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Ao Sul do Corpo. Condição feminina, maternidades e mentalidade no Brasil Colônia / Mary Del Priori
A obra Ao Sul do Corpo. Condição feminina, matemidades e mentalidades no Brasil Colônia, de autoria da historiadora Mary DEL PRIORI, publicada por J o s é Olympio e EdUnB, em 1993, cobre uma enorme lacuna existente para o estudo da condição feminina na Colônia, povoada sobretudo por “mestiças” e marcada pelo entrecruzamento de etnias diversas, caracterizadas pela alteridade: brancas, negras e índias. Além de demonstrar grande trânsito com a bibliografia internacional, a autora realizou excelente pesquisa de documentos, muitos deles certamente inéditos: fontes manuscritas e impressas (Arquivo Nacional e do Estado de São Paulo e da Cúria Metropolitana de S ã o Paulo; Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro e de Lisboa; Arquivo Nacional da Torre do Tombo).
DEL PRIORI referencia sua reflexão no processo civilizatório europeu de normatização da mulher que atinge toda a cristandade ocidental, sobretudo a partir do Concilio de Trento (1545-1563), e que é elemento central do movimento de reorganização das funções do corpo, dos gestos e dos hábitos, traduzidos em condutas individuais, as quais deveriam refletir a pressão organizadora moderna dos jovens Estados burocráticos sobre toda a sociedade. Ou seja, tratava-se da privatização do eu e, simultaneamente, da apropriação privada dos meios de produção. Esta nascente ética sexual assentada no adestramento, sobretudo da mulher, fez-se, nos trópicos, a serviço do processo de colonização.
Tratava-se de organizar as gentes e o povoamento da Colônia marcada nos três primeiros séculos pelos fluxos e refluxos humanos, isto é, por uma convulsiva mobilidade, especialmente dos homens. Em lugar de condutas individuais (noção de privacidade do eu), identifica-se, no p e r í o d o , uma enorme disponibilidade sexual contaminada pela exploração sexual do escravismo, por um amolengamento moral e, como diria Caio Prado Jr. em Formação do Brasil Contemporâneo, por “falta de nexo moral” e “irregularidade de costumes”. Predomínio de ligações consensuais, chamadas de “tratos ilícitos”, de filhos gerados em amasiamento de brancos com í n d i a s e em concubinato (trazido pelos portugueses e amplamente divulgado nas classes subalternas) e de famílias matrifocais: a mãe integradora de seu fogo doméstico, ou seja, mantenedora, gestora e guardiã dos seus e de outros filhos ilegítimos.
A reflexão sobre o processo de normatização e adestramento da mulher na Colônia é feita, sobretudo, a partir da análise dos discursos e práticas da Igreja e dos médicos. A ação moralizante da Igreja após o século XVI, que teve como alvo o combate às sexualidades alternativas, o concubinato, as religiosidades desviantes e a valorização do casamento e da austeridade familiar, vai se erigir na Colônia por razões do Estado: necessidade de povoamento das capitanias, de segurança e de controle social. As mães, em sua função social e psicoafetiva, transformam-se no período em estudo, num projeto do Estado e principalmente a Igreja encarregarse- á de disciplinar as mulheres da Colônia, fazendo-as partícipes da cristianização das índias. Os filhos nascidos fora do casamento comprometiam a ordem do Estado Metropolitano, pois implicavam no incremento de “bastardos” e “mestiços”, colocados pelo p r ó p r i o sistema nas fímbrias da marginalidade social As mães, chefes da maioria das casas e das famílias – mantenedoras de seus fogos domésticos -, foram eleitas como responsáveis pela interiorização dos valores tridentinos. O casamento insolúvel, a estabilidade conjugai, a valorização da família legítima – espécie de fermento da cristandade -, apresentadas como recompensa e reconforto frente à generalizada situação de abandono por parte dos homens-maridos-companheiros- pais.
O modelo europeu é trasladado à Colônia, pois aqui, no “trópico dos pecados”, morava por excelência, o Diabo. Daí a maior necessidade de ordenação e de normatização. O alvo preferido foram as mães solteiras pois estas não conheciam as benesses do casamento.
A maternidade passa a ser a remissão das mulheres e o preço da segurança do casamento o “portar-se como casada”. A identidade da mulher que se constituía de uma gama de múltiplas funções (mãe de filhos ilegítimos, companheira de um bígamo, manceba de um padre, etc.), deveria passar a introjetarse apenas nas relações conjugais.
A Igreja contou, para a implantação de tal projeto, com a fabricação generalizada da culpa (Pastoral de culpabilização dos fiéis), do medo (Pedagogia do medo), da vitimidade e da intensificação da polaridade mãe-santinha X puta. Esta última tornou-se o bode e x p i a t ó r i o do projeto de normatização, enquadrável enquanto tal toda a mulher que não se “portasse como casada” e como “mãe-santinha”: ambigüidade dos papéis de lascívia e pobreza que confundiam a vida sexual irregular com prostitutas, identificadas ainda no século XIX pela Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro com “cancro”, “chaga”, “úlcera” e “gangrena”.
As não casadas e o aborto associados à luxúria, ao de mônio, ao inferno. O parto sem dor como parto sem pecado: maior devoção, melhor parto. O filho imperfeito, resultado da prática do sexo em dias proibidos ou com animais, ou então resultado da “imaginação feminina”. Os filhos gerados fora do casamento, comparados à “imperfeição da cristandade” e “aleijados da natureza”.
Destacam-se a eloqüência dos sermões difundindo a idéia de mulher como naturalmente sereia, diaba e perigosa e impondo a devoção a Nossa Senhora com vistas a comportamentos ascéticos, castos, pudibundos e severos, a l ém do culto à virgindade e o confessionário como instrumento potente de controle de intenções.
Por sua vez, o discurso normativo médico sobre o funcionamento do corpo feminino apoiava o discurso da Igreja na medida em que indicava como função natural da mulher, a procriação. Fora desta, restava-lhe o lugar da exclusão: a melancolia ou a luxúria. Ao estatuto biológico da mulher, o discurso médico procurava associar outro, moral e metafísico: esta tem um temperamento comumente melancólico, é um ser débil, frágil, de natureza imbecil e enfermiça.
O critério do útero como regulador da saúde física e mental da mulher irradiava-se da Europa do Antigo Regime, difundindo a mentalidade de que a mulher era física e mentalmente inferior ao homem. A concepção e a gravidez como rem é d i o para todos os “achaques femininos”. A medicina comprazia-se, ainda no século XVIII, em enxergar nos males físicos, sinais de transgressão sexual. Assim, histeria guardou o nome grego de ú t e r o (hyster) e um corpo h i s t é r i c o era denotativo de desordem moral.
A menstruação era associada à magia, transformações e veneno, atualizando as proposições de Santa Hildegarda de que aquela era um castigo decorrente do pecado original. Este sangue envenenado tinha o poder de estragar o leite, vinho, colheitas e metais: pelo excesso de secreções e odores a mulher devia se isolar em seu cotidiano.
Se menstruada a mulher era ameaçadora e grávida vulnerável, conclui-se pela urgência de novas matemidades. A autora localiza, inclusive, anotações médicas indicando o mal-estar dos homens diante das feiticeiras, capazes de adoecê-los, mas também de curá-los com seu sangue poderoso.
Só a partir de 1750 os médicos vão substituir o temor pelo cuidado. Apenas no final do século XVIII identificam-se modestos avanços da medicina no sentido de identificar outras razões para enfermidades femininas que não o clima ou a vida pecaminosa – os terríveis males da “madre”.
A importância da lactação passa a ser percebida tanto por doutores, quanto pela Igreja como um dever moral, desde o século XVI. A partir daí instaura-se o combate às amas-deleite: cada vez mais o aleitamento torna-se um dever e parte fundamental do processo de sacralização do papel da mãe.
Assim, no século XVIII localiza-se uma nova representação da Nossa Senhora do Bom Parto: uma mulher feliz com filhos nos braços e não mais grávida.
Por sua vez, se a puta era o bode expiatório do projeto de normatização, a partir do século XIX será o bode expiatório também do processo de higienização da sociedade. Tratava-se de higienizar a noção de sexualidade: exaltação da sexualidade conjugai, na medida em que o prazer em excesso e a ausência de finalidade reprodutora passam a ser condenados pela medicina como doença física e moral.
Fundamental no processo, localizar o papel do marido: cabeça da mulher, que cuida para que ela cumpra os encargos da profissão cristã. Para evitar as tentações ela devia ser obrigada a obedecê-lo por preceito divino, nem cabelo cortar sem sua autorização. As mulheres deveriam ser fiéis, submissas, recolhidas e sobretudo fecundas. O marido passava a ser o único elo de ligação com o mundo. Assim, aquele torna-se uma espécie de porta-voz das demandas de adestramento propostas pela Igreja, a l ém de ser motivo para um sutil processo de culpabilização, pois em torno dele se mostraria uma estratégia de gratidão escravizante. Os maridos deveriam ser dominadores, voluntariosos, insensíveis e egoístas no exercício da vontade patriarcal.
Assim, pode-se pensar que o processo de adestramento, ao colocar os maridos, os filhos e os pais ocupando determinadas posições em relação às mulheres, disciplina o próprio gênero masculino, construindo, conseqüentemente, uma nova identidade masculina. Por sua vez, ainda que a autora destaque o projeto matrimônio-maternidade enquanto concebido como espaço normatizador, n ã o aponta a sua contra face que é a ligação com a paternidade, matrimônio-paternidade. O silêncio das fontes sobre a paternidade é denunciador da própria incerteza e da dificuldade de naturalização da mesma. Isto se deve, em boa medida, pela sinonimização que é feita da categoria de g ê n e r o ora por sexo, ora por mulher. Neste sentido, o conceito é desvirtualizado, pois não se remete à dimensão relacionai, fundante do mesmo.
Outro aspecto a considerar é a questão da misoginia. Na verdade a autora atribui às mentalidades populares a missão “…de guardiã da misoginia” (pg.334). No entanto, no conjunto mesmo do texto, percebe-se que a misoginia é transversal a todos os segmentos sociais. Todos os saberes que as bruxas tinham sobre o corpo feminino causavam pânico, e foram responsáveis pela instauração da Caça às Bruxas. Obviamente a condenação das mesmas deveu-se à Igreja e à nobreza e n ão às classes populares. Ao contrário, estas recorriam, nas suas necessidades fundamentais, às feiticeiras, simultaneamente chamadas de fadas, quando seus conhecimentos e práticas davam resultados.
Assim, a misoginia n ã o pode ser atribuída fundamentalmente às mentalidades populares, conforme exprime a autora. Ao contrário, apesar de se referir inúmeras vezes ao Diabo, parece n ã o considerar que a T o l i t i z a ç ã o do Diabo” deu-se na Europa, simultaneamente, como mecanismo de resistência dos oprimidos e como mecanismo de dominação por parte da Igreja e das elites, processo de lutas que eclodirá na Caça às Bruxas, sobretudo nos séculos XVI e XVII. Assim, a proximidade da q u e s t ã o referida à misoginia, bem como do p r ó p r i o processo de normatização da mulher, com a questão das feitiçarias, do Diabo e da Caça às Bruxas é evidente. Porém disto a autora n ã o se ocupou.
Enquanto historiadora, poderia ter realizado uma excelente análise, ainda que para melhor referenciar-se, do próprio movimento desencadeado na Europa no p e r í o d o estudado: o Racionalismo, colocando todos os homens e mulheres como iguais e que seguirá convivendo com a misogina ancestral.
A mulher continuará pecadora, lasciva, demoníaca, etc, embora igual ao homem perante Deus e perante a Lei. O projeto de normatização e adestramento, objeto de estudo da pesquisadora, é o exemplo mais bem acabado desta ambigüidade.
Esta lacuna é de certa forma compreensível, quando a autora não se permite falar pela maioria: n ã o explicita os segmentos sociais a que se remete. Isso faz supor que fale por todos, mas é a partir do lugar das elites que sua fala é construída.
Pode-se exemplificar através da atribuição que Del Priori indi ca (p.37) às mães no que tocava à responsabilidade pelo ensino das primeiras letras aos filhos. N ã o se pode esquecer que a maioria da população, no p e r í o do considerado pelo estudo, era analfabeta.
Neste sentido, observa-se ainda que a autora, embora expresse conhecimento exaustivo da literatura francesa, e uma lógica narrativa enunciativa foucaultiana, não cita este autor (Foucault), em sua bibliografia, e ao mesmo tempo, n ã o consegue realizar, à semelhança do mesmo, o estudo processual da construção e da expansão nos diferentes segmentos sociais do projeto que trata de se tornar hegemônico.
A virtude mais frutífera da obra para a historiografia da mulher é a comprovação de “… que existiam, sim, fontes para a história da mulher no p e r í o do colonial…” (p.15). Essa comprovação implicou num volumoso trabalho de busca e organização de novas fontes, bem como uma originalidade expressiva no tratamento das fontes j á conhecidas.
Também descreve com agudez a rede de solidariedades e de micro poderes e saberes que as mulheres desenvolvem e se envolvem durante o p e r í o do colonial, mas não consegue perceber as tensões geradoras de resistências neste processo.
Desta forma, Del Priori reforça o pensamento tradicional, ainda dominante, do feminino e das mulheres incorporadas historicamente como objetos e não como sujeitos.
É lamentável, portanto, que o olhar que localiza e investiga as mulheres continue a ser o olhar que vê e fala pelas mulheres dando luz às suas passividades, n ã o visibilizando nem buscando (pg.335) suas opções, práticas, gritos e projetos.
Nesta direção, exemplificando, podemos lembrar que a pesquisadora não assume a promiscuidade e as relações não legítimas como projetos possíveis de resistência por parte de uma grande maioria de mulheres. Simultaneamente, não consegue explicitar como estas assumem o matrimonio-maternidade como projeto próprio, sendo que, segundo ainda a própria autora, o destino das mulheres-mães casadas era quase trágico (pg. 63).
A “irregularidade de costumes”, o fluxo contínuo, sobretudo de homens, as mulheres mantenedoras de seus fagos domésticos, mães de filhos de muitos pais, nunca deixou de ser uma constante, principalmente entre os pobres aqui e em outras colônias. Na atualidade, na América Latina, h á 25 milhões de lares chefiados por mulheres.
O fato do projeto normatizador ter se tornado hegemônico para as elites e as classes médias brasileiras com linhagens e/ou patrimônios a salvaguardarem não nos permite pensar que estes milhões de mulheres chefes de família foram “deixadas para trás” e a elas atribuir unilateralmente a solidão, a humilhação, o abandono e a violência (noções que transversalizam todo o texto).
E o olhar católico que parece não permitir o olhar e a análise críticos do dado destacado pela investigadora (pg. 51 e repetido na pg. 175), de que em Minas Gerais no século XIX ainda havia um predomínio de famílias matrifocais – cerca de 45% do total, sendo que 83% destas nunca haviam se casado.
A promiscuidade e o casamento não sacramentado podem ter sido e continuar a ser um projeto para muitas mulheres. Por que não? Por que olhá-las apenas a partir da vitimidade? Neste sentido, o olhar da autora coincide com o olhar do projeto normatizador da Igreja-Estado, apoiados pela j u r i s p r u d ê n c i a e pelo discurso médico. E que é, por excelência, o olhar masculino racional-universalizante. E um dos inú meros avanços possibilitados pela perspectiva de g ê n e r o é a construção de outros olhares e de outros lugares de fala, que rompam com aquele, ainda hegemônico no pensamento ocidental moderno.
Deis Siqueira – Doutora em Sociologia e professora na UnB, Lourdes Bandeira – Doutora em Sociologia e professora na UnB e Silvia Yannoulas – Mestre em Sociologia.
DEL PRIORI, Mary. Ao Sul do Corpo. Condição feminina, maternidades e mentalidade* no Brasil Colônia. Brasília, Rio de Janeiro: Editora da UnB, José Olímpio, 1993. Resenha de: SIQUEIRA, Deis; BANDEIRA, Lourdes; YANNOULAS, Silvia. Textos de História, Brasília, v.2, n.3, p.148-157, 1994. Acessar publicação original. [IF]