Joana d’Arc: Uma Biografia | Colette Baune

Em 2016, a versão em português de Joana d’Arc: uma biografia completou dez anos. Lançada no Brasil pela Editora Globo em 2006, a obra de Colette Beaune é uma das leituras fundamentais para aqueles que se interessam pela história da heroína francesa.

Joana d’Arc é uma das personagens mais icônicas do Ocidente medieval. Em apenas dois anos, período entre seu aparecimento na corte de Carlos VII e sua morte, Joana conseguiu conquistar o coração e a imaginação de seus contemporâneos e se inscrever no panteão dos personagens que transcendem seu tempo e espaço.

Fazendo um breve levantamento é possível encontrar mais de setenta obras literárias nas quais Joana d’Arc é personagem, a lista se inicia no século XV e chega até o presente. Além da literatura, Joana foi retratada em cerca de treze produções cinematográficas, da emblemática atuação de Renée Falconetti, em “La passion de Jeanne d’Arc”, filmado em 1927 e dirigido por Carl Dreyer, até a superprodução dirigida por Luc Besson em 1999, “Jeanne d’Arc” a qual contou com a brilhante interpretação de Milla Jovovich que deu vida a uma Joana ingênua e perturbada por vozes. Afora o cinema e a literatura, a Donzela aparece em jogos de videogame e quadrinhos.

Joana foi uma jovem francesa cuja existência transita entre o mito e a realidade e cuja eternidade está garantida na memória e imaginação das pessoas. Não é de surpreender que tenha sido escolhida como objeto de pesquisa por Colette Beaune, uma especialista em História da França e em História das Mulheres.

Colette Beaune é professora emérita da Universidade de Paris X, especializada em história cultural, politica e social do final da Idade Média. Entre suas publicações estão Naissance de la nation France, 1985; a edição do texto do Journal d’un Bourgeois de Paris: de 1405 à 1449, 1989; e Jeanne d’Arc, 2004 (Joana d’Arc: uma biografia, Editora Globo, 2006). A obra foi caracterizada pelo Senado francês como própria para nutrir a reflexão cívica e rendeu à Colette Beaune o Prix du Sénat du Livre d’Histoire, em 2004. Joana d’Arc: uma biografia apresenta muito mais que a história de Joana, é, em referência aos termos utilizados por Beaune, “Joana além de Joana”.

Estamos acostumados com a Joana d’Arc do universo mítico, um personagem real que foi apropriado pela ficção e representado a partir do fantástico, do maravilhoso, do extraordinário. Colette Beaune retira Joana da névoa do fantástico e a insere em seu contexto. Assim, a heroína francesa é tratada como um personagem histórico e serve como fio condutor para discussões sobre guerra, política, cultura e sociedade na Idade Média.

Partindo dos processos de condenação, que sentenciou Joana à fogueira por heresia, em 1431, e de anulação, que a reabilitou em 1456, Beaune discute aspectos da vida de Joana. A investigação também utiliza outros documentos, tais como crônicas, cartas e demais informações relacionadas à Donzela.

O texto de Beaune apresenta Joana e problematiza as características de suas várias representações. Assim como qualquer indivíduo, Joana d’Arc é um personagem multifacetado e a escolha de quais elementos são evidenciados por aqueles que a retratam, nos informam tanto sobre Joana quanto sobre os que a representam.

Sua origem obscura, no vilarejo de Domrémy, por exemplo, pode ser entendida a partir da comparação com a vida de Cristo e, de forma mais genérica, com a trajetória dos heróis. O modelo de vida heroica é compartilhado por figuras como Cristo, Ulisses, Davi e serviu de base para a construção da imagem de Joana como heroína da França.

Sua juventude em Domrémy também é cheia de misticismo e fantasia, e colocam Joana como um ser único, mágico. Beaune, entretanto, apresenta as práticas de uma sociedade rural e as insere em um conjunto mais amplo. Bem como, expõe as formas como os processos de condenação e de reabilitação se utilizaram dos ritos e práticas populares para defender posições diametralmente opostas. Grande parte dos elementos que constituíram o argumento de sua condenação foram refutados e utilizados em sua defesa.

Não foram apenas os contemporâneos de Joana que disputaram sua imagem, historiadores do século XIX e XX apresentaram diferentes opiniões sobre Joana. Letrada ou iletrada? A heroína da França teria sido uma jovem iletrada, que recebia suas ordens através de vozes divinas ou teve acesso à educação em algum momento de sua curta vida?

As vozes de Joana não escapam da perscrutação de Beaune. Um dos elementos brilhantemente explorados pelo cinema e pela literatura, a questão da inspiração divina, é abordado por Colette a partir da tradição de profetisas que surgiam em tempos de crise, anunciando a palavra de Deus. A jovem donzela de Domrémy não foi a primeira nem a última, certamente, a levar revelações divinas aos homens.

Se por um lado, Joana foi mais uma das profetisas medievais, por outro lado, suas revelações e sua participação tiveram um caráter único e extraordinário: a capacidade de mobilizar e sensibilizar a população francesa, tão desgastada pela longa guerra contra a Inglaterra.

A participação de Joana no levante do cerco de Orléans juntamente com a sagração de Carlos VII em Reims foram os pontos máximos de sua participação no conflito. Mas que de forma se deu essa participação? Joana empunhou a espada, conduziu as tropas como chefe de guerra ou apenas levantou seu estandarte como símbolo e motivação aos combatentes? Colette Beaune não se limita a discutir o papel de Joana na Guerra dos Cem Anos, a questão enunciada é mais profunda e abrangente: a guerra pode ter um rosto de mulher?

E, essa mulher em específico, inserida em uma sociedade que estava agitada por complexas disputas políticas internas e externas, atuava de forma independente? Era motivada pelo testemunho dos sofrimentos dos franceses ao longo de uma guerra sem fim ou estava agindo de acordo com um alinhamento político forjado por relações familiares e alianças políticas?

Essas problematizações de Beaune tornam o livro, além de uma brilhante biografia, uma fonte de inspirações para a pesquisa sobre o período medieval. E, para além da Idade Média, instiga a curiosidade sobre as diversas apropriações que a imagem de Joana d’Arc sofreu ao longo do tempo.

Não é sem motivos que Joana se tornou um símbolo reivindicado por diversos grupos: a insuficiência de informações registradas nos impede de uma aproximação do personagem histórico, ao mesmo tempo permite que sua imagem seja montada e reconstruída das mais diversas formas.

Em Joana d’Arc: uma biografia Colette Beaune resgata essas múltiplas facetas da Donzela para apresentar a sociedade francesa, seus valores, seus anseios e preocupações; a guerra e a política que influenciaram e foram influenciadas por Joana; o martírio de uma jovem que coroou seu rei e foi reverenciada como heroína e, poucos anos depois, queimou na fogueira inglória, acusada de heresia.

O livro de Colette Beaune é uma obra fundamental para a compreensão de Joana d’Arc como personagem histórico e é extremamente relevante para o entendimento de vários aspectos da sociedade medieval. A linguagem de fácil compreensão é acompanhada por referências bibliográficas extremamente ricas, o que o torna uma aquisição fundamental para a biblioteca de pesquisadores e de não pesquisadores.

Paula dos Santos Flores – Mestranda em História pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). E-mail: paulaflrs@gmail.com


BAUNE, Colette. Joana d’Arc: Uma Biografia. São Paulo: Globo, 2006. Resenha de: FLORES, Paula dos Santos Brathair – Revista de Estudos Celtas e Germânicos. São Luís, v.17, n.2, p. 159- 162, 2017. Acessar publicação original [DR]