Mulheres de minha vida. Sobre o amor impaciente, a vida longa e as boas bruxas | Isabel Allende

Isabel Allende é nome consagrado na literatura. A Casa dos Espíritos (1982) é seu livro mais conhecido e os elementos ali presentes fizeram com que ela fosse colocada, juntamente a pouquíssimas escritoras – as mexicanas Elena Garro e Laura Esquivel – entre os nomes do Realismo Mágico Latino-americano. Escreveu outros 22 títulos, entre os quais Paula e Eva Luna. Juntos, são mais de 70 milhões de exemplares vendidos pelo mundo e traduzidos para 42 idiomas. Já recebeu mais de 60 prêmios literários, entre os quais o “Prêmio de Literatura do Chile” (2010), o “Prêmio Hans Christian Andersen”, na Dinamarca (2012) e a “Medalha da Liberdade”, nos Estados Unidos, a mais alta distinção civil do país. Em 2018, Allende tornou-se a primeira escritora de língua espanhola premiada com a medalha de honra do “National Book Award”, nos Estados Unidos.

Na seção de “agradecimentos” em sua obra mais recente, Mulheres de minha alma. Sobre o amor impaciente, a vida longa e as boas bruxas, a autora assumiu ter recebido de seus agentes a sugestão para escrever sobre Feminismo. Optou por se afastar do gênero que a consagrou e com o qual tem maior familiaridade, o romance, escolhendo o autobiográfico para desenvolver a narrativa. Leia Mais

Guerra Santa: Formação da Ideia de Cruzada no Ocidente – FLORI (AN)

FLORI, Jean. Guerra Santa: Formação da Ideia de Cruzada no Ocidente. 1ª ed. Tradução de Ivone Benedetti. Campinas: Ed. Unicamp, 2013. Resenha de: ALMEIDA, Néri de Barros. Anos 90, Porto Alegre, v. 20, n. 38, p. 449-453, dez. 2013.

As cruzadas foram um acontecimento em seu próprio tempo. Seus testemunhos contam-se entre os mais vastos e diversificados do período. O interesse que despertaram ainda em plena Idade Média, o envolvimento dos grandes personagens de então entre os quais se contam imperadores, papas e príncipes regionais aliados ao reconhecimento pelos historiadores modernos de sua importância na dinâmica histórica lhe garantiram um lugar de destaque na memória coletiva. A esse conjunto provavelmente deve-se o fato de mais de novecentos anos após seu aparecimento, as cruzadas ainda integrarem dimensões da experiência como representação.

As cruzadas inspiraram as artes plásticas, a música e a literatura e atualmente continuam inspirando o cinema, a teledramaturgia, revistas de vulgarização científica, romances gráficos e formas diversas de entretenimento em que se contam simulações lúdicas e jogos virtuais. Ao lado das heresias e da inquisição, elas também constituem um dos pilares em que se apoia a autocrítica ocidental quando observa seu passado medieval. A palavra cruzada tem um lugar importante em nosso vocabulário ora aplicando-se à violência do fanatismo religioso, ora à firme reunião de forças benéficas em torno de uma causa nobre, geralmente ligada a um ideário de salvação.

Podemos assim falar em cruzada pela infância ou cruzada contra a fome. A ambivalência que a ideia de cruzada ainda comporta em suas evocações cotidianas expressa a própria complexidade do fenômeno. Mesmo os historiadores não se sentem capazes de produzir um juízo único e definitivo a respeito do que foram as cruzadas. Discutem se estas se definem por seu caráter de expedição militar ou de peregrinação, se os benefícios espirituais devem ser tomados entre seus dados fundamentais, se as expectativas escatológicas se contam entre suas motivações decisivas, se o componente popular foi significativo e qual a importância de Jerusalém em sua deflagração.

Não há conceito capaz de se impor isoladamente como verdadeiro. Nem mesmo os movimentos que devem ser identificados pelo termo cruzada são reconhecidos de forma unívoca. Estariam as expedições para o oriente no mesmo plano que as lutas contra os muçulmanos na Espanha durante a Reconquista ou aquelas contra os pagãos da Europa Oriental, os hereges albigenses e os imperadores rebeldes ao papado? Afinal, o que constitui o cerne comum das expedições ocorridas entre fins do século XI e fins do século XIII que a partir de meados do século XII vieram a ser conhecidas como cruzadas? Em Guerra Santa. Formação da ideia de cruzada no Ocidente cristão (Campinas: Editora da Unicamp, 2013), temos a oportunidade de acompanhar o percurso de Jean Flori em defesa de um conceito de cruzada. A pergunta da qual parte seu estudo é: como a comunidade cristã, em sua origem pacifista, desenvolveu um pensamento e uma prática em relação à violência bélica que lhe permitiu aderir de forma justificada e legítima a diversas empresas guerreiras a ponto de a Igreja vir a se tornar a deflagradora direta de um conflito com a extensão e repercussão das cruzadas? O propósito da obra consiste em demonstrar que essa mudança não foi repentina.

A tese que guia a obra é aquela de que a cruzada foi o desdobramento de uma ideia cristã antiga, surgida no longínquo século IV – momento em que são dados os passos decisivos para a institucionalização da Igreja – que advogava que certos conflitos militares deveriam ser entendidos como desejados por Deus e, portanto, realizados em seu nome e com sua aprovação. Tratar-se-ia de guerras que, em função de suas motivações e seus fins específicos, seriam sacralizadas, ou santas. Dessa forma, Flori entende a cruzada como uma modalidade de guerra santa. Aqui, é necessário um esclarecimento, uma vez que o autor não identifica a guerra santa ao jihad, esforçando-se por mostrar, ao tratar das relações complexas entre a cristandade e o islã medievais, as diferenças entre os dois tipos de combates sacralizados.

Parte dos estudos dedicados às cruzadas procuraram compreendê-las a partir da observação do evento já em curso ou de seus resultados. Basta lembrarmos das vertentes que viram nelas a resposta à crise de um feudalismo incapaz de reproduzir-se sem a conquista de novos territórios ou um primeiro movimento da mundialização que mais tarde seria completado pelas Grandes Navegações, responsável pela imposição do sistema de valores cristãos fora das fronteiras tradicionais da cristandade. Nesses dois casos, a compreensão do que foram as cruzadas se desloca e o fenômeno que propriamente constituem permanece incompreendido. Jean Flori procura apresentar cada um dos elementos que, de seu ponto de vista, integram a trama que tornou as cruzadas possíveis. Dessa forma, seu livro se estende do século IV a 1096, quando da pregação de Urbano II, feita durante o concílio de Clermont (1095), surge a primeira cruzada. Flori produz sua reconstituição atento tanto a ideias quanto a processos demorados e eventos pontuais. Da trama rica e densa proposta pelo autor, que envolvem considerações a respeito da evolução das relações entre cristãos e muçulmanos, o aparecimento e a consolidação de um forte movimento penitencial e peregrinatório a partir do século XI e a intensificação de expectativas de ordem escatológica no mesmo período, podemos destacar três questões que nos parecem maiores. Em primeiro lugar, a aproximação entre a Igreja e o Império que ainda na Antiguidade Tardia transformou a autoridade pública secular em protetora militar da comunidade de cristãos seja contra inimigos externos seja contra as próprias dissensões internas que ameaçavam sua ordem hierárquica e a paz social. Em segundo lugar, na Idade Média, o prosseguimento dessa política de busca de apoio nas lideranças laicas em ambientes em que a autoridade real ou imperial não se faziam presentes ou não se mostravam particularmente sensíveis a essa ordem de problema, momento em que podemos destacar a situação vulnerável da Sé romana e suas ações para atrair apoio que lhe garantisse proteção armada tanto contra potentados locais quanto contra invasores. Em terceiro lugar, a reforma da Igreja que, entre os séculos XI e XII, alterou de forma significativa o sistema de autoridade eclesiástico perpetrando uma separação mais nítida, inclusive no domínio material, entre o que era ou não consagrado, entre o que estava sob a autoridade eclesiástica e o que estava submetido ao arbítrio laico. Um dos resultados dessa reforma foi a reivindicação papal da liderança direta de Cristo sobre os conflitos de ordem militar de seu interesse. Como lembra o autor, com as cruzadas, o papa, investido da proteção já não apenas do patrimônio de São Pedro mas da própria herança de Cristo “[…] falava como comandante de todos os cristãos, em nome de Cristo”.

Os dez capítulos que constituem a obra conduzem o leitor pelo processo em que se integram ao longo dos séculos medievais até o ano de 1096 os diversos elementos que compõem a cruzada.

Assim, depois de um estudo introdutório a respeito da forma como o tema foi problematizado pela historiografia (Capítulo 1) o autor discute a herança que a tradição imperial de Constantino a Carlos Magno legou das relações entre violência guerreira e sagrado (Capítulo 2). Em seguida, um bloco importante de textos ocupa-se do período capital transcorrido entre os séculos X e XI. O autor trata aí de um problema importante: a Paz de Deus conduziu à cruzada como defendeu a tese lançada por Georges Duby? A resposta negativa dá ensejo a um interessante panorama do que foi a Paz de Deus e da tradição em evidência em sua discussão mobilizada em favor da construção da especificidade da cruzada. Isso se dá sem que seja negado um papel à Paz de Deus, sobretudo por meio da concessão de benefícios espirituais aos defensores de igrejas nela envolvidos (Capítulo 3). Em seguida é analisada a relação entre santidade e violência (Capítulo 4), sobretudo por meio dos santos guerreiros e a sua contribuição no processo de sacralização da violência (Capítulo 5).

Deslocando de forma mais incisiva seu olhar em direção à Santa Sé, Flori mostra a associação de signos militares à autoridade de São Pedro (Capítulo 6) e a forma como a violência militar integrava a ideia que Gregório IX fazia da defesa da liberdade da Igreja (Capítulo 7). O bloco seguinte trata da relação com o “outro”, o elemento externo à cristandade que, embora sempre presente no pensamento bélico cristão, se reveste de profunda materialidade com os destinos orientais (Capítulo 8) e ocidentais (Capítulo 9) da expansão muçulmana. Para encerrar, o autor reafirma seu pressuposto de que as cruzadas têm fundamentos de diferentes ordens (espirituais, teológicos, bélicos, políticos) e temporalidades (do século IV a 1096), mas que o campo fundamental em que a vemos se conformar é aquele do enriquecimento da ideia de guerra santa. É em relação a este conceito diante de suas alterações em 1095 que o autor tece sua definição de cruzada (Capítulo 10).

As opções do autor e seu resultado no campo conceitual, como é de se esperar de todo grande trabalho, certamente resultarão em perplexidade de alguns e em discordância frontal de outros. No entanto, a riqueza de seu percurso, sua coragem num campo antigo e proeminente em que ainda não se atingiu nenhuma unanimidade e, em particular, o fato de chamar nossa atenção para a importância da ideia de guerra santa na tradição política e teológica cristã, resultam em uma aventura pela erudição e pelo pensamento de grande valor para o estudioso de qualquer dos temas e sub temas abordados.

* Este texto faz parte, em sua quase integralidade, da “Apresentação” feita à resenhada.

Néri de Barros Almeida – Livre-docente. Professora junto ao Departamento de História do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Estadual de Campinas (IFCH/ UNICAMP). É coordenadora do núcleo UNICAMP do Laboratório de Estudos Medievais (LEME). E-mail:neridebarros@gmail.com.