1772, foram instaladas as aulas régias de latim, grego, retórica e filosofia. No entanto, a escola secundária, no início do século XX, destinava-se ao atendimento de um grupo minoritário, geralmente de representantes de grupos sociais com algum poder aquisitivo e expressava o interesse por estudos desinteressados, não havia relação com o mundo do trabalho. A autora afirma: “A formação das classes dirigentes continuou privilegiando a arte da expressão, a erudição lingüística, o escrever e o falar bem, o domínio das línguas estrangeiras e a atração pela estética literária.” (SOUZA, 2008, p. 89-90).
Porém, não era consensual essa padronização, tanto que Souza recorre a vários autores para explicitar que, no fim do Império, o ensino secundário encontrava-se em situação precária, e a questão da cientificidade, nos estudos secundários, já estava sendo discutida. Os defensores dessas ideias propalavam o preparo dos jovens para fazer frente aos novos desafios da sociedade moderna.
Em 1890, a reforma instituída pelo Ministro da Instrução Pública, Correios e Telégrafos, Benjamin Constant, embora de orientação positivista, buscou a ampliação e a formação científica na educação secundária, contudo não chegou a se consolidar. As dificuldades notadas entre 1890 e 1900 declaram os entraves em ordenar um currículo estável, sendo, inclusive, dessa época, o Exame de Madureza, conferido aos concluintes do Ensino Secundário, para verificar os conhecimentos e o desenvolvimento intelectual desses alunos. Caso obtivessem êxito, lhes era conferido o grau de Bacharel em Ciências e Letras.
O caráter seletivo do ensino secundário evidenciou-se no início do século XX, tanto que a maioria dos estados brasileiros manteve, até 1930, um único ginásio público instalado nas suas capitais, a demanda era atendida pela iniciativa privada. A autora coloca dados, como, por exemplo: que o Brasil, em 1907, possuía 373 unidades escolares, 172 para o sexo masculino e 77 para o sexo feminino. Nessas escolas, encontravam-se matriculados 30.426 alunos, sendo que 23.413 eram do sexo masculino.
No fim da Primeira República, o ensino secundário foi tema de muitos debates na sociedade brasileira. No Congresso de Instrução Superior e Secundária, em 1922, realizado no Rio de Janeiro, algumas discussões giraram em torno de vários temas, dentre eles: a exigência ou não do latim como disciplina obrigatória. A síntese das teses e recomendações desse congresso estão publicadas na Revista Brasileira de Estudos Pedagógicos, na seção documentos de 1944.
A autora afirma que, através da reforma de 1925, conforme Decreto de 13 de novembro de 1925, mesmo indiferente aos debates sobre a divisão do ensino secundário em ciclos e a diversificação dos programas, institui-se o sentido unitário da escola, referendando o caráter elitista do ensino secundário no País, destinado aos que pudessem fruir de uma educação longa e voltada para estudos de nível superior e com uma sólida base em cultura geral. Em seis anos de curso secundário, os alunos deveriam estudar 25 matérias obrigatórias, o estudo de Italiano e Alemão era facultativo.
Outra questão amplamente discutida, na década de 20, foi o Ensino Clássico versus Ensino Científico, ou seja, qual seria o mais adequado diante das novas necessidades da sociedade brasileira.
A escola secundária passa por uma remodelação e consolidação importantes, entre os anos de 1930 e 1960, principalmente através das reformas federais implantadas no governo de Getúlio Vargas: A Reforma Francisco Campos em 1931 e a Reforma Capanema em 1942.
Na Reforma Francisco Campos, os pressupostos da Escola Nova foram retomados e, dentre tantos pontos, um foi especialmente enfatizado: preparar os jovens para a vida e, principalmente, para o trabalho. A duração do ensino secundário passa para sete anos, e o ingresso ao primeiro ciclo se dava pelo Exame de Admissão. Segundo a autora, no que diz respeito à seleção cultural, a reforma trouxe um equilíbrio entre estudos literários e científicos, e o cientificismo foi revitalizado, embora a autora ressalte que, em parte, o currículo do ensino secundário perdeu o caráter humanista, tão acentuado até então.
A reforma que ficou conhecida como Capanema, na verdade, era a Lei Orgânica do Ensino Secundário, de 9 de abril de 1942, proposta pelo ministro Gustavo Capanema. Essa reforma buscou o resgate da formação humanista e do ensino secundário como ensino das elites, resultando no Curso Clássico, com ênfase às letras, e o Científico com foco nas ciências, de acordo com as intenções para estudos posteriores.
Porém, em meados do século XX, o ensino secundário brasileiro sofreu grandes mudanças, inclusive na forma de acesso, atendendo à demanda das diferentes camadas sociais e perdendo o caráter elitista, adquirido anteriormente.
Anísio Teixeira e Lourenço Filho, citados pela autora, indicavam que a democratização do ensino se fazia necessária, quer pela necessidade de o Estado oferecer vagas, quer para atender às necessidades do tempo presente, tornando-se uma escola prática para enfrentar as novas mudanças sociais e econômicas que estavam se consolidando no Brasil.
Na década de 60, são inúmeras as mudanças ocorridas, em função, inclusive, das lutas ideológicas, políticas e sociais. A primeira Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional foi aprovada em dezembro de 1961. Conforme a autora, seria a primeira vez que a união passaria a não mais controlar o ensino secundário desde o período imperial. Porém voltaria a centralizar e a burocratizar a educação, através da Lei 5.692, de 11 de agosto de 1971. Mas foi na década de 70 que a escola pública consolidou-se no Brasil, bem como a sua universalização e expansão, adaptando-se, geralmente, de acordo com as demandas políticas e econômicas da sociedade brasileira.
Em síntese, a obra de Rosa Fátima de Souza é de suma importância para todos os pesquisadores da História da Educação, principalmente para os de alinhamento teórico com a história cultural, leitura importante para professores de História da Educação, pedagogos e interessados nas valiosas contribuições históricas acerca da organização do trabalho escolar, do currículo e das reflexões sobre a cultura escolar.
Em outros termos, a autora apresenta uma visão panorâmica do percurso histórico da educação no Brasil. Nesse sentido, considera-se essa obra de Souza um texto básico para os estudiosos da área da educação e uma leitura obrigatória para profissionais que, direta ou indiretamente, atuam no meio educacional.
Nota
1 Código de Educação do Estado de São Paulo (apud SOUZA, 2008, p. 77-78).
Roseli Maria Bergozza – Aluna do Programa de Mestrado em Educação da Universidade de Caxias do Sul (UCS).