O jogo de Deus, do homem e do bicho – GOMES (RHR)

GOMES, Frederico (Org.). O jogo de Deus, do homem e do bicho. Rio de Janeiro: Ed. UERJ/Léo Christiano Editorial, 2011. Resenha de: BENATTE, Antonio Paulo. 300 Revista de História Regionalv.16, n.1, p.298-303, 2011.

Acaba de vir a lume um pequeno e precioso livro intitulado O jogo de Deus, do homem e do bicho. Além de textos de Léo Christiano, Alexei Bueno, Italo Moriconi, Cássio Loredano, Leonardo Filipo e Frederico Gomes, a obra traz uma amostragem da poesia e da iconografia do jogo do bicho na cidade do Rio de Janeiro no final do século XIX e inícios do XX. A cuidadosa impressão em papel couchê, com design e projeto gráfico de Mary Paz Guillén, valoriza as estampas coloridas de um artista anônimo, garimpadas no acervo dos colecionadores Carlos Augusto Ribeiro de Camargo e Julio Diniz Andrade Pinheiro.

As imagens representam animais humanizados e colocados em situações antagônicas – como nas fábulas de Esopo, Fedro e La Fontaine – e remetem a variadas situações do cotidiano carioca e brasileiro: a falta de ética na política, as relações desiguais de poder, as conjunturas econômicas que penalizam os mais pobres, os dramas das relações amorosas, etc. Os poemas, curtos e ao gosto popular, são invariavelmente acompanhados por um palpite para uma “fezinha” (“veja o n. 8”, “veja o n. 14”) e também aludem com humor a situações do dia-a-dia. Ambos, poemas e imagens, vinham de brinde nos maços de cigarros Veado, produzidos e comercializados pela Companhia Manufactora de Fumos, situada numa cidade que não existe mais (muito embora alguns personagens e situações persistam até os dias de hoje). Eis, por exemplo, “O elefante e o camelo”:

O câmbio, senhor Camelo, Não passa duma alcatéia De lobos que nos rodeia.

É o nosso pesadelo! Para o baixar, ou mantê-lo, Dos espertos à feição, Roda, gira, corcoveia Mente, engana, trapaceia, Uma enorme multidão Desde o banqueiro ao zangão! Adivinha, ó Zé Pacato Onde diabo está o gato! (Veja o n. 8) Ou este outro, “O cachorro e o gato”: Só política ou dinheiro Podem entre gato e cão Formar a concentração E ser o casamenteiro.

Passeiam de braço dado Os figadais inimigos Parecem velhos amigos, Ou um casal bem casado.

Com eles ninguém se estrompe Quem não conhecer que os compre. (Veja o n. 14)

O livro é muito bem vindo. Primeiro porque, como dizia o poeta Murilo Mendes, o homem é o único animal que joga no bicho (o bicho, portanto, fala do que é humano e social); segundo, porque é apresentado como o primeiro de uma coleção, a Memória iconográfica do jogo do bicho no Rio de Janeiro. Quando nos damos conta de que muitos dos grandes ilustradores cariocas e brasileiros – como Angelo Agostini, J. Carlos e outros – empunharam penas e pincéis para Antonio Paulo Benatte representarem o universo lúdico, onírico e mágico do dito jogo, podemos esperar outras publicações de importância não apenas estética como histórica. Tratam-se, em suma, de fontes importantes para a compreensão de um dos fenômenos socioculturais mais complexos do Brasil moderno e contemporâneo. Terceiro porque, simplesmente, não se pode compreender o Brasil dos últimos 120 anos, sua cultura e instituições, sem compreender o denso imaginário associado ao jogo do bicho. E não vai aqui nenhum exagero, que este resenhista não joga, nem é cambista ou bicheiro.

Apesar de combatido e de ter perdido quase que completamente sua aura “romântica”, o bicho faz parte da realidade brasileira desde a década de 1890, acompanhando de perto todos os percalços de nossa atribulada história republicana.

Esse jogo – a maior contribuição do homo brasiliensis ao patrimônio lúdico e contravencional da humanidade – é um fato social total, enraizado profundamente em nossa cultura; ele faz rizoma com uma ampla camada de real e de imaginário, de concreto e de simbólico, de prosaico e de poético, de patético e de onírico; inextirpável, é uma verdadeira instituição tupiniquim, articulada a muitas outras instituições, como o carnaval, o futebol, a música popular, a política, a religião, a economia, a polícia, a malandragem, a bandidagem e por aí vai.

Cedo os observadores chamaram a atenção para a complexidade de um fenômeno que, no começo do século passado, já se espalhara por todo o país. Em 1935, o folclorista Oswaldo Cabral aludia a uma prática já solidamente estruturada: O jogo é feito por toda a parte, quando as autoridades policiais não se encontram nas fases agudas das perseguições…

Há cambistas, agentes, book-makers, “bicheiros”, como se diz na linguagem popular, pelas ruas, praças, nos cafés, em casas lotéricas, em cigarrarias e engraxatarias, nos mercados, nos negócios, nas “vendas” e “verduras”, em toda a parte, afi nal […]1

O jogo de Deus, do homem e do bicho Alguns observadores associaram o jogo à alma do brasileiro, um de seus traços de caráter e signos de identidade.

Em Brasil, país do futuro (1941), o escritor austríaco Stefan Zweig admirou-se do “quão profundamente [a] paixão pelo azar corresponde ao caráter sonhador deste povo”. Ele se refere de modo geral às loterias e particularmente ao bicho: Esse jogo, talvez precisamente por ser proibido, invadiu todos os círculos sociais: toda criança no Rio, mal havia aprendido na escola a contar, já sabia que número correspondia a cada bicho e sabia dizer toda a série de bichos melhor do que o alfabeto.2 O sociólogo francês Roger Caillois, no fi nal dos anos 1950, reelaborou uma ideia tornada então verdade científica: Jogar é renunciar ao trabalho, à persistência, à poupança e aguardar a jogada feliz, que, num ápice, proporciona aquilo que uma extenuante vida de labor e privação não concede, se não se tiver sorte ou não se recorrer à especulação, que, por sua vez, depende da sorte.

Caillois considera que “O jogo brasileiro tem a vantagem de mostrar claramente as relações entre a alea e a superstição”; e, referindo-se à sociedade brasileira, conclui: A paciência e o esforço, que proporcionam um lucro pequeno, mas seguro, são substituídos pela miragem de uma fortuna instantânea, a possibilidade súbita do ócio, da riqueza e do luxo. Para a multidão que trabalha penosamente sem acrescentar algo de visível a um bem-estar muito relativo, a oportunidade do grande prêmio aparece como a única forma de um dia poder sair de uma condição humilhante e miserável.

O jogo escarnece do trabalho e representa uma solicitação rival que, pelo menos nalguns casos, assume importância bastante para determinar em parte o estilo de vida de uma sociedade.3

Poder-se-ia multiplicar os exemplos da problematização do jogo no pensamento social brasileiro, de Gilberto Freyre a Roberto DaMatta, de Afonso Arinos de Melo Franco a Vianna Moog, sem que se esgotem as possibilidades de análise. A historiografia, como de praxe, chegou atrasada (não era um tema academicamente digno, nem à direita nem à esquerda, no tempo em que essas palavras ainda significavam alguma coerência ideológica); felizmente, alguns historiadores mais livres de preconceitos vêm se detendo sobre a trajetória do bicho, cientes de que é impossível compreender as práticas e representações em torno do jogo sem apreender- lhe a dinâmica cultural específica: não se trata, é óbvio, de apenas mais um caso de polícia, repressão e resistência.

Por isso, a publicação de textos e imagens como os resgatados nessa obra é importante, pois evidencia a presença do jogo na cultura por um viés muito diferente dos discursos jurídico-policiais, da imprensa “burguesa” ou dos moralistas que trataram da questão da jogatina desde o final do século XIX.

Os discursos mais cientificistas não deixaram de associar a invenção do Barão de Drummond a “elementos psicológicos” das raças “primitivas” que compuseram, junto com o branco europeu, o substrato étnico e cultural da população brasileira. A crença na sorte, atitude mental essencial na prática dos “jogos de azar” ou de alea (e o bicho é essencialmente uma loteria ou um “jogo de azar”), foi vista como incompatível com uma mentalidade esclarecida e com uma atitude racional perante a vida e o mundo, a começar pelo mundo do trabalho.

Para as elites modernizadoras e os sacerdotes da nova religião do progresso, a crença na sorte – a ideia mesma de “salvação pelo acaso” – foi interpretada como uma forma de persistência residual de um modo de pensar tradicional, espécie de “mentalidade pré-lógica” que obstava o progresso do país e a sua inclusão no concerto das nações modernas, industrializadas e civilizadas. Nas práticas lúdicas populares, esses “pedagogos da prosperidade” (como diria Sérgio Buarque de Holanda) liam um sintoma do atraso psicológico e cultural que separava o povo brasileiro do homo oeconomicus capitalista, representado como modelo virtuoso do trabalhador ideal, produtivo e econômico. Nesse sentido, o fim da religião do progresso, a crise dos grandes modelos explicativos e a falência dos valores, ideários e imaginários da modernidade têm propiciado uma melhor compreensão do que anteriormente só se nos aparecia como um obstáculo à mudança ou um signo do arcaísmo das massas ignaras.

Muitas explicações têm sido dadas sobre o complexo do bicho; não é o lugar aqui para ensaiar uma própria. Mas, sem querer endossar nenhuma metafísica, é possível afirmar que a crença na sorte é uma dessas atitudes profundas, uma constante antropológica de longuíssima duração na história, e para as quais chamaram a atenção os historiadores das mentalidades; atitudes inseridas em quadros mentais resistentes aos movimentos da sociedade, e que se transformam mais lentamente que as conjunturas econômicas e os acontecimentos políticos.

Seja como for, o livro O jogo de Deus, do homem e do bicho é uma contribuição de relevo para os leitores curiosos de nossas coisas, boas ou ruins, e principalmente para os eruditos estudiosos de nossa zoologia cultural. Em tempo: a obra é também uma comemoração dos 60 anos da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), o que por si só justificaria sua publicação.

Antonio Paulo Benatte – Pós-Doutor em História pela UNICAMP; pesquisador-colaborador da mesma instituição. Professor da Universidade Estadual de Ponta Grossa (UEPG). E-mail: apbenatte@uepg.br.

Outras falas: feminismo e medicina na Bahia (1836-1931) – RAGO (CP)

RAGO, Elisabeth Juliska. Outras falas: feminismo e medicina na Bahia (1836-1931). São Paulo, Annablume/Fapesp, 2007. Resenha de: BENATTE, Antonio Paulo. Outras falas: feminismo e medicina na Bahia (1836-1931). Cadernos Pagu, Campinas, n. 32, Jan./Jun 2009.

Outras falas é fruto de tese de doutorado em Ciências Sociais defendida na PUC-SP em 2005. O subtítulo,g Feminismo e medicina na Bahia, revela de imediato uma dupla contribuição: à história das relações de gênero e à história do saber médico no Brasil, especialmente a medicina da mulher. Há tempos a evidência do protagonismo da mulher na história não é mais uma novidade historiográfica; apesar disso, o trabalho de Elisabeth Juliska Rago vem somar a esse campo uma contribuição importante por várias razões, das quais elencarei duas ou três.

A proposta do estudo é “fazer emergir historicamente as condições de vida de mulheres e as diferenças geracionais de práticas feministas que envolveram suas respectivas ações” (25). O livro insere-se plenamente no conjunto daqueles trabalhos que não apenas afirmam o papel atuante da mulher como sujeito histórico, mas também, nas palavras da autora, reivindicam “uma releitura do passado que permita pluralizar a percepção das subjetividades femininas constituídas na experiência da vida cotidiana” (61-62). Trata-se de uma história eminentemente biográfica, gênero que vem sendo redimido e redimensionado nos últimos anos. O que faz com que a obra não recaia na biografia tradicional, factual e sem profundidade analítica, é o seu consistente embasamento teórico, especialmente quanto à história e à sociologia das relações de gênero na modernidade ocidental.

O livro abrange um quase século de história brasileira. Narra os trabalhos e os dias de Francisca Rosa Barreto Praguer e Francisca Praguer Fróes, mãe e filha, nascidas na Bahia provinciana, senhorial e escravocrata do século XIX, e que se rebelaram contra o “destino” que lhes era imposto enquanto mulheres. Francisca Rosa, a mãe, destacou-se como literata atuante na imprensa em defesa da emancipação feminina; Francisca Praguer Fróes foi uma das primeiras formandas em medicina pela Faculdade de Medicina da Bahia, em 1893, especializando-se em ginecologia e obstetrícia; na trilha da mãe, criticou a dominação masculina e defendeu publicamente idéias feministas.

Quanto às fontes primárias, a documentação é ampla, rica, variada e bem explorada. Trata-se, em ambos os casos, de mulheres de letras. O meio letrado, a ambiência na cultura escrita deixou uma série de documentos: memórias, crônicas, poemas, diários, cartas, discursos, artigos científicos, prontuários médicos, panegíricos, necrológios, etc. Esse corpus é complementado com depoimentos orais recolhidos de uma descendente das duas Franciscas. Há, assim, uma cuidadosa heurística das fontes textuais produzidas pelos sujeitos biografados e sua família, ou que direta ou indiretamente a eles dizem respeito. Na falta de indícios diretos, não deixou a autora de recorrer à história comparada, referindo-se às trajetórias de outras mulheres em contextos e situações semelhantes ou diferentes.

É notável, ao longo de todo o estudo, a concretude da análise que recusa noções abstratas e universais em prol de particularidades concretas e contingentes, vale dizer, históricas: “… não se adota aqui uma perspectiva essencialista da mulher, o que forçosamente dissiparia os contornos de classe, raça, geração, cultura e religião” (33). A “mulher” não é nunca considerada um ente universal abstrato, mas um sujeito constituinte da história e por ela constituído, com relativas margens de autonomia, conforme os contextos que lhes foram dados viver. Semelhantemente aos indivíduos, os grupos sociais: as famílias baianas da elite são situadas num período histórico complexo, de modernização conservadora da economia e da sociedade e de transformações políticas e culturais abrangentes. Por conseguinte, há, ao longo da narrativa, um constante movimento dialético do micro para o macro-histórico, um deslocamento que vai do cotidiano até abarcar a realidade social mais ampla que envolve indivíduos e grupos e, sem determinismos de quaisquer tipos, marca profundamente suas trajetórias existenciais.

A obra tem, portanto, virtudes metodológicas para além do tema propriamente dito, qual seja, a equilibrada complementaridade dos olhares micro e macro: busca-se sempre, como diz a autora, “retraçar momentos de experiências vividas como expressão de processos historicamente situados” (26). Ainda nesse sentido, a autora, sem fazer propriamente micro-história, é muito atenta ao que denomina “as miudezas aparentemente insignificantes da vida cotidiana, tanto na esfera pública quanto na privada” (52). Longe de ser anedótica, essa atenção é determinante no gênero biográfico adotado, pois contribui para a riqueza da análise e para a própria fluência da narrativa. Ela aparece tanto na saborosa análise das memórias de Francisca, a mãe, sobre a Vila da Cachoeira, na Bahia provinciana de meados do XIX, quanto na descrição da trajetória de Francisca, a filha, na Salvador da República Velha. Ou seja, os indivíduos e grupos são constantemente colocados diante de estruturas e conjunturas que eles próprios contribuem para conservar e transformar. A variação de escala permite à autora realizar uma “hermenêutica do cotidiano” sem desligá-lo dos processos mais amplos que o situam e circunscrevem. Esse jogo ininterrupto entre o macro e o micro torna possível iluminar existências pontuais sem obscurecer o entorno, e vice-versa, e essa me parece uma das principais virtudes do estudo.

A autora, movida por sensível empatia, evita o criticismo a posteriori que freqüentemente julga e condena a ação de indivíduos do passado conforme critérios supostamente mais “progressistas” do presente do próprio “juiz”. Essa atitude, no fundo anacrônica, é muito comum em campos densamente ideologizados, como o é o feminismo e os estudos de gênero. Conscientemente, Elisabeth Rago critica essa postura a fim de melhor compreender o pensamento e a ação possíveis no contexto dos indivíduos, sem hipostasiar qualquer dever-ser supra-histórico. Assim, embora não deixe de ressaltar a coragem vanguardista de Francisca Rosa em assumir publicamente a defesa da mulher e a necessidade de sua emancipação frente ao sistema de dominação masculina, ou de louvar justamente o pioneirismo de Francisca Praguer Fróes como pioneira militante na área da medicina da mulher, a autora não violenta nem alisa a história. As biografadas são sem dúvida mulheres bastante singulares, que estão entre as precursoras do feminismo na Bahia e no Brasil, sem deixar de ser, afinal, mulheres de carne e osso, alma e espírito, limites e contradições, assim como as mulheres (e os homens) que conhecemos na realidade, quer dizer, na vida como ela é, não como gostaríamos que fosse. Em outras palavras, a concretude da análise e a fidelidade documental impedem que se recaia na heroicização romântica de personagens idealizadas, vale dizer, que nunca existiram. Não se trata de inventar o que poderia ou deveria ser, mas de problematizar de modo realista o que foi efetivamente. O estudo evidencia, assim, as tensões, negociações, contradições, barreiras e limites presentes na organização social de gênero.

Por isso mesmo, trata-se de uma leitura extremamente atenta à efetiva historicidade da consciência feminista e das relações de gênero. As biografadas são pessoas que se constituíram a si próprias, ao mesmo tempo em que eram constituídas pela história que vivenciaram e ajudaram a construir. Ao trabalhar com a noção de subjetividades múltiplas, o estudo busca perceber como as mulheres “forjaram soluções no interior do sistema de gênero (…) redefinindo suas próprias trajetórias e sinalizando, desse modo, que o sistema de dominação [patriarcal] não era nem total nem absoluto” (63).

Outra virtude da obra está em não descurar os condicionantes de classe presentes no pensamento das duas feministas, inseridas totalmente no espaço-tempo em que viveram e atuaram. A atenção à história social – freqüentemente desqualificada hoje em dia – permite apreender mais complexamente a historicidade da consciência de gênero e a própria heterogeneidade dos ideários feministas no Brasil do século XIX e primeiro terço do XX.

A obra suscita ainda elementos de reflexão e prática historiográfica a partir de um diálogo com uma ampla bibliografia nacional e estrangeira sobre a condição feminina, as relações de gênero e a história do saber médico, especialmente da medicina da mulher. Será lido com proveito por estudiosos desses campos, especialmente no que tange à condição e situação de mulheres de letras e ciências, posto que problematiza a emergência e participação das mulheres nos campos intelectual, literário e científico da sociedade brasileira num período de intensas transformações históricas.

Em suma, ao narrar itinerários, nunca puramente individuais, de emancipação feminina, a autora constrói um estudo denso e minucioso sobre a condição da mulher – e especialmente da mulher de elite – na Bahia do fim do Império e das primeiras décadas da República. Para tanto, vale-se de uma abordagem essencialmente interdisciplinar. A narrativa analítica deixa ver a formação dupla da autora, em História e em Ciências Sociais: a erudição documental, a abordagem processual e a atenção aos detalhes significativos revelam a mão da historiadora; o uso rigoroso de conceitos e categorias da sociologia e da antropologia mostra o olhar mais estrutural da cientista social. Essa combinação resulta, como diria Paul Veyne, numa “história conceitualizante” bem tramada e contada. Elisabeth Rago é uma contadora de histórias, sem deixar de ser cientista social e historiadora. Essa combinação torna seu livro ao mesmo tempo gostoso e proveitoso de ser lido dentro e fora da academia.

Antonio Paulo Benatte– Pesquisador-colaborador do Depto. de História do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Unicamp. Bolsista Fapesp. apbenatti@ibest.com.br.

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A história do diabo no Brasil – OLIVA (RBH)

OLIVA, Alfredo dos Santos. A história do diabo no Brasil. São Paulo: Fonte Editorial, 2007. 285p. Resenha de: BENATTE, Antonio Paulo. Revista Brasileira de História, São Paulo, v.28 n.55  jan./jun. 2008.

Em suas célebres teses Sobre o conceito de História, Walter Benjamin referiu-se à teologia como “reconhecidamente pequena e feia”, um saber que “não ousa mostrar-se”. A julgar por trabalhos recentes como A história do diabo no Brasil, do historiador e teólogo Alfredo dos Santos Oliva, esse complexo de inferioridade parece ser coisa do passado, pois é justamente o ‘mostrar-se’ da teologia que faz a diferença na análise historiográfica aqui levada a efeito.

Já na introdução, o autor deixa ver o lugar existencial e epistemológico de onde fala, no que concerne tanto à sua identidade religiosa — pentecostal — quanto às suas opções teóricas e metodológicas, ancoradas na tradição francesa da historiografia de Bloch e Febvre a Michel Foucault. Oliva não esconde sua pertença religiosa nem faz dela uma bandeira, mas busca objetivála o máximo possível. A confessionalidade confessada não impede a objetivação; antes, é a sua condição necessária. Da tensão entre racionalismo e crença o autor não faz um dilema; sua posição é decididamente laica: “O historiador da religião deve estar preocupado em produzir conhecimento academicamente rigoroso e não subsídios para uma apologia, seja ela secular ou religiosa” (p.21). Apesar disso, não cai no racionalismo míope, tão comum nesse tipo de pesquisa; pelo contrário, adota uma perspectiva de ‘razão sensível’ que poderíamos chamar pós-moderna, não fosse o rótulo ter-se desgastado a ponto de nada mais dizer. Ao discutir a obra seminal de Michel de Certeau, afirma Oliva que “a historiografia é uma forma de conhecimento e escrita que se situa entre a ficção e a realidade e em algum ponto entre a subjetividade e a objetividade” (p.18). Esse difícil equilíbrio, mantido ao longo de todo o texto, faz que o livro seja uma contribuição não apenas conteudística como também metodológica para a historiografia da religião no Brasil contemporâneo. O último capítulo, estritamente metodológico, reafirma essa relevância.

O tema do livro é bem delimitado no tempo e no espaço: as práticas discursivas sobre o diabo na Igreja Universal do Reino de Deus (IURD), de 1977 (ano de fundação da igreja do bispo Macedo) até 2005, ano de defesa da tese de que resultou o livro. Trata-se, pois, das práticas e representações em torno do mal na principal denominação do assim chamado neopentecostalismo brasileiro; mas, por tratar-se do diabo, “esse personagem já bastante idoso”, o autor, para fundamentar suas análises em terreno seguro, sente-se obrigado a traçar, em linhas gerais, uma história do diabo na longa duração, do judaísmo antigo e do cristianismo primitivo aos dias atuais. Essa excursão poderia ser considerada um desvio de rota, mas, além de mostrar as continuidades e descontinuidades nas representações do “Inimigo de Deus e de nossas almas”, ela fundamenta a análise mais circunscrita que se segue; pois, obviamente, as práticas e crenças da IURD sobre o vil tentador não partem de um vácuo nem são uma construção ex nihil, e sim retomam criativamente representações historicamente construídas desde os tempos bíblicos. Ou seja, as fontes primeiras das práticas e das representações contemporâneas em torno do Adversário são os textos bíblicos canônicos do Novo e do Antigo Testamento; daí as visões vetero e neotestamentárias do mal — ou melhor, de sua personificação no diabo e em seus demônios — serem um ponto de partida (ou de chegada) necessário. As pesquisas sobre a história do diabo na cultura ocidental permitem mostrar, por exemplo, como as práticas acerca desse personagem na IURD (o discurso demonizante, os rituais de exorcismo) não se separam do amplo processo de demonização da alteridade, e em especial da alteridade religiosa, que atravessa a história do cristianismo desde a Igreja primitiva.

A seguir, o historiador-teólogo aborda a implantação e a difusão do pentecostalismo no Brasil desde o começo do século XX. A partir de suas raízes no metodismo, no avivalismo e nos movimentos de santidade, contextualiza o pentecostalismo como uma religião atrelada às camadas populares urbanas, mostrando como “dentro desta categoria social [ele] viria a ser uma importante alternativa de reconstrução de um mundo que se dissolvia rapidamente” (p.123). Atento às diversas continuidades e rupturas na constituição do campo, o autor percebe uma série de diferenciações aparentemente insignificantes que atravessam e constituem o(s) pentecostalismo(s). Aqui, Oliva, mesmo endossando teses consagradas sobre esse movimento sócio-religioso no Brasil, distancia-se criticamente das tipologias ou classificações prévias construídas pelas ciências sociais, inclusive a história; para isso, adota uma perspectiva mais compreensiva (hermenêutica) e menos explicativa do fenômeno religioso.

Para efeitos comparativos, o autor analisa a seguir a visão do mal, do pecado e do diabo em várias perspectivas: no protestantismo tradicional, na teologia da libertação e no pentecostalismo clássico, até desembocar no neopentecostalismo da IURD como expressão de uma religiosidade integrada à lógica sistêmica do capitalismo tardio. Dificilmente esse empreendimento poderia ser realizado sem erudição e desenvoltura teológicas. Assim, para a nova história religiosa, parece claro que, especialmente no caso das grandes “religiões do livro”, a abordagem multidisciplinar do fenômeno religioso não possa mais excluir a teologia: o conhecimento teológico mostra-se insubstituível como chave para códigos religiosos que de outro modo passariam imperceptíveis por não se deixarem reduzir ao logos de qualquer ciência.

Mas a principal virtude do livro está em que, sem abdicar de uma postura crítica, o autor adota uma atitude empática do fenômeno religioso, muito distante das posturas científicas que, do alto do tribunal do santo ofício do saber, arvoram-se no direito de julgar e condenar, sem apelação, visões de mundo distantes de suas verdades pretensamente iluminadas e supostamente libertárias. A essa postura judicativa o historiador-teólogo contrapõe uma perspectiva ‘relativista’, como quando se opõe à interpretação, inspirada em Lévy-Bruhl, do diabólico na IURD como manifestação de uma ‘mentalidade primitiva’ ou ‘pré-lógica’.

No Brasil, os estudos da religião — tradicionais nas ciências sociais desde Nina Rodrigues, passando por Roger Bastide e Duglas Teixeira Monteiro, entre muitos outros — têm crescido quantitativa e qualitativamente nas últimas décadas; e não é diferente com a história: o chamado cultural turn, ou o diálogo com a antropologia, tem favorecido a renovação da história religiosa. O livro de Oliva, em diálogo com a produção de ponta nessa área, insere-se num conjunto de estudos em que a religiosidade aparece intimamente articulada à cultura, no sentido antropológico do termo. Com efeito, os complexos liames entre religião e cultura perpassam toda a obra. O exorcismo, por exemplo, é analisado como um rito de passagem que, demonizando o outro, “constrói o sentido de pertença à igreja” (p.145).

Em alguns momentos, dada a amplitude do tema — a longa história do diabo —, parece haver um abuso de material bibliográfico; mas, na maior parte do tempo — e especialmente no terceiro capítulo, onde investiga como a IURD compreende e fundamenta teologicamente sua demonologia —, prevalece o tratamento empírico do objeto mais circunscrito, quando então a abordagem qualitativa, propiciada pela observação participante, é complementada pela análise de fontes primárias: o material impresso pela IURD, de teor teológico e devocional.

Em suma, trata-se de uma contribuição importante para as linhas de pesquisa preocupadas em compreender as múltiplas dimensões da religiosidade popular brasileira, especialmente quanto aos crentes chamados pentecostais e neopentecostais. Mas o trabalho permite também reflexões mais gerais. Situando-se na confluência da história religiosa e da história cultural, o livro permite ver que, assim como as tentativas de “matar Deus”, as tentativas de “assassinar o Diabo” também fracassaram: a persistência da crença na existência do Inimigo sobreviveu à secularização, à racionalização e ao desencantamento do mundo que, segundo as clássicas teses weberianas, caracterizariam a modernidade ocidental. Não é difícil observar que a crença religiosa, muito mais que a racionalidade strictu sensu, continua a ser a dinamis da maioria das práticas culturais. Permanece a certeza de que, sem compreendermos os fenômenos religiosos não compreenderemos as grandes mutações sociais e culturais de nosso tempo. A renitente permanência das crenças religiosas num corpo social crescentemente secularizado exigirá, queiramos ou não, um diálogo entre os adeptos das visões científicas e os das visões religiosas de mundo.

Nesse sentido, a autor, firmando-se em teorias de Jüergen Habermas, conclui seu livro afirmando a necessidade de um diálogo entre ciência e religião. Se, como dizia Kierkegaard, a fé começa onde termina a razão, pode-se imaginar a dificuldade inerente a essas conversações; dificuldade exacerbada, de um lado, pelos fundamentalismos, e, de outro, pelos virulentos ataques do cientificismo ateu, ou “ateísmo científico”. Com efeito, reduzir a religião à satisfação de interesses materiais ou mesmo psíquicos — como ainda faz a ciência de corte iluminista e positivista — é pouco entender de religião. A teologia, é claro, não deixa de ser uma ciência (um logos); mas, de qualquer modo, é um discurso menos reducionista e mais aberto à compreensão das necessidades espirituais da humanidade. Por isso, e cada vez mais, o saber teológico é chamado a ocupar uma função mediadora nesse importante diálogo.

Antonio Paulo Benatte – Depto. de História da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) – Bolsista da Fapesp. Rua Adriático, 151, bl. 14, ap. 52, Jd. do Estádio. 09172-180 Santo André – SP – Brasil. E-mail: apbenatti@ibest.com.br

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