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História, Assistência e Saúde / Varia História / 2010
Os artigos reunidos no Dossiê História, Assistência e Saúde foram originalmente expostos no Seminário Internacional Estado, Assistência e Filantropia, ocorrido no Rio de Janeiro, em novembro de 2009[1]. O objetivo central desse evento foi promover o debate sobre as tendências atuais da historiografia consagrada à questão da assistência, contemplando a diversidade de perspectivas e abordagens relacionadas ao tema.
É frequente que os debates acerca do socorro, da assistência e da proteção à saúde estejam referidos na historiografia por – particularmente naquela que trata da emergência da saúde pública por – como uma dimensão do Estado de bem-estar social e sua relação com os modelos tradicionais de assistência pública e privada. Nessa perspectiva, também se alinham os estudos relacionados à profissionalização da assistência e do cuidado, uma vez que a nova configuração da assistência à saúde foi propícia à emergência de novas profissões (médicos sanitaristas, enfermeiras de saúde pública, educadoras sanitárias, assistentes sociais) e à redefinição da atuação das tradicionais profissões de saúde. Mais recentemente o gênero, a etnia e as chamadas idades de vida (infância, juventude e velhice) também se tornaram variáveis fundamentais para o entendimento das formas modernas de assistência e bem-estar social.
Para os estudos acerca dos valores religiosos, científicos, profissionais ou filosóficos que orientam as ações que visam promover formas, compromissos e pactos de solidariedade e de ajuda mútua entre diferentes grupos e classes sociais, os temas da assistência e proteção dos corpos (e das almas) também são tópicos obrigatórios. Enquanto prática cultural historicamente situada, a assistência é responsável pela criação de recursos materiais e simbólicos próprios que se tornam bastante evidentes em ocasiões extraordinárias, como em tempos de epidemia, catástrofes naturais e guerras. Nesses momentos de desorganização e anomia social as práticas de assistências tornam-se essenciais para a preservação da vida.
Finalmente a história da assistência à saúde também sugere a reflexão sobre um tipo especial de cultura material traduzida em instalações e edificações (hospitais, asilos, clínicas, habitações) especialmente concebidas para tais fins, estabelecendo um vínculo entre a arquitetura e o urbanismo e valores religiosos, conhecimentos científicos ou ideologias políticas que orientam as práticas de assistência envolvidas.
Os artigos selecionados para compor o Dossiê História, Assistência e Saúde são representativos das tendências aqui sintetizadas ao examinar esses temas sob abordagens inventivas e saudavelmente heterodoxas.
Laurinda Abreu propõe uma nova abordagem do processo de construção do sistema assistencial português entre os séculos XVI e XVIII, orquestrado pela Coroa portuguesa, com o apoio da elites locais, mas, ao demonstrar como a Coroa portuguesa pôs em funcionamento uma rede formal de instituições e de serviços assistenciais, a autora amplia a discussão sobre a responsabilidade do Estado moderno português na promoção e na profissionalização da assistência à saúde, extrapolando sua ação tradicionalmente considerada restrita ao controle das epidemias. Considerando-se a repercussão local do paradigma assistencial português, a discussão proposta serve de ponto de referência para a leitura dos artigos deste dossiê, que tratam basicamente da construção da rede assistencial e da profissionalização da saúde.
A questão da ausência / presença do Estado no processo de institucionalização da assistência médica no Estado do Rio Grande do Sul, abordado com originalidade no artigo de Beatriz Weber, leva a uma perspectiva diferente da organização da assistência médica no início do século XX, vista pelo prisma da competição entre diferentes tipos de “artes de curar”. Inspirada nos preceitos políticos do positivismo, a constituição republicana gaúcha de 1892 previa a liberdade de atuação no âmbito das “artes de curar”. A chave de leitura proposta pela autora permite pensar que, no contexto específico do Rio Grande do Sul, a organização da assistência médica passava pela conquista por parte dos médicos gaúchos do monopólio das “artes de curar” em oposição à liberdade de atuação de curandeiros, benzedeiras e parteiras. Nesse caso, caberia ao Estado garantir a liberdade profissional no âmbito da prestação de serviços de assistência à saúde.
Para relativizar o papel hegemônico dos médicos na prestação da assistência, Verônica Pimenta Velloso explora o associativismo profissional dos farmacêuticos do Rio de Janeiro imperial. O artigo chama atenção para o papel desempenhado pelos farmacêuticos na prestação de assistência à saúde da população, não resumida tão somente à arte de formulação dos remédios, mas também abrangendo a prestação de outros serviços, como prescrição de medicamentos por – atribuição tecnicamente restrita aos médicos por – e aplicação de determinados tipos de terapêuticas. A sobreposição de práticas profissionais entre farmacêuticos, médicos e outros praticantes das “artes de curar” na prestação de serviços de assistência gerava alianças e conflitos que exigiam a intervenção do Estado no sentido do estabelecimento de legislação profissional e sanitária que garantisse aos farmacêuticos autonomia frente aos médicos e predomínio frente aos leigos.
Tomando como eixo condutor a análise das trajetórias profissional e acadêmica de Antonio Fernandes Figueira e Luiz Barbosa, Gisele Sanglard e Luiz Otávio Ferreira desvendam em seu artigo o processo de institucionalização da pediatria e da assistência à infância no Rio de Janeiro da Primeira República. A análise explora a associação entre os médicos e a elite carioca, revelando a rede de relações pessoais, políticas e institucionais que envolvia a questão do ensino da pediatria na Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro e a criação de uma rede de assistência à infância. Para os autores, ao mesmo tempo em que esses médicos se legitimavam como especialistas em doenças de crianças, promovia-se uma ressignificação do papel da filantropia laica na assistência, com a construção de novos espaços de atendimento à saúde. A abordagem singular de Sanglard e Ferreira permite, portanto, desvendar a associação visceral entre a institucionalização da pediatria e da assistência à infância, sem ignorar disputas e conflitos que marcaram esse processo.
O artigo de Márcia Barros da Silva retoma a discussão da repercussão local do modelo assistencial português ao tratar da assistência médica oferecida no hospital da Santa Casa de Misericórdia de São Paulo, nas últimas décadas do século XIX e começo do XX. Mediante consistente análise de dados sobre origem, gênero e faixa etária dos doentes e acerca das instituições que os encaminham, bem como sobre a origem da receita do hospital, a autora identifica a inauguração do novo hospital, em 1885, como marco na condução da atenção médica à população do Estado de São Paulo. Ao longo de seu texto, pode-se perceber claramente o entrelaçamento entre o público e o privado, no que tange ao direcionamento e organização do atendimento médico clínico, relacionando-o às transformações urbanas da cidade e à reconfiguração da prática médica.
A organização deste Dossiê, ao abranger contextos culturais diversos e larga periodização, pretende suscitar questionamentos ao leitor acerca das formas modernas de assistência e bem-estar social, bem como divulgar os trabalhos do grupo de pesquisa História da assistência à saúde e ampliar os debates sobre o tema. É esse convite que fazemos a vocês neste momento. Boa leitura!
Belo Horizonte, Junho de 2010.
Nota
1 O Seminário Internacional Estado, Assistência e Filantropia foi realizado no Rio de Janeiro entre os dias 16 e 19 de novembro de 2009 e contou com o apoio da Capes e da Faperj.
Gisele Sanglard
Luiz Otávio Ferreira
Maria Martha de Luna Freire
Maria Renilda Nery Barreto
Tânia Salgado Pimenta
(Organizadores)
SANGLARD, Gisele et al. Apresentação. Varia História, Belo Horizonte, v.26, n.44, jul. / dez., 2010. Acessar publicação original [DR]