Hegel and Spinoza: Substance and Negativity – MODER (RFA)

MODER, G. Hegel and Spinoza: Substance and Negativity. Illinois: Northwestern University Press, 2017. Resenha de: CRAIA, Eladio; KELLER, Arion. Revista de Filosofia Aurora, Curitiba, v.32, n.56, p.591-596, maio/ago., 2020.

Poderíamos caracterizar a obra de Gregor Moder, Hegel and Spinoza: Substance and Negativity, como uma obra não ortodoxa dos estudos tanto hegelianos quanto spinozistas, como uma tentativa quase heroica de recepcionar de forma nova e original a tão problemática relação existente entre hegelianismo e spinozismo e, também, como uma tentativa de “fazer justiça” a ambos os lados da discussão.

Tal problemática, no entanto, é tão antiga quanto o próprio texto hegeliano. Sabemos da ambiguidade de Hegel com relação a Spinoza, que oscila desde uma série de elogios e reverências ao holandês, como nas famosas passagens das Lições sobre a história da filosofia, onde afirma que quem não for spinozista não pode sequer ser filósofo, ou que além do spinozismo não há nenhuma filosofia, até o desenvolvimento de ácidas críticas com inspirações semelhantes às direcionadas a Parmênides e ao Oriente, sendo o que está em jogo é o papel desempenhado pela negatividade.

A motivação não ortodoxa que mencionamos, é a tentativa do autor de situar um “ponto pacífico” entre as duas tradições aparentemente incompatíveis. Tradicionalmente, Hegel é colocado como o fundador de um projeto ontológico que privilegia a negatividade, ou melhor, que tenta pensar uma negatividade produtiva no nível da substância, do absoluto. Por outro lado, Spinoza é lido como um autor da afirmação pura, atuando muitas vezes como o “antípoda” dos projetos ditos negativistas. Gregor Moder (2017, p.104) demarca muito bem esse panorama conflitivo no que ele chama de materialismo francês do século XX. Pelo lado hegeliano o autor menciona a psicanálise de Lacan, em que há um primado claro da negatividade, pois a categoria de Sujeito, nuclear à psicanálise lacaniana, é atravessada pela categoria de Falta. Já pelo lado spinozista, é a presença da filosofia de Deleuze que marca o “afirmacionismo” contemporâneo, em que o grande esforço é o de se pensar os processos de diferenciação ontológica sem o apelo à categoria de Negação. Entretanto, e surpreendentemente, o autor situa a filosofia de Althusser como a “própria encarnação do problema Hegel e Spinoza” (MODER, 2017, p.120), como o meio termo dessa tensão. Para Gregor Moder, é a teoria da ideologia althusseriana aquela capaz de trabalhar com os dois modelos ontológicos simultaneamente, onde ambas concepções de negatividade trabalham juntas. No entanto, vejamos como o autor chega a este ponto.

A introdução da obra é intitulada A Questão de Leitura. No decorrer deste texto, Moder situa a recepção de Spinoza na Alemanha em geral, e a recepção de Hegel em particular. Hegel, apesar dos elogios que comentamos acima, combate o spinozismo por uma razão teórica muito específica: Spinoza teria ficado preso ao início, sua substância seria rígida e imóvel, isto é, ela não teria a capacidade de transformar a si mesma, seria apenas uma afirmação pura e abstrata; o spinozismo seria um eleatismo em sua face moderna. Althusserianos, por outro lado, acusam Hegel de uma inversão do modelo neoplatônico de produção do Ser. O problema de Hegel por excelência e também o de Gregor Moder neste caso, será de pensar uma possibilidade de contradição ou movimento no nível substancial que fuja de ambas as acusações. Tudo se passa como uma questão de movimento interno no próprio absoluto.

Além disso, Moder situa em traços gerais várias das objeções da leitura hegeliana de Spinoza. O problema do autor não é, portanto, defender a leitura hegeliana de Spinoza, nem mesmo contra-atacar Hegel como um spinozista, trabalho este já feito pelos estudos de Deleuze, Gueroult, Macherey, etc., mas de pensar ambas as filosofias com o seguinte projeto: distanciar-se dos modelos emanativos de inspiração aristotélica e neoplatônica, caracterizados por sua unilateralidade e hierarquia causais. O autor defenderá que tanto Hegel quanto Spinoza, cada um à sua maneira e com aparatos conceituais muito distintos, tentarão valer-se de uma categoria de causalidade livre de hierarquias, que seja suficiente para se pensar o autodesenvolvimento interno do próprio absoluto. Eis a hipótese não ortodoxa da obra: não será a clássica oposição Hegel versus Spinoza, mas Hegel e Spinoza versus aristotelismo e neoplatonismo (MODER, 2017, p.14-15).

Os três primeiros capítulos da obra são voltados à filosofia de Hegel, com o intuito de desvinculá-la das críticas de inversão do neoplatonismo feitas por Althusser e Deleuze; no entanto, e fazendo certa justiça a Spinoza, o autor sempre desvincula o holandês das críticas equivocadas de Hegel, tirando-o também dessa linhagem aristotélica e neoplatônica. No primeiro capítulo, intitulado A Lógica Hegeliana do Puro Ser e Spinoza, o autor desenvolve a concepção hegeliana de Ser. Em linhas gerais, a problemática hegeliana diz respeito ao clássico debate grego incorporado por Parmênides e Heráclito. Pelo lado de Parmênides, temos o Ser idêntico a si mesmo, carente de negatividade e animado pelo princípio de ex nihilo nihil fit (do nada, nada provém), e por outro lado o princípio de devir puro heraclitiano, aparentemente incompatíveis. A grande virada hegeliana é de estabelecer o devir como a própria verdade/telos dos sistemas de identidade, negando o princípio de ex nihilo nihil fit e estabelecendo o motor da dialética por excelência: a identidade da identidade e da diferença. Essa descoberta de Hegel é o princípio de movimento no Ser imóvel parmenidiano. Com isso, Hegel remove a ideia de um “Ser puro” no sentido aristotélico e neoplatônico (o motor imóvel nada mais é que um princípio de causalidade unilateral, pois move sem ser movido), isto é, já estamos sempre no campo da mediação, estabelecida por uma negatividade produtiva; a igualdade de Ser e Nada propostas no início da Lógica são a própria condição necessária de movimento no absoluto. Moder assim resume esse movimento inovador de Hegel: “na medida em que a lógica do puro ser fala, ela já fala na linguagem da lógica da reflexão” (MODER, 2017, p.30).

O segundo capítulo, intitulado História é Lógica, segue o desenvolvimento do primeiro. No entanto, neste capítulo o autor enfatiza a relação de Hegel com a história da filosofia. Abordando o problema do imediatismo do puro Ser das filosofias orientais e de Parmênides, passando pela resposta de Aristóteles ao problema do movimento no nível substancial, o primeiro motor imóvel, e enfim chegando à teoria da produção de Plotino. Hegel critica todos esses modelos, pois são caracterizados por uma causalidade hierárquica, são um modelo emanativo de produção do Ser. A negatividade produtiva de Hegel, elaborada pela via do princípio de omnis determinatio est negatio, é caracterizada como a determinação do próprio Ser, visto que não há possibilidade de falar do Ser enquanto Puro e indeterminado (pois nesse nível Ser e Nada se equivalem), aparece como uma dupla negativa, instaurando o movimento próprio da Lógica, e consequentemente da História. Esse princípio é chamado pelo autor de “perda da própria perda”, a “morte da morte” (MODER, 2017, p.55 e p. 88). Por fim, o autor novamente retira Spinoza desta linhagem, retomando a leitura deleuziana da causalidade imanente de Spinoza, animada pela teoria da univocidade do Ser.

O terceiro capítulo, Telos, Teleologia e Teleiosis, talvez seja o mais inovador no que diz respeito aos estudos hegelianos. Retomando a problemática da doutrina aristotélica das quatro causas, o autor explica como deve-se entender a ideia de telos em Hegel. Longe de ser uma mera finalidade externa do processo, como por exemplo o Juízo Final da metafísica cristã, Hegel se aproximaria da postura heideggeriana com respeito à doutrina das causas, exposta nas conferências sobre a Habitação e sobre a Técnica. A causa final não pode ser compreendida fora do conjunto total das causas. Ela deve, pelo contrário, ser entendida como o desenvolvimento dinâmico do processo todo, como um telos interno (MODER, 2017, p.71). Cunhando um termo de Franz Brentano para explicar este modo de compreender a causalidade e a finalidade, Moder nomeia este telos imanente ao próprio processo causal de teleiosis. Esse paradoxal movimento em que o telos atua como fim e início ao mesmo tempo é o próprio “motor da história” (MODER, 2017, p.76). A história é teleológica, portanto, enquanto uma teleologia interna ao próprio desenvolvimento do pensar.

O quarto capítulo é intitulado Morte e Finalidade, e nele é desenvolvida uma original leitura sobre uma espécie de negatividade em Spinoza. Como o próprio autor lembra (MODER, 2017, p.123-124), e isto é central para a hipótese da obra, a negatividade não pode ser compreendida em apenas um sentido. A filosofia contemporânea tem inúmeros conceitos que desempenham este papel, tais como falta, vazio, lacuna, torção, ruptura etc. Justamente com essa busca por um princípio motor (negatividade) o autor desenvolve sua leitura de Spinoza como autor fecundo para os debates contemporâneos. E ela é surpreendente. O autor defende, contrariamente à leitura hegeliana, que a substância de Spinoza é ativa, móvel e com capacidade de autodesenvolvimento. Para Moder, a substância de Spinoza não produz sem ser afetada por sua produção (como o motor imóvel de Aristóteles ou o Uno plotiniano), ao contrário, e essa é uma grande descoberta de Spinoza, a substância é causa de si no mesmo sentido que é causa de todas as coisas. A substância não é indiferente em sua produção, ela permanece no efeito (modos finitos) tanto quando os modos permanecem nela. O que parecia, portanto, ser uma continuação da tradição neoplatônica, se mostra como uma radical teoria imanente. A substância nunca está em um estado imediato, mas sempre já modificada. A existência dos modos é a existência da própria substância (MODER, 2017, p.100). O conceito de causa de si, portanto, atua como uma curvatura (negatividade, movimento) na própria substância. É este o princípio de movimento do sistema spinozista. É o próprio Ser em sua modificação original. Por outro lado, o autor se filia a Vinciguerra e Deleuze sobre a teoria da imaginação como constituinte da experiência dos modos finitos. Nesse processo, longe de distorcer a realidade, a imaginação é constitutiva da própria realidade modal, uma aliada da razão na busca do conhecimento de terceiro gênero. Nesse sentido, a outra espécie de “negativo” em Spinoza é a capacidade do imaginário de distorcer a própria realidade (MODER, 2017, p.99).

Esta última consequência é importantíssima para o último capítulo, intitulado Ideologia e a Originalidade do Desvio, em que a filosofia de Althusser aparecerá como aquela que trabalha com ambas as concepções de negatividade, isto é, tanto com a torção spinozista, quanto com a lacuna hegeliana. Surpreendente e nada ortodoxa a postura do autor, visto que Althusser foi um crítico ferrenho da dialética hegeliana. Por um lado, Althusser assume a noção de crença, retirada da filosofia de Spinoza, como o local onde o imaginário constitui a própria existência material da ideologia; na crença religiosa a ideologia devém material. Por outro lado, a superfície material da ideologia não é o suficiente. Há sempre uma ordem real negativa que constitui a base positiva material. E nesse ponto de vista, o autor defende que Althusser tem uma forte influência hegelianalacaniana. Em Althusser, portanto, a ordem real não é a ordem material, ela é a diferença entre o real e o material (um arranjo dialético muito similar à concepção da identidade como identidade da identidade e da diferença). Por conta dessas duas posições althusserianas, Moder pode dizer que ele é a própria encarnação do problema Hegel e Spinoza.

A conclusão da obra, Substância e Negatividade: A Primazia da Negatividade, estabelece, portanto, um primado da negatividade na filosofia contemporânea. Negligenciada pela tradição desde Parmênides, passando por Aristóteles e os neoplatônicos, a negatividade ganha dignidade ontológica a partir de Hegel e se estende por toda a filosofia contemporânea. Curiosamente, mesmo Deleuze, o maior representante do “afirmacionismo”, não fica de fora desta primazia. Ora, a negatividade para Gregor Moder é tudo aquilo que funciona como um princípio motor não hierárquico ou unilateral no nível substancial ou ontológico. Seja esta chamada de negação da negação, teleiosis, diferença, modificação, torção, sujeito, curvatura etc. A originalidade do autor reside, para além de tirar Hegel desta tradição do “imediatismo ingênuo”, o que é evidente por si só, em fazer o mesmo com Spinoza! Para o autor, a única possibilidade de o spinozismo ser relevante na contemporaneidade é através dessa virada da negatividade e, no caso do spinozismo, entendida como torção, como essa autocausação da substância. Isto que o autor chama de “leitura heideggeriana de Spinoza”, ou seja, onde não há transição de substância para modos, não há transição do infinito para o finito, a única maneira de a substância se diferenciar é como suas próprias modificações, garante a continuidade recíproca de ambos. Em Spinoza, Ser só pode ser entendido dessa forma. Para Moder (2017, p.145), portanto, “a substância só pode ser sua própria torção”.

Eladio Craia – Pontifícia Universidade Católica do Paraná, PUCPR, Curitiba, PR, Brasil. Doutor. E-mail: eladiocraia@hotmail.com

Arion Keller – Pontifícia Universidade Católica do Paraná, PUCPR, Curitiba, PR, Brasil. Graduado em Filosofia. E-mail: arionkeller@hotmail.com

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Contra o juízo: Deleuze e os herdeiros de Spinoza – HEUSER (ARF)

HEUSER, E. M. D. (Org.). Contra o juízo: Deleuze e os herdeiros de Spinoza. Curitiba: Appris, 2019, 207p. Resenha de: MENEGHATTI, Douglas. Aufklärung – Revista de Filosofia, João Pessoa, v.7, n.2., p.131­-136, mai./­ago., 2020.

O livro é uma coletânea de textos escritos por 17 autores, organizados pela Prof. Ester Heuser, que se apresenta como um movimento de insurreição à doutrina do juízo. Para contrapor-se ao juízo são chamados à cena os filósofos que Deleuze nominou de “herdeiros de Spinoza”: Nietzsche, D. H. Lawrence, Kafka e Artaud. Conforme sugere o subtítulo presente na Apresentação, esses “herdeiros” podem ser considerados “cavaleiros do apocalipse ao revés”, cujo empreendimento é vencer o juízo, através de uma batalha libertadora que visa restabelecer o devir criativo, contrapondo o sistema transcendente do juízo à existência. Muitos são os tremores e temores daqueles que se opõem aos ‘castigos’ oriundos dos julgamentos sacralizados pela própria história, entretanto, como contrapartida, o livro deixa bem claro que o único caminho é resistir e lutar.

A menção ao apocalipse nos remete ao último livro do Novo Testamento da Bíblia cristã, mais especificamente a um texto de João de Patmos no qual é consumada a escatologia do juízo final da doutrina de salvação da cristandade. A profecia teleológica presente no apocalipse transforma o Cristo amoroso dos evangelhos em um Cristo vingativo, onde a justiça divina se torna preponderante sobre a misericórdia, por meio de um julgamento definitivo em que prevalece o ressentimento contra o pecado e todos os deleites de uma ‘vida profana’1. Para contrapor a visão determinista do apocalipse são apresentadas contundentes reflexões dos “cavaleiros do apocalipse ao revés”, numa perspectiva que leva o leitor desde a compreensão do livro de João de Patmos até a crítica ao mesmo, com uma visão de Deleuze-Lawrence.

Lawrence chega a duvidar que o evangelho de João e o Apocalipse tenham sido escritos pela mesma pessoa. Pois no Evangelho se encontra um Cristo afável e amoroso, enquanto no Apocalipse um Cristo rancoroso e vingativo (LAWRENCE, 1990, p. 2022).

Essa dicotomia levou Anna Lorenzoni et al, autores do capítulo: “Lawrence e Deleuze entre apocalipses: o julgamento final e o final do juízo”, a acentuar a conclusão de Lawrence: “João, o apocalíptico, trabalha imerso no terror e na destruição, fundamentando sua profecia em uma mescla infesta de ameaça e pânico; enquanto João, o evangelista, seguia de perto Jesus, trabalhando o amor humano e espiritual” (p. 117).

Teria então João de Patmos distorcido a doutrina de seu grande mestre Jesus de Nazaré? Para Lawrence, essa parece ser uma conclusão inevitável, uma vez que o “patmismo” se aproxima muito mais do antigo Judaísmo e do Paganismo do que dos Evangelhos.

Contra o juízo é um livro primoroso para quem deseja se iniciar na leitura da filosofia da imanência, haja vista que traz a tona, de forma original, uma perspectiva acerca dos herdeiros de Spinoza, numa conotação de combate ao transcendente e busca pela imanência que se revela nos encontros trazidos pelos autores do livro. No que tange a questão do juízo, ou “juízo de Deus”, como prefere Deleuze, o livro é relevante àqueles que desejam um estudo pormenorizado da questão, ou mesmo, adentrar na temática. Organizado em 4 partes, o trabalho começa com uma reflexão sobre a herança de Spinoza e uma análise da doutrina do julgamento na tragédia grega (Parte um: Juízo e Tragédia), passando por uma análise dos herdeiros de Spinoza e suas lutas contra o juízo nas partes dois e três (Os herdeiros de Spinoza e Contra o Juízo: a luta de Nietzsche, Lawrence, Kafka e Artaud, respectivamente) e finaliza com a apresentação de formas de contrapor a existência ao juízo (Parte quatro: Existências contra o Juízo) .

Presente na história desde a tragédia grega, o juízo se impõe como fundamento sagrado da praxis humana, uma vez que subjaz ontologicamente a qualquer ato. Para Deleuze, a doutrina do juízo: “nos condena a uma escravidão sem fim e anula qualquer processo liberatório” (DELEUZE, 1997, p. 195). A consciência de dívida como alerta constante que antecede a ação coloca todos os viventes sob a égide da doutrina de julgamento, ceifando o “processo liberatório” ao qual se refere Deleuze, os indivíduos se tornam prisioneiros de suas consciências, num processo em que a dívida é selada ontologicamente numa consciência pré-reflexiva.

Nesse processo, cuja ação é seguida pelo julgamento, transparece um estado constante de vigilância e culpa, que pode ser sintetizado pelas próprias palavras do Apocalipse: “Se não vigiares, virei a ti como um ladrão, e não saberás a que horas te surpreenderei”. (BÍBLIA, Ap, 3, 3).

A inspiração que fez germinar o livro Contra o juízo está no capítulo “Para dar um fim do juízo”, presente na obra Crítica e Clínica de Deleuze (1997). Nele o autor apresenta diligentemente os herdeiros de Spinoza que, justamente por terem padecido do juízo, conseguiram transpor o fardo do julgamento por meio de um combate altivo e corajoso que resultou na grandiosidade das obras destes pensadores. Ocorre que a oposição ao juízo é uma tarefa complexa, uma vez que está arraigada à psicologia do sacerdote: “a lógica do juízo se confunde com a psicologia do sacerdote como inventor da mais sombria organização: quero julgar, preciso julgar” (DELEUZE, 1997, p.144). O veredito do juízo atua como parâmetro subjacente a ação, proliferando uma realidade em que ser vítima, culpado, constrangido e pecador passa a fazer parte da “natureza” humana. A lógica do juízo, que estratifica a todos numa posição de submissão e expectativa por um polo transcende que possa servir de recompensa àqueles que se submetem a uma existência ignominiosa, não perfaz apenas o meio religioso e político em grande medida. Os próprios grandes sábios e pensadores, vulgo filósofos, se alimentaram um após o outro do socratismo e suas ramificações cristãs que ascenderam num polo transcendente em que conceitos petrificados serviram de âncora para a construção de ideais norteadores da existência. Situação que levou Nietzsche a conclusão de que “Em todos os tempos, os homens sábios fizeram o mesmo julgamento da vida: ela não vale nada” (GD/CI “O problema de Sócrates” § 1).

Vejamos, se contrapor ao juízo implica nada menos que se opor a uma ordem milenar que se arrasta desde o famoso julgamento de Orestes na antiga Grécia. Para Leandro Nunes, autor do capítulo “Spinoza: o mais feroz combatente às ordens transcendentes e ao juízo”, “O julgamento está intrincado nos modos de vida produzidos pelo homem ocidental, ao menos desde 458 a.C., quando Ésquilo apresenta sua tragédia Eumênides, em que monta o primeiro tribunal, tal como o conhecemos hoje” (p. 25). Na tragédia, Orestes é acusado de matricídio, no entanto, teria realizado este ato funesto para vingar a morte de seu pai, assassinado pela sua mãe. Como o julgamento termina empatado, a própria juíza Atena vota em prol do sentenciado, absolvendo-o.

No enredo, pesam a dor e a vingança de Orestes, a dor da perda do pai e a vingança reparativa contra a mãe, situação que constitui o que Deleuze (2005, p. 118) chamou de “processo de restituição de equilíbrio ou de compensação” renovado a cada desfecho que desencadeia novas reações de causa e efeito que tendem ao infinito.

O juízo de valor arraigado numa concepção moral da realidade nem sempre esteve presente nas tragédias gregas, porém com a construção de uma tirania da razão contra os instintos, protagonizada pela razão socrática apolínea, a espontaneidade e a embriaguez dionisíaca se esfacelaram frente a um novo poder esclarecedor da razão, que aos poucos se tornou a luz que ilumina e orienta o Olimpo – fazendo com que cada indivíduo se encolha frente ao comum, àquilo que a todos orienta e conduz ao caminho do ‘bem’2. Aliás, é praticamente inconcebível a construção de uma ética teleológica com vistas à felicidade, como pretendeu Sócrates e seus disseminadores, sem que o desregramento e a indeterminação dionisíaca sejam postas a prova. Para tanto, ascendeu a necessidade da individuação, para que cada qual possa ser julgado em seus próprios méritos e deméritos.

Associado às belas formas, Apolo é considerado o deus criador do Olimpo, através dele a existência torna-se suportável frente aos poderes titânicos da natureza.

Simbolizando as singularidades por meio do estado do sonho, Apolo traz a ordem ao caos. No entanto, no Nascimento da tragédia, Nietzsche apresentará o impulso apolínio como ilusório, uma vez que nega a multiplicidade da natureza por meio da afirmação do Principium individuationis, ou seja, transparece um estado de ofuscamento em que a realidade é representada a fim de se tornar suportável. Daí decorre a necessidade de emparelhamento dos impulsos antagônicos, de modo que o exagero e a fruição dionisíaca se descarregam sobre o equilíbrio e a moderação apolínea. Acerca desta relação, Heuser (p. 197), ao tratar da “Embriaguez e insônia” sintetiza: “[…] é a conjugação entre lucidez e a embriaguez, a união entre o apolíneo e o dionisíaco, a própria condição para que, no sentido deleuziano, o pensamento seja forçado a pensar – o que é sinônimo de criar, preocupação central da filosofia de Deleuze”.

Em Deleuze, toda a filosofia, arte e ciência se justificam na criação, que emerge da múltipla fluidez do devir. Nesse viés, não há espaço para o predomínio apolíneo ou para a exacerbação do espírito teórico em detrimento do dinamismo dionisíaco. Deleuze faz do filosofar uma atividade criativa ad infinitum, sem espaço para o SER oriundo da tradição platônica. Em sua construção filosófica, os universais não passam de criações que se escondem numa atemporalidade criada e, portanto, apolínea (ilusória). Seu pensamento rizomático é uma contundente negação do juízo: Oposto a uma estrutura, que se define por um conjunto de pontos e posições, por correlações binárias entre estes pontos e relações biunívocas entre estas posições, o rizoma é feito de linhas: linhas de segmentaridade, de estratificação, como dimensões, mas também linha de fuga ou de desterritorialização como dimensão máxima segundo a qual, em seguindoa, a multiplicidade se metamorfoseia, mudando de natureza (DELEUZE; GUATTARI, 2011, p. 43).

A partir desta conotação de esfacelamento dos polos opostos que se sustentam dialeticamente na metafísica, a filosofia deleuzeguattariana rompe as raízes do juízo e seus efeitos não são mais capazes de produzir causalidade no mundo da praxis, isto é, a negação do juízo implica no resgate da embriaguez dionisíaca que afasta o dever moral e abre margens para a inocência. Para Nietzsche: O fato de que ninguém mais é feito responsável, de que o modo de ser não possa ser remontado a uma causa prima, de que o mundo não é uma unidade nem como sensorium nem como “espírito”, apenas isto é a grande libertação (grosse Befreiung) – somente com isso é restabelecida a inocência do viraser (Unschuld des Werdens) (GD/CI, Os quatro grandes erros, § 8).

Não havendo mais necessidade de ‘fazer culpados’ se apagam as relações de credor e devedor e, consequentemente, não faz mais sentido emitir julgamentos. Para Stefano Busellato, autor do Capítulo “Nietzsche além do limite de Deleuze: Das Gericht”: “Nietzsche desmascara e, com isso, põe fim ao juízo” (p. 67). Embora presente no mundo da vida em suas mais diversas manifestações, o juízo também é uma construção e, como tal, pode ser desterritorializado e reterritorializado. Disso depende o que Nietzsche mencionou como “grande libertação”, como caminho para o übermensch. Uma construção da realidade aquém do juízo, eis o que propõem os autores do livro em análise, obviamente não se trata da construção de um novo mundo e nem de uma utopia, talvez o seja, mas a efetividade da existência é tamanha que não caberia no espaço de um sonho.

Unificar as cores, os tamanhos, os sentimentos, as virtudes, enfim, igualar as diferenças é um dos fundamentos pelos quais o julgamento se mantém ativo entre os povos. Em prol de seres unívocos e orquestrados pelo dever operam muitas escolas, igrejas, tribunais e tantas outras espécies de instituições mantenedoras dos valores tradicionais que perpetuam o passado indiscriminadamente, como se a certeza do futuro dependesse da reprodução e vivacidade de um passado longínquo, mas ‘glamoroso e glorioso’. Hoje camuflado sobre a falácia da família tradicional, os juízos imperam e se alastram destruindo a diversidade e o poder criativo de novos indivíduos que insistem em resistir em meio a ‘ordem preestabelecida’. Impossível não lembrar a canção de Belchior (1976), que fez sucesso no mesmo ano com a contundente voz de Elis Regina, “Minha dor é perceber que apesar de termos feito tudo o que fizemos, ainda somos os mesmo e vivemos como nossos pais”. Nosso passado por vezes nos condena a repetir e a se sujeitar aos antigos juízos, a vivermos como nossos pais, a repetir e novamente repetir os jargões que nos foram repassados, como se os constantes sonhos do passado nos impedissem de viver. O que, também Belchior, numa contunde crítica ao juízo, imortalizou na canção a premissa “Viver é melhor que sonhar”. Viver versus sonhar: um combate travado pela vida contra o juízo, onde se encontram em relação de tensão o impulso apolíneo em seu estado do sonho e o impulso dionisíaco em seu estado de embriaguez.

Ester Heuser, no Capítulo “Elogio a insônia contra o juízo” (p. 196197), expõe: Se o deus solar comanda o sonho e o tribunal, se ele nos encerra na forma orgânica e limitada, em nome da qual julgamos, Deleuze precisa do notívago Dioniso para dar um fim ao juízo. Mais propriamente da embriaguez dionisíaca que só pode se manifestar por meio do ‘sono sem sonho onde, no entanto, não se dorme, essa insônia que, todavia, arrasta o sonho até os confins da insônia’ (DELEUZE, 1997, p. 148).

O sono sem sonhos ao qual Deleuze se refere possibilita o afastamento dos tribunais, afinal o sonho continua a produzir reflexos do dia que insiste em governar e imperar imagens de domínio sobre a mente, então, mesmo durante a noite o efeito onírico não me afasta de meu ego, me tornando subserviente. A psicanálise ao dar significação aos sonhos, nos torna “outro”, um alguém passível de ser vislumbrado, decodificado e, porque não, aprisionado. Para Heuser (p. 195): “Se durmo e sonho, me aproximo da noite, Reterritorializo o sono e também a mim mesma, já não posso mais dizer ‘eu durmo’, nem mesmo dizer ‘eu’. Não sou eu nem outro, sou uma sonhante que não pode ‘verdadeiramente’ ser”. Romper o efeito onírico do sonho é ser capaz de um “autoesquecimento” derivado de uma negação do sujeito em sua individuação, esse esfacelamento do “eu” é o que Nietzsche chamou de efeito ditirâmbico oriundo da embriaguez extasiante de Dionísio. Para Gonzalo Aguirre, autor do capítulo: “Rumino, ergo cogito: para recuperar cada vez el juicio” (p. 110): “El Organismo passional proprio del Juicio nunca puede alcanzar satisfacción, y lo toma todo com esa insatisfacción persistente que, organizada por uma Gramática de la vigilia, avanza incluso sobre las potencias oníricas”.

Criar mecanismos contra o juízo, que se encontra arraigado até no subterrâneo dos sonhos é tarefa que mobilizou escritores como Kafka. Adriana Dias e Paulo Schneider, autores do capítulo: “Kafka: uma escrivida ‘para dar fim ao juízo’”, assim descrevem o estilo do escritor: “A sua escrita é, de certo modo, como um caco de vidro virado contra si, está virado contra qualquer vontade divina, contra a sua condição judaica, contra o caráter social e familiar, a profissão, a justiça, o casamento” (p. 83).

Este domínio que vai até as zonas mais remotas do universo também encontrou solo fértil no inconsciente, fato percebido por Deleuze e Guattari, que encontraram relações de poder e dominação na relação entre analista e paciente. Assim, o juízo opera soberano exercendo violência física e simbólica contra os corpos, corpos vislumbrados em sua estrutura orgânica, como um todo onde cada parte cumpre uma função em vista de uma finalidade maior. Para opor-se a esta estrutura consciente que visa solapar os limites do inusitado, Deleuze lançará mão, alavancado por Artaud, do conceito de Corpo sem Órgãos, noção explorada por Evânio Guerrezi no capítulo “O caso Artaud: o corpo sem órgãos para acabar com o julgamento de Deus”. Para Artaud, apresentado na segunda parte do livro por Cristiano Bedin da Costa, em “Ainda Artaud”, o corpo sem órgãos é condição para a superação do juízo: “Quando tiverem conseguido um corpo sem órgãos, então o terão libertado dos seus automatismos e devolvido sua verdadeira liberdade” (ARTAUD, 1983, p. 161162).

A questão do juízo psicanalítico é abordada, essencialmente, no capítulo “No teatro do capital o juízo psicanalítico encena um espetáculo trágico”, escrito por Ronaldo dos Santos. O objetivo apontado é situar a psicanálise como “um produto social e historicamente datado, que nasce, desenvolve-se e é posto a serviço do capital como uma das instâncias de elaboração do juízo” (p. 50). Nesse viés, Freud encontrou no elemento trágico de Édipo uma forma de perpetuação da culpa que faz com o que o indivíduo ressentido se curve mediante seu próprio inconsciente, numa sina onde a divida permanece viva e se alimenta da debilidade de um ser incapaz de sanar seus próprios limites: “O paciente deve deixar de culpar os outros pelos seus sofrimentos e imputar a si mesmo a responsabilidade por aquilo que se passa, o ressentimento tornase culpa” (p. 52).

O mea culpa, mea maxima culpa3 faz com que o indivíduo esteja numa condição de vulnerabilidade, a qual só pode ser superada mediante o arrependimento, seguido da penitência e, por fim, do perdão de Deus. A psicanálise segue um rito muito similar: “Em sua interpretação da realidade, a psicanálise aprisiona os indivíduos nos seus dilemas edípicos, distanciando-os dos determinantes históricos e sociais aos quais estão submetidos” (p. 53). Essa situação levará Deleuze à conclusão de que se trata de um sistema alimentado por uma dívida infinita, impedindo o aparecimento de qualquer novo modelo de existência, uma vez que se crê que a natureza humana dispõe de uma universalidade lógica que a rege em padrões e estereótipos que se repetem.

A transcendência dos valores encontra seu modus operandi no juízo, afinal para manter um sistema vertical em funcionamento é necessário algum tipo de pudor que leve os indivíduos a respeitar e manter a engrenagem do sistema. Para sustentar a falácia do juízo é comum a instituição de um telos que fornece sentido aos atos humanos, assim, aparecem o deleite da felicidade, do bem comum, da pátria, do paraíso e de tantos outros universais inventados e que ganham um caráter ontológico de atemporalidade. Enfim, Contra juízo é uma insurreição de resistência contra a transcendência.

Embora o livro não trace um paralelo filosófico direto entre pensadores que defendem uma filosofia transcendente e os herdeiros de Spinoza, o mesmo traz uma grande variedade de discussões sobre a questão da imanência num viés deleuziano. Dada a diversidade de autores e temáticas abordadas, o livro não traz uma reflexão aprofundada de algum autor em específico, fator que dificulta uma análise mais específica do livro.

No entanto, se apresenta como uma excelente ferramenta introdutória a alguns dos principais escritores do pensamento da imanência, além de instigar e resgatar uma contundente discussão sobre a nefasta influência do juízo à existência. Conforme salienta Ester Heuser no final da apresentação da obra: “Com resistência se responde ao que nega a existência”.

Referências

ARTAUD, Antonin. Escritos de Antonin Artaud. Tradução Cláudio Willer. Porto Alegre: LP&M, 1983.

BÍBLIA. Português. Bíblia Sagrada. Tradução do Centro Bíblico Católico. São Paulo: Ave Maria, 1996.

DELEUZE, Gilles. Crítica e clínica. Trad.: P. Pal Pelbart. São Paulo: 34, 1997.

DELEUZE, Gilles. Sobre Nietzsche e a Imagem de Pensamento. In: A ilha deserta e outros textos. Trad.: T. Tadeu e S. Corazza. São Paulo: Editora Iluminuras, 2005.

DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. Mil Platôs: capitalismo e esquizofrenia 2, v. 1. Trad.: Ana L. de Oliveira, A. G. Neto e C. P. Costa. São Paulo: 34, 2011.

NIETZSCHE, Friedrich W. Crepúsculo dos ídolos – ou, como se filosofa com o martelo. Trad.: P. C. de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2006.

Notas

1 ‘Para Luiz Palauro, autor do capítulo “Malditos mestres subversivos: vinde estragar nossos sonhos”: “O Cristo terreno era doce e aristocrata (de alma). O ‘filho do homem’ é expressão do mais alto grau de ressentimento das ralés, tudo nele é vingança, destruição e impotência remoída, o ódio fermentado” (p. 184).

2 A respeito da questão dos impulsos apolíneo e dionisíaco, bem como acerca da questão do elemento trágico em Nietzsche e Deleuze, Contra o Juízo dispõe do capítulo: “Tragédia grega e a doutrina do julgamento”. Escrito por Ana Acom.

3 Na tradição do catolicismo o “ato de contrição” é professado durante as celebrações da missa e é o simbolismo máximo da admissão dos pecados e da abertura do pecador para o perdão divino. Na íntegra: “Confiteor Deo omnipotenti, beatae Mariae semper Virgini, beato Michaeli Archangelo, beato Joanni Baptistae, sanctis Apostolis Petro et Paulo, omnibus Sanctis, et tibi pater: quia peccavi nimis cogitatione verbo, et opere: mea culpa, mea culpa, mea maxima culpa.”  * Mestre em Filosofia pela Universidade Estadual do Oeste do Paraná, Campus Toledo. Professor do Ensino Básico, Técnico e Tecnológico EBTT, do Instituto Federal do Paraná. Email: douglas.meneghatti@ifpr.edu.br

Douglas Meneghatti – Instituto Federal do Paraná, Brasil

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Entre servidão e liberdade – SANTIAGO (CE)

SANTIAGO Homero1 Liberdade
Homero Silveira Santiago. 16 set. 2020. https://www.youtube.com/.

SANTIAGO H Entre servidao e liberdade LiberdadeSANTIAGO, H. Entre servidão e liberdade. São Paulo: Politeia, 2019. Resenha de: OLIVA, Luis César. Entre servidão e liberdade de Homero Santiago. Cadernos Espinosanos, São Paulo, n.42, jan./jun., 2020.

O caminho de um jovem professor e pesquisador depois de seu período de formação (supondo abstratamente que a formação termine com a conclusão das teses de mestrado e doutorado, o que é sabida – mente falso) é sempre sinuoso. Depois de anos regido por um projeto de pesquisa e “vigiado” por agências de fomento, ele se vê dividido em múltiplas tarefas didáticas, administrativas e intelectuais (algumas feitas de bom grado, outras nem tanto) que produzem, na sua obra publicada, uma inevitável impressão de dispersão. De certo modo, é esse percurso fragmentado que Homero Santiago nos traz em Entre Servidão e Liberdade (2019).

Depois de seu mestrado e doutorado sobre Espinosa, ambos revelando um historiador da filosofia de boa cepa, capaz de abordar temas circunscritos e pouco explorados pela tradição interpretativa, mesclando coerentemente rigorosas análises de texto com eruditas considerações históricas, eis que o autor agora deve dividir-se em escritos dos mais diferentes formatos: artigos especializados e para o público geral, traduções, prefácios, resenhas, entrevistas, etc. Ao reunir boa parte deles neste livro, Santiago não esconde a multiplicidade de formas nem a variedade de ocasiões que os motivaram. Porém, se a forma talvez denuncie a dispersão do percurso, o conteúdo a nega, atestando a admirável unidade de pensamento de um filósofo que usou as mais variadas vias de expressão para discutir uma única e fundamental questão: a transição (infelizmente nem sempre de mão única) da servidão à liberdade.

Dividido em cinco partes (e uma introdução que mencionaremos mais tarde), o livro se abre com um notável capítulo sobre a superstição em Espinosa, no qual o autor apresenta uma das mais completas e detalhadas análises já feitas sobre o famoso apêndice da parte I da Ética . Mais do que mostrar a renitência do historiador da filosofia meticuloso, este longo capítulo tem a função de revelar o ponto de vista com o qual Santiago pretende abordar os diversos assuntos presentes no livro. É com lentes espinosanas que o fará, e com atenção específica para o aspecto que talvez afaste Espinosa do outro filósofo que mais marcou o percurso de Santiago e é quase onipresente na etapa final do livro: Antonio Negri. Enquanto Negri, também inspirado em Espinosa, deixa-se levar pelo otimismo dos movimentos multitudinários e dá todo o destaque para a liberdade, Santiago ancora-se na análise espinosana da superstição para dar conta da inegável servidão que nos assola. Ao final do livro, quando Santiago explicitar suas críticas (que não impedem a enorme admiração) a Negri, o leitor perceberá plenamente o quanto era significativo ter no apêndice seu ponto de partida.

O mergulho na servidão, porém, não ocorre sem uma visão da praia. Embora as decepções com o sistema de crenças da superstição não apontem, na letra do apêndice, para uma saída, elas abrem ao menos uma possibilidade, que não será explorada neste texto, mas que remete Santiago a outro de Espinosa, o Tratado da Emenda do Intelecto, onde as decepções com os valores da vida comum nos levam à necessidade de começar a filosofar, ou pelo menos, como dirá o segundo capítulo,

já que os valores são necessários, tratemos nós de forjá-los em vista da alegria e do benefício à vida. Poder fazê-lo talvez seja o mais difícil, mas precisamos fazê-lo. Se não o fizermos, se nos restringirmos ao mais fácil, o preconceito, a tristeza, a superstição e os seus lugares-tenentes o farão por nós (SANTIAGO, 2019, pág. 118).

De um lado, esta surpreendente conclusão nos remete à introdução do livro, onde Santiago usa, também surpreendentemente, Pascal para pensar a transição entre servidão e liberdade. É no interior do determinismo da teologia jansenista da graça que Pascal inventa um sentido para a apologia: é preciso crer que estamos entre os eleitos, assim como os homens que nos cercam, por mais ímpios que sejam, enquanto lhes restar um momento de vida. Para Santiago, ao fazê-lo, Pascal está criando um possível no seio do necessário, e aí se encontra a surpreendente afinidade entre os dois pensadores.

De outro lado, o trecho citado nos remete a outro capítulo funda – mental, em que o que é apenas intuído na teologia de Pascal ganhará clareza conceitual para aplicar-se a Espinosa. A partir de uma engenhosa interpretação do papel da ignorância nas definições de contingente e possível, Santiago encontra para este último um lugar fundamental na ética e na política espinosanas:

o ponto de vista do possível ignora a causa, mas a ignora sobre – tudo porque a considera, ou seja, toma a coisa como tendo causa (…). Com efeito, se possível é aquilo cuja causa é indeterminada, possível é igualmente aquilo cuja causa pode ser determinada; sobre a qual, em suma, pode-se agir, pois o indivíduo se enxerga (correta ou incorretamente) como agente possível de um acontecimento (SANTIAGO, 2019, p. 153).

Sem desconsiderar o fato de que, ontologicamente, só há o necessário, Santiago dá ao possível a realidade de uma tarefa cujo cumprimento é imperioso para o uso da vida. Este capítulo, assim, fecha o bloco mais estritamente espinosano do livro, apresentando tanto a realidade da servidão, quanto a possível porta aberta para a liberdade. Como passar por ela? Eis a pergunta que o restante do livro tentará responder das mais variadas maneiras; nenhuma delas, porém, definitiva. Já chegando à terceira parte do livro, é curioso que o primeiro texto explicitamente dedicado ao pensamento de Negri seja antecedido por um capítulo dedicado a outra notória espinosana, Marilena Chaui. A despeito das diferenças interpretativas dos dois filósofos sobre a obra de Espinosa, a contiguidade dos dois capítulos acaba destacando algo de comum entre eles, e que remete à influência marxista que ambos compartilham: a importância dada à luta de classes. Olhar para os conflitos no interior da sociedade, e não só para a história do Estado, como se este fosse um ente transcendente e causa de si próprio, é uma tônica de vários textos de Chaui. Em Negri, é a partir da análise das lutas operárias que se desenvolverá a apropriação particular que o italiano faz do conceito espinosano de multidão, central em sua filosofia (e também na de Santiago, que com ele pensará, dentre outros temas, junho de 2013). Mas a atenção aos conflitos sociais e a recusa Espinosana da transcendência, comuns a ambos, levarão Chaui e Negri a caminhos diversos. Para Chaui, nas palavras de Santiago, “se a tirania persiste é porque se enraíza na vida social, dela emergindo como efeito que decorre de uma causa e envolve, de alguma maneira, todo o corpo social” (SANTIAGO, 2019, pág. 192). Daí surgirão as reflexões de Chaui sobre Brasil como sociedade autoritária. Seria o lado amargo da multidão? Para Negri, a multidão é o sujeito da práxis coletiva que brota do desejo primordial de libertação, subjacente a todas as carências particulares que aparecem nas lutas sociais. Como explica Santiago:

a noção restritiva de classe sai de cena em benefício de uma noção bem mais ampla, que permite pensar a unidade de todos os explorados em sua própria diferença, sem recurso à tradicional subsunção dessas diferenças à identidade do operário industrial, isto é, o operário-massa. Em segundo lugar, a luta de classes passa a ser considerada como possuindo seu motor no desejo. É a articulação dessas duas inovações que, nitidamente, vai nos direcionando para o conceito de multidão, que ao fim e ao cabo se revelará o único capaz de nomear essa nova classe (SANTIAGO, 2019, p. 212).

Aqui decerto não há lado amargo, mas a lente crítica de Santiago não se furtará ao questionamento óbvio (aliás retomando, por outro viés, o problema da passagem da servidão à liberdade): como pode este conceito fazer-se acontecimento?

A filosofia de Negri será retomada mais à frente, em detalhe. Antes disso, porém, a quarta parte do livro dará lugar a três preciosos ensaios sobre temas recorrentes em nossa realidade social: a polícia e seu pendor à violenta obediência abstrata; o Estado e seu escopo; e final – mente o dinheiro e a liberdade. Todos têm por ponto de partida objetos empíricos particulares, como o colaboracionismo da polícia francesa durante a segunda guerra ou as transformações sociais decorrentes do Bolsa-Família, mas a questão teórica de fundo é a mesma: os conceitos de servidão e liberdade. Ademais, depois da passagem por Chaui e Negri, não poderiam ser mais claras as razões de Santiago para voltar-se para os acontecimentos sociais. As conclusões, porém, são sempre teóricas, e tão surpreendentes quanto (para um leitor atento) coerentes com as bases conceituais estabelecidas nos capítulos anteriores.

Sem entrar em mais detalhes, inclusive para não entregar todas as voltas e reviravoltas ao leitor, cabe destacar mais uma vez a importância deste trabalho nos dias que correm. Útil tanto para especialistas (em Espinosa, Negri, Chaui e até mesmo Pascal e Nietzsche) quanto para o público geral, o livro traz reflexões particularmente vivas quando espasmos autoritários nos ameaçam de longe ou de perto. Embora seja o retrato do percurso intelectual singular de Homero Santiago, Entre Servidão e Liberdade alcança, se não a universalidade, pelo menos a comunidade dos bens que podem ser partilhados.

Referências

SANTIAGO, H. Entre servidão e liberdade. São Paulo: Politeia, 2019.

Luis César Oliva – Professor Universidade de São Paulo. E-mail: lcoliva@uol.com.br

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O mais natural dos regimes Espinosa e a Democracia – AURÉLIO (CE)

Aurélio, D. P. (2014). O mais natural dos regimes. Espinosa e a Democracia. Lisboa: Temas e Debates/Círculo de Leitores. Resenha de: BRAGA, Luiz Carlos Montans. Uma tese radical: Espinosa e a Democracia. Cadernos Espinosanos, São Paulo, n.40, jan./jun., 2019

O termo radical, tal como ética, democracia, política, e tantos outros, pelo excesso de uso e vulgarização demasiada, ao ser trazido à discussão, merece ser precisado, para que, em meio ao caos semântico, inimigo maior da filosofia, signifique algo claro e distinto. De fato, certo senso comum associa a palavra radical àquele que é fundamentalista em algo; em geral, o indivíduo contrário à boa ordem social, aos bons costumes. Porém, o que a expressão deve significar nesta resenha tem a ver com seu sentido etimológico. Ou seja, radical é o que vai à raiz, ao fundamento.

E por que a tese espinosana acerca da democracia, tema protagonista do livro ora resenhado, é radical? Porque ousa ir à raiz ontológica da política, como o belo ensaio de Diogo Pires Aurélio mostra com cuidado demandado por uma filosofia que, durante aproximadamente três séculos, esteve sob a sombra de uma imagem equivocada que dela se produziu. De panteísta que nega a liberdade do homem a pensador maior da política e do direito – em tempos recentes –, o caminho das teses e textos espinosanos é um labirinto cujas primeiras saídas foram encontradas pelos estudos fundamentais de Antonio Negri (1998) 1 e Alexandre Ma – theron (1988) 2, os quais foram aprofundados por outros comentadores de peso, posteriormente, entre os quais, em terras brasileiras, Marilena Chaui (1999, 2003, 2016). Aurélio, é preciso salientar, compõe esta linhagem.

Uma, entre outras muitas, imagem equivocada que sombreou a compreensão das teses espinosanas está condensada no influente verbete Spinoza, de autoria de Pierre Bayle (1696). No verbete, as teses espinosanas são descritas como as de um panteísta e ateu de sistema, filosofia diabólica precisamente por ser de difícil refutação, dada sua costura com as linhas de aço da geometria. A tradição posterior, raciocinando a partir de premissas exteriores às da filosofia espinosana, só poderia, em uma filosofia em que tudo é necessário, encontrar absurdos e contradições insolúveis. De fato, se há apenas uma substância – Deus ou a natureza –, na qual os homens são modos finitos, isto é, intensidades de potência expressas pela substância em sua causalidade imanente e necessária, onde encontrar a liberdade do homem? Em que fissura da causalidade da substância haveria espaço para a ação livre, para o campo da ética e da política? Pois um dos paradoxos quase insolúveis que a tradição de leituras exponenciaria aos comentadores até muito recentemente 3 seria exatamente este: de que fio puxar a ética e a política em uma filosofia da necessidade? Em uma palavra: se tudo é determinado, resta saber qual a liberdade possível. Ou, de outro ponto de vista, como passar do infinito positivo da substância eterna aos modos finitos das existências dos homens sem compreender estes últimos como meros epifenômenos de Deus? Estas imagens acerca do autor influenciaram, por exemplo, Voltaire, passando por Hegel e, em paragens brasileiras, chegaram a Machado de Assis (2009, p. 242) em seu poema dedicado a Espinosa – e tiveram ainda fôlego largo durante o século 20. Quanto a Machado de Assis, o Espinosa que tinha em mente seria, eis uma hipótese, o do verbete de Bayle, a saber, o panteísta.

O que o belo ensaio de um dos mais eruditos e eminentes estudiosos contemporâneos de Espinosa mostra é precisamente a ligação radical entre ontologia e política. Daí, talvez, a importância maior de Espinosa em tempos opacos como os que se desenham. Se a ciência política de corte formal não diz muito sobre a política atual, talvez seja porque não tenha lentes para tanto. E Espinosa bem pode ser, tantos séculos depois, se bem desvendado e comentado, uma dessas lentes. Permite, por exemplo, para ir ao título do ensaio que ora se resenha, que se possa dizer, acerca da democracia, que não é o “menos mau dos regimes”, mas “o mais natural” (Aurélio, 2014, p. 9). Mudança aparentemente banal, mas que traz à cena algo esquecido das discussões políticas que mais têm mídia, a saber, a natureza humana. Espinosa, pela pena de Aurélio, é trazido à cena para que mostre exatamente sua inovação fundamental no campo da filosofia política, isto é, declarar, a partir de um ponto de visto ontológico, o encaixe preciso entre a natureza humana e este regime político, tão celebrado nos belos discursos de retórica vazia quanto aviltado em seu exercício. A democracia que se proclama como tal em discursos pomposos, com seus formalismos vazios e malandros – pois fintam o conceito para lhe retirar o que tem de substantivo –, não ousa ser radical como a proposta por Espinosa. Não ousa ser ontologicamente fundada.

O livro é uma reunião de ensaios – uns já publicados outros agora republicados com acréscimos e, ainda, alguns inéditos, apresentados, até o momento, apenas sob a forma de conferências –, os quais formam, segundo o autor, não um conjunto esparso de textos, mas um todo coerente, alinhavado (Aurélio, 2014, p. 11). São três as partes do livro, somadas a uma “Introdução”, cujo título aguça a curiosidade: Espinosa, Marx e a democracia . O que haveria de comum entre Marx e Espinosa? Muita coisa, como o leitor poderá ver, e das quais esta resenha adianta uma apenas: a tese de Marx, que ecoa ideias espinosanas, e projeta a democracia “para além da tradicional questão dos regimes políticos” (Aurélio, 2014, p. 34), para afirmá-la como “horizonte de refundação permanente do demos, quer fazendo alastrar o princípio da soberania popular a todas as esferas da sociedade, quer resistindo à tendência do poder para se impor como fecho absoluto e se tomar pela totalidade social” (Aurélio, 2014, p. 34). Eis a iguaria fina que o autor serve ao leitor como entrada ao livro. A primeira das três partes que seguem, por sua vez, é baseada na “Introdução” de Aurélio ao Tratado teológico-político (TTP), por ele traduzido e publicado no Brasil pela editora Martins Fontes (2003). Intitula-se TTP : Genealogia do Poder . Nesta parte, os temas próprios ao TTP são trabalhados com a minúcia de quem estuda Espinosa há muitos anos. Ou seja, a questão da profecia, das leis, do fundamento do Estado, do direito natural e sua permanência no estado civil, da liberdade de expressão como um dos pilares de uma república bem constituída, etc. A segunda parte tem como título “O império das paixões”, composta por Capítulos que tratam de temas especificamente políticos em Espinosa. Uma das teses de Aurélio nesta parte, muito recente e atual, analisada em filigrana, é a da relação imbricada entre afetos e política. A terceira e última parte, nomeada “ TP : Da multidão ao poder”, sistematiza esses temas políticos e lhes dá acabamento. Tal parte foi originalmente publicada como “Introdução”, escrita por Aurélio, à sua tradução do Tratado político (TP) 4, no Brasil publicada também pela editora Martins Fontes (Espinosa, 2009).

O livro traz como questão mais aguda a democracia em Espinosa, isto é, a inovadora visão do filósofo acerca do tema. Curiosamente, ainda que já explícito no TTP como o mais natural dos regimes, por ser aquele que mais satisfaz a natureza humana de potência para perseverar no ser, não pôde ser desdobrado no TP, Capítulo XI, dedicado precisamente à democracia e não concluído pelo autor em razão de sua morte. A questão a democracia em Espinosa, na verdade, ainda é um problema a ser investigado pelos comentadores. Tal problema é levantado por Aurélio no momento em que indaga como seria este regime quanto às instituições. É possível dizer que o essencial da democracia já estaria nos demais textos de Espinosa? Uma passagem do “Prefácio” do livro dá pistas do projeto espinosano quanto ao tema:

Entre governantes e governados há sempre uma brecha, uma feri – da permanente […]. O que distingue a democracia dos outros regimes é o facto de, por definição, ela contrariar a cicatrização dessa ferida, evitar que a desigualdade se instale como natural, mantendo acesa, […] a ideia de um querer da totalidade, que está na origem e é fundamento de todo o poder. Reside aí o projeto de Espinosa. Reside aí, porventura, a sua atualidade (AURÉLIO, 2014, p. 10)

O livro de Aurélio cuidará de desdobrar este projeto, não obstante o não findo Capítulo XI do TP – aliás, quanto a este tema, o autor expõe sua posição, bem como a de outros comentadores, como Antonio Negri (1985) 5 e Étienne Balibar (1985), os quais igualmente transitaram pela questão. Mas onde está, mais precisa e analiticamente, a radicalidade de Espinosa, apontada no início desta resenha? Aurélio a desdobra, e ela consiste no seguinte: a rigor, não há seres isolados, indivíduos – humanos ou não–, isolados. Quanto aos homens, são indivíduos constituídos por outros indivíduos, formando uma totalidade complexa. Nas palavras do autor: “O indivíduo é sempre um ser coletivo e complexo, um aglomerado de partes cujas naturezas se conjugam momentaneamente num todo em que as forças de sinal positivo, que tendem a preservá-lo na existência, são superiores às de sinal negativo, que tendem a desagregá-lo.” (AURÉLIO, 2014, p. 36). Tais indivíduos, humanos ou não, são modificações finitas da substância absolutamente infinita, a qual é o ponto fundante da ontologia espinosana. O que vem a seguir é que amarra a política, que lida com o poder, à ontologia espinosana. Escreve Aurélio, para concluir o desenho da tese que será protagonista de muitas páginas do ensaio: “É esta a ontologia, desenvolvida nas duas primeiras partes da Ética [cujos temas são, respectivamente, De Deus e Da natureza e origem da mente ], que serve de fundamento à antropologia e à política de Espinosa.” (AURÉLIO, 2014, p. 34). Ontologia uma vez que os homens, como modificações da substância única (Deus, ou seja, a natureza), modos finitos do pensamento e da extensão, intensidades parciais de potência advindas da potência absoluta, apenas se constituem como tal em razão e como partes desta potência fundante do real, eterna e infinita, causa sui (causa de si). Tese magistral, com desdobramentos em campos vários, ao amarrar uma teoria do ser à política, à ética e ao direito, sem olvidar as variações de potência próprias aos humanos, a saber, os afetos, derivando daí o fundamento dos corpos políticos e a tese relevante e inovadora do direito natural como prevalecente no estado civil, o qual é criado para preservá-lo. Vários conceitos se apresentarão como importantes à compreensão do mecanismo da política, desvelando e desenvolvendo a tese inicial da democracia como o mais natural dos regimes uma vez que, potência que são, os homens desejam governar e não ser governados.

Em vez de analisar cada passo da longa cadeia argumentativa do autor em cada parte do livro, o que tornaria esta resenha muito longa e talvez enfadonha, opta-se por analisar, a seguir, dois ou três fios que se ligam à tese geral do livro, explicitada nas linhas acima. No interior do tema geral Aurélio introduz uma série de autores cujos conceitos são postos a dialogar com os espinosanos, a se afastar ou se aproximar deles. Eis alguns desses movimentos, a seguir.

Maquiavel é um autor com o qual Espinosa dialoga explicitamente. Chama-o agudíssimo no TP (ESPINOSA, 2009, TP, v, 7, p. 46) 6 e o pressupõe em várias passagens. Este é um tema que Aurélio desdobra com maestria, a saber, o Maquiavel latente, bem como o explícito, que há nas análises da filosofia política espinosana. Há várias e elucidativas páginas acerca das semelhanças e diferenças entre os autores. Dentre as semelhanças, Aurélio chama a atenção para o fato de que ambos dão à multidão uma importância política significativa. Maquiavel teria sido o primeiro autor da filosofia política, e durante séculos o único, a pôr “em causa a imagem negativa vulgarmente associada à multidão” (AURÉLIO, 2014, p. 370). E, ademais, ela é capaz de ser politicamente mais sábia e estável que o príncipe, tese de Maquiavel presente nos Discorsi (MAQUIAVEL, 2007 D, I 58, pp. 66-172) 7 e n’ O Príncipe (MAQUIAVEL, 2017, p. IX, pp. 147-151) 8 . Para Espinosa, por seu turno, a liberdade política dos súditos-cidadãos, no estado civil, para dizer de modo sumário, tem como fiadora a multidão, tese presente em vários momentos do TP.

O Maquiavel dos Discorsi – bem como o de O Príncipe –, afirma Aurélio, explicita a tese da positividade da multidão e Espinosa a recupera e endossa, ao seu modo (AURÉLIO, 2014, p. 370 e seguintes). Não casualmente a multidão terá papel fundamental na argumentação exposta no TP, e o termo aparecerá várias vezes no correr do texto. Ela é o fundamento de uma república bem instituída e, nesse sentido, é a protagonista maior da política.

Há outro ponto de encontro entre os autores, a seguir apenas indicado, o qual é analisado por Aurélio:

Considerar, pois, a natureza como horizonte inultrapassável do político significa integrar o político num horizonte de conflitualidade e contingência, onde não obstante os homens se unem de forma mais ou menos duradoira, consoante os afetos comuns que estabilizam e predominam em dado momento. É aí, nesse preciso horizonte, que Espinosa se encontra com Maquiavel (AURÉLIO, 2014, p. 381).

Não aparece no livro ora resenhado, mas em outro estudo de Aurélio, uma diferença entre ambos que é digna de nota. Trata-se do fato de que em Maquiavel predominam os exemplos históricos que levam às teses políticas, ao passo que em Espinosa existe uma ontologia de fundo que informa e dá sustentação aos conceitos políticos. Tal tema se apresenta quando o autor analisa o conceito de virtude em ambos.Afirma Aurélio:

[…] as ocorrências do termo ‘virtude’ no TP adquirem um alcance completamente diferente do que possuiriam quando encaradas apenas como um reflexo da leitura de Maquiavel. À superfície, haverá, com certeza, alguma coincidência: […]. Tanto Maquiavel como Espinosa rejeitam a tese ciceroniana, geralmente aceite, segundo a qual a conveniência ou utilidade e a rectidão moral seriam inseparáveis [Cícero, De Officiis, II, III, 9, ed. The Loeb Clasical Library, 1970, p. 176 ]. Mas o primeiro chega a essa conclusão com base apenas num cotejo da experiência e da história, chamando a atenção para aqueles a quem a glória bafejou no passado, apesar de se lhe imputarem actos criminosos. […] Espinosa, raciocinando embora a partir de idêntica integração do indivíduo na trama de relações em que os seus actos ganham significado e podem ser valorizados, transfere, no entanto, o problema para a sistematicidade de uma ordem ontológica onde o confronto entre razão moral e razão política é subsumido (AURÉLIO, 2000, pp. 84 – 85).

Outro autor que surge no ensaio, em muitos momentos como contraponto às teses espinosanas, é Hobbes. Espinosa possuía um exemplar do De Cive em sua biblioteca pessoal, e Hobbes é um autor cujas ideias foram amplamente debatidas no período maduro de Espinosa. Espinosa o leu, é certo, e na famosa Carta 50 afirma o que o diferenciaria do autor Inglês. Esse é um mote fortíssimo, muito bem analisado por Aurélio precisamente para desdobrar as diferenças entre ambos. Uma hipótese que aqui se levanta é: os conceitos contidos e pressupostos na filosofia política hobbesiana podem ser considerados vencedores na história das ideias, ao passo que os espinosanos ficaram nas sombras por muito tempo. Por exemplo, Aurélio desenvolve muito bem o tema da representação em Hobbes, bem como o do contrato, para mostrar como Espinosa propõe algo muito diverso. Em muitas passagens do ensaio, ambos são comparados para que se possa ver com maior clareza e distinção o que os une – temas comuns – e, especialmente, o muito que os separa.

O Capítulo VIII, constituinte da Segunda Parte do livro, pode dar margem a sadias polêmicas. Nele, Aurélio propõe uma aproximação entre Kelsen e Espinosa, especialmente quanto aos temas da norma jurídica e do Estado. Entre outras passagens ricas e ousadas, o autor escreve: “Se o analisarmos a partir desse seu caráter de absoluta imanência, não é difícil ver no Estado kelseniano um eco do imperium espinosano.” (AURÉLIO, 2014, p. 283). Tese tão ousada quanto, ao ver deste resenhista, de difícil sustentação. Pois se Espinosa propõe uma explicação da política fundada em redes de afetos e de potência – procurando, no limite, a sustentação real do direito natural de cada súdito-cidadão no estado civil –, Kelsen está muito mais preocupado com a fundação de uma ciência do direito que seja autônoma – ao menos é este o projeto de sua Teoria Pura do Direito (1998), obra na qual estão condensadas muitas de suas principais teses acerca do direito. E se é certo, como afirma Aurélio, que Kelsen é um crítico das doutrinas clássicas do jusnaturalismo – o mesmo se poderia dizer de Espinosa –, em nenhum momento, salvo melhor juízo, argumenta a favor de um direito que se identifique a potência. Ao invés, está sempre na chave do direito como dever-ser e na proposta de um direito que possa ser objeto de ciência autônoma, com objeto próprio, a saber, as normas validamente postas e constituintes do ordenamento jurídico. Espinosa parece estar em trilhos muito diversos. Veja-se sua tese da identificação do direito à potência, bem como a de que o direito do Estado tem seu fundamento na potência da multidão – conceito este, o de multidão, em que o tema dos afetos se apresenta como um dos pilares explicativos de sua constituição. Ora, esses temas não são objeto dos textos de Kelsen. Porém, o brilho do ensaísta está precisamente em desenvolver uma argumentação tão cerrada e tão convincente que faz o leitor pensar à revelia de suas convicções, a contrapelo de si mesmo – tarefa da filosofia. Eis um ponto a ser ressaltado, neste e em outros Capítulos: Aurélio ousa levar sua pena e seu talento ensaístico a territórios pouco frequentados.

A discordância acima indicada é bastante pontual e lateral. Com efeito, o fio principal do texto – e as análises de Aurélio – pode ser resumido como um brilhante e erudito ensaio acerca do mais natural dos regimes, a democracia, a tese radical de Espinosa. Neste ensaio de Aurélio, Espinosa é apresentado como filósofo num dos sentidos originais da ex – pressão, ou seja, o que leva à verdade como alétheia [ αλήθεια ], isto é, desvelamento ou desocultamento. Na filosofia política que propõe o autor holandês, e que Aurélio apresenta tão bem, há reviravoltas conceituais que levam à constituição de lentes polidas com extrema precisão. Espinosa faz o leitor que se apropria de seus conceitos enxergar o que antes era opa – cidade. E Aurélio é excelente mapa para o território da filosofia política espinosana – antes que escureça! Uma resenha deve insinuar coisas interessantes sem mostrar o essencial. Espera-se que o intento tenha sido alcançado, ou seja, que este texto seja convite ao leitor para palmilhar com a velocidade lenta da filosofia a bela geografia conceitual criada por Aurélio.

Notas

1 A primeira edição de L’anomalia selvaggia : potere e potenza in Baruch Spinoza é de 1981 .

2 Que é uma reimpressão do texto de 1969 (Matheron, 1988, p. I).

3 Como indicado acima, uma das primeiras leituras que rompe com este estado de coisas é a de Matheron, de 1969 (Matheron,1988), e depois a de Negri, publicada pela primeira vez em 1981 (Negri, 1998) .

4 Agraciada, em 2009, com o prêmio de Tradução Científica e Técnica em Língua Portuguesa, atribuído pela União Latina em parceria com a Fundação para a Ciência e Tecnologia de Portugal.

5 Traduzido no Brasil em: Negri, A. (2016). Espinosa subversivo e outros escritos. Tradução de Herivelto Pereira de Souza. São Paulo: Autêntica, pp. 46 – 85.

6 Em romano o capítulo, em arábico o parágrafo -Espinosa, 2009.

7 Em romano o Livro, em arábico o Capítulo – Maquiavel, 2007.

8 Em romano o Capítulo – Maquiavel, 2017

Referências

AURÉLIO, D. P. (2000). Imaginação e Poder: Estudo sobre a Filosofia Política de Espinosa. Lisboa: Edições Colibri.

_______. (2014) O mais natural dos regimes. Espinosa e a Democracia. Lisboa: Temas e Debates/Círculo de Leitores.

ASSIS, M. (2009). A poesia completa de Machado de Assis. Rutzkaya dos Reis (Org.). São Paulo: Nankin/Edusp.

BALIBAR, E . (1985) Spinoza et la politique . Paris: puf .

BAYLE, P . (1696) Dictionnaire historique et critique. Article Spinoza . Disponível em: < http://www.spinozaetnous.org/telechargements/Commentaires/ Bayle/Bayle_Spinoza.pdf >. Acesso: 15 dez. 2017.

CHAUI, M . (1999) A nervura do real: Imanência e liberdade em Espinosa. Vol. I : Imanência. São Paulo: Companhia das Letras.

_______. (2003) Política em Espinosa . São Paulo: Companhia das Letras.

_______. (2016) A nervura do real : Imanência e liberdade em Espinosa. Vol. II : Liberdade São Paulo: Companhia das Letras.

ESPINOSA, (2003) Tratado teológico-político .Tradução de Diogo Pires Aurélio. São Paulo: Martins Fontes.

_______. (2009) Tratado político. Tradução de Diogo Pires Aurélio. São Paulo: Martins Fontes.

KELSEN, H. (1998) Teoria pura do direito. Tradução de João Baptista Machado. São Paulo: Martins Fontes.

MAQUIAVEL, (2007) Discursos sobre a primeira década de Tito Lívio . Tradução MF . São Paulo: Martins Fontes.

_______. (2017) O Príncipe. Tradução de Diogo Pires Aurélio. São Paulo: Editora 34.

MATHERON, A. (1988) Individu et communauté chez Spinoza . Paris: Les Édi – tions de Minuit.

NEGRI, A . (1998) L’anomalia selvaggia : potere e potenza in Baruch Spinoza (publicado com Spinoza Sovversivo e Democrazia Ed eternità in Spinoza). Roma: DeriveApprodi.

_______. (1985) Reliquia desiderantur: congettura per una de fi nizione del concetto di democrazia nell’ultimo Spinoza. In: Studia Spinozana I, n. 8, pp. 143-181.

Luiz Carlos Montans Braga – Professor Universidade Estadual de Feira de Santana. E-mail: lcmbraga@usfs.br

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Spinoza como educador – RABENORT (CE)

RABENORT, William. Spinoza como educador. Pref. Juliana Merçon; introd. Trad. Bras. Fernando Bonadia de Oliveira; tradução para o português GT Benedictus de Spinoza; coordenação Emanuel Angelo da Rocha Fragoso/Francisca Juliana Barros Sousa Lima. – 1.Ed. – Fortaleza: EdUECE, 2016. Cadernos Espinosanos, São Paulo, n.38, jan./jun., 2018.

O mesmo interesse pedagógico despertado pela filosofia de Espinosa na primeira década do século passado, período em que William Louis Rabenort publica “ Espinosa como educador ”(Spinoza as educator), reaparece aqui no Brasil no presente momento. A tradução realizada pelo Coletivo GT Benedictus de Spinoza, sob a coordenação do Prof. Emanuel Angelo da Rocha Fragoso e da Profa. Francisca Juliana Barros Sousa Lima, tem como objetivo reconstituir esse primeiro encontro das ideias de Espinosa com o campo da educação. É bem verdade que o filósofo do “infinito atual” ou do Deus sive Natura desperta um interesse mais pela profundidade e rigor de sua ontologia e a agudeza de sua análise política, do que propriamente de sua relação com a pedagogia ou escritos sobre a educação. Entretanto, é a própria filosofia de Espinosa que nos faz perceber que essas divisões de ciências ou saberes, na verdade, não se põem. Tudo o que existe, existe necessariamente e todas as relações existentes se conectam e se interconectam umas às outras, num turbilhão de causalidade que tem como único fundamento a substância absolutamente infinita. Sendo assim, se a educação não pode ser pensada sem relacioná-la à política, por que não pensar estes campos do conhecimento imersos numa ontologia do necessário? A maestria com que Rabenort conduz o leitor, interconectando a ontologia, a política e a educação em Espinosa, faz do seu livro uma obra necessária para os professores de filosofia e pedagogos repensarem os caminhos da educação. A tradução de Rabenort que vem a lume, e que tem como objetivo essencial contribuir para a elaboração de uma teoria da educação em Espinosa, talvez seja o início da percepção da importância da sua filosofia também para os educadores.

Em seu primeiro capítulo, intitulado “A possibilidade da Educação”, Rabenort confessa que em suas obras Espinosa não se preocupou explicitamente nem com a educação nem com as crianças. Entretanto, Rabenort chama a atenção para o fato de que a educação precisa ser pensada num âmbito maior que aquele circunscrito pela infância: “A educação é mais ampla do que a infância e o interesse de Espinosa deve ter sido pelos adultos.” (Rabenort, 2016, p.65 66). Não seria mais coerente educar os adultos para que posteriormente houvesse a possibilidade de os adultos educarem as crianças e jovens? Apesar de afirmar a incapacidade do vulgo para questões filosóficas, Rabenort nos convence de que Espinosa atesta a possibilidade de educação pela relação que manteve com seus amigos e correspondentes. É através da atitude pessoal do filósofo que podemos perceber a importância da educação implicada em seu sistema filosófico, já que Espinosa não deu um tratamento sistemático ou explícito para a educação.

Na filosofia de Espinosa os conceitos de necessidade e impossibilidade têm um significado universal, pois eles se aplicam a Deus e ao todo da natureza na qual o homem é apenas uma partícula. Sendo assim, é através dos conceitos de possibilidade e contingência, que possuem significado apenas para a existência humana, que devemos pensar a possibilidade de educação do homem numa doutrina construída a partir da ideia de necessidade: “A educação, até agora, está posta além da interferência humana. O professor deve ir com a maré, cujo fluxo é determinado pela configuração do universo” (Rabenort, 2016, p. 79). Visto que a capacidade de conhecimento do homem é limitada, o conhecimento absoluto e eterno é contrário à natureza humana.

No segundo capítulo, intitulado “Os elementos da Natureza Hu mana”, Rabenort introduz o leitor aos principais conceitos de Espinosa em relação ao lugar dos seres humanos como parte da Natureza sujeitos às leis de causa e efeito. Ele esclarece como são definidos os conceitos de essência, existência, causalidade, substância, atributos, a relação entre a mente e o corpo, além de enfatizar a importância que o corpo possui na filosofia espinosana destacando sua concepção de imaginação, memória e modos de conhecimento. Diferentemente de toda a tradição filosófica, para Espinosa não há abismo entre a mente e o corpo: ambos são a expressão de atributos que são diferentes mas que constituem a essência de uma mesma substância, isto é, Deus.

No terceiro capítulo, intitulado “A supremacia do intelecto”, Rabenort realiza o estudo da atividade natural do pensamento, a maneira como ele opera e a relação do pensamento com o seu objeto e conteúdo. A complexa teoria do conhecimento em Espinosa é analisada em sua distinção entre ideias adequadas (razão/intuição) e as ideias inadequadas (imaginação). O pedagogo enfatiza a importância da formação das noções comuns em Espinosa como base do raciocínio de todos os homens, visto que tais noções integram dentro de seu sistema o limiar entre imaginação e razão. Sem dúvida, na filosofia de Espinosa há uma semelhança entre raciocínio e causalidade, pois “nomear uma causa é oferecer uma razão” (RABENORT, 2016, p. 136) . A experiência nos fornece o conhecimento das coisas finitas existentes enquanto a razão faz perceber as coisas sub quadam species eternitatis .

O quarto capítulo é dedicado a pensar “As complicações de personalidade” que, segundo Rabenort, constituem a base da teoria política de Espinosa. Como bem analisa em seu livro, as diferenças de personalidade entre os homens são causadas por causas externas, as quais modificam seus respectivos desejos, já que estes são a essência do homem. Assim, a composição das forças externas que moldam a afetividade e que causam as diferenças de personalidade e disputas entre os homens prejudicam a possibilidade de sua união. Entretanto, Espinosa concorda com a definição de que o homem é um ser social, visto que a teoria educacional implícita na obra de Espinosa nos conduz à percepção de que nada é mais útil ao homem do que outro homem. Tanto a política quando a educação devem nos conduzir a essa compreensão: “o homem é um Deus para o homem”.

É apenas no último capítulo, “Os critérios da educação”, que Rabenort analisa de fato o problema da educação na filosofia de Espinosa. Pelo fato do homem ser um membro da sociedade, ele não existe isoladamente, mas em cooperação e harmonia com outros como ele. Rabenort propõe a tese de que Espinosa foi verdadeiramente tanto um professor quanto filósofo. É através da distinção entre experiência e razão, como duas formas de consciência, que podemos classificar o processo educacional em Espinosa. A base do currículo seria composta pela prioridade que Espinosa outorga aos dois itens da experiência: as relações sociais e a preservação da vida e da saúde. A habilidade política é entendida como o primeiro desejo que a educação deveria estimular. Porém, o curriculum, propriamente dito, é o próprio professor, pois ele tem a aptidão em auxiliar os homens para o exercício de seu poder racional: “O professor é a pessoa a quem é delegada, em razão da aptidão especial para a tarefa, a função da sociedade, que consiste em ajudar os homens a exercerem o seu poder de forma racional” (Rabenort, 2016, p. 186 – 187) . Apenas o conhecimento da experiência não é suficiente para tornar o homem consciente de si, será necessário conduzir os homens ao entendimento da união que existe entre a mente e a natureza inteira. Como vimos, o homem possui naturalmente a predisposição para a sociabilidade e desenvolvimento da razão; sendo assim, o professor deve apenas desenvolver o fortalecimento que a certeza racional pode proporcionar. Rabenort alerta que tanto a razão quanto a intuição (insight), embora também envolvam cooperação, devem ser o exercício da energia humana autoiniciada e autocontrolada: “A educação, para merecer esse nome, deve ser autoeducação (self-education).” (Rabenort, 2016, p. 201) . Portanto, o obra de Espinosa contempla a atividade essencial da educação que nada mais é do que o ensinar e o aprender entre homens que se dedicam ao conhecimento da Natureza. Numa sociedade em que os homens cada vez mais desenvolvem aversão à política e a desvalorização dos professores, esta obra torna-se fundamental.

Referências

RABENORT, William (2016). Spinoza como educador. Pref. Juliana Merçon; introd. Trad. Bras. Fernando Bonadia de Oliveira; tradução para o português Coletivo GT Benedictus de Spinoza; coordenação Emanuel Angelo da Rocha Fragoso/Francisca Juliana Barros Sousa Lima. – 1. Ed. – Fortaleza: Eduece, 2016.

Juarez Lopes Rodrigues – Doutorando Universidade de São Paulo. E-mail: juarez.rodrigues@usp.br

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A nervura do real. Imanência e liberdade em Espinosa, volume 2 – CHAUI (CE)

CHAUI, Marilena. A nervura do real. Imanência e liberdade em Espinosa, volume 2. São Paulo: Companhia das Letras, 2016. Resenha de: OLIVA, Luís César; LACERDA, Tessa Moura. Cadernos Espinosanos, São Paulo, n.36, Jan./Jun. 2017.

O lançamento do segundo volume de A nervura do real: imanência e liberdade em Espinosa, de Marilena Chaui, conclui um processo de análise e exposição sistemática da filosofia de Baruch de Espinosa, em especial de sua obra maior, a Ética, processo que se confunde com a própria trajetória da Marilena Chaui como docente do Departamento de Filosofia da USP e uma das mais importantes intelectuais brasileiras das últimas décadas. Dedicando-se à pesquisa sobre Espinosa desde os anos 60, Chaui defendeu sua livre-docência, em 1977, já com o título de A nervura do real, um calhamaço em dois volumes que representava, naquele momento, o principal trabalho sobre Espinosa feito em língua portuguesa. Chaui, no entanto, não a publicou de imediato, apesar dos insistentes apelos dos colegas e alunos. Para a autora, faltava ao “tijolo” uma reflexão mais detalhada sobre o quadro amplo da história da filosofia diante do qual a revolução espinosana ficaria mais evidente e compreensível, além de uma análise mais detida da parte i da Ética, que contém os fundamentos ontológicos do sistema.

O que para outros intérpretes poderia ser uma curta introdução histórica transformou-se em um novo livro, de quase mil páginas, reconstruindo não só as referências históricas de Espinosa, mas todo o percurso do espinosismo depois da morte de seu autor. Ao final, coroava o livro uma análise linha a linha da parte I da Ética, cuja solidez e densidade não tem paralelo na literatura internacional. Foi o primeiro volume da Nervura do real, dedicado à imanência, e publicado em 1999. O longo intervalo de 22 anos entre a tese de livre-docência e esta publicação foi marcado por inúmeros outros livros, especialmente sobre o Brasil, mas a reflexão espinosana em curso sempre norteou os escritos de Marilena Chaui, em temas tão variados quanto ideologia ou repressão sexual, o combate à ditadura civil-militar ou o ensino de filosofia. Em todas estas obras, o leitor atento pode encontrar A nervura do real em gestação, ou melhor, em operação.

Feito esse imenso trabalho, a própria autora acreditava que o segundo volume previsto sairia mais rapidamente, até por ser uma retomada da tese de livre-docência, dedicada sobretudo à liberdade. Todavia, aos 22 anos de espera pelo primeiro volume, somaram-se outros 17 para o segundo. A conclusão da obra não aproveitou praticamente nada da antiga livre-docência, integralmente reescrita. Nem poderia ser diferente, considerando que 39 anos de reflexão espinosana, vivência em sala de aula e muitas lutas políticas separam a antiga tese deste novo volume que recentemente chegou a nossas mãos. Os leitores não perceberão apenas o avanço interpretativo em relação à tese original, mas também uma expressiva mudança de tom em comparação com o próprio primeiro volume. Enquanto naquele Marilena Chaui antepunha à apresentação de cada noção espinosana uma larga reconstituição histórico-conceitual, em uma empreitada de imensa erudição, no segundo volume a autora permite-se uma análise mais circunscrita ao texto de Espinosa. Parafraseando a própria autora, enquanto o primeiro volume foi uma discussão com toda a história da filosofia, o segundo volume é uma conversa entre ela e Espinosa. Isto dá ao livro uma fluência que o torna acessível a uma ampla gama de leitores, incluindo aqueles que tenham pouco contato prévio com a filosofia espinosana. No fluxo desta conversa, densa mas extremamente agradável, Chaui conduz o leitor pela integralidade das partes II, III, IV e v da Ética, considerando-se que a parte I já fora sufi – cientemente destrinchada no primeiro volume. Os atuais e antigos alunos reencontrarão nesta escrita muito do ritmo cativante – e ao mesmo tempo conceitualmente rigoroso – das aulas de Marilena Chaui dadas na USP e em outras universidades do Brasil e do mundo.

A fluência do texto, porém, não nos deve enganar. Os desafios propostos pelo livro são de monta e implicam discussões conceituais de extrema sofisticação, frequentemente em oposição à quase totalidade da crítica especializada. Talvez o principal destes desafios já se apresente na primeira parte do livro: a imensa tarefa de demonstrar, contra uma longa tradição de interpretação, a existência de seres singulares na filosofia da substância imanente espinosana. Contra essa tradição interpretativa que remonta ao século XVII, e que a autora denominara, no primeiro volume, “a imagem do espinosismo”, cabe a Marilena Chaui desmontar a falsa aporia que diz ser impossível o singular em uma filosofia na qual só há uma substância.

Esse trabalho é um trabalho espinosano: como Espinosa, Marilena desconstrói o discurso cristalizado e, ressignificando as palavras, mostra como a existência de seres singulares é efeito de uma dupla causalidade, a causalidade da substância e a causalidade da Natureza naturada. Como efeitos determinados em uma complexa rede causal, os seres singulares não existem necessariamente por sua própria essência, mas sua existência é necessária pela causa.

Ora, uma vez afirmada essa necessidade da existência do suingular, coloca-se a segunda questão do Nervura II: é preciso demonstrar como necessidade não se opõe a liberdade. Ser livre, para Espinosa, é ser uma causa não passivamente determinada pelo exterior, mas internamente disposta. É tomar parte na atividade do todo. A concepção que relaciona liberdade e livre-arbítrio é uma concepção imaginária da liberdade. Para demonstrar a existência de coisas singulares que podem ser causas livres, Marilena Chaui inicialmente percorre as obras de Espinosa para mostrar a presença do singular em todas elas. No Tratado da emenda do intelecto, Espinosa afirma que, diferente da razão, a imaginação lida com coisas singulares corporais, e o intelecto lida com as essências das coisas singulares. A imaginação organiza essas coisas singulares como ideias obscuras ou universais abstratos. Mas o intelecto é capaz de conhecer a essência particular afirmativa e, por meio dela, a coisa particular .

Essas afirmações do Tratado da emenda operam em outras obras. No Tratado político, Espinosa afirma que os regimes políticos distinguem- se não da maneira clássica pelo número de governantes, mas porque são essências particulares determinadas: sua causa é o direito natural particularizado pelas relações de força e potência da multitudo (agente político). No Tratado teológico-político, Espinosa trata da essência particular do Estado hebraico, um regime político existente na duração, unindo geometria e um método histórico. O Estado hebraico é uma coisa singular . Sua essência é uma singularidade historicamente determinada. E a Bíblia, por sua vez, é uma singularidade que existe como efeito de uma causa singular, a  sociedade hebraica. Essa análise do Tratado político e do Tratado teológico-político permite, a Marilena Chaui, distinguir no interior da obra de Espinosa essência particular e essência de coisa singular : a  essentia particularis é “o momento em que uma ideia apreende a conexão lógica entre uma essência e suas determinações ou propriedades” (Chaui, 2016, p.32) e a essentia rei singularis é “empregada para assinalar a relação interna entre uma essência e sua existência” (Chaui, 2016, p.32). Essa distinção existe também na Ética: na parte i, os modos da substância são coisas particulares ; na parte II a mente, modo do atributo pensamento, é uma coisa singular, o corpo, modo do atributo extensão, é uma coisa singular . A coisa singular é um modo singular .

As partes I e II da Ética, nas palavras de Marilena Chaui, são um díptico. Assim, a parte I demonstra a existência do que é necessário por sua própria essência, a Natureza naturante e a Natureza naturada. A parte I I, como segundo pano do díptico, concentra-se na Natureza naturada para deduzir a existência dos modos finitos, necessário não por sua própria essência, mas pela sua causa. Por isso, na parte I, por meio da causa de si, Espinosa demonstra a identidade entre essência e existência em Deus; na parte I I, por sua vez, é afirmada a inseparabilidade entre essência e existência nos modos finitos. A essência do modo finito humano não envolve existência necessária, mas são necessários pela sua causa, jamais contingentes ou possíveis (cf. Chaui, 2016, cap.2).

O modo finito é definido, na parte I a Ética, como modo que está em outro e é concebido por outro; a parte II da Ética sublinha a singularidade de um modo que exprime a essência do ser absoluto.

O modo finito humano é deduzido na parte II como corpo e mente que se relacionam. Essa relação pode se dar de forma inadequada (por meio da imaginação) ou de forma adequada (por meio da razão e da intuição). A perspectiva determinante na parte II da Ética é, portanto, a perspectiva epistemológica, mas também a dimensão causal da coisa singular é enfatizada e, ganha ainda mais espaço na parte III, quando Espinosa demonstra que a coisa singular pode ser causa adequada ou inadequada, porque finita; dessa finitude trata a parte IV, e a parte v mostra como a mente pode ser causa adequada e chegar à felicidade.

O singular é uma existência determinada e uma atividade causal, é um indivíduo complexo. Marilena Chaui mostra essa construção da singularidade na Ética de Espinosa. O singular é singular porque é uma determinação finita no interior da complexa rede causal da Natureza. E é finito porque não existe como causa de si, mas é também causa.

Ser parte, em Espinosa, é saber-se parte de um todo e, então, tomar parte na atividade do todo. Cabe ao final da Ética, bem como ao final da Nervura II, mostrar como este tomar parte no todo é um tomar parte na eternidade. Este conceito, na primeira parte da Ética, parecia restrito à existência própria da substância, que segue necessariamente de sua essência. Às coisas singulares, como modos finitos, não caberia mais que a duração, numa contraposição insuperável. Uma das principais novidades de Chaui é explicitar como a Ética, no seu desenvolvimento, vai ampliando o sentido de eternidade, de modo que alcance as próprias coisas singulares enquanto são em Deus. Trata-se de uma eternidade dada desde sempre, pela imanência das coisas a Deus e de Deus às coisas, mas simultaneamente de uma eternidade conquistada pela adequação do conhecimento. Não há contradição nisso porque tal conquista não implica passagem nem transformação radical. O tomar parte no todo significa tornar-se aquilo que já se é. Nas palavras de Chaui, “a eternidade da mente não implica uma transformação de seu ser ou de sua essência; o que muda é o objeto do qual ela é ideia: passa das afecções do corpo na duração à ideia da essência do corpo, essência contida e compreendida como singularidade no atributo extensão e cuja ideia, simultaneamente, está contida e compreendida no atributo pensamento” (Chaui, 2016, p. 571). Em suma, a mente não se torna eterna, ela passa a conhecer que é eterna, e não apenas como se conhece a um objeto externo. Mais que isso, como diz a célebre expressão de Espinosa, nós sentimos e experimentamos que somos eternos.

Ao terminar a leitura do livro de Chaui, podemos olhar para trás e ver com toda a clareza o processo de concretização do que havia sido demonstrado nas primeiras páginas. Não só a singularidade não é incompatível com a imanência, mas só se realiza plenamente como liberdade quando percebe esta imanência por meio da participação ativa nela. Esse processo de concretização de si como ser autônomo, livre e feliz não é um processo meramente cognitivo, mas simultaneamente afetivo. Por isso, também com afeto olhamos para a tese de livre-docência, de 77, ou para os primeiros estudos espinosanos de Chaui, nos anos 60. Tudo já estava lá. Como já estava no mestrado Merleau-Pontyano, no debate sobre a democracia nos anos 70, na criação do PT em 80, etc. Mas agora, com a publicação do segundo volume da Nervura do Real, tudo isto ganha um sentido que não podia ser completamente transparente naqueles momentos. Trata-se de uma única Obra, que se confunde com a maneira de viver e de filosofar de Marilena, inseparáveis entre si e in – separáveis do pensamento de Espinosa.

Referências

CHAUI, Marilena (2016). A nervura do real II. Imanência e liberdade em Espinosa . São Paulo: Companhia das Letras.

Luís César Oliva – Professor Universidade de São Paulo. E-mail: lcoliva@uol.com.br

Tessa Moura Lacerda – Professora Universidade de São Paulo. E-mail: tessalacerda@gmail.com

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Spinoza and Medieval Jewish Philosophy – NADLER (CE)

NADLER, Steven (Ed.). Spinoza and Medieval Jewish Philosophy. Cambridge: Cambridge University Press, 2014. Resenha de: DAVID, Antônio. Cadernos Espinosanos, São Paulo, n.35, Jul./Dez., 2016.

Vem em boa hora a coletânea de artigos editada pelo renomado historiador da filosofia Steven Nadler e publicada pela Cambridge University Press . Não porque se trate de empreendimento novo – e aqui convém reconhecer o mérito da historiografia da filosofia de língua inglesa, que tem se dedicado ao assunto com grande afinco. O próprio organizador, especialista em filósofos da chamada primeira época moderna, é autor de outros títulos dedicados à relação entre a filosofia judaica e Espinosa.

É exatamente o estatuto dessa relação que precisa ser examinado, razão pela qual Spinoza and Medieval Jewish Philosophy merece ser lido. Ainda que as respostas oferecidas no livro sejam questionáveis, é meritório o esforço em pensar sobre uma relação que, sob todos os ângulos, é tensa.

Espinosa pode ser considerado um “filósofo judeu”? Nadler é taxativo:

Não se pode negar que textos, história e pensamento judaicos continuam a cumprir um papel importante no pensamento de Espinosa – de tal forma que Espinosa pode com justiça ser considerado um filósofo judeu, seja porque suas ideias revelam um forte compromisso com a filosofia judaica que o precedeu, seja porque em suas principais obras ele filosofou sobre judaísmo (Nadler, 2014, p. 3-4).

Não obstante as duas razões oferecidas por Nadler procedam, elas não parecem ser suficientes para encerrar a questão. Aliás, a questão pouco nos interessa. Mais interessante e profícuo do que perguntar sobre a identidade judaica da filosofia de Espinosa – questão que nunca cessará de gerar polêmica, uma vez que envolve a identidade judaica do próprio Espinosa –, é perguntar sobre a maneira específica pela qual a filosofia deste autor lida com conceitos e ideias próprios da ou assimilados pela filosofia judaica e, consequentemente, do judaísmo, para forjar sua própria filosofia.

Nesse sentido, a coletânea traz uma grande contribuição. Ela ajuda a ampliar o escopo de interpretação da obra de um dos mais importantes nomes da filosofia, interpretação essa que tem sido bastante exitosa em estabelecer os laços que unem Espinosa à modernidade (são inúmeros os trabalhos que comparam Espinosa com Maquiavel, Hobbes, Descartes e Leibniz) e que já deu passos importantes no estabelecimento da crítica de Espinosa às tradições antigas e cristãs, tanto medievais como modernas1

Que Espinosa tenha debruçado-se sobre o judaísmo, não é novidade. Estabelecida no Tratado teológico-político, essa leitura contém teses e argumentos que lhe renderam severas acusações, em particular talvez a tese de que a natureza dos hebreus amparava-se pela piedade para com a própria pátria e no ódio para com outras nações (Spinosa, 1997, p. 371) . Poliakov, por exemplo, dirá que a obra de Espinosa expressaria um “anti- semitismo virulento” (Poliakov, 1996, p. 23) .

Em contrapartida, o forte compromisso para com a filosofia judaica é menos evidente à primeira vista, inclusive por estar como que disseminado na obra, presente não só naquelas passagens em que Espinosa examina práticas e história judaicas. É notório e belo o exemplo de uma das últimas proposições que fecham sua mais importante obra, e também a mais conhecida: “Disso inteligimos claramente em que coisa consiste nossa salvação ou felicidade ou Liberdade: no Amor constante e eterno a Deus, ou seja, no Amor de Deus aos homens. E não é sem razão que este Amor ou felicidade é chamado Glória nos códices Sagrados” (Espinosa, 2015, e v, p 37 . Esc.) 2 .

A obra de Espinosa está impregnada de filosofia judaica – o que não necessariamente significa estar ela impregnada de filosofia exclusivamente judaica, uma vez que, como dissemos anteriormente, os conceitos, teses e argumentos transitaram na rica interlocução entre diferentes tradições. Os autores foram felizes em expressar esse diálogo, sobretudo em se tratando de filósofos judeus e árabes, com especial destaque para os excelentes artigos de Charles Manekin e Julie R. Klein.

O livro possui muitos méritos, dos quais o maior mérito reside no exame dos conceitos e sua “passagem” entre Espinosa e seus interlocutores judeus. Só pela enorme quantidade de citações da Ética demonstra-se que a presença do judaísmo em Espinosa transborda e muito o escopo do Tratado teológico-político, chegando ao núcleo de sua filosofia.

Vemos dois pontos francos no resultado final da proposta, sendo um na coletânea e outro nos artigos. A coletânea concentrou-se demasiadamente, quase exclusivamente, na recepção de determinados filósofos na obra de Espinosa, como Gersonides, Crescas e, com especial ênfase, Maimônides – o que é reconhecido pelo organizador, na Introdução. Com isso, ela deixou de lado dois campos de interlocução extremamente importantes para a compreensão da obra de Espinosa: de um lado, seus contemporâneos na comunidade de Amsterdam; de outro, as tradições místicas judaicas.

Em relação aos artigos, a despeito de seu mérito, percebemos certa inclinação nos autores em procurar estabelecer débitos demasiado diretos e mecânicos de Espinosa para com este ou aquele filósofo. Jacob Adler, por exemplo, após constatar a similaridade entre certa tese de Espinosa e Alexandre de Afrodísias, conclui: “tal pormenor fornece a mais forte evidência de que Espinosa estava seguindo Alexandre” (ibidem, p. 25) . T. M. Rudavsky, por sua vez, argumenta que Espinosa “segue a sugestão de Ibn Ezra’s de que Moisés não teria escrito toda a Torá” (ibidem, p. 86). Já Warren Zev Harvey, numa controversa interpretação de Espinosa, conclui: “ao atribuir alegria e amor intelectual a Deus, Espinosa faz companhia a Maimônides, e segue Avicena e Gersonides”. Na sequência, este mesmo autor afirma: “ao sustentar que o autoconhecimento de Deus implica em Seu conhecimento de todas as coisas, Espinosa segue a interpretação de Aristóteles do Timeu, presente em Metafísica, XII 7 e 9” (ibidem, p. 114 – 115). Fiquemos nestes três exemplos.

Em certo sentido, todo filósofo segue outros que o precederam. Mas este é um sentido fraco, que designa apenas e tão somente o fato de haver interlocução entre os filósofos. Os autores, no entanto, procuraram muitas vezes estabelecer laços fortes entre Espinosa e seus interlocutores, como se certo conceito, certa tese ou certo argumento presente na obra de Espinosa já figurasse nesse ou naquele autor. Ao proceder dessa forma, o intérprete corre o risco de perder de vista o sentido da presença do conceito, da tese ou do argumento no interior da obra daquele que a recebeu. Ao se estabelecer recepções e linhagens, há que se tomar cuidado.

Quanto a isso, estamos de acordo com Nadler, quando este afirma que a filosofia de  Espinosa “assimila, transforma e subverte um projeto antigo e religioso” (ibidem, p.2). A este projeto, acrescentaríamos outras tradições e correntes, como a filosofia de Aristóteles, o estoicismo e as filosofias de Hobbes e Descartes. Espinosa segue Gersonides, Maimônides, Crescas e outros, tanto quanto Hobbes, Descartes e Maquiavel, mas sob o preço de subvertê-los.

A despeito destes dois pontos, ressaltamos que o conjunto da coletânea compreende artigos escritos com rigor e erudição. Esperamos que sua publicação encoraje os espinosistas fora do mundo anglófono a engajar-se mais no estudo da presença da filosofia judaica em Espinosa.

Notas

1 A coletânea contém dez artigos. Para um resumo de cada um dos artigos, cf. Nadler, 2014, p.8-12.

2 Essa passagem foi abordada na coletânea por Warren Zev Harvey (Nadler, 2014, p.115), Kenneth Seeskin (Ibidem, p.122) e Julie R. Klein (Ibidem, p.210).

Referências

NADLER, s. (Ed.) (2014), Spinoza and Medieval Jewish Philosophy, Cambridge: Cambridge University Press.

POLIAKOV, l . (1996) De Maomé aos Marranos. História do Anti-semitismo II, São Paulo: Perspectiva.

SPINOSA, b . (1997) Tratado teológico-político, Barcelona: Altaya.

ESPINOSA, b . (2015) Ética, São Paulo: Edusp, 2015.

Antônio David – Doutorando Universidade de São Paulo. E-mail: mdsf.antonio@gmail.com

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Genealogia di un pregiudizio. L’immagine di Spinoza in Germania da Leibniz a Marx – MORFINO (RFMC)

MORFINO, Vittorio. Genealogia di un pregiudizio. L’immagine di Spinoza in Germania da Leibniz a Marx. Hildesheim: Georg Olms Verlag AG, 2016. Resenha de: LANCIATE, Diego. Revista de Filosofia Moderna e Contemporânea, Brasília, v.4, p. 116-119, n.2, 2016.

Publicado pela Georg Olms Verlag em 2016, Genealogia di um pregiudizio. L’immagine di Spinoza in Germania da Leibniz a Marx [Genealogia de um preconceito. A imagem de Spinoza na Alemanha de Leibniz a Marx] de Vittorio Morfino é resultado de um estimulante e rigoroso trabalho de fôlego em que a articulação entre Spinoza e spinozismo se faz pela efetividade de sua recepção, sua Wirkungsgeschichte, em terras germânicas. Assim, três grandes momentos são divididos: a refutação do spinozismo clandestino, o renascimento spinozano e, por fim, o Spinoza do Idealismo. Filósofos como Leibniz, Wachter, Bayle, Mendelssohn, Lessing, Jacobi, Kant, Herder, Goethe, Schelling, Hegel, Heidegger, Feuerbach, Marx, Engels até Plekhanov, Althusser, Pascucci, Negri, Fischbach et alii são mobilizados, porém, longe de um procedimento genético e historicista de apreensão do par significante spinoza/spinozismo, Morfino investiga genealogicamente, ou seja, é tal articulação que é posta em exame em seus efeitos. E, para tanto, podemos dizer que seu centro geométrico é localizado em Marx, cujo olhar míope sobre Spinoza é, em certa medida, efeito do spinozismo germânico. Assim, a questão posta por Morfino assume traços e contornos ímpares: Marx lê Spinoza, todavia, tal leitura, não é caracterizada por uma inadequação no sentido em que se diz do inadequado enquanto erro – um pressuposto de um sujeito empírico de conhecimento – tampouco que seja uma leitura cujo pressuposto seria um sujeito tout-court como epicentro, mas que se trata, antes do mais, de um efeito sujeito que a historialidade efetiva do spinozismo provoca na leitura de Marx. Como efeito de um discurso, Marx é atravessado em seu ver. Uma efetividade post festum que retroage certos sentidos do spinozismo e de Spinoza construindo uma narrativa linear capaz de evidenciar-se na contemporaneidade de Marx leitor. E é em tal narrativa evidente que se instaura a opacidade mesma de Spinoza, então, que a contemporaneidade da evidência, que se faz narrativa da historialidade efetiva da articulação spinoza/spinozismo, é o que permite Morfino rearticular o jogo complexo entre tais significantes pelo ato de ler como efeito desta narrativa. Marx viu através dessa narrativa límpida e linear e, por isto mesmo, não viu em Spinoza uma teoria da História e da Política. Como Marx não pôde ver, o não-visto de Marx é o início da trajetória genealógica de Morfino, por aí ele propõe-se a abrir os pontos de sutura do discurso que interpela Marx e que compõe a imagem de Spinoza através da contemporaneidade de certo sentido que faz seu não-visto, porém, que reintroduzida em sua não-contemporaneidade, i.e.¸ em seu Kampfplatz, abre-se a complexa trama de operações discursivas em sua pluralidade mesma. Ou seja, o sentido é atingido em sua equivocidade pela abertura das suturas que compõem a narrativa da imagem de Spinoza/spinozismo, então, tudo se passa como se a estratificação de conflitos discursivos, deslocamentos de sentidos e defasagens articuladas em temporalidades diferenciais nas quais se desvelam os níveis em ritmos entremeados produzissem certo efeito-imagem de Spinoza, cuja estruturação não seria outra que a produção de sua opacidade pela lógica de poder característica da ideologia/imaginário. A leitura que faz Marx, assim, é o “efeito da complexa história da presença e ausência de Spinoza em terra germânica”.

Não-contemporâneo que se faz contemporâneo, a opacidade do real dada pela narrativa linear, pela sucessividade cumulativa de sedimentos discursivos, é submetida à desconstrução materialista por Morfino. Cada contexto pontual de disputa que se produz uma imagem sedimentada compondo a linearidade ideológico-discursiva do par significante Spinoza/spinozismo, sua trama interrelacional que produz o sentido desta narrativa, é submetida, então, ao exame e recontrução das interpretações que foram feitas de Spinoza nos três momentos principais. E, para tal reconstrução, Morfino suspende o juízo sobre a adequação dos objetos interpretados, i.e., não se trata de trazer um Spinoza como régua da adequação ou inadequação das interpretações que lhe são dadas, mas sim de examinar precisamente como tais interpretações se fazem e exercem um efeito na recepção de Spinoza e no spinozismo. Morfino analisa cada intérprete através da problemática que lhe é própria e não através da problemática do próprio Spinoza, e disto se pode dizer que cada problemática, cada estrutura de pensamento analisada, provoca significativas modificações e reafirma certas permanências da imagem mesma de Spinoza e do spinozismo. Mais ainda, trata-se de problemáticas não só de cada intérprete, mas também de sua dimensão conflitiva com problemáticas de intérpretes entre si, seu diálogo plural, tanto no que diz respeito à estrutura de pensamento de cada intérprete modificando a imagem de Spinoza e do spinozismo quanto no que diz respeito também ao ambiente de produção interpretativa. A tensão e conflitualidade entre problemáticas, os encontros entre os ritmos defasados, impõem-se na tarefa genealógica. Tal trama de problemáticas defasadas, que podemos chamar de sobreproblemática, é a interpenetração mesma das tramas problemáticas singulares, as quais configuram o presente de uma instabilidade discursiva de algo que, em sua posteridade, é tido como acabado, como ponto pacífico e suturado, ou seja, que se lê o presente passado pelo futuro já passado projetando-o teleologicamente – i.e.¸ pelos seus resultados sedimentados – num esquema genético de uma temporalidade histórica de sucessão, esquema cumulativo em sua opaca transparência, pois, em suma, também tais problemáticas sempre-já são interpenetradas por certo e determinado futuro anterior.

Daí que Morfino ausculta a materialidade textual em seu tecido através dos sintomas, da ausência e presença, os quais, por sua vez, são detectados em suas diversas roupagens. É, com efeito, a espectralidade mesma que faz dos significados sintomáticos procedimentos textuais no jogo entre as problemáticas e a sobreproblemática em sua historicidade tomada não mais geneticamente, mas sim genealogicamente, a saber, em sua historialidade efetiva. Sintomas tais que, em seu campo semântico, fazem-se como desvios de sentido, os quais são operados por mecanismos marcados, como a redefinição de conceitos, inversão de conceitos, os efeitos de tradução como sintoma da resistência de um campo problemático ao estranhamento de uma filosofia alheia em sua economia teórica o que força a “tradução criativa”, ou seja, força a tradução entre significantes tendo em vista a problemática de recepção, as remoções inusitadas como tecidos invisibilizados na própria materialidade textual de Spinoza e, sobretudo, dos efeitos destes movimentos de escritura que condensam a espectralidade em sua posteridade próxima como “imagemlimite”, como sentido retroagido capaz de transmitir-se como tal sob uma problemática de um intérprete futuro, um intérprete, de certo modo, do futuro anterior.

Morfino perquire a “imagem-limite”, ou a imagem de Spinoza/spinozismo, referindose a ela como pregiudizio, que podemos traduzir por preconceito, desde que considerando que aí se condensa o juízo dado pela inadequação de sua anterioridade temporal que se faz presente no ato de julgar – tenhamos em mente que preconceito está submerso no sentido propriamente spinozano de imagem, pelo que se remete aos mecanismos de superstição capaz de suscitar afetos e dominação.

Por trás da desconstrução materialista, são as teses de Althusser que Morfino não só mobiliza, mas que as aprimora consideravelmente em estado prático em sua genealogia. Assim, é à revolução teórica inaudita de Spinoza, segundo Althusser, que Morfino dá consequências: a história não se lê na evidência de seu discurso como um logos manifestando-se como a voz uníssona de uma estrutura sedimentada, contudo, que nesta presença mesma uníssona do logos a dissonância se faz pela sua ausência, pelo inaudível e ilegível. O ler, o escrever, o ouvir etc não são de modo algum indiferentes e atos neutros, e é a opacidade ela mesma em sua imediatidade ou, para utilizar-me de um oximoro, a translucidez turva do discurso uníssono manifesto, que exerce o efeito de modificação dos atos de ler, escrever, ouvir etc. Uníssono composto pela plural dissonância de uma contemporâneo não-contemporâneo, pelos ritmos diversos que compõe conflitantes os sentidos. Notável é que a revolução de Spinoza indicada por Althusser pela posição do problema do ler e do escrever tornou-se apreensível a partir da problemática do próprio Marx, pela sua estrutura de pensamento que mobilizou a articulação entre ideologia e política. É por isto que Morfino pôde escavar o subterrâneo dissonante suturado pela presença de uma narrativa de um preconceito, então, que ele pôde voltar Spinoza contra sua imagem que, com toda sua potência explicativa, fez da miopia de Marx o reconhecimento/ desconhecimento de Spinoza em sua problemática.

É o “trabalho spinozano sobre a linguagem da tradição” em sua conjuntura de produção e seu horizonte semântico que intervém como uma máquina filosófica combatente em seu Kampfplatz. Uma máquina de guerra filosófica que Spinoza opera pela posição do problema da Histórica e da memória, ou seja, é sua teoria da imaginação e sua teoria da História que são confrontadas com a imagem do spinozismo alemão em seus três momentos. Não é que a memória, para Spinoza, seja mero conhecimento inadequado, mas que ela é, simultaneamente, hábito, o que implica a eficiência de suas formas discursivas, de sua “história sacra”, como diz Morfino, na história real. São, por isto, os ritmos dos ritos, dos gestos e comportamentos, em suma, dos corpos que são materializados e efetivados na atualidade de um presente, de sorte que a pluralidade dos hábitos, a defasagem de seus ritmos todos, permitem a Spinoza desconstruir a temporalidade linear, simples e contínua de uma narrativa teológico-política. Daí a articulação entre a causalidade imanente e a opacidade do real (teoria da imaginação) permitir conceber a história “como construção conceitual que mostre o estatuto imaginário de cada autobiografia dando relevo ao complexo intrincamento de causas naturais e sociais que produzem a simplicidade de uma história.”

Aparente circularidade, Spinoza contra o spinozismo em terras alemãs, põe em questão a adequação deste Spinoza que permite abrir as suturas da narrativa do preconceito. De fato, o Spinoza que Morfino lança sobre o percurso genealógico seria a imagem de certo Spinoza? Seria a imagem de Spinoza composta pelo que podemos chamar de “segundo renascimento spinozano” datado, mais ou menos, dos meados do século XX na França até os nossos dias? A lição deste Spinoza materialista a que o século XX foi capaz de começar a dar outra voz através de Cavaillès, Guéroult, Deleuze, Chauí etc e, mais próximos de Morfino, de Althusser, Macherey e Balibar, é a de que justamente os ritmos plurais da história, suas defasagens e deslocamentos, em suma, a pluralização das temporalidades da história também produzem e são produtos de uma intervenção política em filosofia, ou seja, que a genealogia de Morfino não só nos presenteia com uma obra imprescindível de erudição e aprendizado de sua laboriosa empresa teórica, mas também e, sobretudo, que ela é a posição política que o materialismo do século XXI apenas começa a colocar em nosso atual Kampfplatz. Ademais, o trabalho de Morfino nos instiga à possibilidade de confrontar a desconstrução materialista com a tradição anglo-saxônica que hoje se faz presente e potente em nosso Kampfplatz, ou melhor, de desconstruir a posição das formas dominantes de interpretação idealista de Spinoza que repercutem com força em nossa conjuntura.

Genealogia di um pregiudizio é um acerto de contas do materialismo em geral e do materialismo de Spinoza em particular com a história que, simultaneamente, deixa seu rastro da vitalidade e força na impura conflitualidade constitutiva da filosofia entre materialismo e idealismo. Mas não só um acerto de contas. O trabalho de Morfino abre positivamente a articulação teórica imprescindível e demarcatória do próprio materialismo hodierno: trata-se de pensar a “fábrica Spinoza-Marx”, como escreve, visando construir uma ontologia da relação sob o primado das indicações do materialismo aleatório de Althusser e, ainda, pensá-lo sob o primado da teoria das temporalidades plurais. O problema fundamental aqui é pensar o compor-se e decompor-se de toda e qualquer estrutura em termos relacionais, de toda e qualquer história, o que implica diretamente a inteligibilidade do campo de ação política. Não só inteligibilidade, mas a intervenção teórica de Morfino é ela mesma política, pois, como dizia Althusser, filosofia é, em última instância, luta de classes em teoria, ou seja, filosofia e política são de certo e determinado modo – não idênticas – mas coextensivas. O êxito e rigor de Genealogia di um pregiudizio é um convite para a desconstrução materialista, para a posição materialista em filosofia e, também, um convite para enfrentar sob este prisma o desafiante e imprescindível problema da articulação entre História e Política.

Diego Lanciate – Doutorando Universidade Estadual de Campinas.

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Breve Tratado – ESPINOZA (AF)

ESPINOSA, B. Breve Tratado. Resenha de: ROCHA, André Menezes. Sobre a primeira tradução do Breve Tratado de Espinosa. Artefilosofia, Ouro Preto, n.14, julho, 2013.

As translucidas mãos do judeu

Lavoram na penumbra os cristais

E a tarde que morre é medo e frio.

(…)

Trabalha em um árduo cristal: o infinito.

Mapa de todas as estrelas.

Espinosa.

Poema de Jorge Luís Borges.

Borges gostava de nos lançar no universo dos livros mágicos. Como um bom bibliotecário, nos conduzia por estantes infindas como quem tem em mãos os fios que atravessam entradas e saídas de um imenso labirinto. Lembro-me deum destes livros, o infinito.

O livro infinito é aquele cuja leitura jamais se esgota, que sempre exprime um novo sentido desde que o leitor abra suas páginas. Este Breve Tratado de Espinosa, inédito em língua portuguesa, consiste no mais novo exemplar destes livros com que os leitores de Borges tanto se encantam. Um livro infinito sobre o amor infinito, em síntese, eis do que se trata. Este Breve Tratado de Espinosa é uma obra juvenil, escrita bem antes da Ética e, para alguns intérpretes, antes mesmo do Tratado da Emenda do Intelecto. Talvez por isso seja a melhor maneira de introduzir-se no pensar com os conceitos de Espinosa. Inicia-se com a intuição da essência absolutamente infinita de Deus e, após passar pelo conhecimento da essência das paixões e ações do s homens, trata dos bons desejos que nascem do uso da razão, do amor intelectual que é imanente à intuição e culmina com a demonstração do que é eterno na essência humana. Mas todas estas demonstrações só fazem sentido, no texto de Espinosa, se não se distingue a inteligência do afeto. Uma leitura tecnocrata dos textos filosóficos e, em especial, do texto de Espinosa, não passaria de um mísero avatar daquela velha vã filosofia de que falava Shakespeare. Como o olho da medusa, o entendimento do tecnocrata petrifica o sentido dos textos. Borges é quem nos diz o que perdeu o aprendiz impaciente do conto A Rosa de Paracelso.

A curiosidade, o prazer da leitura e o amor da inteligência são os guias mais seguros para os leitores e leitor a s que desejam iniciar-se na leitura dos clássicos e na reflexão filosófica. E no caminho da leitura surgirão muitas questões que em vez de barreiras constituir-se-ão como trampolins a elevação da reflexão.

Gostaria aqui de apresentar algumas questões que me ajudaram a prosseguir na leitura do Breve Tratado. Literatura e arte na composição do Breve Tratado. Os dois diálogos da primeira parte do Breve Tratado tratam de temas candentes da ontologia de Espinosa, mas também caros à tradição neoplatônica do Renascimento, seja na vertente de Marsilio Ficino que procurava desvendar o amor intelectual e obter a eternidade pela criação de mágicas obras de arte, seja na vertente de Leão Hebreu que procurava desvendar o amor intelectual e obter a eternidade pela sabedoria ética na conduta cotidiana e nas ações da vida. A questão da diferença entre amor concupiscente e amor intelectual, que é o mote da erotiké no primeiro diálogo, tinha sido intensamente tratada pelos artistas e pensadores do Renascimento. A partir de Panofsky, podemos acompanhar como a questão da diferença entre amor divinus e amor profanus foi tratada sob a forma artística, por exemplo, nas telas de Botticelli e nos diálogos do próprio Marsilio Ficino. Como sabemos, o jovem Espinosa viveu em Amsterdã na casa-escola do tutor Francisco van den Ende, um franciscano que, como Petrarca, abraçou o humanismo. Ele ensinava literatura latina e filosofia através de leituras coletivas encenadas que muitas vezes se transformavam em peças teatrais. Espinosa, que obteve uma bolsa de estudos como ajudante do mestre-escola, interpretou no Teatro Municipal de Amsterdã peças de Terêncio, o dramaturgo comediante que participou do círculo estoico de Cipião com o historiador Políbio no século II a.C em Roma. Na Escola de Van den Ende, Espinosa conheceu seus melhores amigos, entre os quais o próprio Jarig Jelles, a quem dedicou a versão holandesa do Breve Tratado. Seria demais imaginar que Espinosa tenha elaborado os diálogos a partir da experiência artística com o círculo de amigos na trupe de teatro de Amsterdã? No segundo diálogo, por exemplo, Erasmo e Teófilo encetam animada conversa sobre a diferença entre a causalidade eficiente imanente através das relações internas entre todo-partes e causa-efeitos. Conversações agradáveis podem se tornar profundas tanto na vida cotidiana como nas ações dramáticas. Os dois diálogos da primeira parte são redigidos com engenho retórico e arte dialética para significar que os conceitos filosóficos do Breve Tratado não precisam ser pensados no solipsismo, à maneira cartesiana, mas podem ser pensados em agradáveis conversas em que todos nutrem amizade pela inteligência e gosto pelas arte s ? Razão e Intuição. Espinosa escreve, na segunda parte do Breve Tratado [II, 4], que a razão é a crença verdadeira, pois é o modo de conhecimento que nos leva a ver claramente o que convém que a s coisa s seja m fora de nós, porém não o que são verdadeiramente. E, no entanto, o conhecimento racional desperta os bons desejos que nos conduzem à intuição e ao verdadeiro amor. Podemos dizer que o Breve Tratado foi escrito antes da descoberta das noções comuns como conhecimento racional das propriedades comuns necessárias dos modos in finitos e finitos? Ora, após distinguir a Natureza Naturante da Natureza Naturada [I,8], Espinosa deduz os modos infinitos, quais sejam, o movimento-repouso na matéria e o intelecto infinito na coisa pensante [II,9]. Se os modos infinitos são os fundamentos das propriedades comuns na Ética, isto é, se são o todo de que os modos finitos são as partes, não é preciso convir que são demonstrados por sua gênese no Breve Tratado ? Em que sentido se pode dizer que não há teoria das noções comuns do Breve Tratado ? Sabemos, pela nota complementar 5 redigida por Marilena Chauí em A Nervura do Real, que há diferenças entre a concepção de intuição no Breve Tratado e a concepção de ciência intuitiva na Ética. Afinal, que significa a afirmação, no Breve Tratado, de que o conhecimento intuitivo e o amor intelectual de Deus são paixões do intelecto humano? Nesta obra juvenil, Espinosa pensava o amor intelectual como uma revelação religiosa, ou seja, como a palavra silenciosa que a inteligência de Deus pronuncia sob a forma de intuições no intelecto humano? Quais as diferenças entre a concepção do amor intelectual no Breve Tratado e a concepção do amor intelectual na Ética ? A demonstração de que o diabo não existe. Em várias cartas, Espinosa conversa com amigos sobre o tema da superstição, da crença em fantasmas, espectros e, pior que tudo, da crença no capiroto, coisa ruim ou tranqueira que, como diz Guimarães Rosa, para o prascóvio encontra-se no olho esgueirado de bezerro doente, gato preto, sombração ou redemoinho n o meio da rua.

Nas cartas trocadas com o amigo Boxel, podemos perceber como Espinosa achava graça nestes assuntos. E talvez o espírito de graça destas cartas encontre-se neste Breve Tratado com a demonstração matemática da impossibilidade da existência do diabo. A demonstração segue como consequência da prova ontológica da existência de Deus, desde que esta existência seja pensada a partir da essência como realização da onipotência. Vale lembrar que esta demonstração para nós é engraçada, mas para o contexto das guerras de religião era grave.

Espinosa demonstra, por A + B, como quem demonstra que 2+2=4, que o diabo é uma impossibilidade ontológica: dado que a essência de Deus é absolutamente infinita e que é idêntica à sua potência, um diabo, um gênio maligno ou outro ser malfadado qualquer que tivesse poder para contrariar a essência de Deus só pode ser uma ficção literária ou lógica. O que contraria a onipotência de Deus pode até existir, como existem peixes que nadam contra a corrente do rio, mas não pode influenciar em nada a potência absolutamente infinita de Deus, assim como um peixe não pode mudar o curso do rio ainda que nade contra a corrente. O diabo não pode existir na realidade, não pode ser um ente real, só pode existir como ficção, só pode ser um ente de razão ou ente de imaginação. E como Ferreira Gullar que diz saber como 2 e 2 são 4 que a vida vale a pena, Espinosa demonstra, como 2 e 2 são 4, que o amor intelectual de Deus é o sumo da vida humana e que por ele se encontra tanto a virtude para agir nesta vida como a eternidade de que podemos participar desde que experimentemos um verdadeiro amor.

Ode à leitura. Esta novíssima edição do Breve Tratado de Espinosa tem muitos méritos e o menor deles talvez seja o fato de ser a primeira tradução em português. Os méritos encontram-se mais no uso da língua portuguesa que os tradutores e a revisora fizeram para apresentar este inédito de Espinosa.

A tradução de Luís César Oliva e Emanuel Rocha Fragoso é clara e elegante, o que torna o texto muito agradável para os leitores da língua portuguesa. A revisão técnica de Ericka Itokazu, como sabemos todos os que acompanhamos o processo, lapidou o texto com muito carinho, cuidado e generosidade, para assegurar a precisão dos conceitos e dos argumentos que constituem a arquitetônica do Breve Tratado ; deu polimento, como no ofício de fazer lentes, para que permitissem ver a luz com a máxima nitidez. Certa vez uma amiga me disse, diante do Memorial da América Latina, que as curvas do desenho concreto de Niemeyer impressionavam sua imaginação de tal maneira que ela se punha a pensar, com Einstein e Espinosa, se aquela arte arquitetônica não exprimiria à sua maneira as curvas concretas de um universo infinito e densamente invisível que se reflete na luz das estrelas.

Este Breve Tratado, brilhante qual um crista l e denso como um diamante, ergue-se no tempo como o memorial de Niemeyer ergue-se no espaço. Um livro mágico como aqueles que encantavam Borges, mágico como um mapa não de espaços, mas de tempos que se escandem de uma fonte eterna. Que as frases deste exemplar de livro infinito, semelhantes a curvas geométricas, façam o seu glorioso mister e conduzam leitores e leitoras às veredas concretas do infinito.

André Menezes Rocha-Doutor em filosofia pela FFLCH/USP. Leciona da Facamp/Campinas. Atualmente, realiza seu pós-doutorado sobre Espinosa na FFLCH/USP.

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Breve Tratado de Deus, do Homem e do seu bem estar – SPINOZA (CE)

SPINOZA, B. de. Breve Tratado de Deus, do Homem e do seu bem estar. Belo Horizonte: Editora Autêntica, 2012. Prefácio de Marilena Chaui. Introdução de Emanuel Angelo da Rocha Fragoso e Ericka Marie Itokazu. Tradução e notas de Emanuel Angelo da Rocha Fragoso e Luís César Guimarães Oliva. Resenha de: ROCHA, Mauricio. Notícia da edição brasileira do Breve Tratado de Deus, do Homem e do seu bem estar, de B. de Spinoza. Cadernos Espinosanos, São Paulo, n 28, 2013.

Esta tradução do Breve Tratado é a primeira em “português- brasileiro” e a primeira em português tout court do Korte Verhandeling van God, de Mensch en deszelfs Welstand. É outro feito editorial que assinala o impulso crescente das atividades de estudos sobre Spinoza no Brasil, e que se fortaleceu após a tradução da Ética por Tomaz Tadeu, em 2007 e das versões brasileiras das traduções de Diogo Pires Aurélio feitas em Portugal (Tratado Teológico-Político, 2003 e Tratado Político, 2009). Cabe assinalar a necessidade de “versões” do português para o “brasileiro”, pois ainda que ambas sejam as “últimas flores do Lácio”, por vezes são notáveis as diferenças entre a matriz ibérica e as transformações impostas pelo esplendor tropical ao idioma de Camões e Fernando Pessoa.

A presente edição é mais um volume da Série Espinosana, que integra a coleção de Filosofia da Editora Autêntica (que já publicou a obra de Chantal Jaquet, A unidade do corpo e da mente – Afetos, ações e paixões em Espinosa, e lançará outros títulos sobre o filósofo). Esta versão do Breve Tratado é de responsabilidade de Emanuel Angelo da Rocha Fragoso, Luis César Guimarães Oliva (tradução e notas) e Ericka Itokazu (que escreve a introdução com Emanuel Fragoso), e conta ainda com um prefácio de Marilena Chaui. E não por acaso. O primeiro é editor da revista Conatus, que desde 2007 reúne estudos sobre o filósofo, e os dois últimos constituem o Grupo de Estudos Espinosanos da USP, coordenado por M. Chaui, que dispensa apresentações.

Esta última brinda o leitor com o relato das aventuras do célebre “manuscrito da Ética em holandês”, como teria sido apresentado pelo filho do livreiro Rieuwertsz aos viajantes germânicos Stolle e Halmann em 1703, naquele episódio que dá início a uma trama que em tudo se assemelha à ficção, não fosse verdadeira. Como se sabe, a trama enreda vários  personagens  (Rieuwertsz-Stolle-Halmann;  Boehmer-Muller- Monnikhoff; Van Vloten-Bogaers; Monnikhoff-Van der Linden-Deurhoff etc.) durante um século e meio (1703-1865), sempre em torno do primeiro manuscrito – e de um segundo manuscrito, encontrado em 1851, também em holandês, que acrescentará mais enigmas ao enredo: as duas caligrafias dos manuscritos holandeses, as notas à margem, a indagação sobre um manuscrito original em latim extraviado, a autoria da tradução do original latino para o holandês.

Enigmas que o trabalho de Filippo Mignini ajudou a desfazer em parte, com sua edição crítica do KV em 1986. Conforme Mignini, o Breve Tratado expõe as ideias do jovem filósofo (por volta de 1660) sobre metafísica e ética, por solicitação de amigos e discípulos. Ele teria sido composto em latim e traduzido para o holandês (por tradutor ainda incerto) e teria recebido acréscimos posteriores à primeira redação (os diálogos, as notas, as referências internas etc.). E a edição brasileira segue de perto o trabalho incontornável de Mignini, um dos responsáveis pelo estabelecimento do texto, traduzido por Joël Ganault, que consta do volume Premiers écrits das Oeuvres editadas sob a direção de Pierre-François Moreau a partir de 1999.

Na introdução, os tradutores e editores brasileiros retomam o histórico da obra, sua descoberta, a polêmica sobre seu estatuto e lugar na evolução do pensamento de Spinoza e as conclusões, atualmente estabelecidas, sobre a autenticidade do KV e a autoria pelo filósofo polidor de lentes. A tradução acompanha a edição crítica de Mignini, mas recorreu à versão de Paul Janet (1878) e à inglesa de A. Wolf (de 1910, baseada em Sigwart, 1870). Além dessas, da outra versão em língua neolatina disponível, a espanhola de Atilano Dominguez (1990), são extraídas algumas lições sobre o estabelecimento e a divisão do texto em parágrafos (em particular no Capítulo XIX da Parte II do KV) – opções justificadas pela clareza e menor redundância.

Consta ainda da edição o Breve Compêndio (Korte Schetz) elaborado por Monnikhoff, a partir do original holandês encontrado por Boehmer tal como publicado na edição de Mignini em 1986, confrontado com a edição de Carl Gebhardt e cotejado com as versões de Atilano Domingues, Charles Appuhn, Madeleine Francês, e a mais recente de Mignini-Ganault. A edição brasileira contém uma extensa bibliografia e um glossário português-holandês da tradução.

Referências

SPINOZA, B. de. Breve tratado de Deus, do Homem e do seu bem estar. Belo Horizonte: Editora Autêntica, 2012. Prefácio de Marilena Chaui. Introdução de Emanuel Angelo da Rocha Fragoso e Ericka Marie Itokazu. Tradução e notas de Emanuel Angelo da Rocha Fragoso e Luís César Guimarães Oliva.

Mauricio Rocha – Professor do Departamento de Direito da PUC Rio. Coordenador do círculo de leitura Spinoza & a filosofia (Rio de Janeiro).

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Espinosa e Vermeer: imanência da filosofia e na pintura – HORNÄK (CE)

HORNÄK, Sara. Espinosa e Vermeer: imanência da filosofia e na pintura. São Paulo: Paulus, 2010. Resenha de: PAULA, Marcos Ferreira de. Cadernos Espinosanos, São Paulo, n 26, 2012.

Sobre arte, Espinosa nos fala muito pouco. O termo, com o sentido estético que costumamos lhe atribuir, ocorre poucas vezes em toda a sua obra. Não é por acaso. No século XVII arte ainda conserva o sentido de um ofício específico, embora, como se sabe, o conceito de já arte estivesse em transformação desde o Renascimento, quando então ela tornou-se definitivamente inseparável das noções de beleza, estilo e originalidade, caminhando cada vez mais, sobretudo a partir do século XVIII, em direção ao sentido estético contemporâneo que hoje conhecemos. A arte no tempo de Espinosa não está longe, portanto, dos valores da contemplação e dos prazeres estéticos, mas é certamente menos importante a presença seja do artista ou do expectador que se situam num campo artístico sem pretender avançar para além de seus limites propriamente estéticos. Espinosa, por exemplo, situa as ciências e as artes no rol de todas as atividades humanas (e coletivas) que são necessárias ao aperfeiçoamento da “natureza humana” e à conquista da “beatitude”. A arte não se separa, para ele, de sua utilidade ética, sem a qual ela talvez nem faça sentido. É o que parece nos indicar esta passagem do Tratado teológico-político :

[…] ninguém teria a força e o tempo necessário se fosse obrigado a lavrar, semear, ceifar, cozer, tecer, costurar e fazer sozinho tudo o mais que é preciso para o sustento, não falando já nas artes e ciências, que são também sumamente necessárias à perfeição da natureza humana e à sua beatitude (Espinosa 2, p. 85, grifos nossos) .

Fazer arte não é o mesmo que tecer e cozer, certamente, mas deve servir, em última análise, aos mesmos propósitos éticos. Se é assim, a arte, enquanto tal, não poderia servir à própria tarefa de compreensão filosófica do mundo, de si e da Natureza? De fato, sabemos que quando Espinosa fala em “perfeição da natureza humana” e “beatitude” devemos entender o exercício de uma mente humana na compreensão de si, da essência singular de seu corpo, das coisas singulares e da Natureza inteira, da qual mente e corpo são expressões modais imanentes; e se a arte pode ser útil nessa tarefa, é porque deve conservar algum poder de compreensão. Haveria, assim, entre arte e filosofia, uma ligação talvez mais íntima do que alguns comentadores ou leitores de Espinosa gostariam de ver – justamente aqueles leitores ou comentadores para os quais a arte, pertencendo ao campo do primeiro gênero de conhecimento, a imaginatio, não teria nenhuma importância na obra do filósofo holandês, não podendo sequer poderia ser tomada como via de compreensão de sua filosofia.

Não é este o caso, felizmente, de Sara Hornäk, autora de Espinosa e Vermeer: imanência na filosofia e na pintura, livro publicado na Alemanha em 2004 e que chegou até nós no final de 2010 pela editora Paulus. Trata- se de uma obra em que a arte é iluminada pela filosofia e a filosofia, pela arte; uma obra na qual vemos que um artista pode ser também filósofo, e um filósofo, artista. É que – Hornäk não hesitaria em afirmar – artista e filósofo habitam um mesmo mundo, um mesmo Universo, no sentido metafísico da palavra, de tal maneira que compartilham um mesmo “plano de imanência”, para utilizar, em sentido menos sério, a expressão deleuziana. A relação que Hornäk estabelece entre Espinosa e Vermeer (consequentemente, entre filosofia e arte), é de tal ordem que a noção de imanência ganha um destaque e uma relevância que escapam muitas vezes até mesmo aos leitores de Espinosa. A imanência, como sugere o título da obra, é o elemento pelo qual a autora constrói sua argumentação que une a arte de Vermeer à filosofia de Espinosa; mas é também o alvo do livro, cujo objetivo principal parece ser o de mostrar que uma experiência estética da imanência realizaria por outros meios o mesmo que uma filosofia da imanência proporcionaria por meio do trabalho do pensamento.

Para chegar a esse resultado, contudo, a autora seguiu um caminho um tanto longo, mas muito acertado e talvez quase inevitável. Ela primeiro expôs toda a filosofia de Espinosa contida na Ética . Essa exposição, que ocupa a primeira parte do livro, tem antes de tudo o mérito de oferecer ao leitor um verdadeiro trabalho de introdução ao pensamento de Espinosa. Aí estão presentes os principais conceitos espinosanos. Substância, atributos, modos, conatus, afetos, afecções, liberdade e eternidade, entre outros, são apresentados ao leitor com o cuidado de quem deseja introduzi-lo no universo dessa difícil filosofia da imanência.

Nesta primeira parte, que ocupa mais da metade do livro, o pensamento de Espinosa é apresentado com certa fidelidade e clareza. Há contudo um momento de sua exposição em que a autora parece trair tanto o “espírito” quanto a “letra” do texto espinosano. Ela traduz amor Dei intellectualis por “amor espiritual a Deus” (Hornäk 3, p. 246). E devemos frisar que não há erro na tradução para o português, realizada por Saulo Krieger e revisada por Rachel Gazolla: no original alemão, a expressão da autora é die geistige Liebe zu Gott (“amor espiritual a Deus”, grifo nosso). Trata-se sem dúvida de uma opção por “espiritual”, uma vez que uma das edições alemãs da Ética consultadas por Hornäk (elencadas no “Índice Bilbiográfico”) é justamente a Ethik de W. Bartschat, que traduziu corretamente o amor Dei intellectualis por Die intellektuelle Liebe zu Gott . Caberia, então, uma nota de rodapé da autora explicando tal opção, assim como seria útil ao leitor brasileiro uma nota explicativa por parte do tradutor ou da revisora. É que não estamos aqui diante de uma questão menor: “amor espiritual a Deus” é uma tradução inaceitável para todos aqueles que sabem o quanto o “amor intelecutal de Deus” de Espinosa está longe de receber o sentido espiritualista do “amor a Deus” das tradições religiosas e teológicas judaico-cristãs. Ademais, tal opção seria menos problemática, não fosse o fato de estarmos, aí, num momento conclusivo do percurso filosófico realizado por Espinosa e que Hornäk reproduz em seu livro: precisamente no ponto de chegada do caminho filosófico espinosano, no ápice da tarefa da Ética, o leitor desprevinido pode ser levado a confundir Espinosa justamente com aqueles aos quais ele se contrapôs ética e filosoficamente. Afora esse deslize – que pode ser pequeno ou grande, a depender de se o leitor de Hornäk é ou não também um leitor de Espinosa – não há problemas na exposição da autora, embora tampouco haja aí novidades interpretativas.

Realizando esse longo percurso pelo pensamento espinosano, na primeira parte do livro, a autora pôde se desincumbir, na terceira parte, de explicar cada conceito espinosano, ao tratar da relação entre a arte de Vermeer e a filosofia de Espinosa. Mas antes de chegar a ela, a autora também nos oferece uma segunda parte, espécie de intermezzo histórico no qual o leitor se vê às voltas com os problemas da imanência e da transcendência, num percurso que vai de Platão a Giordano Bruno, passando pelos neoplatônicos e Nicolau de Cusa, sem deixar de nos oferecer ainda, ao final, algumas considerações sobre o “plano de imanência” de Gilles Deleuze. Mas é sem dúvida a terceira parte do livro que concentra o que ele tem de melhor. Aí encontramos as teses principais da autora; aí vemos a filosofia juntar-se à crítica e à história da arte para se chegar a bons resultados, seja no que concerne à compreensão do pensamento espinosano, seja no que toca à interpretação das obras de Vermeer.

A ideia central de Sara Hornäk é que a imanência pode ser não apenas pensada, mas também mostrada . A imanência, para além de sua expressão recebida no trabalho de pensamento filosófico, se exprimiria também em outros campos do fazer humano – na arte, por exemplo, e Vermeer seria aqui exemplo privilegiado, particularmente A leiteira, obra sobre a qual se centram as interpretações da autora.

Na forma, na tecedura e combinação das cores, assim como no uso da luz, Vermeer deixaria ver ou daria visibilidade à mesma imanência de que nos fala Espinosa. Hornäk vê no tratamento de temas cotidianos precisamente uma recusa da transcendência em Vermeer. Não se trata de que nas obras do pintor encontraríamos a representação da imanência: dá- se antes que a própria imanência estaria aí presente, visível, expressa na tela mesma. Em Vermeer, assim como na teoria da mente da Ética, não haveria então a representação de ideias, motivos ou objetos; a própria imagem produziria seu sentido, assim como um sentido emerge no próprio texto da Ética – e Hornäk fala aqui em “autorreferencialidade”, em “estrutura de expressão horizontal”, para dar conta dessa potência expressiva imanente ao texto e à imagem (Hornäk 3, p. 329).

Arte e filosofia, entretanto, conservam esta potência expressiva de maneiras diferentes, cada uma a seu modo, em seu próprio campo e com seus próprios recursos. Hornäk não sonha estabelecer qualquer relação causal entre Vermeer e Espinosa. Ao mesmo tempo, ela vê no “conhecimento da imanência, que, segundo Espinosa, se dá intuitivamente” (Hornäk 3, p. 331), o elemento comum que os une. A intuição, que a autora corretamente vê, não como uma superação mística do racionalismo, mas como uma ampliação da própria razão, seria assim o meio pelo qual a imanência é inteligida e vivida, tanto em Espinosa quanto em Vermeer. Essa experiência intelectual e afetiva da imanência, que Espinosa exprime no conceito de amor intelectual de Deus, em Vermeer estaria presente na “quietude profunda” que Hornäk vê “expressa” em seus quadros, os quais permitiria uma certa “contemplação da eternidade”… (Hornäk 3, p. 331-333).

Mas de que forma, do ponto de vista da filosofia de Espinosa, tudo isso seria possível? A arte não é de fato uma atividade que se dá antes de tudo no campo da imaginação e portanto da ideia inadequada? Contudo, segundo Hornäk devemos superar a ideia de imaginatio como mero conhecimento inadequado. Lembremos que a imaginação, enquanto tal, está inscrita no rol das atividades dos modos finitos, o que significa que ela mesma é algo, é modo e constitui um modo de ser. Sabemos, ao mesmo tempo, onde está o problema teórico e prático da imaginatio : caímos no inadequado ao afirmarmos de um conteúdo imaginativo que ele é verdadeiro ou falso, bom ou mau, quando o próprio conteúdo não nos oferece tanto. Como estamos sempre no exercício do nosso conatus, é quase inevitável que a imaginação não venha acompanhada dessas afirmações ou negações. No entanto, o próprio conatus pode exercer-se de tal forma que a imaginação não seja um obstáculo, mas um reforço. A imaginação, muitas vezes, é antes uma potência, em vez de impotência e passividade. Flaubert e Machado de Assis nos dão a ver certas paixões humanas. Mas no ato mesmo em que escrevem, não são dominados por elas.

A imaginação no artista é, em casos como esses, um potente instrumento de criação, não de dominação daquele que imagina. Hornäk nos lembra que, na abertura do Breve Tratado, a forma de exposição é já artística; ademais, a própria forma de exposição geométrica da Ética é, para a autora, igualmente artística, pois faria emergir uma “estrutura complexa” em que definições, axiomas, proposições e demonstrações se mostrariam de tal forma interligados que, ao fim do texto, seríamos capazes de vê-lo todo, seríamos capazes de ver a simultaneidade da forma, assim como seríamos capazes de apreender a nossa essência singular inseparavelmente do Universo (o todo), da mesma maneira que a autorreferencialidade presente nos quadros de Vermeer nos dariam a ver o próprio real em sua simultaneidade.

Hornäk vê nos quadros de Vermeer a expressão do que ela chama de “força substancial” em meio às próprias coisas cotidianas. Os elementos cotidianos do pintor realizam a imanência pictoricamente. A arte pode tornar a imanência visível. Em Vermeer, mais do que em qualquer outro pintor do XVII, segundo Hornäk, dá-se justamente essa visibilidade da imanência. Para a autora, a imanência não é uma ideia puramente conceitual, e portanto não se trata de buscar na arte o sentido da imanência, mas sim de entender como ela se exprime na arte.

Vermeer retrata o cotidiano de tal forma que o que se exprime na tela é o singular (não o geral, isto é, não uma casa, um quarto, um vaso ou uma mulher, mas esta casa, este quarto, este vaso, esta mulher). Tomando sempre como referência A leiteira, Hornäk considera que o humano e o mundo estão igualmente presentes na tela de Vermeer, através da figuração plástica de uma mulher, um lugar e uma ação singulares. A singularidade do gesto da leiteira exprime-se em sua total concentração na realização do ato cotidiano de despejar o leite que sai de uma recipiente e entra em outro. Concentração e movimento, aqui, encerram a “quietude” que se exprime no gesto da leiteira. Para Hornäk, a apreensão intuitiva do “verter do leite” equivale a uma experiência da eternidade, uma vez que a Natureza se exprime nos modos e portanto também nos gestos mais cotidianos.

Para chegar a essas conclusões, Hornäk analisa o uso das cores, da luz e do que ela chama de “superfície de imagem e espaço de imagem”, em Vermeer. O trabalho de composição e combinação das cores mostra o quanto elas formam uma trama, uma tessitura, pela qual Vermeer “escreve” o “texto” da tela, de tal maneira que a imanência se faria presente no próprio ato criativo do pintor. Para Hornäk, entretanto, sem o uso específico que Vermeer faz da luz essa trama das cores seria impossível. Aqui, como muitos historiadores lembraram, o procedimento estético é o chiaroscuro . Hornäk lembra, porém, que o uso desse procedimento é de tal ordem que o chiaro não se opõe ao oscuro . Claro e escuro não são oposições irredutíveis. Em vez disso, eles formariam uma “unidade harmônica”. O homem não se opõe ao mundo; é dele um elemento discernível mas inseparável, componente intrínseco do todo. Mas de onde vem a luz, em A leiteira ? Segundo Hornäk, a luz intensa da parede não pode advir dos vidros da janela à esquerda da tela, porque eles estão demasiados embaçados para produzir uma tal luminosidade 1 . A luz da parede, intensa e profunda, seria produzida ali mesma, por ela mesma: ela seria, assim, figuração pictórica da causa imanens, da causa que não se separa do efeito após causá-lo. Certamente a importância que a autora dá ao papel da luz não é casual. Ela mesma nos lembra que para uma longa tradição de religiosos e pensadores a luz sempre foi considerada “símbolo do divino”. Mas a luz, em Vermeer, não seria o que remete a outra coisa, a algo fora da tela, ao transcendente: ela se dá e se constitui no cotidiano mesmo, alia onde as coisas estão, em meio a elas e por meio delas.

É contudo no momento em que analisa o problema da superfície e do espaço da imagem que a interpretação de Hornäk fica ao mesmo tempo mais interessante e mais controversa. Mais interessante porque aprofunda a interpretação da obra de Vermeer pela ótica da imanência espinosana; mais controversa porque, nesse aprofundamento, parece realizar uma leitura “piedosa”, “espiritualista” e um tanto mística da filosofia de Espinosa. E, realmente, a partir da análise de elementos formais de A leiteira, Hornäk identifica a figuração pictórica de temas como a “concentração” e a “quietude”. A mulher que no centro da tela faz jorrar o leite na vasilha sobre a mesa realiza esse ato com toda a atenção, compenetrada em seu gesto, a ponto de ela, sua ação, os objetos que a cercam, o próprio lugar, enfim, comporem uma “cena hermética” que exprime “concentração” plena e, por isso mesmo, certa “quietude”.

Nesta “cena hermética” encontra-se, porém, a abertura para todo o Universo, afirma Hornäk. A autora fala no “mundo sumamente próprio” e na “interiorização absoluta” que as telas de Vermeer deixariam ver. E, no entanto, precisamente aí encontraríamos “o atrelamento, tão difícil de apreender, entre finitude e infinitude” (Hornäk 3, p. 378). Haveria, então, uma espécie de “filosofia da imanência”, não dita, não escrita, mas figurada nas telas de Vermeer, particularmente em A leiteira ? As análises e interpretações de Hornäk parecem querer levar o leitor a essa conclusão. E de fato uma tal conclusão em Vermeer seria tanto mais possível quanto, segundo Hornäk, “o pintor suprime dualismos em teoria do conhecimento, como o que se tem entre imaginatio e ratio, corpo e alma, percepção e conhecimento” (Hornäk 3, idem).

Não é que autora desconheça o lugar da imaginatio na Ética de Espinosa. Sabe que na imaginação estamos sempre às voltas com o inadequado. Mas ela lembra que a conquista do adequado, em Espinosa, não se faz pela defesa “de um ponto de vista puramente racionalista”, já que Espinosa vai além da razão sem dispensá-la: a ciência intuitiva, o terceiro gênero de conhecimento, faz de Espinosa um racionalista sui generis no século XVII, pois com ela a própria razão se vê ampliada – não porque seja agora capaz de apreender mais generalidades, mas, ao contrário, porque capaz de captar singularidades, antes de tudo da essência singular do corpo de que esta mente intuitiva é a ideia. Contudo, precisamente a ciência intuitiva dá à imaginatio um outro estatuto: à imaginação não é mais dado o valor de verdade que era fonte de todo o erro (lembremos que a imaginação em si não é nem falsa nem verdadeira), mas antes um lugar na contemplação adequada de si que envolve uma outra imagem de si mesmo, das coisas e da Natureza (ou Deus), assim como da ligação necessária (eternidade) entre nós, as coisas e a Natureza.

A ciência intituitiva, portanto, envolve razão e imaginação, mas agora sob o aspecto da eternidade. Ora, precisamente esse conhecimento intuitivo corresponde, na arte, segundo Hornäk, à “uma atitude contemplativa, na qual o homem, mergulhado em si mesmo, assume um estado de interiorização”. Essa “interiorização” intuitiva estaria presente em A leiteira : “A criada parece espreitar a si mesma” (Hornäk 3, p. 382). Evidentemente, não estamos aqui diante de uma interiorização que nos faria cair num sopsismo sem saída de si, precisamente porque, realizando- se no campo da ciência intuitiva, ela é por isso a expressão da ligação que mente tem com a Natureza inteira, e, portanto, em vez de nos fechar em nós mesmos, ela é capaz de nos abrir a todas as coisas, ou, o que é o mesmo, de realizar uma abertura ao “múltiplo simultâneo”, para utilizar uma expressão de Marilena Chaui (Chaui 1, p. 103). É aqui que, para Hornäk, somos capazes de apreender o eterno no temporal, o infinito no finito, a Substância nos modos.

O que, entretanto, em A leiteira de Vermeer, revela-nos esse poder de apreensão intuitiva do real e de nós mesmo na Natureza? Aqui aparece com mais clareza aquele ponto controverso a que nos referimos acima. Para Hornäk, pode-se ver na ação da criada, em sua expressão, em seu gesto, uma atitude de “concentração”, “paciência” e “quietude”. E a autora chega mesmo a falar em “humildade”, dando-lhe outro sentido, que não é o de Espinosa: se para este a humildade é contemplação da própria impotência, para a autora ela é “dedicação plena de devoção”, que o gesto da criada deixaria entrever. Se, agora, reunirmos estes termos e expressões àquele “amor espiritual a Deus”, não poderíamos ver aí uma interpretação um tanto “piedosa”, isto é, religiosa, e espiritualista da filosofia de Espinosa, mas também das obras de Vermeer? Mas deixamos ao leitor um julgamento mais apurado e justo do livro. Em todo caso, é verdade que, por outro lado, o texto de Hornäk deixa entrever que humildade, paciência, quietude e concentração querem exprimir apenas um estado de alegria ativa, em que se fundem atividade e passividade, ação e contemplação, obra e expectador, texto e leitor. Para Hornäk, Vermeer desfaz de tal forma a oposição entre interioridade e exterioridade, que o observador pode tomar parte na atitude contemplativa da personagem figurada na tela.

Mas a conclusão talvez mais importante de Hornäk, nesse momento de seu percurso interpretativo, é a de que as figuras retratadas nos quadros de Vermeer não narram acontecimentos, mas exprimem a eternidade. Na concentração tem-se o elemento da atenção – e Hornäk não deixa de lembrar pelo menos um intérprete de Vermeer que tenha destacado o fato de que na arte holandesa do XVII ocorreu a representação do mais alto grau de atenção envolvido na atividade doméstica (Hornäk 3, p. 384). Concentração, atenção, presente. Para os zen-budistas, a beatitude não se faz fora do tempo presente, esse tempo que é o mais difícil de ser vivido, como dizia Jorge Luis Borges. E se não narra acontecimentos, nem por isso Vermeer figura naturezas mortas congeladas no tempo (como se tal fosse possível). Em vez disso, o pintor “dilata o passo temporalmente mensurado para uma duração que nos possibilita a eternidade” (Hornäk 3, p. 394), escreve Hornäk. E então compreendemos que o leite jorrado da leiteira “flui eternamente” (Hornäk 3, p. 396). O leite sendo derramado é um “transcurso”, é duração eterna ou um “demorado agora” no todo da eternidade.

Muitos intérpretes falaram do “enigma” na obra de Vermeer. Para Hornäk este enigma consiste em tornar visível o que é da ordem do invisível: a eternidade e a imanência. Mas não é isso o que precisamente Espinosa nos faz ver, sobretudo com sua Ética ? A diferença é que enquanto aí os “olhos da alma” são as demonstrações geométricas da mente, em Vermeer os “olhos da mente” são os próprios olhos do corpo diante da visibilidade de uma obra que mostra a imanência e eternidade dos gestos, das coisas, do homem. Hornäk não hesita em afirmar que “na obra de Vermeer se realiza a imanência”. E poderia ser diferente? Não seria correto dizer que, se todos os modos são modificações da Substância única que lhes é imanente, como eles a ela, a própria Substância está de algum modo em todas as coisas, em todos os gestos, em todos os homens, em todas as obras? Correto, mas, precisamente, ela se faz presente de maneiras diferentes. Há maneiras e maneiras de exprimir o Ser. Podemos fazê-los mais ou menos. Às vezes se está mais próximo de si mesmo; às vezes se está tão longe de si que é então a quase pura passividade o que impera. Neste último caso, um gesto, uma obra, uma ação exprimem apenas a exterioridade das relações e já não dizem quase nada, ou fazem muito pouco pela perfeição de nossa natureza e por nossa beatiude.

Sara Hornäk relembra uma passagem de O Olho e o espírito, na qual Merleau-Ponty afirma que na obra de Cézanne se “produz um cintilar do ser […] em todos os modos do espaço e também na forma” (Hornäk 3, p. 415-416). O mesmo, segundo Hornäk, se passa em Vermeer. Há nele a criação de uma “outra” realidade, sua obra remete a um “para além” do que se vê e se sente, mas ele o faz justamente no que se vê e se sente . “A segurança e capacidade com que a figura representada”, escreve Hornäk ainda sobre A leiteira, “realiza sua atividade permite que a cena apareça à luz da necessidade”. Eis, em Vermeer, a potência intrínseca da própria obra, a figuração do instante que se inscreve numa ontologia do necessário e que por isso mesmo torna visível a eternidade e imanência dos gestos, dos modos, dos acontecimentos. E, assim, por caminhos diferentes encontraríamos, em Vermeer como em Espinosa, uma mesma unidade de ser e agir, uma mesma afirmação da vida no presente, uma mesma potência de agir que se inscreve no seio da atividade eterna (sempre presente) dos atributos divinos que constituem a essência da Substância absolutamente infinita.

Deleuze amava dizer que a alegria espinosana realiza-se no mesmo ato de um bom encontro. Não se sabe se algum dia Espinosa encontrou-se com Vermeer, apesar de terem morado próximos um do outro, pelo menos durante os 17 anos em que Espinosa, mesmo tendo habitado diferentes cidades, não se afastou muito de Delft, a cidade de Vermeer. Mas Hornäk consegue realizar agora, para nós, esse bom encontro entre o filósofo e o pintor, entre a filosofia e arte, percorrendo o mesmo fio imanente que une um e outro, uma e outra, e todos nós. .

Notas

  1. Há um pequeno buraco, num dos vidros, que deixa ver o quanto eles estão embaçados, provavelmente pelo calor do ambiente interno em oposição ao frio do exterior

Referencias

  1. CHAUI, Marilena de S. “Ser Parte e Ter Parte: Servidão e na Ética IV”. In: Discurso, no. 22, 1993.
  2. ESPINOSA, Baruch de. Tratado teológico-político. São Paulo: Martins Fontes, 2003.
  3. HORNÄK, Sara. Espinosa e Vermeer: imanência da filosofia e na píntura. São Paulo: Paulus, 2010.

Marcos Ferreira de Paula – Professor de filosofia do Curso de Serviço Social da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp).

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A unidade do corpo e da mente: afetos, ações e paixões em Espinosa – JAQUET (CE)

JAQUET, Chantal. A unidade do corpo e da mente: afetos, ações e paixões em Espinosa. Tradução Marcos Ferreira de Paula e Luís César Guimarães Oliva. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2011. Resenha de: D ’AMBROS, Bruno. Cadernos Espinosanos, São Paulo, n 26, 2012.

Lançado na França em 2004, o livro de Chantal Jaquet chega ao Brasil em 2011, publicado pela editora Autêntica. A tese da união entre mente e corpo de Espinosa tem despertado o interesse de neurobiologistas e psicomotricistas pelo filósofo holandês. Porém, como toda popularização implica quase sempre numa simplificação, surge o receio de que possa haver tal simplificação de Espinosa. É neste intuito que surge o livro de Chantal Jaquet, como precaução de eventuais abusos e simplificações extremas da filosofia de Espinosa e também como um estudo aprofundado das relações entre a mente e o corpo “sob o prisma dos afetos.” (JAQUET 1, p.17)

O livro se divide em cinco capítulos, cujos títulos são: “A natureza da união do corpo e da mente”, “A ruptura de Espinosa com Descartes a respeito dos afetos na Ética III”, “A gênese diferencial dos afetos no prefácio do Tratado teológico-político e na Ética”, “A definição do afeto na Ética III”, “As variações do discurso misto.”

“A natureza da união do corpo e da mente”

Há muito tempo, desde Leibniz, os comentaristas de Espinosa sempre falaram na união psicofísica em termos de paralelismo entre o corpo e a mente. No entanto Chantal Jaquet sustenta que a doutrina do paralelismo não é adequada para compreender Espinosa.

A doutrina do paralelismo é nociva à compreensão da unidade psicofísica e não conduz à uma compreensão adequada do monismo de Espinosa porque “conduz a pensar a realidade com o modelo de uma série de linhas similares e concordantes que, por definição, não se encontram.” (JAQUET 1, p.25). A doutrina do paralelismo, ainda, supõe “homologias e correspondências biunívocas entre as ideias e as coisas, a mente e o corpo”; supõe que a natureza está “condenada à uma ecolalia sem fim, a uma perpétua repetição do mesmo em cada atributo”; supõe que a unidade é uniformidade; supõe  também “uma tradução sistemática dos estados corporais em estados mentais”; e, assim, que o paralelismo “mascára tanto a unidade quanto a diferença” da união psicofísica. (JAQUET 1, p.29 – 30).

Mais adequado do que a doutrina do paralelismo, para pensar Espinosa, é a doutrina da igualdade. O próprio Espinosa sustenta que há uma igualdade entre potência de pensar e de agir, tanto em Deus como no homem, usando o mesmo adjetivo latino æqualis, tanto para a potência de pensar e agir de Deus como para a do homem. Quando Espinosa diz ordo idearum ordo rerum ele quer dizer que a ideia de um sujeito é a expressão igual de alguma coisa externa, extensa, a este sujeito pensante. Portanto “a teoria da expressão em Espinosa é regida inteiramente pelo princípio da igualdade.” (JAQUET 1, p.32)

“A ruptura de Espinosa com Descartes a respeito dos afetos na Ética III”

Chantal Jaquet sustenta que Espinosa e Descartes não estariam tão distantes no que tange aos afetos, ambos têm alguns pontos de convergências. Podemos resumir as convergências entre Descartes e Espinosa em alguns pontos básicos, principalmente nas obras As paixões da alma e na Ética : em ambos há um esforço para superar o dualismo mente/ corpo, em ambos há uma abordagem física e mental dos afetos, ambos fazem uma abordagem dos afetos por um método físico-geométrico, em ambos há uma naturalização e racionalização dos afetos, para ambos as paixões são inerentes ao ser humano, para ambos há uma ordem causal por detrás da desordem das paixões, para os dois a mente tem poder sobre as ações e ambos fundam uma “ciência” dos afetos.

Mas, quanto às divergências sobre os afetos, elas se resumem a dois pontos: um concerne à causa das paixões; o outro, à “natureza do poder da mente sobre elas” (JAQUET 1, p.57). Descartes sustenta que a causa das paixões são as ações do corpo sobre a alma e da alma sobre o corpo, ou seja, para ele as paixões são movimentos ativos. Espinosa sustenta que a causa das paixões não está de forma alguma nas ações do corpo ou da alma, ou seja, para ele as paixões são movimentos passivos tanto do corpo quanto da alma, já que ambos são igualmente ativos ou passivos, conforme aquele “princípio de igualdade” das potências que nos fala Chantal. A proximidade entre Descartes e Espinosa, segundo Chantal, está em que ambos concebem corpo e mente em termos de relação psicofísica; mas a distância que os separa está em que Descartes, em última análise, atribui a causa das paixões a uma ação corpo (JAQUET 1, p.58), enquanto Espinosa a atribui à relação do corpo e da mente com a exterioridade, na qual as ideias na mente são determinados pelo exterior (ideias inadequadas). Mas, como lembra Chantal, esse diferente entre os dois filósofos acarreta uma outra, que concerne ao poder da alma sobre os afetos (JAQUET 1, p.60): Descartes acreditava num poder absoluto da alma sobre o corpo, já que ela era a detentora de uma vontade livre capaz de controlá-lo; Espinosa fala em moderação dos afetos a partir de seu conhecimento, isto é, a partir da formação de uma “ideia clara e distinta”, ou adequada, sobre o próprio afeto passivo que, então, deixa de ser passivo (JAQUET 1, p.63).

“A gênese diferencial dos afetos no prefácio do Tratado teológico- político e na Ética”

Chantal Jaquet trata de uma diferença significativa em duas obras de Espinosa, uma da juventude, o Breve Tratado (1660), e a Ética (1677) . No primeiro, a percepção do corpo pela mente é um efeito do corpo ainda; assim, há uma “ação recíproca da alma sobre o corpo” e vice- versa que configuraria um parentesco com Descartes. Na última, a percepção do corpo pela mente é um efeito das ideias das afecções do corpo; aqui ele “exclui toda causalidade recíproca e toma a forma de uma equivalência e de uma correspondência entre modos e atributos diferentes” estabelecendo uma ruptura completa com Descartes.

A questão, portanto, para Jaquet, é “saber se as diferenças são o índice de uma simples mudança de pontos de vista compatíveis entre si ou se elas revelam divergências que atestam uma mutação do pensamento de Espinosa.” (JAQUET 1, p.73).

Para compreender esta questão Chantal Jaquet vai para uma obra intermediária de Espinosa, que fica entre o Breve Tratado e a Ética, o Tratado teológico-político (1670), que, por sua localização intermediária entre as duas obras iniciais mostra a evolução do pensamento de Espinosa em direção à Ética.

O Tratado teológico-político tem muitas diferenças em relação à Ética; as principais tangem aos afetos, que são diferentes dos apresentados na Ética. Uma distinção importante é que no Tratado teológico-político não há, ainda, a distinção entre afetos ativos e passivos. Ali os afetos são vistos como passivos sempre. Aquilo que mais tarde a Ética vai chamar de afetos ativos estão agrupados sob a categoria de fortitudo, subdivididos em animositas e generositas.

Outro ponto que é ressaltado por Jaquet é que no Tratado teológico-político o apetite e o desejo são opostos à razão. O Tratado teológico-político não tem a intenção de fazer uma teoria dos afetos, seu objeto é outro, por isso ele não contém explicitamente uma teoria dos afetos e quando cita os afetos, cita-os sempre como paixões, não mencionando que há afetos ativos. Já na Ética há uma virada em Espinosa. Nela o afeto é definido como fruto de uma causalidade adequada ou como fruto de uma causalidade inadequada: no primeiro caso o afeto é ativo, no segundo é passivo; ou seja, os afetos ativos são ações e os afetos passivos são paixões. Os três afetos básicos – desejo, alegria e tristeza – são decorrentes desta definição. A distinção entre afetos ativos e passivos é uma inovação da Ética. Na Ética há uma “razão apetitiva e um apetite racional.” (JAQUET 1, p.93). A Ética oferece assim “uma visão mais unificada do homem, o qual não é dotado senão de uma única natureza apetitiva que se declina seja sob um modo passivo, seja sob um modo ativo.” (JAQUET 1, p.93). Na Ética “a razão torna-se essa potência ativa capaz de engendrar afetos que coíbem as paixões tristes.” (JAQUET 1, p.94).

Portanto, há uma evolução do pensamento de Espinosa, em direção à Ética, que “confirma essa orientação do sistema rumo a uma concepção mais e mais dinâmica do potência de agir.” (JAQUET 1, p.96).

“A definição do afeto na Ética III”

Uma primeira questão que aparece na Ética é referente à palavra affectus. Chantal Jaquet aponta que, dentre as várias palavras latinas à disposição – emotio, passio, commotio – Espinosa utiliza a palavra affectus e que dentre as várias traduções – emoção, paixão ou sentimento – a mais adequada é afeto.

Quanto à definição de afeto, na parte III da Ética há duas definições, uma no início (SPINOZA 2, III, def.3) e outra no final (SPINOZA 2, III, def. geral). Na primeira o afeto é ativo e passivo. Na segunda o afeto é somente passivo. Esta segunda definição é a mais problemática, porque ela é uma definição geral dos afetos e, no entanto, restringe o afeto ao seu aspecto de passividade e mental.

O problema da segunda definição do afeto é que ela é uma definição geral (generalis) e está no final da parte III, o que induz a pensar que ela é uma definição genérica que tenta abranger todos os afetos. Porém ela foca só o aspecto mental e passivo dos afetos, excluindo os ativos. Chantal Jaquet diz que ela é uma definição generalis no sentido de gênero e não de genérico, por isso ela enfatiza o aspecto passivo e mental do afeto porque desta forma, prestando atenção às características genéricas das paixões, pode-se determinar sua força, sua utilidade, sua nocividade e a potência da mente para contrariá-las: “ela é dita geral pois remete todas as paixões a um só gênero, a ideia confusa, e permite em seguida compará-las em função de sua aptidão a aumentar ou diminuir a potência de agir do homem.” (JAQUET 1, p.115)

Espinosa diz que os afetos são afecções corporais que aumentam e ajudam ou  diminuem e contrariam a potência de ação deste corpo e também que os afetos são as ideias destas afecções do corpo (SPINOZA 2, III, Def.3, p.98). Nesta definição, o afeto é definido primeiro em relação ao corpo e depois em relação à mente.

A primeira questão que o aspecto corporal do afeto implica é sobre a distinção entre afeto e afecção. Todo afeto é uma afecção corporal mas nem toda afeção corporal é um afeto, portanto, o que distingue afetos de afecções? O critério de diferenciação é a potentia agendi do corpo, ou seja, “uma afecção é um afeto se e somente se tem um impacto sobre a potência de agir do corpo.” (JAQUET 1, p.129). Desta forma os afetos se diferenciam das afecções porque eles tem a capacidade de fazer variar a potentia agendi.

Tudo tem uma potentia agendi porque a potentia agendi é uma vis existendi. Portanto, devemos entender a potência de agir como força de existir e a verdadeira potência de agir é a que tem a ver com as ações, pois repousa sobre um conhecimento adequado, porque aumenta a potência como força de existência. As ações, isto é, aquilo que um sujeito ativo faz, é causa adequada dos efeitos corporais, aumentando a potentia agendi como vis existendi.

Há quatro tipos de afetos que impactam a potentia agendi : os que aumentam ou diminuem e os que ajudam ou coíbem. Chantal Jaquet sustenta que há uma diferença entre os que aumentam/diminuem e os que ajudam/coíbem, dizendo que o segundo grupo não é somente um recurso de insistência, mas que há uma diferença de grau e natureza entre eles. O segundo grupo, que ajuda/coíbe a potência, são afecções que não aumentam nem diminuem a potência de agir do corpo, mas que “só fazem neutralizar as forças contrárias ou favoráveis.” (JAQUET 1, p.142).

Então, Chantal Jaquet elenca cinco tipos de afecções que ajudam ou coíbem a potentia agendi: 1) ajuda ou coíbe o que se opõe à destruição do que se ama ou à conservação do que se execra; 2) ajuda ou coíbe que a imagem da alegria do que se ama seja vista como causada por nós; 3) ajuda ou coíbe sentimentos que mudam de hostis à amigáveis ou de amigáveis a hostis; 4) ajuda ou coíbe alguém que faz o bem ao outro ou não; 5) ajuda ou coíbe a concepção adequada ou inadequada da impotência humana.

O afeto também é definido em relação ao atributo pensamento, à mente. Os afetos são as afecções corporais, mas também são ao mesmo tempo (et simul) as ideias destas afecções corporais, e estas ideias são modos certos e determinados da atividade eterna e infinita do atributo pensamento.

Chantal Jaquet diz que há três maneiras de compreender o advérbio et simul, que se refere à simultaneidade das afecções corporais e mentais. Primeiro, et simul significa que os afetos são psicofísicos. Segundo, et simul significa que os afetos são psíquicos. Terceiro, que eles são físicos. Desta forma há três categorias de afetos, os psíquicos, os físicos e os psicofísicos.

“As variações do discurso misto”

Espinosa faz três divisões concernentes aos afetos: ações e paixões, primitivos e compostos e bons e maus. Desta forma ele não visa uma enumeração exaustiva dos afetos porque os afetos, de um modo geral, se reduzem à três, o desejo, a alegria e a tristeza. Os outros afetos compostos são decorrentes destes afetos primitivos.

Mas Chantal Jaquet estabelece três categorias de afetos, segundo a referência seja mais o corpo, a mente ou ambos, embora todo afeto conserve uma natureza psicofísica. Primeiro há os afetos que se referem ao corpo e à mente, simultaneamente: são os propriamente psicofísicos, que têm “uma realidade psicofísica, sendo objeto de um discurso misto exprimindo a mente e o corpo em paridade.” (JAQUET 1, p.168). Dentro dos psicofísicos, estão os três afetos originários – desejo, tristeza e alegria – e alguns derivados, como o orgulho, a humildade e o amor a Deus. Depois, há os afetos propriamente corporais e Espinosa põe a carícia, a hilaridade, a dor e melancolia como afetos corporais também porque eles “têm um impacto sobre a potência de agir e a fazem variar” (JAQUET 1, p.172). Além destes há também o fastio e o tédio. Por fim, há os afetos mentais. Chantal Jaquet elenca o amor intelectual de Deus, a glória, o arrependimento e a saudade como afetos propriamente mentais.

Diz Espinosa que “Se uma coisa aumenta ou diminui, estimula ou refreia a potência de agir do nosso corpo, a ideia dessa coisa aumenta ou diminui, estimula ou refreia a potência de pensar de nossa mente.” (SPINOZA 2, III, prop.11). Desta forma, todo discurso sobre os afetos, sejam eles mentais ou corporais, é “de essência psicofísica.” (JAQUET 1, p.176). Apesar de a ordem das ideias ser a mesma que a ordem das coisas, nem todo afeto concerne à mente e ao corpo da mesma maneira. Isso remete à tese de Chantal Jaquet de que o monismo espinosano deve ser concebido como igualdade de potência e não paralelismo. “O corpo e a mente são apreendidos ao mesmo tempo sem ter necessariamente o mesmo tempo” (JAQUET 1, p.181, grifo da autora). Por isso o discurso sobre os afetos é sempre misto, nunca é só corporal nem só mental.

Desta forma Espinosa “convida a romper com uma concepção simplista da igualdade entre a potência de pensar e de agir que faria dela a resultante de uma atividade análoga no corpo e na mente ou o reflexo idêntico do que se passa em cada um dos objetos.” (JAQUET 1, p.183). Isto quer dizer, a título de conclusão, que a doutrina da expressão de Espinosa  não supõe paralelismo nem causalidade recíprocas, mas, sim, igualdade, que é antes de tudo uma igualdade de potência; e esta é a tese central de Chantal Jaquet. A mente tenta sempre ver paralelismo e causalidade recíproca entre o corpo e a mente, mas, na verdade, eles não existem, a não ser como pensamentos. A igualdade da potência de pensar e de agir não elimina, contudo, as desigualdades de expressão da mente e do corpo, porque eles exprimem atributos que são diferentes (pensamento e extensão, donde a desigualdade expressiva), mas que constituem a essência de uma mesma Substância (donde a igualdade de potência).

“Conclusão”

É importante ressaltar que o livro da filósofa francesa Chantal Jacquet está em diálogo com o livro do neurocientista português António Damásio Em busca de Espinosa: prazer e dor na ciência dos sentimentos . Nesta sua obra, o neurocientista resgata o filósofo holandês para justificar a atualidade de seu monismo sobre o dualismo cartesiano dentro da neurociência contemporânea.

No entanto, ao ver de Chantal Jaquet, o neurocientista português “não está sempre à altura de seu modelo e carece às vezes de rigor, porque continua a falar de emergência da mente a partir do corpo, de passagem do neural ao mental.” (JAQUET 1, p.188). Esta crítica da filósofa francesa se confirma no trecho onde o próprio Damásio diz que “é preciso compreender que a mente emerge de um cérebro ou de um cérebro situado no corpo propriamente dito com o qual ela interage; que, devido à mediação do cérebro, a mente tem por fundamento o corpo propriamente dito.” (DAMÁSIO 3, p.91). Para Jaquet, Damásio tende a pensar a mente em termos de emergência a partir do corpo, quer dizer, do cérebro. Para Damásio o cérebro causaria a mente – a alma, a consciência, o pensamento – porque ele pensa a relação psicofísica em termos de paralelismo. António Damásio erra ao apresentar a unidade do corpo e da mente “sob a forma de um paralelismo.” (JAQUET 1, p.189). Do estudo dos afetos em Espinosa, Chantal Jaquet extrai duas lições. A primeira lição é “banir toda busca de interação, de influência ou de causalidade recíproca entre a mente e o corpo para pensar unicamente em termos de correspondência e de correlação.” (JAQUET 1, p.187). A segunda lição é que “o modelo espinosista da união psicofísica não repousa sobre um paralelismo, mas sobre uma igualdade.” (JAQUET 1, p.188). Dessas duas lições sobre o estudo dos afetos conclui-se que há uma identidade entre a ordem e a conexão das ideias e das coisas; mas que tal identidade não “deve mascarar a diferença de expressão própria aos modos de cada atributo.” (JAQUET 1, p.190).

Referências

  1. JAQUET, Chantal. A unidade do corpo e da mente: afetos, ações e paixões em Espinosa. Tradução Marcos Ferreira de Paula e Luís César Guimarães Oliva. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2011.
  2. SPINOZA, Benedictus de. Ética . Tradução de Tomaz Tadeu. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2009.
  3. DAMÁSIO, António. Em busca de Espinosa: prazer e dor na ciência dos sentimentos. São Paulo: Companhia das letras, 2004.

Bruno D ’Ambros – Graduando em Ciências Sociais pela Universidade Federal de Santa Catarina.

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Le devenir actif chez Spinoza – SÉVÉRAC (CE)

SÉVÉRAC, Pascal. Le devenir actif chez Spinoza. Paris: Honoré Champion Éditeur, 2005. Resenha de: PAULA Marcos Ferreira de. Como tornar-se livre e feliz. Cadernos Espinosanos, São Paulo, n 22, 2010.

Lançado na França há cinco anos, Le devenir actif chez Spinoza, de Pascal Sévérac, é uma dessas obras de comentário que se tornam “referência obrigatória” assim que são publicadas. O tema de que trata Sévérac toca o cerne da filosofia de Espinosa: como “tornar-se ativo”? Pergunta que, em Espinosa, pode ser perfeitamente reescrita assim: como afinal chegamos a ser livres e felizes? É por isso que devenir, aqui, é melhor traduzido por “tornar-se”, em vez de “devir”, já que o tema do livro não é outro senão o processo mesmo de conquista da felicidade e da liberdade. Há contudo, como veremos, um lugar da obra em que o termo pode ser traduzido como devir.

A importância das paixões alegres

Um pouco na esteira de Deleuze, Sévérac põe a “alegria passiva” no centro do problema do “torna-se ativo”. De fato, pergunta-se Sévérac, pode-se ser feliz, isto é, potente, em meio a uma passividade que é constitutiva, já que somos parte da Natureza em relação com outras partes? Como pensar a passividade ou impotência numa filosofia que propõe uma ontologia da afirmação absoluta? São problemas éticos e ontológicos que poderiam ser focalizados num só ponto: a existência de alegrias passivas. De um lado, elas mostram que não se pode identificar passividade e sofrimento; de outro, elas deixam ver há um paradoxo: enquanto alegria é aumento da potência, mas enquanto paixão é negação da potência; paradoxo que, porém, não chega a ser uma contradição, já que a alegria passiva não é ao mesmo tempo aumento e diminuição, mas aumento e negação que só podem ocorrer em momentos afetivos diversos, e por causas que não dizem respeito à alegria em si mesma. Como se poderia, com efeito, distinguir subjetivamente a alegria passiva da alegria ativa? A diferença objetiva, como bem lembra Sévérac, não é um problema: somos causa parcial do afeto de alegria, num caso, e causa total no outro. Mas se não há diferença, o que explica a passagem? Qualquer leitor de Espinosa sabe que não se trata de dever moral: não somos obrigados a buscar a felicidade, por uma determinação extrínseca à nossa própria experiência afetiva. A questão, portanto, não é o que se deve ou não fazer, mas o que se ganha e o que se perde ao se passar da alegria passiva à ativa. Assim, como indica a leitura atenta que Sévérac faz de Espinosa, é preciso perguntar como se explica o problema, considerando-se a realidade efetiva do desejo. E aqui questão do livro ganha toda a sua força e coerência, indo ao cerne do problema ético: como afinal chegamos a desejar, no interior mesmo da vida passiva, o tornar-se ativo? É assim que a abordagem do problema do “tornar-se ativo” ou da conquista da felicidade passa pela consideração, por um lado, daquilo que na própria vida passiva nos impede de ser ativos, mas, por outro lado, daquilo nela justamente nos leva a desejar o tornar-se ativo. Vê-se então que não saímos do campo das paixões ao explicar a passagem à atividade, porque é aí que o problema se explica.

A estrutura da passionalidade admirativa

E a explicação de Sévérac nos traz uma contribuição original, ao enfatizar o papel de um afeto em particular: a admiratio. A admiração é de fato um afeto bastante particular na teoria das paixões de Espinosa: ela mantém a mente fixada numa coisa através de uma “imaginação singular” (singularis imaginatio) que não tem nenhuma conexão com as outras coisas (Spinoza 2, Def. dos Afetos 4, p. 241). Dada assim a sua estrutura particular, a admiração é o afeto que, segundo Sévérac, oferece o maior obstáculo ao processo liberativo. O problema maior é que, afirma o autor, muitos afetos passivos não comportam a mesma estrutura da admiração, e é por isso que a esses afetos nós tendemos a aderir tenazmente, isto é, de forma obessiva (fixação afetiva).

A fixação e a obsessão nos distraem de outros bens que poderiam aumentar nossa capacidade de agir e pensar. Elas limitam nossa potência. Riqueza, libido e honras são assim, na leitura de Sévérac, bens que nos distraem (o termo de Spinoza é distrahitur), mas a distração não é ela mesma um sofrimento, uma tristeza – ou seja, uma diminuição da atividade de pensar: ela é um impedimento dessa atividade, um obstáculo, uma barreira. Nessa medida, escreve Sévérac: “ (…) a distractio, a qualquer bem que ela se reporte, não envolve nenhum sofrimento em si mesma. Ela consiste de fato em um impedimento para aceder ao verdadeiro bem, mas esse impedimento não é sentido como tal: ele não é sentido como um mal (Sévérac 1, p. 235). A admiração, portanto, impede a potência sem necessariamente entristecer. Eis por que os afetos que ocorrem sob a estrutura da admiração podem nos manter fixados e obsedados num determinado bem, numa determinada coisa ou alegria, limitando nossa capacidade de agir e pensar. Se o tornar-se ativo é a aptidão para o “múltiplo simultâneo”, para usar uma expressão de Chaui, então o maior problema é o pensamento ou afeto obsessivo. É portanto sob a estrutura da admiração que um afeto adere tenazmente. E o afeto tenaz é justamente o grande inimigo a ser combatido, na interpretação de Sévérac. As teorias da admiração, do afeto tenaz e da distração levam a uma outra: a “Teoria da ocupação da mente”, assunto de todo o capítulo IV do. Todas estas teorias estão intimamente interligadas, em Sévérac: a admiração é a estrutura afetiva que leva à fixação em certos afetos, aos afetos que aderem tenazmente; com isso, causando um desejo excessivo e nos fazendo admirá-los sem cessar, nós somos distraídos a tal ponto que não podemos pensar noutra coisa, e portanto não podemos pensar em outro modo de vida melhor, o que em Espinosa significa não pensar num “modelo de natureza humana”; assim, a mente então pode estar ocupada, ou com o que nos distrai, ou com o que nos permite pensar no novum institutum. É da distração, e da fixação num “modelo de natureza humana”, esses dois modos por excelência de ocupação da mente sob as paixões, que trata o capítulo IV.

A idéia de modelo é importante na argumentação de Sévérac. Trata-se de pensar, ainda no campo próprio das paixões, um novo modo de vida. É portanto ainda no campo do imaginário que o tornar-se ativo se impõe. Se tudo se passa no universo passional, ser salvo é ser salvo através do corpo: não podemos, só pela razão, abandonar nossas alegrias. É que a negação da potência não significa necessariamente tristeza, como o demonstra a alegria passiva, mas antes polarização dos afetos, fixação e obsessão afetiva. Mas justamente toda a dificuldade em tornar-se ativo está em que a conquista da felicidade deve ser realizada em meio à passividade alegre, em que o problema é, especificamente, o afeto tenaz. É sob o afeto tenaz que somos dominados pelas paixões, e é esse o maior obstáculo ao devir ativo. O pensamento de um “modelo de natureza humana”, tal como aparece no Tratado da Emenda do Intelecto e no prefácio da Parte IV da Ética, exemplifica a utilidade da imaginação. Para Sévérac, o devir ativo exige a substituição de um “imaginário da obsessão” por um “imaginário da salvação”.

Assim, as paixões que nos dominam devem ser combatidas no próprio campo da passividade: forjamos um “modelo de natureza humana” que é ele mesmo um objeto admirado e sobre o qual nos fixamos de algum modo. Há portanto, ainda no campo da imaginação, uma mudança de idéia, isto é, de afeto. Mas se toda obsessão se dá, como toda paixão, sob a estrutura da passionalidade admirativa; se todo imaginário fixo é “imaginário admirativo”, de que modo o imaginário do modelo não nos manteria fixos numa outra ilusão? A resposta está em como se opera uma tal mudança. E aqui Sévérac não hesita em nos remeter à idéia de que tudo se passa num campo de forças: não basta que uma idéia seja verdadeira para nos livrar de uma paixão, é preciso que ela nos seja um afeto mais forte e contrário aos afetos a serem combatidos. A própria racionalidade encontra então seus meios de se afirmar contra os amores excessivos, exclusivos e fixadores, pela constituição de um imaginário que a toma por objeto (Sévérac 1, p. 434).

o eterno devir ativo

O livro de Sévérac é extenso e sua análise é minuciosa. O leitor tem a impressão de que o autor tenta resolver todos os problemas que aparecem no desenrolar da argumentação, de que todas as questões devem ser enfrentadas sem economia (na medida do possível) de tempo e espaço. Não cabe aqui tratar de todas elas. Mas uma questão importante que Sévérac teve que enfrentar, evidentemente, é a do problema da eternidade em Espinosa. Aqui talvez o termo devenir possa ser melhor traduzido por devir. É o problema do “devenir actif éternel”: como se poderia falar de um devir ativo numa metafísica em que nossa participação no Real, na Natureza e na Substância é proclamada eterna? Ou seja, se somos já de algum modo eternos, como pensar um devir ativo, ou um vir-a-ser feliz? Em outras palavras, o problema da conquista da felicidade, o tornar-se ativo, se colocaria então em termos da conquista de nós mesmos, daquilo sempre fomos mas não sabíamos que éramos. É o assunto do último capítulo do livro.

A eternidade em Espinosa parece pôr em questão a possibilidade do tornar-se ativo como conquista através de um “supremo esforço”, summum conatus. A eternidade é uma descoberta ou uma revelação? Uma invenção ou uma produção? (Sévérac 1, p. 417). O escólio da proposição 34 da Parte V da Ética afirma que os homens têm consciência de sua eternidade, mas a confundem com a imortalidade. Para Sévérac, há duas maneiras possíveis de ler essa afirmação: ou bem há uma eternidade em si que não é por si (ela está lá, dada, mas não temos – a maior parte dos homens – consciência dela); ou bem a crença na imortalidade é uma consciência da eternidade, mesmo que seja uma idéia confusa, e neste caso não há eternidade que não seja ao mesmo tempo em si e para si. O escólio da proposição 23 da Parte V parece concordar com essa segunda interpretação, já que afirma que toda mente é em parte eterna, e, mais do que isso, afirma que nós “sentimos e experimentamos” ser eternos.

Mas o problema da eternidade, diante do tema do tornar-se ativo, aparecerá com toda clareza no escólio da proposição 31 do De libertate, onde Espinosa afirma que, embora só agora estejamos certos da eternidade da mente, consideraremos como se só a partir de então ela começasse a o ser, como se a eternidade da mente tivesse tido um começo no momento em que compreendemos que ela é eterna em parte. Por esse escólio Sévérac afirma que podemos diferenciar o fato de a mente ter uma parte eterna do fato de temos a certeza disso (Sévérac 1, p. 423). Para ele, é justamente porque nos tornamos eternos, porque começamos a experimentar o amor intelectual, que nós fazemos como secomeçássemos a ser eternos (Sévérac 1, p. 424). Contudo, assim como, para formar uma idéia verdadeira do círculo forjando o movimento de um semi-círculo em torno de seu centro, é preciso já ter uma idéia de círculo, assim também, para formar a idéia verdadeira de nossa eternidade é preciso forjar a idéia de seu começo. Porque, segundo o autor, é a ficção do devir eterno que engendra a certeza do devir eterno, da eternidade, com o que nos tornamos verdadeiramente mais e mais eternos:

“Os comentadores sem dúvida insistiram bastante sobre o fato de que nos é preciso ser eterno para em seguida tornarmos-nos certos dessa eternidade; é preciso quanto a nós insistir sobre o fato de que só podemos nos tornar certos de sermos eternos se engendramos a partir da ficção de um devir essa certeza, e portanto essa existência eterna” (Sévérac 1, p. 425).

É então a ficção do devir eterno que nos permite ter a certeza de nossa eternidade (Sévérac 1, p. 426), e é a idéia fictícia do devir ativo – o que ele chama de “ficção verdadeira” – que eliminará contudo a idéia de um engendramento da eternidade: “…a ficção do devir faz vir efetivamente o que retrospectivamente não pode mais ser concebido adequadamente em termos de devir” (Sévérac 1, p. 427). Assim a passagem à atividade é uma idéia fictícia que precisa ser forjada. Não há de fato passagem: o que há é um esforço que vai de uma atividade reduzida, porque limitada pelas potências exteriores, à uma atividade expandida, porque determinada antes de tudo pela atividade interna da mente na produção dos afetos.O devir ativo eterno não é portanto inexplicável. Ele se deixa apreender no momento mesmo em que se realiza. No ponto onde tudo pareceria problemático – de onde um devir eterno se já estamos necessariamente na eternidade? –, tudo se resolve, segundo Sévérac, pois no momento mesmo em que nos tornamos eternos, já não podemos mais nos pensar como não eternos (Sévérac 1, p. 435). Sévérac nos fala assim em processo eterno de engendramento da certeza da eternidade. Partindo da passividade, cabe-nos engendrar a atividade eterna, e é a isso que nos conduz nosso “supremo esforço”, que recorre à ficção de nosso “nascimento na beatitude”, mas essa ficção “faz advir o que retrospectivamente não pode mais ser concebido senão como eterno”. O devir ativo reabsorve todo o passado, que se torna ele mesmo eterno, sendo concebido em sua eternidade. Os estudiosos de Espinosa não deixarão de encontrar, nessas leituras de Sévérac, os motivos de um grande prazer intelectual.

Referencias

  1. SÉVÉRAC, Pascal. Le devenir actif chez Spinoza. Paris: Honoré Champion Éditeur, 2005.
  2. SPINOZA, B. de. Ética. Tradução de Tomaz Tadeu. Belo Horizonte: Autêntica, 2007.

Marcos Ferreira de Paula – Professor de filosofia do Departamento de Saúde, Educação e Trabalho da Unifesp-Santos.

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