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Racismo estrutural | S. Almeida
Poder e ideologia têm sido objeto de interesse da ciência da linguagem há mais de 90 anos, mas é especialmente (embora não exclusivamente) neste século que teorias passam a questionar o modelo de homem universal de modo a incluir a perspectiva racial como fundamentação teórica em seus trabalhos.
Desde então, o diálogo entre os estudos discursivos e uma teoria social que ofereça elementos para a compreensão da articulação entre recursos de poder e recursos linguísticos tem se tornado inadiável para aqueles que queiram viabilizar a crítica e a transformação social no Brasil. Nesse contexto, a questão racial emerge como tópico central para analistas que lidem com as relações sociais em um país na periferia do sistema capitalista. Leia Mais
Philosophy, dialogue, and education – GUILHERME; MORGAN (B-RED)
Alexandre Anselmo Guilherme. ucsclay.ucr.br
GUILHERME, Alexandre Anselmo; MORGAN, W. John. Philosophy, dialogue, and education. Nine Modern European Philosophers [Filosofia, diálogo e educação: nove filósofos europeus modernos]. London: Routledge, 2018. 190 p. Resenha de: CHERON, Cibele. Bakhtiniana – Revista de Estudos do Discurso, v.15 n.2 São Paulo Apr./June 2020.
O que é o diálogo, na compreensão de nove dos mais importantes filósofos modernos europeus? Quais são as implicações dessa compreensão do diálogo para o campo da Educação? É desse duplo questionamento que Alexandre Anselmo Guilherme e W. John Morgan partem para, ao longo de Philosophy, Dialogue, and Education, discutir as ideias de Martin Buber, Mikhail Bakhtin, Lev Vygotsky, Hannah Arendt, Emmanuel Levinas, Maurice Merleau-Ponty, Simone Weil, Michael Oakeshott e Jürgen Habermas.
A intersecção entre o diálogo e o campo educacional se faz presente na trajetória dos autores, ambos expoentes da Filosofia da Educação. W. John Morgan é professor emérito da School of Education [Faculdade de Educação] da University of Nottingham, onde presidiu a Cátedra UNESCO de Economia Política da Educação. Ele também é professor honorário da School of Social Sciences [Faculdade de Ciência Sociais] e do Wales Institute of Social and Economic Research, Data, and Methods [Instituto Wales de Pesquisa, Dados e Métodos Sociais e Econômicos] na Cardiff University, e bolsista emérito do Leverhulme Trust, realizando estudos sobre economia política comparativa da educação (especialmente Rússia e China), sociedade civil e antropologia do conhecimento, bem como educação para a paz. Alexandre Anselmo Guilherme é professor adjunto da Escola de Humanidades, Departamento de Educação, e coordenador do Grupo de Pesquisa Educação e Violência – GruPEV da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, Brasil, atuando principalmente nos temas educação e violência, educação e diálogo, imigrantes e refugiados, e Psicologia da Educação.
Guilherme e Morgan indicam a relevância dos questionamentos que embasam Philosophy, Dialogue, and Education: o diálogo é comumente entendido como conversação, intercâmbio de perguntas e respostas entre dois ou mais sujeitos, e, simultaneamente, tem sido objeto privilegiado nas pesquisas em Filosofia da Educação. Todavia, a maioria das investigações nessa área costuma concentrar-se em apenas verificar a ocorrência de intercâmbio comunicativo, resultando em “modos simplistas e reducionistas de compreender o diálogo, os quais não consideram as relações envolvidas no diálogo” (GUILHERME; MORGAN, 2018, p.3)1. Em oposição ao reducionismo rejeitado pelos autores, é destacada a “gama de complexidades, dinâmicas e efeitos resultantes e causados pelo diálogo, que a simples percepção de um processo de perguntas e respostas não captura com êxito” (GUILHERME; MORGAN, 2018, p.4)2.
A escolha dos filósofos abordados enfatiza o caráter polissêmico, multifacetado e complexo do diálogo. Philosophy, Dialogue, and Education reflete sobre as complexidades inerentes ao diálogo, situando as perspectivas sociopolíticas dos pensadores na tradição europeia da filosofia dialógica. Cada filósofo é tratado num capítulo específico, cujo título sintetiza o conceito de diálogo desenvolvido. Após uma breve apresentação, seguida dos principais eventos da vida e carreira, o leitor é conduzido a um panorama consistente e detalhado sobre como o diálogo é conceituado e relacionado à educação.
No primeiro capítulo, Martin Buber: dialogue as the inclusion of the other [Martin Buber: diálogo como a inclusão do outro], o diálogo é referido como uma relação simétrica, inclusiva do outro, despida de preconceitos e expectativas, na qual simplesmente se aceita o outro como ele é. A relação dialógica assume a forma ‘Eu-Tu’ e está, assim, em contraste com as relações ‘Eu-Isso’, baseadas na objetificação do outro e na ausência de diálogo. ‘Eu-Tu’ e ‘Eu-Isso’ são as ‘palavras básicas’ indicativas da qualidade da experiência contida na relação que elas descrevem. À leitura filosófica da obra de Buber (cf. Buber, 2007 e 2001, entre outros) é acrescida uma apreciação teológica, fundada em suas raízes judaicas hassídicas. Essa apreciação ilustra a atenção às conexões entre o pensamento, as experiências, o pertencimento e a subjetividade dos filósofos observados, elementares em Philosophy, Dialogue, and Education. Em Buber, o hassidismo é o mote para ressaltar a convergência de todas as relações genuínas para o eterno, a partir da qual os seres humanos se relacionam com Deus. No campo da Filosofia da Educação, a teoria de Buber é enfocada para defender a importância das relações vivas, horizontais e inclusivas entre professores e alunos, fundadas em diálogo genuíno, de forma a impactar positivamente a motivação e a capacidade de colaboração.
A interpretação de Guilherme e Morgan sobre as ideias de Buber, no Capítulo Um, articula-se ao Capítulo Cinco, Emmanuel Levinas – dialogue as an ethical demand of the other [Emmanuel Levinas: diálogo como uma exigência ética do outro] Para Levinas (cf. Levinas, 1988a; 1988b; 2005, entre outros), em contraposição a Buber, a noção ética de diálogo compreende uma relação assimétrica e preconcebida, estabelecida para satisfazer as demandas do outro. O encontro com o outro, nominado por Levinas como “rosto”, implica uma exigência ética, instando o sujeito, de cima para baixo, a responder ao outro. Todavia, essa assimetria não deve ser depreendida como uma hierarquia das relações humanas, uma vez que é recíproca: o sujeito é instado a responder ao mesmo tempo em que demanda uma resposta ética do outro. A assimetria bilateral do encontro com o “rosto” caracteriza-se, ainda, pela presença de uma “terceira parte”, na medida em que toda a humanidade encara o sujeito através dos olhos do outro. Assim, enquanto para Buber o diálogo se dá desde o reconhecimento do outro como um par, por conta da igualdade com o sujeito, para Levinas, o diálogo existe porque o sujeito reconhece a alteridade absoluta do outro. A influência de Levinas para a Educação também se ancora na alteridade, no reconhecimento ético do encontro com um outro que é diferente do sujeito, causando-lhe inquietude, questionamento e inovação.
O outro também é central no Capítulo Seis, Maurice Merleau-Ponty – dialogue as being present to the other [Maurice Merleau-Ponty – diálogo como estar presente para o outro]. O capítulo discute a compreensão existencialista e fenomenológica de Merleau-Ponty (cf. Merleau-Ponty, 1996, 2006, entre outros), para quem o diálogo configura um ‘estar presente’ para o outro. Ainda que guarde algumas afinidades com o pensamento de Buber e de Levinas, Merleau-Ponty apoia-se em premissas distintas. O diálogo necessita do encontro com um outro corporificado, presente numa relação em que o sujeito também está presente. No diálogo, as demandas e intenções desse outro tornam-se compreensíveis para o sujeito, como se este o “habitasse”. Por essa perspectiva, subjetividade e objetividade se encontram no corpo. Também por meio dessa “teoria da incorporação” o fenômeno do aprendizado é explicado como um hábito adquirido pelo corpo, e a aquisição de um hábito corresponde à apreensão de um significado. Trata-se de um processo que envolve os movimentos espontâneos e intencionais em interconexão com as experiências que solidificam os hábitos.
No segundo e no terceiro capítulo, Guilherme e Morgan tratam de dois pensadores russos influenciados pelo marxismo. Mikhail Bakhtin é referido ao longo do Capítulo Dois, Mikhail Bakhtin – the dialogic imagination [Mikhail Bakhtin – a imaginação dialógica]. Os autores aludem à noção de “imaginação dialógica”3 para desvendar uma filosofia na qual se notam inspirações em Kant, marcada pela insistência na relação, necessária e reciprocamente enriquecedora, entre o pensamento e a ação, e em Nietzsche, visível no conceito de discurso que espelha a ideia de diálogo. O capítulo leva em conta as ambiguidades percebidas em Bakhtin, especialmente sobre a arquitetura do mundo real, a estética como ação ou processo, a ética da política e, finalmente, a ética da religião. Essas ambiguidades suscitam uma reflexão crítica, na qual o filósofo do ato (cf. Bakhtin, 2010), da dialogia (cf. Volóchinov, 2017; Bakhtin, 2008; 2016, entre outros) e do plurilinguismo, vindica “o diálogo e a participação polifônica de vozes diferentes no intercâmbio de ideias por meio da linguagem e da literatura” (GUILHERME; MORGAN, 2018, p. 24)4 ao mesmo tempo em que propõe Bakhtin como um pensador ético. A “imaginação dialógica” de Bakhtin sublinha que a linguagem só adquire significado no diálogo, obrigatoriamente no contexto social e cultural do qual faz parte. O entendimento do self é construído nesse diapasão, num diálogo conformado pelas mútuas e contínuas interpretações do outro. Essa perspectiva contribui grandemente para a Filosofia e para a Educação, uma vez que Bakhtin incentiva os sujeitos ao protagonismo na busca pelo conhecimento, não aceitando as coisas como dadas.
Isso pode ser cotejado à compreensão de Lev Vygotsky, objeto do Capítulo Três, Lev S. Vygotsky – dialogue as mediation and inner speech [Lev Vygotsky – diálogo como mediação e discurso interior]. Como mediação (cf. Vygostsky, 1999 1998, entre outros), o diálogo diz respeito à relação entre indivíduo e sociedade, intermediada por objetos, sinais e linguagem, ferramentas proporcionadas pela cultura. Também diz respeito à interação de cunho mais psicológico do indivíduo consigo mesmo, crucial para o desenvolvimento cognitivo humano, que Guilherme e Morgan afirmam ser “uma alternativa poderosa tanto ao behaviorismo pavloviano como para a ênfase piagetiana à maturação biológica cognitiva” (GUILHERME; MORGAN, 2018, p.39)5. O impacto do pensamento de Vygotsky para a Educação é captado desde as interpretações que privilegiam a análise social, até as que buscam entender o surgimento da consciência, relegando as relações sociais ao pano de fundo.
O prisma político do diálogo é examinado no Capítulo Quatro, Hannah Arendt – dialogue as a public space [Hannah Arendt – diálogo como espaço público]. Guilherme e Morgan acentuam a defesa de Arendt da expressão autêntica da democracia, possível quando os cidadãos se reúnem num espaço público de deliberação e decisão acerca dos interesses coletivos (cf. Arendt, 2007; 2012, entre outros). A separação entre as dimensões do “labor”, do “trabalho” e da “ação” precede a exigência do espaço público, contexto no qual as pessoas defrontam-se umas com as outras, na qualidade de membros de uma comunidade, e desvelam seus pontos de vista em discursos e ações, concordâncias e discordâncias. Essa relação com os outros é pré-condicionada por outro tipo de diálogo, fundante da capacidade de pensar, interno, através do qual o indivíduo confronta a si próprio. Nesse marco, a educação objetiva propiciar um ambiente seguro às crianças, preparando-as para participarem da esfera pública. Entretanto, Guilherme e Morgan cogitam que escolas e universidades não venham conectando o público ao privado, tal qual divisado por Arendt. Isso é tributado a obstáculos enfrentados, como os processos de mercantilização, que transformam os cidadãos em consumidores, e o espaço público em mercado.
Igualmente, no Capítulo Sete, Simone Weil – dialogue as an instrument of power [Simone Weil – diálogo como instrumento de poder], o espaço público tem notada relevância. O diálogo é pensado por Weil em relações de poder dimensionadas, no espaço público, pela linguagem e pelas palavras (cf. Weil, 1991; 2001a; 2001b, entre outros). O dinamismo da realidade é a fonte dos conflitos potenciais, porquanto os sujeitos leem o mundo utilizando uma linguagem imperfeita, não obstante expressiva de atitudes e práticas. O diálogo configura uma relação de poder que se presta à crueldade, mas também à justiça e à bondade. Esse instrumento é crucial para a Educação, assim como a atenção (a vontade de receber) e o silêncio (a reflexão sem recebimentos do mundo externo), pois o processo de conhecimento só pode ser atingido num percurso crítico que envolve desejo de saber, comprometimento, esforço e amadurecimento. Assim, é imperativo que a Educação propicie ao indivíduo o discernimento das ideias, o poder da escrita e do discurso, e seu uso não para a conquista e aniquilação do outro, mas para a justiça, particularmente para a justiça social.
O posicionamento de Weil pode ser comparado ao de Michael Oaekshott, sobre o qual Guilherme e Morgan discorrem no Capítulo Oito, Michael Oakeshott – dialogue as conversation [Michael Oakeshott – diálogo como conversação]. O diálogo é, aqui, visto como uma forma de conversa, imprescindível para o desenvolvimento da civilização (cf. Oakeshott, 1989, entre outros). Os valores civilizados estão radicados na capacidade das pessoas, pela conversa, adentrarem o diálogo, o que é fomentado por uma educação liberal. É indispensável que a experiência humana seja vivida, compreendida e refletida na forma de uma conversa do sujeito com seus pares, seres humanos. As vozes que tomam parte dessa conversa são as diferentes formas da experiência, de ver o mundo, históricas e práticas. Oakeshott considera a conversa como um diálogo aberto e polifônico, um intercâmbio entre as diversas funções e condições em que a humanidade se desenvolve – e aí reside sua importância para a Educação. O indivíduo aprende a ser humano enquanto participa dessa conversa, assimilando os múltiplos significados e propósitos que também a integram.
O nono e último capítulo, Jürgen Habermas – dialogue as communicative rationality [Jürgen Habermas – diálogo como racionalidade comunicativa] dedica-se ao conceito de diálogo como racionalidade comunicativa, depreendido da extensa obra do filósofo alemão (cf. Habermas, 1984; 1987, entre outros). Guilherme e Morgan sublinham a crítica habermasiana ao cientificismo e às decorrentes abordagens positivistas, burocráticas e autoritárias predominantes nos estudos sobre as questões da esfera pública, o que resulta na “marginalização do diálogo público e do debate” (GUILHERME; MORGAN, 2018, p.141)6. O déficit democrático consequente é enfrentado, segundo Habermas, por duas formas distintas e interdependentes de ação: (i) instrumental, mensurada quantitativamente e percebida no trabalho e na construção material; (ii) comunicativa, aferida qualitativamente e percebida por meio da interação e do diálogo sociais. A racionalidade comunicativa é a chave para a ação, e o ato da comunicação, em si, já inicia um diálogo entre pares, parceiros abertos às possibilidades de acordo e ação social. A contribuição de Habermas para a Educação é defendida no que Guilherme e Morgan detectam como alinhamento à Pedagogia Crítica, segundo a qual o despertar de consciência dos sujeitos, dialeticamente, leva à ação social democrática e emancipatória. A responsabilidade dos educadores é criar condições para que essa ação ocorra, circunstanciando o ensino e o aprendizado como atos políticos e, no mesmo sentido, a não neutralidade do conhecimento.
Philosophy, Dialogue, and Education é uma obra densa, na qual os autores promovem uma reflexão teoricamente consistente e sofisticada, sem, contudo, sacrificar a leitura e a inteligibilidade. As concepções de diálogo são discutidas de forma articulada entre os pensadores, concatenadas aos aportes de outros teóricos e de comentadores, o que fornece um horizonte interpretativo rico e fundamentado.
Nesse contexto complexo, Guilherme e Morgan trabalham o diálogo permeado por relações de poder, pela história e pela cultura, por valores normativos e pela necessidade de um espaço comum. Os potenciais e os dilemas do diálogo, especialmente na Educação, são temas de renovado interesse, ainda maior quando os recentes eventos e as dinâmicas sociais colocam em xeque a capacidade de dialogar. Como apontam (2018, p.4), “o diálogo não é simples de obter; pelo contrário, depende da disposição e da situação e é frequentemente difícil de iniciar, ainda mais de sustentar”7. Cultivar essa disposição é, portanto, o desafio ético do tempo presente, ao qual a Filosofia da Educação não se furta.
1Traduzido livremente do original: “simplistic and reductionist ways of understanding dialogue which do not consider the relations involved in the dialogue”.
2Traduzido livremente do original: “range of complexities, dynamics, and effects implied and caused by dialogue that the simple notice of a process of questioning and answering does not capture successfully”.
3A expressão é claramente uma referência à coletânea de ensaios de Mikhail Bakhtin publicada em inglês com o título The Dialogic Imagination (BAKHTIN, 1981). Dela constam os ensaios (i) Epic and Novel: toward a Methodology for the Study of the Novel, traduzida em português como Epos e o romance (sobre a metodologia do estudo do romance) (1993, p.397-428) ou O romance como gênero literário (2019, p.65-111); (ii) From the Prehistory of Novelistic Discourse – em português, Da pré-história do discurso romanesco (1993, p.363-396) ou Sobre a pré-história do discurso romanesco (2019, p.11-63); (iii) Forms of Time and of the Chronotope in the Novel: Notes toward a Historical Poetics – em português Formas de tempo e de cronotopo no romance (Ensaios de poética histórica) (1993, p.211-362) ou As formas do tempo e do cronotopo no romance (2018, p.11-237); (iv) Discourse in the Novel – O discurso no romance (1993, p.71-210; 2015, p.19-242).
4Traduzido livremente do original: “dialogue and the polyphonic participation of different voices in the exchange of ideas through language and literature”.
5Traduzido livremente do original “provided a powerful alternative to both Pavlovian behaviourism and the Piagetian focus on cognitive biological maturation”.
6Traduzido livremente do original “marginalization of public dialogue and debate”.
7Traduzido livremente do original “dialogue is not simple to achieve; rather, it is dependent on disposition and on situation and is often difficult to initiate, let alone sustain”.
Referências
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Glória Carneio do AMARAL, Navette Literária França-Brasil – A crítica de Roger Bastide, São Paulo, EDUSP, Maria Luiza Guarnieri Atik, Bakhtiniana – Revista de Estudos do Discurso
Teoria do romance III: o romance como gênero literário – BAKHTIN (B-RED)
BAKHTIN, M. Teoria do romance III: o romance como gênero literário. Tradução, posfácio e notas Paulo Bezerra; organização da edição russa de Serguei Botcharov e Vadim Kójinov. São Paulo: Editora 34, 2019. 144p. Resenha de: MELO JÚNIOR, Orison Marden Bandeira de. Bakhtiniana, Revista de Estudos do Discurso, v.15 n.2, São Paulo, Apr./June 2020.
Como já é notório a todos os leitores que acompanham as publicações de textos do Círculo pela Editora 34, a sequência dos textos Teoria do romance I, Teoria do romance II e, agora, Teoria do romance III tem, como base, o tomo 3 da coletânea Obras reunidas em sete tomos [Sobránie sotchiniênii v siémi tomakh] de Mikhail Bakhtin, organizada por Vadim Valeriánovitch Kójinov (1930-2001) e Serguei Geórguievitch Botcharóv (1929), que, segundo Grillo (2009), são os detentores dos espólios bibliográficos de Bakhtin. Ainda segundo Grillo (2009), após a morte de Kójinov, ficou Botcharóv o responsável pela coordenação do projeto, dando, dessa forma, conforme a Nota à edição brasileira encontrada na Teoria do romance I (BAKHTIN, 2015), o consentimento para que Paulo Bezerra e a editora o dividissem em três volumes.
Com a finalização da publicação da Teoria do romance com esse terceiro volume, é possível ter uma visão privilegiada em relação ao conjunto dos textos que compõem o Tomo 3. Desse modo, é mais fácil perceber, agora, que o número de ensaios que os três volumes apresentam não corresponde totalmente aos ensaios encontrados na coletânea Questões de literatura e de estética: a teoria do romance (doravante, QLE) (BAKHTIN, 2002). QLE se inicia com o ensaio O problema do conteúdo, do material e da forma na criação literária. No entanto, esse ensaio não está publicado na trilogia. Segundo Bezerra (2015), ele foi suprimido da Teoria do romance pelos organizadores russos por ser um texto mais genérico sobre a teoria da literatura, com foco na contraposição aos formalistas russos. Grillo (2009) informa que ele aparece no Tomo 1 das Obras reunidas em sete tomos, juntamente com os textos Arte e responsabilidade, Para uma filosofia do ato e O autor e o herói na atividade estética.
O segundo ensaio O discurso no romance é publicado pela Editora 34 no primeiro volume da trilogia: Teoria do romance I: A estilística (BAKHTIN, 2015). Formas de tempo e de cronotopo no romance (ensaios da poética histórica), terceiro ensaio da QLE, é publicado em Teoria do romance II: as formas do tempo e do cronotopo (BAKHTIN, 2018). É interessante notar que, na tradução de Paulo Bezerra, o ensaio passa por uma pequena modificação no seu título: As formas do tempo e do cronotopo no romance: um ensaio de poética histórica. Vale destacar que ambas as obras (Teoria do romance I e Teoria do romance II) foram resenhadas logo após a sua publicação e suas resenhas foram publicadas na revista Bakhtiniana. A resenha de Adriana P. P. Silva do primeiro volume foi publicada no primeiro número de 2016 (SILVA, 2016) e a resenha de Maria Elizabeth S. Queijo do segundo volume, no segundo número de 2019 (QUEIJO, 2019).
A coletânea QLE finaliza com três curtos ensaios: Da pré-história do discurso romanesco, Epos e o romance (sobre a metodologia do estudo do romance) e Rabelais e Gógol (arte do discurso e cultura cômica popular). Desses três, dois deles aparecem no volume Teoria do romance III: o romance como gênero literário (BAKHTIN, 2019), a saber: Da pré-história do discurso romanesco e Epos e o romance (sobre a metodologia do estudo do romance), mas com modificações em seus títulos. O texto Rabelais e Gógol aparece no Tomo 4 das Obras reunidas que, segundo Grillo (2009), é dedicado aos textos de Bakhtin sobre Rabelais, o que inclui, obviamente, a obra sobre François Rabelais e a cultura popular na Idade Média e no Renascimento, publicada pela editora Hucitec no Brasil sob o título A cultura popular na idade média e no renascimento: o contexto de François Rabelais (BAKHTIN, 2010).
Em relação aos ensaios que compõem o terceiro volume da Teoria do romance, em um primeiro momento o leitor consegue identificar apenas um, Sobre a pré-história do discurso romanesco, cujo título se assemelha ao anterior. No entanto, pode causar alguma estranheza o título do segundo ensaio que, inclusive, aparece como subtítulo do volume: O romance como gênero literário. Bezerra (2019), no seu posfácio intitulado O fechamento de um grande ciclo teórico, conta que esse era o título original do texto, publicado de forma fragmentada sob o título Epos e o romance. Esse mesmo título é encontrado nas versões em inglês, espanhol, francês e italiano: Epic and novel: toward a methodology for the study of the novel (BAKHTIN, 1981); Épica y novela: (acerca de la metodología del análisis novelístico) (BAJTÍN, 1989); Récit épique et roman: (méthodologie de l’analyse du roman) (BAKHTINE, 1978); Epos e romanzo: sulla metodologia dello studio del romanzo (BACHTIN, 2001). Bezerra (2019) explica que o título do ensaio foi restaurado pelos organizadores das Obras reunidas com o objetivo de corresponder, de forma integral, ao projeto de Bakhtin de versar sobre “o romance como gênero literário específico”, mostrando, dessa forma, “os encontros e os desencontros dos dois gêneros” (p. 120), ou seja, da epopeia e do romance. Essa estranheza, no entanto, é facilmente dissipada pela compreensão do seu sentido, restando aos leitores e estudiosos do romance à luz bakhtiniana se adequar aos novos termos e títulos, sabendo que são resultados de estudos e pesquisas de scholars especialistas nas obras do Círculo. Ademais, o leitor da tradução de Paulo Bezerra deve se sentir privilegiado por essa informação, trazida no terceiro volume da Teoria do romance, tendo em vista que em nenhuma versão da obra no inglês, espanhol, francês e italiano essa explicação é dada ao leitor.
Antes de adentrar nas considerações mais específicas sobre o terceiro volume da teoria do romance, novamente devido a essa visão privilegiada da totalidade dos textos que compõem a Teoria do romance de Bakhtin, é necessário observar a macroestrutura dos três volumes. Como já foi ressaltado por Silva (2016) e Queijo (2019), essas obras trazem um enriquecimento aos estudos do romance não somente por serem textos cuja tradução “se aproxima da voz de seu autor” (SILVA, 2016, p.269), mas por todos os paratextos encontrados nelas, o que inclui o posfácio do tradutor que, segundo Queijo (2019, p.155) “emoldura o texto que as [páginas do posfácio] precedem”. Brait (2019) afirma que compreender uma obra como enunciado concreto, conforme o Círculo, implica entender que todos os textos dessa obra fazem parte do seu todo arquitetônico, o que inclui os paratextos, ou seja, “textos que se avizinham do texto principal, caso do título, subtítulos, dedicatórias, epígrafes, prefácio, posfácio, etc. e que […] abrem caminho para o leitor adentrar os meandros do texto principal” (p.251). Na Teoria do romance I, além do prefácio por Paulo Bezerra, o tradutor também apresenta um glossário de alguns conceitos-chave. Além desses paratextos, ainda há uma nota à edição brasileira, um nota de informação sobre Bakhtin e outra sobre Bezerra. No segundo volume, é adicionado, ao texto principal, alguns rascunhos que Bakhtin fez para o último capítulo que ele adicionou posteriormente. Esse rascunho foi intitulado de Folhas esparsas. Além desse rascunho, há o posfácio de Bezerra, que ele intitula de Uma teoria antropológica da literatura, além das notas recorrentes nos três volumes (nota dos editores, nota sobre Bakhtin e nota sobre o tradutor). O terceiro volume segue o formato do segundo, com um posfácio por Paulo Bezerra e as três notas. O posfácio de Bezerra é intitulado O fechamento de um grande ciclo teórico, que dá, como se percebe, o tom de completude a esse grande enunciado Teoria do romance. É interessante notar que apenas o primeiro volume traz um glossário, com notas explicativas do tradutor. Isso possivelmente se deve ao fato de que o tradutor assumiu novos termos para aqueles que já estavam consolidados na academia. Um exemplo é o termo “heterodiscurso”, que veio substituir “o já consagrado termo plurilinguismo nos trabalhos dos pesquisadores brasileiros que se debruçam sobre o pensamento bakhtiniano” (SILVA, 2016, p. 268).
Em relação ao conteúdo de Teoria do romance III (BAKHTIN, 2019), não me aterei ao resumo de cada ensaio, já que eles já têm sido apresentados por vários estudiosos das obras de Bakhtin sobre o romance, em específico, e sobre a literatura, em geral. Um exemplo disso é o capítulo de Maria Inês B. Campos (2009) na coletânea Bakhtin: dialogismo e polifonia (BRAIT, 2009), que apresenta todos os ensaios da coletânea Questões de literatura e de estética (BAKHTIN, 2002). Para a apresentação do ensaio Dá pré-história do discurso romanesco/Sobre a pré-história do discurso romanesco, escreveu o texto intitulado O importante papel do riso e do plurilinguismo (CAMPOS, 2009, p.137-139) e para a do ensaio Epos e o romance (sobre a metodologia do estudo do romance)/O romance como gênero literário, escreveu Sobre a metodologia do estudo do romance (CAMPOS, 2009, p.139-142). Diante disso, é necessário explicar ao leitor que os ensaios foram enriquecidos substancialmente não só pelo fato, já apontado, de eles terem sido restaurados quanto aos títulos originais, mas também por incorporarem as próprias correções de Bakhtin, restituírem trechos anteriormente cortados e preservarem as anotações que Bakhtin fez nas margens dos textos datilografados. Segundo a Nota à edição brasileira (2019), além dessas notas do próprio Bakhtin, o leitor encontrará esses trechos restaurados (indicados por asterisco) e as notas do tradutor.
Essas inserções e modificações no texto podem ser vistas, em primeiro lugar, pelas escolhas tradutórias de Bezerra que, em alguns momentos, diferem das escolhas dos tradutores de QLE. Bezerra (2015, p.10) explica que “[t]raduzir Bakhtin, além de ser um desafio extremamente difícil, é também arriscado”. Para ele, isso se dá pelo fato de que o tradutor está diante de “conceitos que abrangem todo um sistema de reflexões embasado em algo que talvez se possa chamar de filosofia estética” (BEZERRA, 2015, p.10). Nesse sentido, é possível destacar dois exemplos de diferenças tradutórias entre Bezerra e os tradutores de QLE. Em primeiro lugar, pensando nas categorias bakhtinianas, Bezerra ilumina muitos trechos dos ensaios com a utilização de termos teoricamente mais específicos. Como exemplo, encontramos a seguinte oração no ensaio Dá pré-história do discurso romanesco: “Pode-se notar cinco tipos de abordagens para o discurso romanesco” (BAKHTIN, 2002, p.364); na tradução de Bezerra, em Sobre a pré-história do discurso romanesco, lê-se: “observam-se cinco tipos de enfoque estilístico do discurso romanesco” (BAKHTIN, 2019, p.13). Observa-se que Bezerra utiliza termos específicos (“enfoque estilístico”) em vez de termos mais genéricos (“abordagem”). Em segundo lugar, é pertinente destacar a escolha tradutória de Bezerra diante de termos multissêmicos da língua russa, como a palavra slovo. Segundo Grillo e Américo (2017, p.364), o termo “tem um significado amplo, que compreende desde a unidade lexical até a ‘a linguagem verbal em uso’ ou o enunciado e o discurso”. Diante disso, o tradutor necessita fazer escolhas, levando em consideração as possibilidades tradutórias e o contexto teórico do termo no texto de partida. Por exemplo, no ensaio A palavra na vida e a palavra na poesia de Volóchinov (2019), Grillo e Américo explicam, na Nota do Tradutor 1, que a tradução de slovo como “palavra” se deu pelo fato de o ensaio estabelecer um diálogo mais direto com o manifesto dos futuristas russos intitulado Slóvo kak takovóie [A palavra como tal]. No entanto, esclarecem que a tradução como “discurso” seria favorecida pelo fato de que “a linguagem é considerada na relação com o seu meio social, com o criador e o contemplador, com a sua esfera de circulação etc.” (2019, p.109). Nessa esteira, ainda no primeiro ensaio de Teoria do romance III, verifica-se que a escolha de Bezerra também difere da escolha dos tradutores de QLE (BAKHTIN, 2002). Em Dá pré-história do discurso romanesco, lê-se: “Entretanto, nas condições do romance, a palavra tem uma existência inteiramente particular […]” (BAKHTIN, 2002, p.364). Já em Sobre a pré-história do discurso romanesco, percebe-se que Bezerra escolhe o termo “discurso”: “Entretanto, nas condições do romance o discurso vive uma vida totalmente específica […]” (BAKHTIN, 2029, p.14).
Além dessas diferenças tradutórias, é necessário que o leitor esteja ciente para o fato de que os ensaios que formam Teoria do romance III possuem trechos novos. Como já mencionado anteriormente, essa nova versão dos ensaios recupera trechos anteriormente cortados. Um exemplo disso é o primeiro parágrafo do ensaio O romance como gênero literário (BAKHTIN, 2019, p.65). Esse parágrafo traz uma explicação necessária da razão pela qual o autor teve de dedicar um espaço do ensaio que trata da teoria do gênero romanesco para uma discussão sobre a filosofia dos gêneros. Esse parágrafo não existe na tradução de 2002. De fato, o primeiro parágrafo da tradução de 2002 se inicia com a oração: “O estudo do romance enquanto gênero caracteriza-se por dificuldades particulares” (BAKHTIN, 2002, p.397). Esse é o segundo parágrafo da tradução de 2019, que se inicia com a oração: “A teoria do romance enquanto gênero distingue-se por dificuldades peculiares […]” (BAKHTIN, 2019, p.65).
Com essas breves notas, já é possível perceber a singularidade da nova tradução ao português brasileiro desses ensaios. Como mencionado anteriormente, além de uma tradução teoricamente mais específica e das incorporações textuais feitas, Teoria do romance III ainda recebe um ensaio de Paulo Bezerra em que não só explica a origem dos ensaios de Bakhtin, ou seja, as “duas conferências proferidas por Bakhtin nas reuniões do grupo de teoria da literatura organizado pelo professor Leonid Timofêiev no Instituto de Literatura Mundial Maskim Górki de Moscou” (BEZERRA, 2019, p.113), como também tece detalhes sobre os dois ensaios separadamente. Dessa forma, destaca, em Sobre a pré-histórica do discurso romanesco, o riso e a paródia, e o objetivo central do ensaio, e demonstra como O romance como gênero literário “[…] quebrou os paradigmas tradicionais nos estudos e enfoques da história e da teoria do romance” (BEZERRA, 2019, p.122).
Teoria do romance III, portanto, é uma obra de excelência, que deve ser lida por todos aqueles que estudam o romance pelas lentes bakhtinianas. Esse convite não é feito somente para aqueles que ainda não tiveram a oportunidade de ler os ensaios, mas também para aqueles que já os leram, discutiram, estudaram em QLE, pois poderão perceber o enriquecimento ao texto proporcionado por Paulo Bezerra, que, mais uma vez, utilizando-se dos seus conhecimentos linguísticos, literários, tradutórios e teóricos (em especial, da teoria dialógica), traz ao leitor um texto que é mais completo em si mesmo – com a inserção de todas as notas de Bakhtin suprimidas anteriormente e as notas e observações tão ricas do tradutor -, completando a Teoria do romance proposta por Bakhtin.
Referências
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Orison Marden Bandeira de Melo Júnior – Universidade Federal do Rio Grande do Norte – UFRN, Departamento de Línguas e Literaturas Estrangeiras Modernas, Natal, Rio Grande do Norte, Brasil; junori36@uol.com.br.
Teatro e universidade: Cena. Pedagogia. [Dialogismo] – GONÇALVES (B-RED)
GONÇALVES, Jean Carlos. Teatro e universidade: Cena. Pedagogia. [Dialogismo]. São Paulo: Hucitec, 2019, 172p. Resenha de: FOMIN, Carolina Fernandes Rodrigues. Bakhtiniana – Revista de Estudos do Discurso, v.14 n.3 São Paulo July/Sept. 2019.01
O livro Teatro e universidade: Cena. Pedagogia. [Dialogismo] compõe a coleção Teatro, Série Pedagogia do Teatro, da Hucitec Editora, e traz um olhar investigativo que interliga diferentes campos do conhecimento: educação, teatro e estudos da linguagem. A obra valoriza o encontro e o diálogo dessas esferas, à medida que articula os conceitos advindos das formulações teórico-filosóficas do Círculo de Bakhtin sobre a linguagem com as vozes do teatro que ecoam na educação e as vozes da educação que ecoam no teatro.
O autor, Jean Carlos Gonçalves, é teatrólogo, diretor de teatro e professor de Práticas Teatrais na Universidade Federal do Paraná (UFPR), e vem traçando uma importante trajetória de reflexões acerca da linguagem, com base em pressupostos bakhtinianos. O livro, conforme o autor nos conta, foi concebido a partir de pesquisas anteriores: a tese de doutorado defendida no Programa de Pós-Graduação em Educação da UFPR e revisões realizadas nos dois estágios de pós-doutoramento no Programa de Estudos Pós-Graduados da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (LAEL/PUC-SP). Teatro e universidade: Cena. Pedagogia. [Dialogismo] corrobora a trajetória de reflexão de Gonçalves, que tem como pressuposto o dialogismo e não pretende categorizar ou engessar nenhum dos conceitos apresentados; ao contrário, o pesquisador busca aproximações e novas frentes de discussão.
A apresentação escrita por Beth Brait, supervisora dos Pós-Doutoramentos de Jean Carlos Gonçalves no PEPG em Linguística Aplicada e Estudos da Linguagem da LAEL/PUC-SP, destaca o livro como uma forte contribuição à Análise Dialógica do Discurso (ADD) e como “uma encenação possível do texto referência, constituindo-se como única e irrepetível” (BRAIT, 2019, p.12). A expressão texto referência refere-se a “um universo vivo, movente, que não cessa de se expandir, exigindo dos que dele se aproximam (ou dos que são por ele atraídos…) muito estudo, muita dedicação, técnica, método, disciplina e, acima de tudo, uma excepcional capacidade de interpretação criativa” (BRAIT, 2019, p.11). Ao apresentar sua pesquisa, Gonçalves é protagonista dessa interpretação criativa, que se abre à vertente interdisciplinar do conhecimento ao mobilizar dialogicamente as vozes da cena e da pedagogia.
Sobre o referencial teórico da obra, Gonçalves convoca ao diálogo autores dos três campos disciplinares que se propõe a investigar em interconexão: linguagem, educação e teatro. As vozes são múltiplas e, especialmente no que se refere aos estudos da linguagem, o autor extrapola o âmbito dos textos de Bakhtin e do Círculo, evocando outros comentadores e pesquisadores dessa perspectiva teórica. O diálogo acontece também com outros autores da coleção Teatro, Série Pedagogia do Teatro, como Beatriz Cabral (2002), Flavio Desgranges (2006) e Gilberto Icle (2009).
Os enunciados objeto das análises – denominados memoriais – situam-se na esfera educacional e são produzidos por alunos-atores a partir dos processos de montagem de espetáculo, vivenciados durante sua formação como Bacharéis em Teatro-Interpretação da Universidade Regional de Blumenau (FURB). Tendo como fundamento a ADD, que Brait (2019) indica no livro ser “uma perspectiva teórica que se apresenta, principalmente no Brasil, como uma possibilidade de interpretação dos estudos filosóficos-artísticos-discursivos desenvolvidos por Mikhail Bakhtin e o Círculo” (p.12), Gonçalves analisa como os alunos-atores se enunciam, a quem enunciam e quais vozes ecoam nesses enunciados. Ele lê as entrelinhas dos enunciados, as vozes discursivas, os embates valorativos, as posições dos sujeitos que apontam para um horizonte social mais próximo (o da sala de aula e o das relações aluno/professor) ou mais distante (educação e teatro), e suas análises remetem a imaginários sociais que circulam nesses espaços. Contudo, não é objetivo do livro classificar o aluno, o professor ou o diretor de teatro em modelos teatrais ou acadêmicos. O autor busca compreender as vozes que constituem os enunciados dos memoriais que analisa.
O livro está inserido em uma cadeia discursiva que dialoga com elos precedentes e posteriores das esferas que investiga, a cujos enunciados responde ativamente. Alguns desses enunciados estão explícitos e referenciados; outros, implícitos nas diferentes vozes e imaginários sociais presentes na sociedade em geral e nos memoriais analisados no livro. Lembrando Volóchinov (2017, p.219; itálicos no original) “um livro, ou seja, um discurso verbal impresso também é um elemento da comunicação discursiva” e está imerso em uma “discussão ideológica em grande escala: responde, refuta, ou confirma algo, antecipa as críticas possíveis, busca apoio e assim por diante”. E, para o pensador russo, a partir de uma determinada situação de um problema científico, “esse discurso verbal é inevitavelmente orientado para discursos anteriores tanto do próprio autor quanto de outros”.
Como um enunciado, elemento de uma comunicação discursiva, chama-nos a atenção a forma como Gonçalves apresenta e intitula cada uma das partes dessa obra. Primeiramente, destacamos o fato de que a introdução e a conclusão são nomeadas Ensaiando uma introdução e Ensaio aberto, respectivamente. Ao fazer analogia com os ensaios no teatro, Gonçalves aponta para o não acabamento e a não necessidade de se encerrar discussões. Tal qual um ensaio, a obra se coloca como diálogo aberto e aberta a diálogos.
Em Ensaiando uma introdução, Gonçalves nos aproxima do primeiro ensaio de uma apresentação cênica, em que vivências, objetivos e aproximações teóricas são postos em jogo, inaugurando caminhos. Nesse preâmbulo, o autor objetiva compreender o processo de criação teatral na universidade, assume que as relações entre teatro e universidade serão pensadas a partir da ADD e manifesta o diálogo com seu objeto, com o leitor, com os autores que leu e consigo mesmo.
A primeira parte do livro, em que Gonçalves situa as análises e faz acordos teóricos com o leitor, contém dois capítulos, intitulados Pesquisar o teatro feito na universidade e Pesquisar em perspectiva bakhtiniana, respectivamente. No primeiro, antes de trazer as vozes de outros autores, Gonçalves declara o seu lugar teórico e prático e se coloca como “um sujeito intérprete, que analisa seus dados a partir de sua visão única, de seu lugar no mundo, unindo os resultados da sua análise ao seu próprio gesto interpretativo” (p.29). Lembrando Bakhtin (2017, p.36), “não se pode separar interpretação e avaliação: elas são simultâneas e constituem um ato único integral. O intérprete enfoca a obra com sua visão de mundo já formada, de seu ponto de vista”. Consciente disso, além de apresentar um contexto maior, o da criação teatral na esfera acadêmica, Gonçalves conta seu percurso na universidade e assume que suas análises serão permeadas por posições valorativas, um pressuposto de análises em perspectiva bakhtiniana. O autor salienta a impossibilidade de categorizações ou caracterizações estritas para análises que têm como objeto o teatro ou o fazer teatral, pois, nas palavras de Gonçalves, “narrar, descrever o processo de criação teatral, é debruçar-se sobre ele de forma que se possa refletir sobre vivências” (p.31). Com isso, o próprio processo de análise se transforma em um enunciado.
Para o capítulo seguinte, Pesquisar em perspectiva bakhtiniana, Gonçalves faz um levantamento de autores que se dedicaram a essa aproximação entre as artes da cena e as formulações de Bakhtin, Volóchinov e Medviédev e afirma que a pesquisa dessa relação “parece ainda não ter tido seu momento de acontecimento. No Brasil, pouquíssimos pesquisadores têm-se dedicado com afinco a estudar as aproximações possíveis entre o pensamento bakhtiniano e as artes da cena” (p.45), motivo pelo qual essa obra se mostra tão importante. Dentre os principais conceitos apresentados nesse capítulo, estão: alteridade, interação, campo/esfera, vozes discursivas, multivocalidade, posições axiológicas e autoria. Esses conceitos são premissas e dão sustentação às análises que atravessam todo o livro.
A segunda parte da obra também se divide em dois capítulos: Vozes da educação no teatro e Vozes do teatro na educação. Neles, Gonçalves instiga o leitor a refletir sobre o jogo de vozes e a multivocalidade presentes nas esferas que se propõe a analisar a partir da perspectiva dialógica: educação e teatro.
Em Vozes da educação no teatro, o primeiro tópico está relacionado aos imaginários sociais referentes ao professor enquanto condutor de práticas teatrais na universidade. “Seria ele um professor-diretor?” é a pergunta que instiga a discussão. O próximo tópico vai ao encontro de questões relacionadas à autoridade docente. Por meio da pergunta “quem decide?”, o autor discute a heteroglossia, o encontro sociocultural de vozes sociais e os jogos dialógicos de dizeres que se cruzam. A questão da avaliação em teatro é provocada pela pergunta “Vai ter nota?” e o capítulo se encerra com a problematização do espaço físico da sala de aula como espaço de ensaios. Novamente, chama a atenção a forma de apresentação dos enunciados, pois cada um desses subitens, ao invés de nomear conceitos ou categorias de análises, são, na verdade, perguntas pelas quais o autor busca provocar o leitor e mobilizar discussões. Ou seja, perguntas que convocam o leitor ao diálogo.
Em Vozes do teatro na educação, segundo capítulo da Parte II, os subitens seguem apresentados em forma de perguntas. Primeiro, Gonçalves questiona se os processos de criação cênica a partir do modelo de processos colaborativos seriam uma utopia, distinguindo conceitos como coletividade e processos colaborativos. Na sequência, aborda a autoria nos memoriais analisados e a “multivocalidade constituinte dos sujeitos e seus enunciados” (p.127). Já no segundo tópico, debate o modelo de encenação teatral (ou se haveria um modelo) e as acepções da figura do diretor teatral. Nesse ponto, o autor ressalta as principais diferenças entre ensaiador, encenador e diretor teatral, bem como a figura do professor. Os memoriais analisados apontam para os imaginários sociais, uma vez que “as vozes estão imbricadas, sobrepostas, gerando outros sentidos, outras possibilidades de significação na própria situação comunicativo-discursiva” (p.143). No último subitem, a partir da noção de teatro de grupo correlata à formação em teatro na universidade, Gonçalves destaca o conceito de forças enunciativas centrípetas (que tendem a centralizar o poder) e centrífugas (que resistem a um poder imposto). Antes de finalizar o capítulo, entretanto, ainda discorre sobre o conceito de alteridade.
Percebemos que a distinção entre vozes do teatro na educação e vozes da educação no teatro tem caráter didático e necessário, mas uma voz não poderia ser analisada sem a outra, pois, como indica o autor, há uma “amálgama de vozes” (p.125) e os enunciados (os memoriais analisados) apontam para vozes “conversando entre si, se reconhecendo num mesmo espaço dialógico” (p.125).
A conclusão do livro é intitulada Ensaio aberto, referindo-se a prática de grupos de teatro de convidar pessoas para assistir a um ensaio, antes da estreia, e, nesse ensaio, o público é convidado à interlocução. Ao escolher esse título para as considerações finais do livro, o autor explicita que seu olhar é um dentre outros possíveis e convida o leitor a novas proposições para a criação teatral a partir da perspectiva dialógica de Bakhtin e do Círculo. Em perspectiva dialógica, “um texto, assim como uma voz, é algo que sempre chama outros, que sempre faz com que outras vozes cheguem, seja por intenção, seja por efeito. […] as vozes são múltiplas e múltiplos são os momentos e os modos em que elas se fazem ouvir” (AMORIM, 2004, p.155). O autor, à vista disso, dialogicamente convida o leitor a ouvir e se fazer ouvir do primeiro ao último ensaio do livro, da introdução às considerações finais.
Teatro e universidade: Cena. Pedagogia. [Dialogismo] é uma importante contribuição aos pesquisadores interessados tanto nas Artes Cênicas (e Artes do Corpo), como em Educação e Linguagem. Essa obra, enquanto enunciado, modifica as pesquisas nessas esferas e incita novas reflexões a respeito dos campos disciplinares que propõe investigar por meio do objeto de análise: os memoriais dos alunos em formação em teatro. Ao apresentar um estudo que articula e inter-relaciona esses campos de estudo, Gonçalves nos instiga a perceber que as fronteiras entre teatro, educação e linguagem não são absolutas, mas, ao contrário, estão em diálogo – e as vozes de um campo atravessam as do outro, refletindo e refratando outras vozes discursivas.
Referências
AMORIM, M. O pesquisador e seu outro: Bakhtin nas ciências humanas. São Paulo: Musa Editora, 2004. [ Links ]
BAKHTIN, M. Fragmentos dos anos 1970-1971. In: BAKHTIN, M. Notas sobre literatura, cultura e ciências humanas. Organização, tradução, posfácio e notas de Paulo Bezerra. São Paulo: Editora 34, 2017, p.21-56. [ Links ]
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CABRAL, B. Avaliação em teatro: implicações, problemas e possibilidades. Revista Sala Preta, n.2, p.213-220, 2002. Disponível em: https://www.revistas.usp.br/salapreta/article/view/57093/60081. Acesso em: 28/02/2019. [ Links ]
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VOLÓCHINOV, V. Marxismo e filosofia da linguagem: problemas fundamentais do método sociológico na ciência da linguagem. Tradução, notas e glossário de Sheila Grillo e Ekaterina Vólkova Américo; ensaio introdutório deSheila Grillo. São Paulo: Editora 34, 2017. [ Links ]
Carolina Fernandes Rodrigues Fomin – Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC SP), Programa de Estudos Pós-Graduados em Linguística Aplicada e Estudos da Linguagem, SP, Brasil; CAPES PROSUC, Proc. 88887.314270/2019-00; https://orcid.org/0000-0001-5120-049X; carolfomin@gmail.com.
Vozes em fragmentos na poesia de Chico: uma arquitetura polifônica? – KOGAWA (B-RED)
KOGAWA, João. Vozes em fragmentos na poesia de Chico: uma arquitetura polifônica? Rio de Janeiro: Editora Multifoco, 2018, 170p. Resenha de: MAGALHÃES, Anderson Salvaterra. Bakhtiniana, Revista de Estudos do Discurso, v.14 n.2, São Paulo Apr./June, 2019.
Fragmentação e reconceituação nuclear são duas características distintivas dos tempos atuais se estes tempos são considerados emoldurados pela condição (ou condições) pós-moderna(s). Seja essa moldura pós-moderna desenhada pelo fim das metanarrativas, como discutido pelo filósofo francês Jean-François Lyotard (2000) 1, ou entendida como uma liberação de símbolos culturais, de acordo com o também filósofo francês Danny-Robert Dufour (2005)2, ou como tempos líquidos, de acordo com o sociólogo e filósofo polonês Zygmunt Bauman (2007) 3, entre outras formas de tentar capturar o que tem acontecido com as organizações sociais especialmente na cultura ocidental, parece consenso que valores nucleares têm sido revistos. E essa revisão de valores leva à reconceituação de relações e instituições em geral. Não apenas relações e identidades sociais têm sido repensadas, como também modos de teorizar, o que geralmente leva a um relativismo de valores uma vez aceitos como absolutos ou, pelo menos, sólidos e estáveis. Então, um leitor contemporâneo pode pegar um par de óculos pós-modernos para simplesmente dar uma olhada ou para escrutinizar cuidadosamente o livro de Kogawa e se perguntar o que efetivamente está em jogo ali.
Bem, em Vozes em fragmentos na poesia de Chico, como indicado na pergunta posta no subtítulo do livro – uma arquitetura polifônica? -, o leitor encontra um contundente exercício teórico em torno do conceito bakhtiniano de polifonia que contribui para o entendimento de uma luta política flagrante no e pelo trabalho ético e estético com a linguagem num período da história brasileira que tem sido objeto de disputa conceitual: a ditadura militar. Porém, a fim de se engajar na discussão de Kogawa e tirar proveito de sua riqueza, o relativismo que pode derivar de uma posição pós-moderna deve dar lugar a um questionamento fundamentado em valores modernos. De outro modo, corre-se o risco de perder a questão. Como assim? Uma breve análise da estrutura do livro deve responder a esta pergunta.
Professor de Análise do Discurso na Universidade Federal de São Paulo, autor também de Linguística & Marxismo: condições de emergência para uma teoria do discurso francesa no Brasil (KOGAWA, 2015), Kogawa tem se ocupado há algum tempo do modo como se teoriza o discurso no âmbito acadêmico brasileiro, e esta nova obra só corrobora sua trajetória de reflexão. Logo após os agradecimentos usuais, há um prefácio bem informativo escrito por Renata Coelho Marchezan, que destaca a relevância do livro no conjunto de trabalhos em torno do Círculo de Bakhtin que enfrentam o desafio de lidar com um produtivo e difundido pensamento – o pensamento dialógico – sem cair na banalização. Dentre os conceitos vulgarizados, polifonia é sem dúvida um dos conceitos de mais difícil abordagem, e Marchezan antecipa que Kogawa identifica e problematiza a homogeneização dos conceitos de polifonia, dialogismo e heterodiscursividade. Esta é a primeira pista de que em Vozes em fragmentos na poesia de Chico: uma arquitetura polifônica? não há relativismo conceitual, e sim refinamento.
Na introdução, Kogawa afirma claramente o objetivo do livro: propor “uma leitura do conceito de polifonia em Bakhtin” (p.17) e anuncia que faz tal leitura perseguindo as bases filosóficas do conceito e analisando a relação autor-herói em letras de algumas canções compostas por Chico Buarque de Holanda durante a ditadura militar no Brasil. Ele antecipa que mobiliza polifonia pela negativa, isto é, identificando um modo não-polifônico de (se) enunciar. Letras de canções em que as vozes de grupos socioeconomicamente marginalizados são personificadas num sambista, numa prostituta, num pedreiro, dentre outros, são selecionadas para compor uma cadeia discursiva em que não se encontram múltiplas vozes sociais equipolentes, mas diferentes modos de sustentar uma postura. Ele deixa para o terceiro capítulo os detalhes que corroboram essa afirmação.
É no primeiro capítulo que Kogawa efetivamente lança os fundamentos modernos de sua discussão. Isso não quer dizer que a discussão seja ultrapassada. Pelo contrário, mostra-se altamente relevante em tempos em que conceitos básicos e nucleares, como o de ditadura, têm sido relativizados e consequentemente esvaziados. No livro, o autor dá especial atenção ao conceito de polifonia e, através da análise de uma cadeia discursiva particular da poesia de Chico, procede a um refinamento conceitual indicando que se trata de um fenômeno discursivo bastante raro. Por causa disso, não deve haver depreciação de modos não-polifônicos de (se) enunciar. Debaixo do guarda-chuva do dialogismo, é a responsabilidade ética que garante a relevância histórica e cultural do engajamento na cadeia discursiva.
Esse trabalho conceitual é desenvolvido no primeiro capítulo em quatro etapas. Primeiro, a natureza dialógica da linguagem é definida a partir da visitação de importantes obras do Círculo, como Marxismo e filosofia da linguagem, de Volóchinov (1986) 4. Dessa grande obra, Kogawa recupera a ideia de que a linguagem não é um sistema abstrato, nem uma produção solipsista individual, mas uma realidade viva resultante das relações estabelecidas nos e pelos grupos sociais. Por isso, argumenta, a linguagem tem uma natureza dialógica, social e histórica, e as instâncias singulares de sua atualização apresentam manifestação material que faz sentido num enquadre sociocultural. Isso é crucial para entender, por um lado, a discussão conceitual sobre polifonia e, por outro, para entender o processamento semântico da cadeia discursiva selecionada da poesia de Chico. A natureza dialógica, social e histórica da linguagem atualiza e dá visibilidade àquilo que é posto em questão na relação autor-herói nas letras de canções analisadas.
Em segundo lugar, a relação autor-herói propriamente dita é escrutinizada não apenas, mas principalmente, pelo exame do ensaio O autor e a personagem na atividade estética (BAKHTIN 1990)5. Kogawa é cauteloso em fazer referência a traduções recentes para o português dos ensaios e livros do mestre russo. Isso lhe permite discutir questões da recente história brasileira em sintonia com a agenda dos estudos bakhtinianos no Brasil. Então, encontra-se no livro uma proveitosa discussão sobre como as posições estéticas de autor e herói revelam a responsabilidade ética implicada na cadeia discursiva das letras de Chico.
Em terceiro lugar, a ideia de cadeia discursiva propriamente dita é discutida. Kogawa demonstra que, no pensamento dialógico a realidade da linguagem é necessariamente interacional, e que se pode distinguir monologismo de dialogismo no modo como o autor se relaciona com o herói. Se a linguagem é preponderantemente dialógica, o modo como as relações estéticas são construídas pode variar, e essa variação pode mostrar uma tendência monológica ou dialógica. Embora não mencione explicitamente os recentemente divulgados ensaios intitulados Diálogo I: a questão do discurso dialógico (BAKHTIN 2016a) e Diálogo II (BAKHTIN 2016b), Kogawa faz referência à edição em que esses ensaios são publicados em português, e sua composição retórica da leitura do trabalho de Bakhtin indica a coerência que se encontra no conjunto de ensaios do pensador russo, a despeito do modo não-linear que seus pensamentos foram distribuídos na Rússia e alhures.
Em quarto lugar, Kogawa coloca a questão: quando um discurso é polifônico? Então, fecha a discussão conceitual insistindo que a condição polifônica, isto é, a equipolência de diferentes vozes sociais na relação que o autor estabelece com o herói, é um arranjo estético bem peculiar e bastante pitoresco. Por isso, não é eticamente apropriado para toda e qualquer condição histórica de (se) enunciar.
No segundo capítulo, são identificados e descritos os elementos que disparam a cadeia poética a ser analisada. O cenário político é retratado em suas consonâncias e dissonâncias. A ditadura militar não é negada nem mitificada. É descrita como um tempo de coerções com múltiplas tendências, mas também como um tempo de respostas criativas. Baseado especialmente no trabalho do jornalista Elio Gaspari, Kogawa descreve a posição política militar como segmentada em duas tendências em tensão interna: as chamadas linha dura e não-dura. Nesse sentido, o governo ditatorial é apresentado não como um bloco político coerente, mas como uma instância histórica dinâmica e controversa. É este dinamismo que constitui terreno fértil para a produção de respostas criativas e responsáveis.
No terceiro e último capítulo, Kogawa analisa os tipos heroicos que Chico desenha, especialmente nas letras de quatro canções: Geni e o Zepelim, O malandro nº 2, Construção e Pedro, pedreiro. O autor mostra que as canções constituem modos responsáveis de (se) enunciar naquele momento histórico específico e, dessa perspectiva, consistem respostas críticas cujo objetivo envolve o apagamento das vozes dos heróis tornando-os construções imagéticas. Desse modo, a relação autor-herói instanciada é não-polifônica. Em suas próprias palavras, “O autor-criador constrói um ambiente hostil para as personagens e isso implica um mundo permeado por disparidades […] Sob essa ótica, neste capítulo, esses mundos artísticos servem como concretização desse discurso crítico que se configura como anti-conservador” (p.118). Kogawa demonstra, então, que essa posição crítica se realiza pela mobilização de três dimensões axiológicas: (i) religiosa, (ii) política e (iii) econômica. E continua: “A voz autoral, ao mobilizar sua crítica, coloca-se, direta ou indiretamente, ao lado dos despossuídos como forma de denunciar certas insensibilidades cotidianas que têm as parcelas menos prestigiadas da sociedade burguesa como alvo” (p.118).
A dimensão axiológica religiosa, por exemplo, é decisiva para processar a crítica flagrante em Geni e o Zepelim. Na canção, a redenção da cidade é efetuada pela prostituta que, a despeito de qualquer orgulho ou autopreservação, sacrifica-se para salvar os cidadãos que, no final, esquecem seu feito e a apedrejam cruel e covardemente. Enunciativamente, isso é construído pelo contraste entre os valores projetados sobre Geni, a prostituta que é apresentada em terceira pessoa do discurso, e os valores sustentados pelo coro, cuja voz mostrada em citação direta dá sentido a um tom moralista hipócrita.
Assim, a canção é um embate de vozes em que, de um lado, situa-se a voz do coro representante da moral e dos ‘bons costumes;’ de outro lado, há o posicionamento autoral – excedente da visão estética – como configurador de um universo que questiona os valores dogmáticos da cidade (p.145).
Emoldurando as canções por tais dimensões axiológicas, Kogawa mostra dialogicamente a estratificação sociolinguística flagrante na poética da cadeia selecionada. Demonstra que o modo como Chico Buarque, na condição de autor-criador, se relaciona com os tipos heroicos nas letras das canções constitui uma resposta válida ao contexto ditatorial em que a cadeia foi disparada. Embora essa resposta tenha se realizado por uma arquitetura não-polifônica, seu comprometimento ético justifica e valoriza a poesia. Então, as vozes em fragmentos que se escutam no livro não correspondem aos estilhaços de sentidos líquidos com os quais se pode deparar no funcionamento pós-moderno. Pelo contrário, esses fragmentos revelam a contundência de uma posição firme e brava em tempos ferozes.
1LYOTARD, J-F. A condição pós-moderna. Trad. Ricardo Corrêa Barbosa. 6.ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 2000.
2DUFOUR, D-R. A arte de reduzir as cabeças: sobre a nova servidão na sociedade ultraliberal. Trad. Sandra Regina Felgueiras. Rio de Janeiro: Companhia de Freud, 2005.
3BAUMAN, Z. Tempos líquidos. Trad. Carlos Alberto Medeiros. Rio de Janeiro: Editora Zahar, 2007.
4VOLÓCHINOV, V. Marxismo e filosofia da linguagem: Problemas fundamentais do método sociológico na Ciência da Linguagem. Tradução, notas e glossário Sheila Grillo e Ekaterina Volkova Américo. São Paulo: Editora 34, 2017.
5BAKHTIN, M. O autor e a personagem na atividade estética. In: ______. Estética da criação verbal. Trad. Paulo Bezerra. 4. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2003, p.3-194.Traduzido pelo autor.
Referências
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Anderson Salvaterra Magalhães – Universidade Federal de São Paulo – UNIFESP, Programa de Pós-Graduação em Letras/Estudos Linguísticos, Guarulhos, SP, Brasil; https://orcid.org/0000-0003-3183-1192; asmagalhaes@unifesp.br
Teoria do romance II – BAKHTIN (B-RED)
BAKHTIN, Mikhail. Teoria do romance II: As formas do tempo e do cronotopo. São Paulo: Editora 34, 2018. 272pp. Tradução de Paulo Bezerra, Serguei Botcharov, Vadim Kójinov. Resenha de: QUEIJO, Maria Elizabeth da Silva. Bakhtiniana – Revista de Estudos do Discurso, v.14 n.2, São Paulo, Apr./June 2019.
O lançamento de Teoria do romance II: As formas do tempo e do cronotopo dá sequência à publicação da obra Teoria do romance (Teória romana) de Mikhail Bakhtin (1895-1975). No Brasil, a coletânea de ensaios vertida por Paulo Bezerra e publicada pela Editora 34 foi dividida em três tomos1. O primeiro volume, intitulado Teoria do romance I: A estilística, inaugura a série de publicações e encontra-se disponível ao leitor desde 20152.
O segundo volume, como indica o subtítulo, se destina à introdução e ao desenvolvimento do conceito de cronotopo literário, compreendido como espaço-tempo real assimilado pela literatura no decorrer da história. Nas palavras do autor, “o cronotopo determina a unidade artística de uma obra literária em sua relação com a autêntica realidade” (p.217). O texto, que se dedica ao gênero romance europeu, é ainda fundamental como precedente à tese de Bakhtin acerca da obra de François Rabelais, conforme anuncia Bakhtin, ele mesmo, ao final do oitavo capítulo (p.191) e na nota de rodapé 59 (p.210).
O ensaio foi escrito originalmente entre 1937 e 1939, em Saviólovo, durante os expurgos stalinistas que levaram Bakhtin ao exílio. Em 1973, dois anos antes de morrer e já em Moscou, Bakhtin dedicou-se à revisão do manuscrito. Parte desse esforço resultou no acréscimo do Capítulo 10, intitulado “Observações finais” – como bem situa a “Nota à edição brasileira”, que abre o livro, relembrada pela nota de rodapé 64 (p.217), referente ao título do capítulo. E, embora um fragmento em que trata do tempo e do espaço no romance tenha se tornado público em 1974, na então União Soviética, por meio do terceiro número do periódico Questões de literatura (Voprosy literatury), a primeira publicação do texto integral ocorreu somente alguns meses após o falecimento do autor, em 1975, pela editora Khudozhestvennaia literature, junto aos demais ensaios de a Teoria do romance.
A versão de 1975 já é conhecida pelo leitor brasileiro através da tradução direta do russo para o português de Aurora Fornoni Bernardini e outros quatro tradutores, sob o título Questões de literatura e de estética: a teoria do romance (Voprosy literatury i estetichi), publicada pela Unesp/Hucitec em 1988. O tempo e a reconhecida importância dada ao texto no Brasil desde a valorosa tradução anterior justificam uma resenha cujas linhas se atenham ao cotejamento das duas versões, compreendidas por nós como acontecimentos, e, principalmente, às contribuições dadas pela nova tradução.
Assim, embora igualmente vertida diretamente do russo, a tradução realizada por Paulo Bezerra parte da edição crítica publicada na Rússia em 2012, pela editora Iazyki Slaviánskikh Kultúry. O texto integral, que incorpora correções realizadas por Bakhtin nos manuscritos e cópias datiloscritas, compõe o conjunto de Obras reunidas – organizado por Botcharov e Vadim Kójinov (1930-2001) em sete tomos, cujo primeiro foi publicado em 1997.
Das novidades proporcionadas pela recente tradução, ressaltamos o acréscimo de “Folhas esparsas para As formas do tempo e do cronotopo“, conjunto de anotações sobre ideias desenvolvidas no décimo capítulo do livro, inéditas em português, encontradas no arquivo do autor. Material precioso, no qual podemos observar facetas do processo de reflexão e construção do texto bakhtiniano em seu trabalho de revisão, trinta anos após o primeiro texto.
De tal modo, a partir da obra publicada, ainda que revisada e acrescida do décimo capítulo e das ideias esboçadas nas dez folhas de rascunhos, parece possível pensar, por exemplo, a respeito de questões que envolvem movimentos e percursos do e no pensamento bakhtiniano. Pequenas pistas de como o autor reflete acerca de seus primeiros escritos, rastreáveis no corpo do texto preparado para publicação e que emergem das anotações em trechos como este, no qual Bakhtin afirma que seu trabalho trata “do cronotopo do universo representado no romance, dos acontecimentos representados”, mas que “ainda há o cronotopo representador do autor […], e o cronotopo do ouvinte ou leitor, os cronotopos dos acontecimentos da representação e da audição-leitura” (p.238).
Ou quanto ao fragmento: “É necessário distinguir o tempo arquitetônico (o cronotopo) e o tempo composicional da narração ou da representação” (p.241), que permite pensar a discussão no conjunto da obra bakhtiniana. A relação entre a noção de arquitetônica, pensada pelo jovem Bakhtin, e a ideia de cronotopo é retomada por Paulo Bezerra no posfácio do livro. Nas palavras do pesquisador: “é aí que a antiga arquitetônica dá lugar a essa categoria como um amalgama de ‘espaço-tempo'” (p.253).
A respeito do novo sumário, destacamos a supressão do texto entre parênteses, precisamente “(Ensaios de poética histórica)” (BAKHTIN, 2002), após o título “Formas de Tempo e de Cronotopo no Romance” – “As formas do tempo e do cronotopo no romance”, na versão mais recente. No texto introdutório de Bakhtin, no entanto, “poética histórica” está presente nos subtítulos de ambas versões. A diferença fica pelo uso do plural na publicação anterior, “Ensaios de poética histórica” (BAKHTIN, 2002, p.211), em comparação ao uso do singular, “Um ensaio de poética histórica” (p.11), na publicação mais recente. De qualquer forma, a supressão no sumário não diminui a importância da poética histórica de Bakhtin para o tradutor, que a discute em “A poética histórica” (p.261), parte de seu posfácio.
A respeito da diferença entre os títulos dos capítulos, no título do Capítulo 6, onde se lia “trapaceiro” agora se lê “pícaro”, assim como no decorrer do texto. O título do Capítulo 7 difere, de “O cronotopo de Rabelais” para “O cronotopo rabelaisiano”; “de Rabelais” é igualmente substituído por “rabelaisiano” no título do Capítulo 8. No texto, nota-se também a estabilização de alguns termos que, mais que palavras, operam como conceitos-chave no pensamento bakhtiniano. É o caso da substituição de “autor em pessoa” (BAKHTIN, 2002, p.276 – na versão anterior) por “autor pessoa” (p.111 – na mais recente).
Em relação às notas de rodapé, a tradução anterior conta com oitenta e oito – entre notas de rodapé do autor, do tradutor, do editor e notas não especificadas. Sobre essas últimas, veja-se, por exemplo, os créditos à primeira nota constante nas duas traduções (BAKHTIN, 2002, p.211 – na versão anterior; p.11 – na mais recente), referentes ambas a uma palestra ministrada por Aleksei Ukhtómski sobre cronotopo na biologia e sobre questões de estética. Na versão anterior, não há qualquer indicação a respeito do autor da nota como há, por exemplo, na nota de rodapé 61 dessa mesma versão (BAKHTIN, 2002, p.316). Através da nova tradução, tornou-se possível identificá-la como nota do autor, tendo sido ainda complementada por uma esclarecedora nota do tradutor a respeito do palestrante. Ao mesmo tempo, a opção pela unificação da numeração referente às notas de rodapé, que antes era feita por capítulos, facilita a leitura e possíveis retomadas que se façam necessárias. Assim, embora o texto principal da presente tradução apresente menos notas de rodapé, ao todo setenta e cinco notas, destaca-se a forma como estão organizadas.
Além da primeira nota já mencionada (dividida entre autor e tradutor), há outras quatorze notas do autor e sessenta notas do tradutor. As notas de rodapé do tradutor vão além de explicações sobre o emprego de uma palavra ou de outra, ou sobre a tradução utilizada como fonte, oferecendo subsídios primorosos que contextualizam e detalham diversos aspectos da obra.
Os cuidados do tradutor, cujos conhecimentos não deixam de fora a teoria bakhtiniana, longe de serem meros preciosismos, visam assegurar que o texto vertido esteja em consonância com a perspectiva dialógica. Nesse sentido, um ganho importante da nova tradução diz respeito aos trechos de outros autores citados por Bakhtin no decorrer do livro, sobretudo os que compõem sua análise3. A começar pelas eventuais adaptações em relação às traduções em língua portuguesa consultadas – conforme a nota de rodapé 33 (p.125), referente ao Gargântua e Pantagruel de François Rabelais, por exemplo, bem como a nota 13 (p.56), referente ao Asno de ouro de Apuleio. Na nota referente à obra de Apuleio, o tradutor acrescenta que tais modificações visam acomodar a análise proposta por Bakhtin, adequando e atendo o texto citado aos propósitos do autor russo, sem com isso deturpá-lo de seus sentidos originais.
Quanto à análise de Gargântua e Pantagruel, aqueles que já leram Questões de literatura e de estética: a teoria do romance devem notar que em Teoria do romance II: As formas do tempo e do cronotopo, os trechos da obra de Rabelais encontram-se não mais em francês, mas em português, o que torna o texto mais acessível ao público brasileiro, em especial aos que não dominam a língua francesa. Além disso, as diferenças em relação às citações abrem uma porta de diálogo entre os próprios trechos citados, isto é, entre os conservados no original e os recolhidos por Paulo Bezerra na versão traduzida diretamente do francês para o português4.
No prefácio da edição revista de Problemas da Poética de Dostoiévski, outra importante obra de Bakhtin também vertida por Paulo Bezerra, o tradutor discute implicações para a compreensão do pensamento bakhtiniano decorrentes de excertos de Dostoiévski retirados de traduções indiretas do russo. Nesse sentido, as traduções indiretas deram margem a equívocos e imprecisões, justificando a necessidade de substituí-las na ocasião de revisão. Paulo Bezerra ainda afirma nesse prefácio que a tradução direta permite “recriar o espírito da obra na linguagem mais próxima possível do original”, ao mesmo tempo que possibilita “uma compreensão muitíssimo mais ampla e profunda das peculiaridades da teoria bakhtiniana” (BEZERRA, 2010, p.VI). Assim, o rigoroso trabalho empreendido pelo tradutor nos garante uma melhor compreensão da teoria bakhtiniana, agora também através de Teoria do romance II: As formas do tempo e do cronotopo.
Ao final do volume, acrescenta-se valioso posfácio já referido, intitulado “Uma teoria antropológica da literatura”, em que Paulo Bezerra nos oferece quinze páginas nas quais emoldura o texto que as precede. O título do posfácio, per se, instiga o leitor a pensar sobre o texto que acaba de ler (ou que pretende ler, nos casos em que o leitor folheia as páginas do volume antes de mergulhar no texto).
Bezerra, em sua discussão, nos recorda as influências de Einstein e Kant para o conceito de cronotopo bakhtiniano, mas também dá os devidos créditos ao biólogo russo Aleksei Ukhtómski – aquele palestrante mencionado pelo próprio Bakhtin em sua primeira nota (p.11) – pela aproximação da noção de cronotopo às questões de estética. Na primeira parte, intitulada “A construção de um conceito”, o tradutor nos brinda com a citação traduzida de um trecho transcrito da palestra do biólogo e aponta as diferenças entre os pensamentos desenvolvidos por Bakhtin e Ukhtómski.
Paulo Bezerra, ainda na primeira parte, situa a ideia de cronotopo no conjunto da obra bakhtiniana anterior e posterior às reflexões constitutivas de tal conceito, como a referida relação entre a noção de cronotopo e de arquitetônica, enquanto na segunda parte do posfácio, “Lapidando o conceito: ‘Observações finais'”, discute o décimo capítulo da obra. Na também já aludida terceira parte do estudo posfacial, “A poética histórica”, o autor trata das mudanças do tempo num determinado espaço, retomando outra noção cara a Bakhtin, a de grande tempo, a partir da qual podemos refletir sobre “a evolução, as mudanças e alternâncias dos diversos cronotopos à luz das novas realidades históricas e culturais que se alternam nos diferentes enredos literários” (p.262), sem que tais passagens signifiquem mera sequencialidade, linearidade ou progressismo.
A quarta e última parte, intitulada “O cronotopo além da literatura”, ressalta as diferentes áreas que hoje mobilizam o conceito bakhtiniano de cronotopo na Rússia, demonstrando a riqueza do conceito. Nas orelhas do livro, Samuel Titan Júnior, professor de Teoria Literária e Literatura Comparada na Universidade de São Paulo – USP, além de nos proporcionar uma bela metáfora fluvial a respeito da obra, reitera a ideia de estarmos diante de “um livro absolutamente singular, que ultrapassa qualquer categoria predefinida”.
Paulo Bezerra, além de tradutor, é docente, pesquisador e crítico. Em sua carreira foi professor na Universidade de São Paulo – USP, Universidade do Estado do Rio de Janeiro – UERJ e Universidade Federal Fluminense – UFF, instituição na qual se aposentou e onde ainda hoje leciona como professor de teoria literária. Seu vasto trabalho de tradução compreende mais de quarenta obras em diferentes campos das ciências humanas, incluindo respeitáveis traduções de títulos como Crime e Castigo e Irmãos Karamázov de Dostoiévski, igualmente publicados pela Editora 34.
De Bakhtin, verteu os já apontados Problemas da Poética de Dostoiévski e Teoria do romance I: A estilística, bem como Estética da criação verbal, Os gêneros do discurso e Notas sobre literatura, cultura e ciências humanas. Além de O freudismo: um esboço crítico, publicado no Brasil sob a assinatura de Bakhtin, mas cuja autoria é atribuída a Volochínov. Assim, o leitor de Teoria do romance II: As formas do tempo e do cronotopo conta com um trabalho cujo tradutor é, além de professor de teoria literária e profundo conhecedor da cultura e língua russa, um pesquisador comprometido com a teoria bakhtiniana.
Desde 2013, a Editora 34 – que vem desempenhando papel fundamental no campo editorial, contribuindo muito aos estudos bakhtinianos – já publicou outras cinco obras do Círculo com o mesmo rigor com que apresenta o volume em questão. A atualidade das traduções, consonantes com as discussões internacionais, tornam cada nova obra uma necessária referência. Além disso, muitos autores mobilizados por Bakhtin, inclusive nos seus estudos acerca do cronotopo, são dados a conhecer ou melhor conhecidos pelo público brasileiro através da Coleção Leste. Da mesma editora, a coleção reúne obras traduzidas diretamente do russo de escritores como Dostoiévski, Gógol, Tolstói, Púchkin, Turguêniev e Tchekhov, vertidos para o português por tradutores renomados como Paulo Bezerra, mas também Boris Schnaiderman.
Quando se trata do Círculo, e em especial desse volume em que Bakhtin se dedica ao conceito de cronotopo, não podemos ignorar todos os espaços-tempos reais envolvidos nos anos e lugares que separam o escrito original das diferentes versões e publicações na antiga União Soviética e, mais recentemente, na Rússia. Tampouco desconsiderar as questões espaço-temporais compreendidas pelas duas traduções brasileiras, que diferem nos textos utilizados como fontes e escolhas tradutórias, entre outros aspectos. Pensamos, assim (e ao menos), nos diferentes contextos de produção e recepção, bem como nos anos, quilômetros, limitações, possibilidades, processos históricos e culturas que separam cada um dos diferentes textos.
Além de todos esses aspectos, buscamos não perder de vista as tantas mudanças desses espaços no decorrer do tempo, bem como tudo o que se conheceu e produziu a respeito de Bakhtin e do Círculo nas últimas décadas – quando se trata das traduções brasileiras, estamos falando de um intervalo de exatos trinta anos entre a versão coordenada por Aurora Fornoni Bernardini e a de Paulo Bezerra. Afinal, como discute Bakhtin, “a nós se apresenta um texto, que ocupa um lugar definido no espaço, ou seja, é localizado, mas a sua criação, o conhecimento que adquirimos dele fluem no tempo” (p.229-230), pois ele é aberto, voltado para o exterior. Portanto, “o material da obra não é morto, mas falante, significante (ou sígnico), não só o vemos e tateamos como sempre ouvimos vozes nele” (p.229).
Nesse sentido, a publicação de Teoria do romance II: As formas do tempo e do cronotopo é, sem dúvida, um acontecimento, indispensável nesse diálogo alçado ao grande tempo. No mais, acreditamos que muitas são as contribuições a partir das distâncias e aproximações entre versões, o que, se bem conduzido, enriquece dialogicamente o próprio campo de estudos bakhtinianos, sobretudo se as diferentes traduções disponíveis ao público brasileiro forem postas em relação como em um metafórico encontro e sob diferentes pontos de vista.
1Em razão de uma decisão editorial e de tradução, com anuência de Serguei Botcharov (1929), herdeiro vivo dos direitos autorais de Bakhtin.
2Sobre o primeiro volume, ver a resenha de Adriana Pucci Penteado de Faria e Silva (2015).
3Cabe realçar que a preferência pelo uso de traduções diretas do original para o português em relação aos trechos citados por Bakhtin vai além das obras analisadas, como é o caso das linhas referentes à Cursos de estética de Hegel, retiradas da tradução feita diretamente do alemão para o português.
4Ou ainda, diferenças quanto aos trechos citados que independem da língua. A título de exemplo, em comparação com a versão coordenada por Aurora Fornoni Bernardini, a tradução de Paulo Bezerra inclui um trecho que expande a citação sobre o espancamento dado pelo monge Jean (frei Jean, na versão anterior).
Referências
BAKHTIN, M. Formas de tempo e de cronotopo no romance (ensaios de poética histórica). In: BAKHTIN, M. Questões de literatura e de estética: a teoria do romance. Trad. Aurora F. Bernadini et al. São Paulo: Hucitec; Annablume, 2002, p.211-362. [ Links ]
BEZERRA, P. Prefácio. In: BAKHTIN, M. Problemas da poética de Dostoiévski. Tradução por Paulo Bezerra. 5. ed. revista. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2010. [ Links ]
FARIA E SILVA, A. BAKHTIN, M. Teoria do romance I. A estilística. Tradução, prefácio, notas e glossário de Paulo Bezerra; organização da edição russa de Serguei Botcharov e Vadim Kójinov. São Paulo: Editora 34, 2015. 256p. Bakhtiniana. Revista de Estudos do Discurso, v.11, n.1, p.234-239, Jan./Abr. 2016. Disponível em: [http://revistas.pucsp.br/bakhtiniana/article/view/24424/18223]. Acesso em: 05 dez. 2018. [ Links ]
Maria Elizabeth da Silva Queijo – Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUC/SP, Programa de Estudos Pós-Graduados em Linguística Aplicada e Estudos da Linguagem – LAEL, São Paulo, SP, Brasil; CNPq n. 168996/2018-9; https://orcid.org/0000-0002-7459-0360; elizabeth.queijo@gmail.com.
O garoto selvagem e o dr. Jean Itard: história e diálogos contemporâneos – BAKS-LEITE et. al. (B-RED)
BANKS-LEITE, Luci; GALVÃO, Izabel; DAINEZ, Débora (Eds.). O garoto selvagem e o dr. Jean Itard: história e diálogos contemporâneos. Campinas, SP: Mercado de Letras. 2017. 282 p. Resenha de: UCHÔA, Raphael. Bakhtiniana – Revista de Estudos do Discurso, v.13 n.3 São Paulo Sept./Dec. 2018.
O “selvagem” é um dos principais temas da história intelectual no Ocidente. Desde o medievo até a modernidade, o imaginário europeu foi habitado pelos wild men em suas diversas representações. Na arte, na literatura e no folclore, o selvagem aparece, por exemplo, na forma dos sátiros e faunos. Na ciência, ele se faz presente nas elaborações de naturalistas e médicos do século XVII e XVIII, como é o caso do homo sylvestris, trazido a público pelo anatomista Edward Tyson (1651-1708) e do homo ferus, que aparece na décima edição de influente Systema naturae de Carl von Linné (1707-1778). Na filosofia, a abordagem mais conhecida desse tema está nas elaborações de filósofos como J. J. Rousseau sobre o bon sauvage.
É nesse amplo contexto histórico e conceitual de construção da figura do “selvagem” e de investigação de uma ciência da natureza humana no Setecentos que emergiram os dois influentes relatórios do médico francês Jean Itard (1774-1838), que tinham como objeto o caso de Victor de Aveyron, o menino encontrado em um bosque no sul da França em 1798 e caracterizado como “selvagem”. Esse é o tema da obra O garoto selvagem e o dr. Jean Itard, organizada pelas pesquisadoras Luci Banks-Leite, Izabel Galvão e Débora Dainez.
Os relatórios de Itard foram traduzidos pela primeira vez em 2000 e publicados sob o título A educação de um selvagem: experiências pedagógicas de Jean Itard. Esse primeiro trabalho de publicação dos relatórios resultou de encontros e debates sobre os escritos de Itard entre as organizadoras, Luci Banks-Leite e Izabel Galvão, e outros colaboradores do Brasil e do exterior. Nesse sentido, o livro em análise traz ao público o resultado de quase duas décadas de constantes debates e reflexões entre pedagogos, linguistas, psicólogos, psicanalistas, filósofos e historiadores sobre os significados do caso de Victor de Aveyron.
A discussão basilar que percorre a obra O garoto selvagem é a relação entre linguagem e pensamento, particularmente articulada em um contexto de aprendizagem, analisada a partir do caso de Victor. O livro se divide em duas partes, a primeira com sete ensaios e a segunda com dois documentos históricos. Na primeira, os autores analisam, sob diversos prismas, os problemas epistemológicos latentes no caso de Victor. Na segunda, apresenta-se a tradução de dois textos de Jean Itard (um mémoire e um relatório) que serviram de base documental – juntamente com a película do cineasta francês François Truffaut (1932-1984) – para as análises contidas na primeira parte do livro.
O primeiro ensaio, O selvagem do Aveyron: aspectos históricos e debates para o século XXI, escrito por duas das organizadoras da coletânea, Luci Banks-Leite e Izabel Galvão, apresenta as linhas gerais do trabalho: a abordagem conceitual (intelectual e científica) e contextual do caso Victor, incluindo a localização espacial – o lugar em que Victor foi encontrado e o lugar onde foi (des)tratado e (des)educado. A ambiguidade dos termos indica precisamente uma das discussões centrais do livro: as dimensões epistemológicas do sucesso/fracasso do dr. Itard. As autoras apresentam também o material que serviu de base para as análises ao longo do livro, isto é, (1) o primeiro Relatório (mémoire) de 1801, o qual expõe os objetivos que pautaram o programa de ensino de Jean Itard; (2) um Relatório de 1806, destinado a prestar contas da situação de Victor ao Ministro do Interior da França e (3) o filme de Truffaut.
O segundo ensaio, intitulado O silêncio do homem natural, Carlos R. Luis, o autor, leva o leitor diretamente para uma rede de problemas filosóficos profundamente debatidos no século XVIII (por exemplo, a natureza da linguagem e do pensamento) que permearam o caso de Victor – apenas uma dentre as várias crianças encontradas em “estado selvagem” no século XVIII – que se tornou objeto de estudo no período. Carlos Luis identifica um conjunto de estudiosos Setecentistas (principalmente, Christian Wolff, J. J. Rousseau e Condillac) que informavam o debate médico e científico sobre o estatuto do “selvagem” diante de problemas como “natureza” e “sociedade” e que, por sua vez, informaram as práticas científicas de Jean Itard e Philippe Pinel (1745-1826), ambos, segundo Carlos Luis, em desacordo sobre o caráter sensualista ou inatista da natureza humana – como teorias mais amplas para se pensar a relação natureza e sociedade no processo de formação humana no geral, e de Victor em particular.
O terceiro ensaio da obra, O projeto científico de educação do selvagem do Aveyron: perspectiva histórica e reflexões para o presente, é assinado por Luci Banks-Leite e articula conceitos como sensibilidade, fala/pensamento e aprendizagem a partir do caso Victor. Tais conceitos são articulados num intricado e complexo contexto político e filosófico da França do final do Setecentos. Nessa conjuntura, a autora insere em sua análise figuras parametrizadoras de uma ciência do homem no período: além dos já citados Itard e Pinel, Banks-Leite discute as contribuições de Pierre Cabanis (1757-1808), Georges Cuvier (1769-1832) e do sueco Carl von Linné. A autora demarca assim o campo conceitual dentro do qual se estruturou o debate mais amplo sobre a relação entre natureza e cultura, subjacente ao caso específico sobre a natureza da deficiência de Victor, isto é, se ela era inata ou adquirida.
Nesse recorte, Banks-Leite destaca dois dos objetivos de Jean Itard: (1) despertar a sensibilidade nervosa de Victor e (2) conduzi-lo ao ato da fala. Trata-se de objetivos assentados na discussão teórica entre o sensualismo e o inatismo do período. Do ponto de vista fisiológico, além de filosófico, a autora destaca a relação entre o estímulo nervoso, portanto físico, e a fala, almejada neste contexto não apenas para sinalizar a cura do garoto, mas para potencializar debates do período sobre a relação entre civilização, linguagem e pensamento, e sobre a formação das ideias, para tomar a menção direta da autora à Étienne Bonnot de Condillac (1715-1780).
O quarto ensaio, A educação de Victor do Aveyron: do isolamento da floresta ao isolamento em sociedade, analisa a relação entre o contato social e o desenvolvimento humano, a partir do caso de Victor. Nesse sentido, as autoras Izabel Galvão e Heloysa Dantas colocam em evidência as contraposições entre as visões de Pinel e Itard. Pinel via em Victor uma debilidade orgânica, o que tornava, sob esse ângulo, inviável qualquer ação educacional ou de socialização do garoto; Itard, por outro lado, mais próximo da epistemologia empirista-sensualista de Condillac, entendia que o processo de socialização tinha um lugar privilegiado nesse caso. Num segundo nível, as autoras introduzem uma divisão entre o Itard cientista e o educador e argumentam que o estudioso francês haveria se equivocado nas duas funções. Como cientista, Itard teria “coisificado” o garoto e, portanto, isentado de subjetividade a sua relação com Victor, o que, por sua vez, o teria levado à sua falha primordial no papel de educador.
O quinto ensaio, O selvagem poderia ter falado? Ou das condições estruturais de uma educação, escrito por Leandro de Lajonquière, introduz uma importante reflexão sobre o contexto científico de busca pelo “homem natural” e a maneira pela qual Victor satisfez, pelo menos por um período, a busca de tal ideal. Todavia, a principal intenção do ensaio é fazer paralelos entre os procedimentos médicos e pedagógicos conduzidos por Itard, no caso Victor e aqueles conduzidos por Anne Sullivan (1866-1936), no caso Helen Keller (1880-1968). Nesse sentido, Lajonquière discute o que denomina de as “condições necessárias” ou as “condições estruturais” para o sucesso do empreendimento educacional em ambos os casos; falho, na visão do autor, no caso de Itard, uma vez que o estudioso nunca abandonou a ideia de uma medicina moral, isto é, de que estava resgatando Victor de um estado selvagem e de uma tábula rasa. O contrário disso teria ocorrido no caso de Helen Keller; bem sucedido em função da devida ênfase dada por Anne Sullivan ao vínculo afetivo com a garota surda e cega, o que criou as condições para a emergência da fala.
No sexto ensaio, Itard e Vigotski: um diálogo possível, Ana Luiza Smolka e Débora Dainez retomam um dos fios condutores da obra, a saber, a relação entre cultura e natureza, particularmente direcionada para o problema da gênese das funções psicológicas e para uma das derivantes de tal problema: a emergência da própria linguagem humana. Nesse sentido, as autoras aludem a dois lados de um debate contemporâneo, um liderado pelo linguista Noam Chomsky, que propõe a linguagem como um dispositivo inato e o outro, representado pelo psicólogo Michael Tomasello, que defende a cognição social, filogeneticamente produzida, como condição para a emergência da linguagem.
As autoras analisam ainda a relação entre Itard e Vygotsky, objetos do ensaio, seja pelos pontos de convergência entre eles, isto é, de que a “humanização” só se adquire pela cultura e educação; seja pelos de divergência, o lugar da fala como condição de pensar e conhecer. Nesse sentido, as autoras exploram alguns dos problemas cardinais da obra: “Como o signo, a palavra/língua(gem) afeta e constitui o psiquismo humano? Como as funções da linguagem se relacionam com as funções psicológicas?” (p.115). Do ponto de vista histórico, científico e filosófico, o problema parece ser mais viável de ser elaborado do que respondido. De qualquer maneira, as autoras pressionam possibilidades de encaminhamento da questão traçando paralelos entre o caso de Victor e o de Guilherme, um garoto com síndrome de Down no contexto de uma escola pública na década de 2010 que, assim como Victor, não falava. Dessa forma, permanecem as questões de mesma natureza: “Se há impossibilidade de falar, há impossibilidade de pensar? De compreender? De significar?” (p.118).
O sétimo ensaio, Olhares cruzados sobre a educação de um jovem selvagem: Itard (1801) – Truffaut (1970), traz uma análise conjunta do filme de Truffaut e dos escritos de Itard. As autoras, Anne Goliot-Lété e Sophie Lerner-Seï, dispensam maior atenção ao filme O garoto selvagem enquanto apropriação e reinterpretação do caso de fins do século XVIII. Nesse sentido, as autoras exploram o saber de Jean Itard num espelhamento semiótico entre os textos e o conteúdo do filme e evidenciam como determinadas imagens da película enunciam um complexo quadro psíquico do qual emergem as figuras espelhadas de Itard e Truffaut, Victor de Aveyron e Jean-Pierre Cargol e a atriz Françoise Seigner e a Madame Guérin, a governanta que auxiliou no projeto educativo de Itard. Nesse limiar, criado entre os dois suportes de análise, as autoras analisam o protagonismo dos diferentes atores na educação de Victor e os limites e avanços que o filme apresenta enquanto interpretação dos escritos de Itard.
Convém sublinhar que a obra em análise apresenta uma proposição metodológica ao mesmo tempo ousada e, do ponto de vista da análise histórica, com uma potencial limitação. Tal limitação se traduz em perguntas como: “O selvagem poderia ter falado?”, (p.79) ou em afirmações como “Itard errou” (p.77). Tanto a pergunta quanto a afirmação pressupõem um olhar comparativo do presente em direção ao passado e, portanto, um olhar informado por teorias de verdade contemporâneas. Nesse sentido, embora seja tentador perguntar se Itard poderia, de fato, ter adotado procedimentos médicos e educacionais diferentes, a resposta a essa pergunta parece estar limitada ao regime de pensamento do seu tempo.
Para além dessa potencial limitação na abordagem do caso, isto é, resguardado o historicismo metodológico indicado por historiadores da ciência como Georges Canguilhem,2012 resta-nos retomar a ousadia metodológica e o aspecto profundamente provocativo do livro: a análise de um caso histórico no qual estão em jogo projetos educativos e científicos e o esforço de refletir comparativamente epistemologias do passado e do presente, particularmente, epistemologias ligadas a relação entre linguagem e pensamento. As reflexões advindas daí são, como fica claro nos sete ensaios primorosamente redigidos do livro, profundamente instigantes e inesgotáveis. Instigam, ainda, o leitor ao exame da segunda parte da obra, os Escritos de Jean Itard.
Referências
CANGUILHEM, G. Estudos de História e Filosofia das Ciências: concernente aos vivos e à vida. Trad. Abner Chiquieri. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2012. [ Links ]
Raphael Uchôa – Centro Simão Mathias de Estudos em História da Ciência (CESIMA), Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, Brasil; https://orcid.org/0000-0003-3484-8336; rbsuchoa@gmail.com.
Marxismo e filosofia da linguagem: Problemas fundamentais do método sociológico na ciência da linguagem – VOLÓCHINOV (B-RED)
VOLÓCHINOV, Valentin (Círculo de Bakhtin). Marxismo e filosofia da linguagem. Problemas fundamentais do método sociológico na ciência da linguagem. Tradução, notas e glossário de Sheila Grillo e Ekaterina Vólkova Américo. Ensaio introdutório de Sheila Grillo. São Paulo: Editora 34, 2017, 373p. Resenha de: PISTORI, Maria Helena. Bakhtiniana – Revista de Estudos do Discurso, v.13 n.2 São Paulo May/Aug. 2018.
Poucos duvidam que há muito precisávamos da tradução de Marxismo e filosofia da linguagem. Problemas fundamentais do método sociológico na ciência da linguagem (MFL), feita diretamente do original russo. E é suficiente a observação da referência bibliográfica completa, registrada acima, para constatar estarmos diante de um importante e competente trabalho, e não apenas de uma nova tradução daquela que é, possivelmente, a mais conhecida obra do Círculo de Bakhtin entre nós, brasileiros. Aliás, uma tradução realizada por pesquisadoras brasileiras comprometidas com o pensamento bakhtiniano, conhecidas e reconhecidas na área dos estudos do discurso.
O texto que temos agora responde ampla e muito especialmente a nosso tempo-espaço: são 39 anos depois da primeira edição de MFL, pouco mais de 40 anos que nós, brasileiros, temos contato com a obra do Círculo (Cf. Brait, 2012, p.219). E isso nos deu tempo para buscar compreendê-la em maior profundidade, estudá-la, buscar-lhe a contextualização, dialogar com pesquisadores daqui e de outros espaços que dela também se ocuparam, dialogar mais detidamente com ela e com algumas traduções dela no Ocidente. Tudo isso nos permite afirmar que a recepção de MFL, hoje, é bem diferente daquela da década de 70: não há mais a novidade e a surpresa, ou o impacto causado pelas obras do Círculo que aos poucos foram sendo descobertas pelos primeiros estudiosos brasileiros. Em nossa academia, há muitos pesquisadores que fundamentam seus estudos da linguagem e da literatura, ou mesmo de educação e em outras ciências humanas, no pensamento haurido em fontes bakhtinianas; diferentes grupos de pesquisa que estudam Bakhtin e o Círculo, de norte ao sul do país. Na área dos estudos da linguagem, a Análise Dialógica do Discurso/ADD (Cf. Brait, 2010, p.9-31), de inspiração no pensamento do Círculo, alcança muitos estudiosos, ajudando-nos a compreender o discurso responsivamente. Mais ainda: temos, aqui no Brasil, um periódico acadêmico, bilíngue, cujo foco são os estudos bakhtinianos, de forma específica e em seu diálogo com outras áreas do conhecimento: Bakhtiniana. Revista de Estudos do Discurso. Nosso tempo-espaço é outro, e esta tradução responde a muitas das questões que, ao longo dos anos, foram levantadas pela anterior. Não é possível tratar de tudo isso neste texto: escolhemos partir dos dados da referência bibliográfica e fazer algumas comparações entre esta e a anterior. Ao final, trataremos brevemente do Ensaio introdutório, de Sheila Grillo, sem dúvida um texto brilhante e alentado que emoldura1 esta tradução e, por meio dele, permite novas leituras de MFL.
Autoria. Várias questões nos chamam a atenção na referência. Em primeiro lugar, a autoria da obra. Se, na conhecida versão brasileira do francês para o português, cuja primeira edição é de 1979, constava a autoria de Mikhail Bakhtin (V. N. Volochínov), agora temos VOLÓCHINOV, Valentin (Círculo de Bakhtin). As tradutoras nos esclarecem: nos originais russos que foram a fonte da tradução (primeira edição de 1929 e segunda de 1930), a autoria é de Valentin Nikoláievtch Volóchinov. Nos parênteses, o Círculo de Bakhtin sinaliza ao leitor o âmbito em que foi produzida a obra, o que ainda nos remete aos variados debates acerca da autoria, sobretudo no Ocidente, desde que os trabalhos bakhtinianos começaram a ser conhecidos na Europa e Américas. Aliás, muito contribuíram para esse debate os textos de Roman Jakobson (e de Marina Yaguello), autores do Prefácio e da Apresentação daquela primeira edição, especialmente a conhecida frase de Jakobson: “Acabou-se descobrindo que o livro em questão e várias outras obras … foram na verdade escritos por Bakhtin…” (1981, p.9). Atualmente conhecemos várias das obras e ensaios de Volóchinov, respeitado linguista do grupo, com quem Bakhtin, Medviédev e outros membros certamente dialogaram. A autoria de MFL, colocada dessa forma, parece fazer jus à realidade daquele momento. No final do livro, consta ainda um “Sobre o autor”, com dados biográficos de Volóchinov (1895-1936), que possibilitam ao leitor conhecer um pouco de sua trajetória de vida, na Universidade de Leningrado (atualmente Universidade Estatal de São Petersburgo), no Instituto de História Comparada das Literaturas e Línguas do Ocidente e do Oriente (ILIAZV) e no Círculo de Bakhtin, como linguista, crítico de música, de arte e literatura.
Tradução. Voltando à referência inicial, observamos que a tradução, notas e glossário são de Sheila Grillo e Ekaterina Vólkova Américo. Caso o leitor não as conheça, o livro traz, ao final, um “Sobre as tradutoras”. A primeira – Sheila Grillo, doutora em Linguística pela USP, professora associada da FFLH/USP, tendo realizado pesquisas em diferentes universidades francesas, no Instituto Górki da Literatura Mundial (Moscou), em arquivos de Valentín Volóchinov em São Petesbrugo e na Biblioteca Lenin (Moscou); é ela a autora do primoroso Ensaio introdutório. A segunda – Ekaterina Vólkova Américo, também é doutora pela USP, em Língua e Literatura Russa e professora da Universidade Federal Fluminense/UFF. Além das publicações individuais, ambas assinam a tradução de outros trabalhos do Círculo: O método formal nos estudos literários, de Pável Medviédev, e Questões de estilística no ensino da língua, de Mikhail Bakhtin. Na realidade, conhecem profundamente o pensamento bakhtiniano, não apenas a língua russa; e o leitor brasileiro, do qual são parte. Em relação a ele, em artigo que comentam o trabalho de traduções brasileiras de autores do Círculo, Grillo e Américo (2014) reconhecem a tensão entre a fidelidade ao texto russo e o contexto de recepção na língua portuguesa e afirmam:
Temos em mente um leitor estudioso da obra do Círculo de Bakhtin, isto é, um leitor ávido por compreender conceitos produzidos em um contexto intelectual preciso, em um tempo e em uma cultura distantes” (p.82).
Pretendem, assim, uma tradução que evite a “aproximação indevida da teoria do autor com correntes semióticas ocidentais […]” (p.81), mas que esteja atenta ao distanciamento temporal e cultural da produção de MFL. Nessa busca, no cap.2 O problema da relação entre a base e a superestrutura, já observamos muito maior clareza em relação à questão dos gêneros discursivos, preocupação dos membros do Círculo desde a década de 20 e pouco explicitada na tradução anterior, o que se tornou alvo de críticas recorrentes. Se temos ali “A psicologia do corpo social é justamente o meio ambiente inicial dos ‘atos de fala‘ de toda espécie […]” (1981, p.42), na nova tradução temos “[…] a psicologia social é justamente aquele universo de discursos verbais multiformes que abarca todas as formas […]” (2017, p.107). E adiante: “A psicologia do corpo social se manifesta essencialmente nos mais diversos aspectos da ‘enunciação’ sob a forma de diferentes modos de discurso, sejam eles interiores ou exteriores” (1981, p.42). Na nova tradução: “Na maioria das vezes a psicologia social se realiza nas mais diversas formas de enunciados, sob o modo de pequenos gêneros discursivos, sejam eles internos ou externos, que até o presente momento não foram estudados em absoluto” (2017, p.107). Ou, ainda, o título do capítulo A interação verbal (1981, p.110) é substituído por A interação discursiva, com a justificativa de estar ali presente o mesmo adjetivo russo do famoso texto de Bakhtin – Os gêneros do discurso (2017, p.201). Todos esses cuidados, porém, também respondem a críticas e debates que se seguiram e continuam surgindo em relação aos textos e conceitos elaborados pelos membros do Círculo. Assim, se num primeiro momento, num contexto francês (e depois brasileiro), a obra respondeu às teorias linguísticas daquele momento, com elas dialogando, aquiescendo, complementando, concordando, discordando, agora o diálogo continua, sob novas bases. Como afirma Brait, na orelha da nova tradução, reiterando sua importância e pertinência:
No estágio atual dos estudos bakhtintinianos, as (re)traduções , no Brasil e no exterior, devem-se à consciência de que o pensamento dialógico exige o conhecimento dos contextos de produção e de reprodução, para melhor situar os trabalhos, sua originalidade, seu diálogo polêmico ou não com outras vertentes do conhecimento. Nessa busca, a acessibilidade das fontes russas, arquivos e bibliotecas, possibilita a descoberta de primeiras edições, trabalhos não publicados, esboços preparatórios, documentos que atestam a vida profissional e acadêmica dos autores. […] os (re)tradutores são especialistas que se debruçam sobre as fontes primárias não apenas para divulgar obras e autores, mas para esclarecer a gênese e o alcance do pensamento. E as leituras se ampliam, enveredando por novos caminhos.
Notas. As notas representam, a meu ver, um ganho precioso para o leitor. Fiéis aos originais consultados, são em número bem maior do que aquelas que conhecíamos na primeira tradução: na atual tradução, 163: 107 do autor e 56 das tradutoras; na tradução anterior, 107: 96 notas do autor, 05 trazidas do tradutor do russo para o francês e 06 dos tradutores do francês para o português. No Prólogo na versão anterior, tínhamos apenas uma explicação da tradutora para o francês do que seria o “Skaz”, a partir da tradução francesa de La poétique de Dostoïevski; na correspondente Introdução atual, temos a oportunidade de um rico diálogo com Volóchinov nos comentários que ele mesmo adiciona ao texto principal. Assim, conta-nos que MFL é o “único trabalho marxista sobre a linguagem” que havia até então (1929), na nota de rodapé 1 (p.83); ou nos conta como os “fundadores do marxismo definiram o lugar que a ideologia ocupa na unidade da vida social”, na nota de rodapé 2 (p.84); apresenta sua visão acerca do positivismo e “o culto do ‘fato’ […] como algo inabalável e firme” (p.84), na nota de rodapé 3; ou destaca a pertinência do estudo que propõe na terceira parte – “o problema do enunciado alheio”- como um diálogo com os teóricos da literatura, nota de rodapé 10 (p.88).
As notas de rodapé são ainda um lugar privilegiado de diálogo com as tradutoras, que nos fornecem informações valiosas à compreensão do texto, ora por meio de notas históricas: “Aqui o autor se refere à abolição da servidão que, apesar de ocorrida em 1861, expressa um processo em curso desde o final da primeira metade do séc. XIX […]” (nota de rodapé 8, p.105); literárias, como a nota 7 (p.104), sobre a personagem principal de um romance de Turguêniev, ou a nota 66, sobre a obra de Dostoiévski, na tradução em português, “Pequenos retratos” em Diário de um escritor (1873): meia carta de um sujeito […] (p.235), entre outras. Ainda há aquelas que justificam a escolha de termos para a tradução, como a nota de rodapé 12 (p.117), a respeito do debatido/controvertido termo russo perejivánie, “tradução da palavra alemã Erlebnis, que pode significar ‘vivência’ ou ‘experiência'”. Nesse sentido, importante ressaltar um princípio que guiou as tradutoras, em contraposição às opções anteriores de diferentes traduções, expresso por Grillo e Américo: “As escolhas dos tradutores [das versões em francês – dialectologie sociale, e inglês – behavioral speech genres da expressão rietchevye jiznennye jánry] parecem revelar que eles estavam menos preocupados com os termos empregados em russo, do que em encontrar paralelos com o contexto intelectual da época em que realizaram as traduções” (2014, p.80). Princípio que, sem dúvida, responde a críticas realizadas ao longo dos anos a noções como intertextualidade, gêneros do discurso e outras, que tiveram seu entendimento prejudicado em virtude de traduções anteriores que obliteraram o sentido do termo em russo. Bem interessantes para nós, estudiosos da linguagem, são as notas de n.28 e 29 (p.166-7), em que as tradutoras comentam as “dificuldades” de Volóchinov na tradução dos termos saussureanos, já que o Curso de linguística geral foi traduzido na Rússia apenas em 1933, depois da publicação de MFL, portanto. É sempre o respeito ao leitor, a resposta antecipada a questões correntes entre os estudiosos, e a contextualização cuidadosa de termos, noções e obras.
Glossário. Considerando a ampla divulgação do pensamento bakhtiniano, o fato de que suas obras não foram conhecidas do público na ordem em que foram produzidas ou mesmo traduzidas nas várias línguas, o glossário é precioso, além de preciso e redigido por pesquisadoras que conhecem o conjunto das obras do Círculo. Nas palavras de Grillo e Américo (2014, p.81), sua elaboração: “[…] nos auxiliará na manutenção de uma coerência na tradução dos conceitos bem como na compreensão do núcleo conceitual de MFL pelo leitor brasileiro”. Assim, os verbetes primeiramente são apresentados no original russo (em transliteração), com as páginas em que apareceram na presente edição; a seguir, as autoras não só o definem, mas colocam em diálogo o conceito com a própria obra em questão, por vezes com o todo do Círculo e ainda com o contexto de sua produção. Três exemplos:
Ato discursivo individual e criativo ou ato individual de fala, ou ato discursivo (individuálno-tvórtcheski akt riétchi ou individuálni ákt govoriénia, p.140, 148, 153, 200, 225, ou retchevói akt, p. 200) – conceito que se origina na obra de Humboldt e é posteriormente desenvolvido na de Potebniá. A língua é um processo constante de criação individual por meio dos atos discursivos dos seus falantes, diferentemente da sua concepção como conjunto de regras gramaticais e de seu léxico, ideia que Humboldt associa ao resultado do trabalho do linguista. Em Marxismo e filosofia da linguagem (MFL), o enunciado ora é equiparado ao ato discursivo ora é concebido como um produto deste (p.200) (p.353).
Fundo de apercepção (appertseptívni fon, p.254) – também traduzido por “fundo aperceptivo”, termo proveniente da psicologia e da filosofia. O termo aparece em trabalhos posteriores de Bakhtin como O discurso no romance (Teoria do romance I) e Os gêneros do discurso, e compreende as vivências interiores em que o discurso alheio é percebido (p.359).
Signo ou signo ideológico (znak, p.91, ou ideologuítcheski znak, pp.92-4) – dividem-se em signo interior (vnútrenni znak) e signo exterior (vniéchni znak), sem traçar um limite preciso entre ambos. O signo interior é a vivência no contexto de um psiquismo individual, determinado por fatores biológicos e biográficos. O signo exterior existe em um sistema ideológico coletivo e surge no processo de interação entre indivíduos socialmente organizados. Suas formas são condicionadas pela organização social desses indivíduos, pelas condições mais próximas da sua interação, do horizonte social da época e de dado grupo social: ou seja, a existência determina e refrata-se no signo. O signo é a realidade material da ideologia. Os objetos que chamam a atenção da sociedade entram no mundo da ideologia, se formam e se fixam nele, tornando-se signos ideológicos ao adquirirem uma ênfase social. A realidade que se torna objeto do signo constitui o seu tema. Uma vez que as diferentes classes sociais compartilham os mesmos signos, neles se cruzam ênfases multidirecionadas e portanto um signo se torna o palco da luta de classes. O signo pode tanto refletir quanto distorcer a realidade (p.366-7).
Anexo. O trabalho de tradução revela não apenas os estudos profundos das tradutoras como também a pesquisa nos arquivos originais, sobretudo no arquivo pessoal de Valentin Nikoláievitch Volóchinov, preservado no Arquivo Estatal da Federação Russa, em Moscou. É assim que o leitor é brindado com um Anexo, não expresso na Referência bibliográfica, que apresenta o Plano de trabalho de Volóchinov para a elaboração de MFL, constituído pelo terceiro relatório que produziu no ILIAZV, entre janeiro de 1927 e maio de 1928. São 27 páginas valiosas, em que podemos verificar como foi projetada a escritura de MFL, comparar o projeto com sua realização, conferir alterações (poucas), etc., observar o método de trabalho investigativo/produtivo do autor.
Ensaio introdutório. É o derradeiro texto que emoldura esta tradução. Sem dúvida, o texto de uma pesquisadora séria e competente (admirável!), Sheila Grillo, o ensaio nos mostra que a obra é uma “resposta à ciência da linguagem do séc. XIX e início do século XX” na Rússia. Como o prefácio de Patrick Sériot3, que também acrescenta um profundo estudo à tradução francesa mais recente de MFL4, o ensaio destaca a importância de ler no contexto original da obra, mas não se detém na questão da existência ou não do Círculo de Bakhtin, foco daquele prefácio. Aqui, a autora vai reconstruir a “biblioteca virtual” de Volochínov, por meio dos textos citados por ele em MFL, com o generoso objetivo de dar “acesso a novas camadas de sentido” (GRILLO, 2017, p.8) ao leitor brasileiro. Para compreender a posição teórica que ocuparam aquele tempo-espaço da linguística russa, a autora envereda por dois caminhos: (1) a leitura de manuais de linguística e de história da linguística contemporâneos russos (como os linguistas russos interpretam o período); (2) a observação do diálogo entre tais autores, os textos citados em MFL e a posição de Volóchinov. Desse modo, só podemos lhe agradecer por ter ajudado a nós, brasileiros, a preencher a lacuna que tínhamos em relação àquele fecundo período da linguística russa. É um texto obrigatório para todos aqueles que desejam se aprofundar nos estudos bakhtinianos.
Enfim, esta resenha não pôde disfarçar o tom apreciativo entusiasmado e altamente positivo em relação à nova (e tão esperada, necessária) tradução. Nós, os leitores, certamente acrescentaremos novas “contrapalavras” (1981, p.132) em nosso diálogo com o enunciado concreto que temos em mãos; ou buscaremos “antipalavras” (2017, p.232) às palavras da nova tradução. No grande tempo que nos separa da época da(s) primeira(s) publicação(s) – 1929/1979, ainda que não tão grande, os sentidos renascem e se renovam5, no novo cronotopo, este espaço-tempo que é o Brasil do início do séc. XXI.
1Compreendemos o texto-moldura “como parte constituinte de um enunciado concreto, no sentido bakhtiniano, o que implica, para a produção de sentidos, tanto o texto principal quanto o conjunto de textos que o apresentam, que o cercam verbal e/ou visualmente” (BRAIT; PISTORI, 2016, s.p).
2Grillo utiliza a tradução para o português nas citações de Saussure (tradução de Antônio Chelini, José Paulo Paes e Izidoro Blikstein, São Paulo: Cultrix).
3Recentemente traduzido para o português: SÉRIOT, P. Vološinov e a filosofia da linguagem. Trad. Marcos Bagno. São Paulo: Parábola Editorial, 2015. Sobre o Prefácio, cf. SOBRAL. A.; Giacomelli, K. MFL em contexto: algumas questões, in: Bakhtiniana. Revista de Estudos do Discurso. São Paulo, 11 (3), p.154-173, Set./Dez. 2016.
4SÉRIOT, P. Préface. In: VOLOSINOV (Vološinov) Valentin Nikolaevic. Marxisme et philosophie du langage. Les problèmes fondamentaux de la méthode sociologique dans la science du langage. Édition bilingue traduite du russe par Patrick Sériot et Inna Tylkowkski-Ageeva. Limoges: Lambert-Lucas, 2010.
5BAKHTIN, M. Por uma metodologia das ciências humanas. In: Notas sobre literatura, cultura e ciências humanas / Mikhail Bakhtin; organização, tradução, posfácio e notas de Paulo Bezerra; notas da edição russa de Serguei Botcharov. São Paulo Editora 34, 2017.
Referências
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BRAIT, B. Orelha. In: VOLÓCHINOV, Valentin (Círculo de Bakhtin). Marxismo e filosofia da linguagem. Problemas fundamentais do método sociológico na ciência da linguagem. Tradução, notas e glossário de Sheila Grillo e Ekaterina Vólkova Américo. Ensaio introdutório de Sheila Grillo. São Paulo: Editora 34, 2017. [ Links ]
________. A chegada de Voloshinov/Bakhtin ao Brasil na década de 1970. In: ZANDWAIS, A. (Org.). História das ideias. Diálogos entre linguagem, cultura e história. Passo Fundo: Ed. Universidade de Passo Fundo, 2012, p.216-243. [ Links ]
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BRAIT, B. & PISTORI, M. H. C. Recepção de Bakhtin e o Círculo: modos de ler. Comunicação oral em Encontro Anual Nacional GT/ANPOLL/Estudos Bakhtinianos – XI Jornada do Grupo de Pesquisa/PUC-SP/CNPq Linguagem, Identidade e Memória. 29 de junho a 01 de julho de 2016. Universidade de Campinas/UNICAMP. [ Links ]
GRILLO, S. V. Ensaio Introdutório. In: VOLÓCHINOV, Valentin (Círculo de Bakhtin). Marxismo e filosofia da linguagem. Problemas fundamentais do método sociológico na ciência da linguagem. Tradução, notas e glossário de Sheila Grillo e Ekaterina Vólkova Américo. Ensaio introdutório de Sheila Grillo. São Paulo: Editora 34, 2017, p.7-80. [ Links ]
GRILLO, S. V. C.; AMÉRICO, E. V. As traduções brasileiras de Bakhtin, Medviédev e Volóchinov. In: BRAIT, B. MAGALHÃES, A. S. Dialogismo: teoria e(m) prática. São Paulo: Terracota Editora, 2014, p.-89. [ Links ]
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Maria Helena Cruz Pistori – Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUC-SP, São Paulo, São Paulo; Brasil. Editora Associada de Bakhtiniana. Revista de Estudos do Discurso; mhcpist@uol.com.br.
Análise de Discurso Crítica – MAGALHÃES (B-RED)
MAGALHÃES, I; MARTINS, A. R.; RESENDE, V. M. Análise de Discurso Crítica: um método de pesquisa qualitativa. Brasília: Editora da UnB, 2017. 260 p. Resenha de: ARGENTA, Júlia Salvador. Bakhtiniana – Revista de Estudos do Discurso, v.13 n.1 São Paulo Jan./Apr. 2018.
A obra Análise de Discurso Crítica: um método de pesquisa qualitativa, de Izabel Magalhães, André Ricardo Martins e Viviane de Melo Resende, lançada em 2017 pela editora da Universidade de Brasília, é uma contribuição aos estudos de Análise de Discurso Crítica/ADC, principalmente quanto aos aspectos metodológicos. Sendo uma área de estudo relativamente nova, com sua consolidação nos anos de 1980, a ADC surge como uma teoria e um método capazes de interpretar qualquer texto, superando a Linguística Crítica/LC (MAGALHÃES, 2005)1. Fairclough é um dos precursores deste campo, tendo publicado diversos trabalhos, tanto analíticos quanto teóricos (por exemplo, FAIRCLOUGH, 20032; 20103). Outros estudiosos importantes para a ADC em esfera mundial são Teun A. Van Dijk, Theo Van Leeuwen e Ruth Wodak, para citarmos alguns.
Izabel Magalhães, em seu livro Eu e tu: a constituição do sujeito no discurso médico, publicado em 20004, desenvolveu o termo etnografia discursiva, uma proposta metodológica que une Análise de Discurso Crítica e pesquisa etnográfica. Desde então, orientou diversos estudantes de pós-graduação a adotarem tal método em suas pesquisas. Porém, até agora, não havia sido publicado nenhum livro que abordasse exclusivamente a etnografia discursiva enquanto método da ADC. Por isso, a obra em questão vem para preencher essa lacuna e para contribuir ainda mais com o debate da ADC. Para que isso fosse possível, os autores dividiram o livro didaticamente em três partes: Um método de pesquisa qualitativa para a crítica social, Análise de Discurso Crítica e etnografia e Um método de análise textual.
Na primeira parte da obra, os autores justificam suas escolhas pela abordagem etnográfico-discursiva em estudos discursivos críticos através da recapitulação dos principais trabalhos desenvolvidos em ADC. Afirmam que, apesar de serem importantíssimos para a ADC, as análises apresentadas são puramente textuais. Para os autores, uma análise mais consistente e válida precisa da etnografia como ponte de acesso a práticas sociais e discursos, permitindo, consequentemente, maior compreensão da produção, distribuição e consumo de textos. “Textos são objetos que constroem significados para as pessoas, relacionando-se com outros objetos do contexto local e mesmo translocal” (p.35). Assim, a ADC não é apenas um campo teórico, mas sim, um método de pesquisa qualitativa capaz de produzir crítica social.
Outro aspecto presente na obra que se faz cabal destacar é que os autores asseveram a necessidade da transdisciplinaridade em estudos discursivos críticos e de se conhecer discussões teóricas de outras áreas a respeito da modernidade tardia, da globalização, do poder, da ideologia (conceitos basilares da ADC) e de outros componentes teórico-sociais que se fizerem relevantes. Ademais, os autores chamam atenção para a urgência de se debater a relação entre linguagem e sociedade, com especial interesse nos efeitos sociais dos textos nas práticas sociais e discursivas. Portanto, a transdisciplinaridade, bem como o debate da relação linguagem-sociedade vão ensejar a articulação eficaz da análise textual com a análise de caráter social, que facilitará, por sua vez, o processo de reconhecer o papel do discurso e de outras semioses na preservação de interesses.
A segunda parte foi dedicada a explicar a abordagem metodológica da etnografia discursiva. Os autores recuperam a discussão de Chouliaraki e Fairclough (1999)5 sobre modernidade tardia, à luz de trabalhos de Giddens, Harvey e Habermas, para elucidar como se faz necessário que entendamos o papel do discurso nessa “nova” conjuntura social. As práticas discursivas são, então, formas de acessar as práticas sociais, para fim de desvelar ideologias e práticas hegemônicas de abuso de poder. A partir do reconhecimento dessa potencialidade das práticas discursivas, elas podem vir a ser utilizadas a favor da igualdade social e da democracia, para conseguir a tão desejada mudança social. Isso quer dizer que a linguagem se constitui como uma forma simbólica de luta. Resgatamos aqui o trabalho de Resende (2012)6, em que afirma que a ADC é um campo teórico-metodológico com especial interesse em examinar o discurso em situações de desigualdades sociais e que possui caráter posicionado, isto é, os pesquisadores assumem parcialidade.
Assim, os autores apresentam a etnografia articulada à ADC como método eficaz para estabelecer ligação entre textos, práticas discursivas e práticas sociais. Essa ligação proporciona a compreensão da estrutura social hegemônica que, por sua vez, molda e constrange tais textos, práticas sociais e práticas discursivas. Como proposta do livro, os autores, então, ensinam a planejar uma pesquisa articulando ADC e etnografia. Eles novamente reiteram a necessidade da inter e transdisciplinaridade nos estudos da ADC e esclarecem que uma pesquisa consistente, capaz de compreender e analisar os dados coletados e gerados, precisa ter decisões ontológicas e epistemológicas e escolhas metodológicas coerentes, que são feitas gradativamente. Primeiramente, são tomadas decisões ontológicas, que estão ligadas ao mundo social (estruturas, práticas e ações sociais e tudo o mais que esteja envolvido nelas), depois são escolhidos aportes epistemológicos, de natureza do conhecimento, a partir dos componentes ontológicos, que, por fim, limitarão as escolhas metodológicas para coleta e geração de dados.
A terceira parte do livro apresenta três análises utilizando o aporte teórico-metodológico da ADC, uma em cada capítulo, com o intuito de ilustrar na prática alguns conceitos, servindo, inclusive, de modelo de como fazer análise de discurso crítica para além da análise puramente textual. Com vistas a não simplificar as análises feitas pelos autores, nem apresentar seus resultados de forma descontextualizada, escolhemos abordar aqui os aspectos teóricos presentes nessa parte. No sétimo capítulo, os autores discutem o termo “democracia” e o que ele implica, bem como apontam que a ADC pode servir de instrumental teórico-prático nas lutas de minorias, e quais aspectos essas lutas devem contemplar para serem eficazes.
Já no oitavo, alguns componentes ontológicos são recuperados, por meio de discussão de conceitos do Realismo Crítico de Bhaskar, adaptados à ADC. Os autores ainda conceituam os termos “práticas sociais” e “discurso”, assim como o que o constitui (estilos, gêneros e discursos – no sentido mais concreto do termo). O intuito é explicitar que nem tudo é discurso nas práticas sociais, pois elas são compostas de outros elementos, tais como crenças, valores, desejos, relações sociais e atividade material. O último capítulo do livro é uma versão do artigo escrito por Izabel Magalhães, ao periódico Linha D’água em 20117. Nele, há a discussão sobre linguagem, poder, letramentos e identidades relacionados a questões de gênero em nossa sociedade, através da análise de uma reportagem cobrindo um gravíssimo caso de violência contra mulher.
De leitura instigante e fluida e de organização didática e gradual dos capítulos, a obra de Izabel Magalhães, André Ricardo Martins e Viviane de Melo Resende, apesar de não ser uma leitura introdutória, certamente atinge a todos os públicos, desde iniciantes nos estudos do discurso, quanto profissionais da área. Sua importância por propor um “novo” método de se fazer pesquisa qualitativa é incomensurável, representando avanços não só metodológicos quanto epistemológicos. Entendemos que a etnografia discursiva já existe há quase vinte anos; no entanto, como dito anteriormente, essa é a primeira obra dedicada completamente a discuti-la, visando sua descrição e ensino, tornando-a acessível a estudantes e pesquisadores de diversas áreas de estudo de todas as regiões do país.
Por ser uma obra tão inovadora, é compreensível que haja lacunas a serem preenchidas e aspectos a serem desenvolvidos. Por exemplo, acreditamos que obras futuras possam dedicar uma seção para a descrição de alguns instrumentos disponíveis para realização de pesquisa etnográfico-discursiva e de algumas posturas que o/a pesquisador/a deve adotar durante a pesquisa de campo. Em outras palavras, sentimos que a discussão de como fazer etnografia discursiva pode vir a ser aprofundada. Por isso, é importante que os mais diversos estudiosos, dos mais diversos campos do conhecimento, leiam o livro e adotem a ADC em seus estudos, para fim de desenvolvê-la, tornando-a cada vez mais transdisciplinar e profícua, contribuindo progressivamente com a mudança social.
Referências
1 MAGALHÃES, I. Introdução: a análise de discurso crítica. In: D.E.L.T.A. vol.21 nº. Especial, São Paulo 2005, p.1-9. [ Links ]
2 FAIRCLOUGH, N. Analysing Discourse: Textual Analysis for Social Research. London: Routledge. 2003. [ Links ]
3 FAIRCLOUGH, N. Critical Discourse Analysis: the Critical Study of Language. 2. ed. Harlow: Pearson, 2010 [ Links ]
4 MAGALHÃES, I. Eu e tu: a constituição do sujeito no discurso médico. Brasília: Thesaurus, 2000. [ Links ]
5 CHOULIARAKI, L.; FAIRCLOUGH, N. Discourse in Late Modernity: Rethinking Critical Discourse Analysis. Edimburgo: Edinburgh University Press, 1999. [ Links ]
6 RESENDE, V. M. Análise de discurso crítica como interdisciplina para a pesquisa social: uma introdução. In: Iran Ferreira de Melo. (Org.). Introdução aos estudos críticos do discurso: teoria e prática. 1ed. Campinas: Pontes, 2012, pp.99-112. [ Links ]
7 MAGALHÃES, I. Textos e práticas socioculturais: discursos, letramentos e identidades. Linha D’Água, São Paulo, v.24, n.2, p.41-57, dec.2011. Disponível em: <http://www.revistas.usp.br/linhadagua/article/view/37356/40076>. Acesso em: 25 sep. 2017. [ Links ]
Júlia Salvador Argenta – Universidade de Brasília – UnB, Brasília, Distrito Federal, Brasil; julia.argenta@gmail.com.
Language, Ideology, and the Human: New Interventions – BAHUN; RADUNOVIC (B-RED)
BAHUN, Sanja; RADUNOVIC, Dusan (Eds.). Language, Ideology, and the Human: New Interventions [Linguagem, Ideologia e o Humano: Novas Intervenções]. Farnham, Surrey: Ashgate, 2012. 250 p. Tradução de Maria Helena C. Pistori. Resenha de: THOMSON, Clive. Bakhtiniana – Revista de Estudos do Discurso, v.12 n.3 São Paulo Set./Dec. 2017.
Esta coleção de artigos apresenta algumas qualidades marcantes. Apesar disso, considerei difícil fazer esta resenha e tentarei explicar por quê. Em sua introdução (intitulada “Introducing, Intervening, and Introspecting” [Introduzindo, Intervindo e Interiorizando], Sanja Bahun e Dusan Radunivic, organizadores da coletânea, afirmam que o desafio que apresentaram aos colaboradores convidados foi explorar e percorrer os “orifícios” e “interstícios entre a linguagem, a ideologia e seus produtores e renegociadores humanos” (p.1)1. Os organizadores descrevem a diversidade de enfoques utilizada pelos colaboradores e assinalam com franqueza que “[…] as discussões de Language, Ideology, and the Human são notadamente heterogêneas” (p.8)2. Essa descrição dos doze capítulos corresponde exatamente à minha impressão depois da primeira leitura. Eu tinha notado que a natureza heterogênea da coletânea se manifesta tanto no nível das teorias que fundamentam os estudos quanto nos objetos de estudo escolhidos pelos colaboradores. Por exemplo, a Parte I (Revisiting [Revisitando]), cujo foco é principalmente teórico e filosófico, contém seis estudos, que envolvem, em graus variados e de modos muito interessantes, Kierkegaard, Platão, Nietzsche, Saussure, Wittgenstein, Searle, Chomsky, Kant, Zelinskii, Derrida e Carl Schmitt. Na Parte II (In the World, Prospecting [No mundo, prospecções]), há cinco capítulos estimulantes nos quais os autores desenvolvem análises mais concretas e específicas de uma variedade de fenômenos localizados em diferentes lugares geográficos/culturais: o ensino da Língua Portuguesa no Timor Leste, a lei consuetudinária na África do Sul, o turno discursivo e o corpo, o cosmopolitismo nas modernas sociedades europeias, e o tema do perdão num filme sul-coreano e o pensamento de Arendt. O posfácio de Ernesto Laclau mostra uma defesa convincente e provocante da necessidade de se criar um novo modo de pensar a respeito da ideologia, da linguagem e do homem.
Na segunda parte da introdução, Bahun e Radunovi explicam com detalhes suficientes as semelhanças entre as abordagens e metodologias dos autores da obra: “Todos esses enfoques implicam […] que há uma conexão íntima entre ideologia e linguagem e, especificamente, entre uma ideologia dentro da qual um indivíduo vive e sua visão da linguagem” (p.3)3. A coletânea se apoia num “impulso velado” que a orienta – um desejo de questionar a “viabilidade das fronteiras disciplinares” e esclarecer os “problemas com o modelo de estudos baseado na divisão de disciplinas” (p.9)4. A reunião de artigos também é descrita da seguinte forma pelos organizadores: “O desejo de tratar o pluralismo sem promover conciliações não conciliáveis nem assimilações numa coletividade benevolente favorável emerge poderosamente das páginas deste volume com muita força” (p.10)5. A questão de saber “como e por que fazemos esses estudos” é outro tema geral que percorre implicitamente todos os artigos, de novo de acordo com os organizadores. Além dessas similaridades amplas alegadas como caracterizadoras (de forma velada ou implicitamente) de todos os artigos, os organizadores identificam alguns subtemas que caracterizam alguns dos artigos, como: “A questão de saber se a verdade permanece o valor central em enunciados significativos é tratada numa série de capítulos neste volume […]” (p.11)6; “[…] duas contribuições [de Jean-Claude Monod e de Rey Chow] tratam especificamente da questão da subjetividade e da importância de sua contribuição relativa e/ou instável na esfera social” (p.11)7.
A dificuldade para mim, como resenhista, ocorre quando busco entender as afirmações opostas feitas pelos organizadores, que declaram, por um lado, que falta coerência às “discussões” na coletânea, enquanto, por outro lado, que os artigos revelam vários pontos comuns. Os organizadores, talvez inconscientemente, criaram uma situação na qual os leitores serão tentados, como eu fui, a perguntar qual a import6ancia relativa que deveria ser dado a cada opção. Depois de ler o volume cuidadosamente várias vezes, minha conclusão é que eu o vejo composto de doze artigos que têm muito pouco em comum. Não é que os organizadores estejam errados ao mencionar alguns fios condutores que percorrem alguns dos artigos. Pelo contrário, minha impressão é que esses fios são tão gerais que poderiam se referir a quase qualquer coletânea de artigos que se proponha interdisciplinar. Em outras palavras, não apenas a defesa dos organizadores da coerência da coletânea acaba por ser algo um pouco inquietante, mas ela me leva a notar algumas outras inconsistências e incoerências às quais retornarei no final de minha resenha.
Vários artigos da coletânea me parecem especialmente substanciais e originais. O artigo de Leonardo F. Lisi (The Politics of Madness: Kierkegaard’s Anthropology Revisited [A política da loucura: a antropologia de Kierkegaard revisitada]) apresenta lucidamente a definição de “o humano” (uma síntese do infinito e do finito e de liberdade e necessidade) e mostra como Deus funciona, em última análise, como uma alteridade radical. Essa alteridade tanto evita fechamento ideológico como torna necessário buscar o fechamento. O que é produtivo no pensamento de Kierkegaard (isto é, suas “implicações para política”, p.248) é que a contradição entre pensamento e experiência (isto é, o conflito básico para os seres humanos) pode resultar numa “falha de compreensão do sentido” (p.34)9. O artigo termina com uma sugestão cautelosamente otimista de que a incerteza, a ambiguidade e a falha podem “significar o fim da política ou sua reinvenção numa nova forma” (p.36)10. O admirável artigo de Craig Brandists (Rhetoric, Agitation and Propaganda: Reflections on the Discourse of Democracy (with some Lessons from Early Soviet Russia) [Retórica, agitação e propaganda: reflexões sobre o discurso da democracia (com algumas lições do período inicial soviético da Rússia])) tem como foco o modo como a propaganda funcionou durante a crise da democracia na União Soviética dos últimos anos da década de 1920, quando o discurso do Partido tornou-se um discurso monológico (isto é, ideológico) por excelência. O artigo bem elaborado de Aurora Donzelli (The Fetish of Verbal Inflection: Lusophonic Fantasies and Ideologies of Linguistic and Racial Purity in Postcolonial East Timor [O fetiche da inflexão verbal: fantasias lusofônicas e ideologias da pureza linguística e racial no Timor Leste pós-colonial]) demonstra concretamente como a transmissão de um sistema abstrato de regras gramaticais pode ser simultaneamente um instrumento de assimilação e o marcador da distinção racial e social (p.151). O contexto é o Timor Leste, quando a língua portuguesa estava sendo ensinada em sala de aula. Galin Tihanov (Cosmopolitanism: Legitimation, Opposition and Domains of Articulation [Cosmopolitismo: legitimação, oposição e domínios de articulação]), enquanto explora a diferença entre legalidade e legitimidade, cita Schmitt: “Através de uma confiança cega na legalidade, Schmitt defende que a sociedade ‘se torna incapaz de reconhecer o tirano que chega ao poder por meios legais'” […] (p.194)11. Tihanov sugere que “a legimidade deve ser compreendida como algo deferido, como algo com o qual se pode estar de acordo prospectivamente” (p.196)12. O artigo de Tihanov é instigante e potencialmente muito útil para nos ajudar a compreender como alguns discursos autoritários atuais funcionam.
Os quatro artigos que acabamos de mencionar, além de oferecer contribuições importantes em tópicos específicos, são exatamente aqueles que ecoam, de modos surpreendentes, certos debates políticos de 2017 e, portanto, apresentam “implicações para a política” – para usar a expressão de Lisi que citei no parágrafo anterior. De fato, sou tentado a afirmar que o valor principal desta coletânea é permitir nosso engajamento crítico com importantes questões da arena política contemporânea. Estou pensando especificamente nos intensos debates políticos relativos à recente decisão do Reino Unido de deixar a União Europeia e os debates sobre democracia, liberdade de expressão e imprensa que estão ocorrendo, especialmente nos Estados Unidos, mas também na França e em outros países europeus. Nesses contextos, é particularmente deprimente observar os discursos populistas e antidemocráticos vindos de indivíduos e partidos políticos da direita. Vários artigos nesta coletânea têm o potencial de auxiliar a desconstruir afirmações como as seguintes, atualmente à disposição na Casa branca: “A imprensa é o inimigo do povo”; “Notícias falsas não dizem a verdade”; “A mídia desonesta constrói uma história falsa atrás da outra”; “Nós não vamos deixar que notícias falsas nos digam o que fazer, como viver ou no que acreditar. Somos livres e independentes e faremos nossas próprias escolhas”. Esses enunciados são, com certeza, o tipo de discurso ideológico que Brandist, Donzelli, Gorman, Parsons e Laclau mencionam em seus artigos. Segundo Laclau coloca, é por meio de tais discursos que “a classe hegemônica é capaz de transformar seus propósitos particulares naqueles da sociedade como um todo” (p.245)13. A fim de compreendê-los e ir contra eles, eles precisam primeiramente ser compreendidos dentro do contexto institucional no qual foram produzidos. Não é útil vê-los somente como o produto de uma mente psicótica ou caótica.
No último capítulo de Language, Ideology, and the Human: New Interventions (Afterword: Language, Discourse, and Rhetoric [Posfácio: linguagem, discurso e retórica]), Ernest Laclau mostra por que é importante ter uma clara compreensão de como “a imbricação entre a linguagem e a realidade humana é bem mais íntima do que a noção de linguagem como uma categoria regional sugere” (p.237)14. Laclau conclui seu argumento sugerindo duas direções possíveis que poderíamos tomar em nossos esforços para desconstruir tipos de retórica como aquele que tem sido produzido pela administração Trump. Primeiramente, é necessário compreender como os sentidos se constroem: “Se a objetividade estivesse fundamentada em bases perspícuas ela não seria ambígua: o signo seria um simples representante de algo que o precede […] (Um significante particular) significa uma totalidade que torna possível o sentido, mas uma totalidade que é um objeto impossível. Então, a significação é possível apenas ao significar sua própria impossibilidade” (p.245)15. Quando Trump afirma que: “Os vazamentos são reais mas as histórias da mídia são falsas”, ele cria um tipo de lapso que introduz o real como um terceiro termo (perturbador), subvertendo então a “lógica” binária (verdadeiro/falso) que qualifica suas outras afirmações (por exemplo, “As notícias falsas não dizem a verdade”). Uma compreensão do modo como os sentidos funcionam precisa, portanto, ser acrescida com uma chamada para a psicanálise. Isso é o que Laclau está propondo quando escreve: “Bem, nós estamos no epicentro de uma transformação intelectual cujos dois pontos iniciais básicos são a noção de langue de Saussure e a descoberta do inconsciente de Freud” (p.242)16.
Acho que eu seria omisso se não fizesse alguns comentários críticos a respeito dos modos como esta coletânea foi organizada. A maioria dos capítulos parece ter sido preparada e editada de acordo com as convenções acadêmicas contemporâneas (isto é, estão escritos num estilo razoavelmente padrão e uniforme e são acompanhados de notas de rodapé adequadas, com referências bibliográficas completas e detalhadas), enquanto outros se caracterizam por um estilo oral que sugere terem sido originalmente textos de conferências e não artigos. Alguns capítulos (especialmente aqueles de Brandist e Tihanov) são admiráveis por seu estilo “pedagógico” (considero-os pedagógicos pelo cuidado que tomam ao apresentar uma argumentação coerente e também porque os termos críticos básicos utilizados nos argumentos são explicados e contextualizados). Esses artigos são mais facilmente acessíveis a uma audiência de alunos no último ano da graduação e na pós-graduação, ou para leitores que talvez não tenham uma base sólida nos debates da teoria crítica atual.
Fica claro que os organizadores fizeram um esforço para escolher um título para a coletânea que cumprisse dois objetivos: criar uma impressão de unidade para o volume e indicar, tão precisamente quanto possível, seus temas principais. Um exame cuidadoso do conteúdo, porém, revela que apenas quatro artigos (Leonardi F. Lisi, Elizabeth Parsons, Aurora Donzelli, Ernest Laclau) têm como foco tratar, de um modo explícito e substancial, dos três tópicos mencionados no título – linguagem, ideologia e o ser humano. Dois artigos (David Gorman, Craig Brandist) tratam de assuntos relacionados a linguagem e ideologia. Dois artigos (Monina Wittfoth, Galin Tihanov) trabalham principalmente com a linguagem. Dois artigos (Jason Glynos, Rey Chow) focam questões de linguagem e do ser humano. Dois artigos (Jean-Claude Monod, Drucilla Cornell) tratam do humano mas não se envolvem com questões de ideologia ou linguagem – pelo menos, não explicitamente. Em outras palavras, há certa desconexão entre o título do volume e o foco de alguns dos artigos. Um título melhor poderia ser, talvez, Language, Rhetoric, and Subjectivity [Linguagem, retórica e subjetividade].
Desvia a atenção do leitor ver um grande número de erros tipográficos, especialmente na introdução. Mostro aqui apenas uma seleção de erros típicos17 (minha correção está em itálico): “In early 2000, merely thirty days [No início dos anos 2000, simplesmente trinta dias] (p.1); “not only the objectivist view of language” [não apenas a visão objetivista da linguagem] (p.2); “and the pre-Socratics” [e os pré-socráticos] (p.3); “such an open definition” [uma definição tão aberta] (p.3); “informed by the belief” [informado pela crença] (p.4); “revisits precisely (delete “to”) this point” [revisita (apague “a”) precisamente este ponto] (p. 5); “naturally coexist with us” [naturalmente coexiste conosco] (p.7); “frame through which” [moldura através da qual] (p.54); “bureaucracy were imposed” [burocracia foram imposta] (p.89); “Schmitt draws a distinction” [Schmitt traça uma distinção] (p.106); “the decision to choose as the” [a decisão de escolher como o] (p.138). Há também muitas frases inadequadas18 no volume, como as seguintes: “And it still endures in the declarations, in the political literature of fraternité, in the manifestos of French republicanism, and the similar” (p.105); “It might be that I have the impression, just now, at the time when the markets dictate even the decisions who should be political governors (in Italy or Greece, for instance), that Schmitt’s fear that the liberal “depolitization” in favour of the economic forces would culminate in a “liberalism” which can do without “democracy” has received a new and terrible actuality […]” (p.111).
Vale a pena a leitura de todos os artigos da coletânea. Muitos deles desenvolvem uma boa argumentação, são substanciais e originais. E, como tentei apontar, as ideias expressas por alguns colaboradores poderiam auxiliar a realizar o importante trabalho de envolvimento e desconstrução de discursos essencializadores/ideológicos que têm sido produzidos atualmente na esfera pública. No entanto, a meu ver, a coletânea, como um todo, não corresponde completamente às declarações dos organizadores a respeito de sua coerência geral ou de sua capacidade de ir além das teorias atuais em relação à “íntima conexão” entre linguagem e ideologia.
19Tradução de Maria Helena Cruz Pistori – mhcpist@uol.com.br
1Texto no original: “the interstices between language, ideology, and their human producer and re-negotiator”
2Texto no original: “”[…] the discussions comprising Language, Ideology, and the Human are markedly heterogeneous”.
3Texto no original: “”All of these approaches imply […] that there exists an intimate link between ideology and language, and, specifically, between an ideology within which an individual operates and his or her view of language”.
4Texto no original: “the viability of disciplinary boundaries”; “problems with the model of scholarship based on disciplinary division”.
5Texto no original: “This urge to address pluralism without promoting either irreconcilability or assimilation to a benign collectivity emerges powerfully from the pages of this volume”.
6Texto no original: “The question whether truth remains the central value in meaningful utterances informs a range of chapters in this volume […]”.
7Texto no original: “[…] both contributions [Jean-Claude Monod and Rey Chow] specifically address the question of subjectivity and the importance of its relational, and/or unstable contribution in the social sphere”.
8Texto no original: “implications for politics”.
9Texto no original: “failure to grasp meaning”.
10Texto no original: “spell the end of politics or its re-imagination in a new form”.
11Texto no original: “Through blind reliance on legality, Schmitt’s argument goes, society ‘disables itself from recognizing the tyrant who comes to power by legal means'” […].
12Texto no original: “legitimacy has to be understood as something deferred, as something that can be agreed to prospectively”.
13Texto no original: “the hegemonic class is able to transform its own particular aims into those of society as a whole”.
14Texto no original: “the imbrication between language and human reality is rather more intimate than the notion of language as a regional category suggests”.
15Texto no original: “If objectivity had an ultimate, perspicuous ground, it would be unambiguous: the sign would be a mere representative of something preceding it. […] (A particular signifier) signifies a totality which makes possible signification, but a totality which is an impossible object. So signification is possible only by signifying its own impossibility”.
16Texto no original: “Well, we are at the epicenter of an intellectual transformation whose two basic starting points are Saussure’s notion of langue and Freud’s discovery of the unconscious”.
17N. do T.: As correções sugeridas pelo resenhista referem-se primordialmente a questões gramaticais e de sintaxe. A tradução das frases infelizmente não leva à compreensão dos problemas que o autor da resenha indicou.
18N. do T.: Decidiu-se não traduzir as frases, tendo em vista a especificidade do uso da língua inglesa percebida pelo articulista, ao declarar serem as frases awkward (inadequadas, estranhas, “desajeitadas”).
Clive Thomson – Professor of University of Guelph, Guelph, Ontario, Canadá; cthomson@uwo.ca.
Guia de escrita: como conceber um texto com clareza, precisão e elegância – PINKER (B-RED)
PINKER, Steven. Guia de escrita: como conceber um texto com clareza, precisão e elegância. Tradução de Rodolfo Ilari. São Paulo: Editora Contexto. 2016. 252 p. Resenha de POSSENTI, Sirio. Bakhtiniana – Revista de Estudos do Discurso, v.12 n.3 São Paulo Set./Dec. 2017.
Há livros que não deveriam ser resenhados. Este é um deles. Não porque não mereça ser apresentado a um público, especializado ou não, mas porque é precedido de um prólogo da lavra do tradutor que bem poderia servir de resenha. Provavelmente é uma questão de negócios que ele não seja publicado aqui, como se fosse agora outro gênero. Mas como os leitores só conhecerão o prólogo se tiverem o livro em mãos, que sirva esta resenha também de propaganda.
O título do livro pode enganar, porque ele ressoa outros que andam por aí, que prometem o céu textual com dicas do tipo “seja breve, claro e original”.
Ora, de certa forma é disso que este livro trata, só que seus fundamentos não são simplórios, não apelam a um ato de vontade ou a uma decisão a ser tomada no dia da redação. O mais interessante na obra são as explicações. Sim, porque os “fatos” são conhecidos. Forneço em seguida uma breve nota sobre cada capítulo.
O prólogo é, primeiro, uma defesa da língua viva, muito combatida por autores de manuais de estilo (uma curiosidade é a citação de seis pensadores preocupados com a decadência das línguas que repetem o mesmo discurso em 1785, 1883, 1889, 1917, 1961, 1978). Em segundo lugar, é uma elegia à beleza, que vem depois de Pinker ter afirmado que ter estilo traz confiança. Possivelmente, é uma certa dificuldade (carência de familiaridade?) com a escrita que leva muita gente a dizer que está tudo pronto, “só falta escrever”… Pinker pode ajudar.
O primeiro capítulo é, por sua vez, uma defesa do aprendizado estilístico. “Ninguém nasceu com competência para redigir em inglês enquanto tal” é seu mote. Tal capacidade decorre de vários fatores, entre os quais está a escrita dos bons autores (se você não os frequenta, pode desistir de escrever bem). Mas Pinker não advoga que tudo decorra da familiaridade, que alimentaria uma intuição decorrente da imersão. Analisa um conjunto de pequenos textos que considera exemplares, e explicita (mostra, já veremos por quê) o que os torna exemplares. Defende que esse tipo de análise leva quem escreve a dominar uma escrita clara, elegante e precisa. Ou seja: conhecer os recursos da língua permite melhorar o desempenho. Há alguma coisa de gosto e predileção em suas escolhas e análises, mas há nitidamente mais explicitação dos ingredientes que o bom escritor deve considerar, o que significa manipulá-los conscientemente.
O segundo capítulo revisita alguns manuais famosos, que expõem teses corretas, mas pouco explicadas, sempre acompanhadas dos preconceitos conhecidos (como o que critica as escritas na rede por mero purismo, deixando de perceber não só que as línguas mudam, mas especialmente que as redes estão introduzindo grande parte da humanidade no mundo da escrita). Também cita lições estranhas, como a que recomenda não usar passivas, logo seguida de uma…
Defende uma tese por demais interessante: que escrever é mostrar o mundo. Ou seja: não se trata de uma relação entre língua e pensamento (do autor ou do leitor), que exigiria ideias claras, por exemplo, mas da possibilidade de “mostrar o mundo”, o que implica mais claramente “as palavras e as coisas” (sem nenhuma ingenuidade). Também implica fortemente o leitor, porque se trata de mostrar-lhe o mundo. Esta é medida do sucesso do texto. Os modelos seriam Descartes (o Discurso do método poderia sem dúvida ser lido como um modelo de escrita) e La Rochefoucault: curiosamente, dois franceses. Talvez não seja à toa que a ideologia da clareza do francês (que o diga Lacan!) tenha feito fortuna… Exemplos são: em vez de “a prevenção da neurogênese diminui a não integração social”, diga “quando evitamos a neurogênese, os ratos pararam de evitar outros ratos”; ou, em vez de “pode ser que alguns genes faltantes sejam mais contributivos com o déficit espacial”, escreva “talvez alguns genes faltantes contribuam para o déficit espacial”.
O terceiro capítulo põe em cena outra questão talvez velha, mas também com olhos novos. É que, usualmente, culpa-se o leitor pela incompreensão dos textos. Mas Pinker mostra que, frequentemente, a culpa é do autor. Não que ele padeça (mesmo quando é o caso) de ignorância ou de pouco domínio da escrita, no sentido tradicional. O fracasso tem a ver com o fato de o autor não “escolher” seu leitor, não levar em conta seu universo – sua memória ou seu conhecimento de mundo, conforme a teoria. Assim, ele sonega pressupostos, começa sempre in media res ou no lugar errado. Não é que o leitor não entenda as frases ou a língua ou mesmo não perceba do que se trata: ele apenas não consegue ancorar o que lê em seu conhecimento anterior. Todos passamos por isso, seja numa consulta ao solucionador de problemas de informática, que logo nos pergunta sobre detalhes dos sistemas operacionais; pode ser numa conversa com advogados que perguntam sobre alternativas no contrato (há alternativas?), pode ser a fala de um físico que acha que todos sabem o que é o quantum… (Aliás, um dos fenômenos paralelos a esta questão, de que Pinker não trata, é exatamente o quanto – sem trocadilho – um leitor pode achar que é moderno porque sua dieta é quântica). Pinker chama a este problema de “maldição do conhecimento”, resultado de um desajuste entre texto e leitor, por culpa do autor. É claro que se pode reclamar de Pinker, achando que ele está dizendo que o autor deve sempre se colocar no nível do leitor, esquecendo que o leitor postulado pelo texto é diferente do leitor empírico, que o leitor deve mudar de texto quando não dá conta dele, etc. Mas Pinker é coerente, concorde-se com ele ou não: ele acha que escrever é mostrar o mundo, e não supor que o leitor tenha uma visão de raios X…
O capítulo seguinte (se eu mantiver “seguinte”, posso ganhar alguma coisa em termos de estilo, se a repetição for considerada um defeito, mas o leitor perde, porque terá que voltar para saber o lugar dele no livro, a não ser que tenha boa memória1; seria melhor dizer “o quarto”?) interessa talvez mais aos linguistas, especialmente aos sintaticistas. Pinker considera muitos casos que poderiam ser qualificados como ambíguos. Mas seu problema não é descrever a ambiguidade, especialmente a decorrente da possibilidade de um constituinte ocupar nós alternativos em uma árvore. Seu problema é mostrar como isso pode apresentar o mundo ao leitor de forma obscura. Ou seja, não está descrevendo as possibilidades dos deslocamentos, mas o efeito que produzem. Não está descrevendo uma propriedade da sintaxe, mas tirando dela consequências em favor da clareza. Mata a cobra e mostra o pau – e o faz na árvore! Todo mundo aprendeu na escola (pelo menos antigamente) que frases como “pentes para mulheres de osso” são viciosas, mas nunca nos disseram que havia uma teoria sintática que explicava isso.
Melhor ainda (e nem Pinker o faz): poderiam nos explicar que, se queremos ser claros, poupar a energia do leitor, devemos dizer “pentes de osso para mulheres”, porque “de osso” qualifica pentes (no mundo!!), porque a expressão está contígua ao nome a que se refere e a contiguidade é relevante. Por isso, se dizemos “pentes para mulheres de osso”, pode acontecer, como efeito da contiguidade, que imaginemos mulheres de osso. O que, e é isso que Pinker deixa passar, pode ser muito bom se queremos fazer humor… porque, como se sabe, ele depende crucialmente de sentidos surpreendentes, que não precisam mostrar o mundo – ou, pelo menos, o mesmo mundo.
O melhor exemplo de Pinker, também um pouco engraçado, é “um painel sobre sexo com quatro professores”. Pinker organiza os constituintes numa árvore (aqui mostro só o fundamental):
[um painel] [sobre sexo com quatro professores].
e
[um painel com quatro professores] [sobre sexo].
“Com quatro professores” é uma sequência que se associa a sexo ou a painel, conforme a contiguidade. Uma frase mostra um mundo, outra mostra outro. Pelo menos à primeira leitura. Escolha o mundo que quer mostrar e coloque “com quatro professores” no lugar mais adequado ao seu propósito.
O último capítulo, o quinto, chamado “Arcos da coerência”, tem a ver, como o título indica, com coerência (no sentido corrente na linguística de texto), mas, como se trata de clareza e de elegância, logo o leitor perceberá que, um pouco como no capítulo anterior, se trata de mostrar o mundo. Ou seja: o problema é a clareza. Neste capítulo, os textos analisados são mais extensos, o que dificulta sua apresentação numa resenha, mas alguns exemplos mostram do que se trata: sem perder de vista o que se poderia chamar de macroestruturas, é nas micro que o livro mais insiste.
Por exemplo, que se evitem construções como “Minha mãe quer que o rabo da cachorra seja operado de novo, e se ela não sarar desta vez ela terá que ser sacrificada”, em que o último “ela” pode evocar a mãe; melhor repetir “cachorra”. O mesmo fenômeno ocorre em “A culpa, a vontade de vingança e o rancor podem ser destrutivos para você e para seus filhos. Trate de livrar-se deles”. Há certamente um conjunto de razões que levarão a interpretar “deles” como correferindo os três sentimentos listados no começo da oração, e não “seus filhos”. Mas não deixa de ser verdade que o mundo parece um pouco opaco aqui. A diferença entre estes exemplos e os de sintaxe, quando a questão é a posição de um constituinte, adjacente ou não a um elemento ao qual se refere, é que lá se trata da estrutura da língua, e aqui estamos no outro patamar, o do texto (uma questão nunca bem resolvida, embora a distinção pareça óbvia). Que fique claro que Pinker não descuida das macroestruturas; é que, como disse, ocuparia muito espaço expor alguma das análises de Pinker, que são diversas e muito interessantes. E a leitura do livro poderia ser dispensável, que é o contrário do que uma resenha quer.
No prólogo, o tradutor informa que o último capítulo não foi traduzido. Trata da correção. O principal mérito do capítulo, segundo Ilari, é que ele põe em dúvida os critérios de correção, frequentemente puristas ou saudosistas. Um tema que, diria, conhecemos bem. Não que as coisas estejam claras para todos, porque é na hora de corrigir, como se sabe, que a cobra fuma (seja no ENEM, seja nos vestibulares, seja nas escolas). De certa forma, o capítulo faz falta. Mas o leitor, se procurar, vai encontrar bons substitutos no Brasil.
O livro é um guia da escrita acadêmica, jornalística, de divulgação. Certamente não pretende ser uma orientação para escrever a poesia ou humor. São coisas que talvez não se aprendam “na escola”, embora, em alguns casos, baste apenas virar a chave.
1Pinker provavelmente reprovaria tudo o que está entre parênteses…
Sirio Possenti – Universidade Estadual de Campinas – UNICAMP, Campinas, São Paulo, Brasil; CNPq 3062218/2013-5; siriopossenti@gmail.com.
Mikhail Bakhtin. Rhetoric, Poetics, Dialogics, Rhetoricality (D. Bialostosky)
BIALOSTOSKY, Don. Mikhail Bakhtin. Rhetoric, Poetics, Dialogics, Rhetoricality [Mikhail Bakhtin: retórica, poética, dialógica, retoricalidade]. Anderson, South Carolina: Parlor Press, 2016. 191 p. Resenha de: PISTORI, Maria Helena Cruz. Bakhtiniana – Revista de Estudos do Discurso, v.12 n.3 São Paulo Set./Dec. 2017.
Inicio esta apresentação destacando e comentando o título da obra, Mikhail Bakhtin: retórica, poética, dialógica, retoricalidade. A enumeração, aposta ao nome do filósofo russo, claramente representa uma síntese feliz de duas trajetórias: a primeira, a do próprio autor – Don Bialostosky, cujo percurso intelectual se inicia com o interesse pelas disciplinas do trivium, especialmente a Retórica e a Poética, passando depois a relacioná-las à obra de Bakhtin; a segunda, a trajetória do próprio livro, que coloca em diálogo a obra bakhtiniana com esses outros campos de conhecimento e, por muitas vezes, propõe leituras bastante originais, chegando à “dialógica” e, depois, à “retoricalidade”. Implicitamente, e dando unidade aos textos, está o compromisso do autor com o ensino da produção textual escrita, aspecto que também se destaca ao longo de todos os artigos.
O nome de Don Bialostosky – segundo a contracapa da obra, professor na área de Redação, Letramento, Pedagogia e Retórica, além de Chefe do Departamento de Inglês da University of Pittsburgh, Pennsylvania2 -, chama a atenção dos brasileiros ou por seu interesse na obra do Círculo – no Posfácio da tradução de Para uma filosofia do ato responsável, Faraco cita seu diálogo (polêmico) com Morson e Emerson (BAKHTIN, M. São Carlos – SP: Pedro&João Ed., 2010, p.148); ou, principalmente, como é o meu caso, por seus trabalhos que relacionam a obra bakhtiniana à retórica.
Fruto de pesquisas profundas tanto dos clássicos como da obra do Círculo de Bakhtin, os ensaios aqui reunidos surgem dos diálogos que Bialostosky encetou durante sua carreira, com diferentes interlocutores. Na realidade, trata-se da reunião de trabalhos publicados desde 1986, de forma esparsa, por instituições acadêmicas como a Modern Languagem Association (PMLA), ou a Rhetoric Society of America, ou organizados em livro por acadêmicos, preferentemente americanos. E em todos eles vamos observar que o autor sempre está respondendo a alguma questão, ora refutando, ora confirmando, discordando, antecipando as respostas contrárias e objeções potenciais, procurando apoio, etc. Dá espaço aos interlocutores contemporâneos, porém vai apresentá-los sempre criticamente, assim como faz com aqueles parceiros mais constantes, Aristóteles e Bakhtin. Embora apenas no último artigo afirme que vai manter nele o registro da presença das vozes de seus ouvintes e os comentários dos colegas – em geral, os artigos surgiram de comunicações orais em congressos -, os diálogos e polêmicas inscritos em todos os textos são facilmente recuperáveis numa leitura atenta, mesmo se velados.
Já no Prefácio, Don Bialostosky conta de sua descoberta da obra de Mikhail Bakhtin, em 1984, e da primeira apresentação de um trabalho sobre as implicações da teoria bakhtiniana para o ensino da produção de uma voz autêntica nos textos de estudantes universitários, na convenção da Conference on College Composition and Communication (CCCC) [Conferência sobre Produção Textual Universitária e Comunicação]. Naturalmente, começa lembrando o fato de a retórica ser marginal na obra bakhtiniana, com referências quase hostis e reducionistas. Justamente por isso, uma das principais questões que busca responder ao longo dos artigos é sobre o porquê de Bakhtin, autor que não tem nada de bom a dizer sobre a retórica, ser obrigatório e produtivo para estudantes de retórica e produção textual hoje.
Na Introdução, apresenta-nos vários autores que procuraram compreender Mikhail Bakhtin e o Círculo, relacionando-os a uma crítica retórica, e aponta a inclusão de suas obras em publicações na área de comunicação, retórica e composição. Para aqueles interessados tanto na retórica quanto na teoria do discurso bakhtiniana, e ainda no ensino de língua/linguagens, a leitura deste início é indispensável, não apenas como uma necessária e rica contextualização do que vem a seguir, mas também como fonte de indicações bibliográficas na área.
O livro está dividido em duas partes, que correspondem aos dois momentos em que a obra do Círculo foi traduzida para o inglês. Assim, na primeira parte Dialógica, retórica, crítica [Dialogic, Rhetoric, Criticism], o diálogo do autor se dá principalmente com Problemas da poética de Dostoiévski (BAKHTIN, M. M.), Marxismo e filosofia da linguagem (VOLOSHINOV, V. N.), O discurso na vida e o discurso na poesia (VOLOSHINOV, V. N.)3 e os textos que compõem a coletânea The Dialogic Imagination (BAKHTIN, M. M.)4, todos traduzidos antes de 1990. Conforme Bialostosky, neste momento, a “dialógica” é a questão mais importante para aqueles que trabalham com retórica e composição, e ele a define como a quarta arte do trivium já no primeiro artigo, Dialógica como uma arte do discurso (2) [Dialogics as an Art of Discourse]. Na construção de seu argumento, parte da oposição aristotélica entre retórica – arte do discurso centrada nas pessoas, e dialética – arte do discurso centrada em ideias/teses -para a compreensão do que considera a “arte bakhtiniana”, a dialógica – centrada na inseparabilidade entre ideias e pessoas, tal como Bakhtin coloca em Problemas da poética de Dostoiévski – a imagem de uma ideia é inseparável da imagem de uma pessoa, aquela que carrega a ideia. Se a dialética luta pela convicção numa questão e a retórica pela persuasão de uma audiência, a dialógica luta por uma responsividade compreensiva, e uma responsabilidade consequente entre pessoas-ideias de um tempo, uma cultura, uma comunidade, ou uma disciplina. A partir desses princípios, dialoga com outros autores, como Tzvetan Todorov, Merle Brown, Richard Rorty e Hans-Georg Gadamer, mostrando que os 25 séculos de história do trivium no Ocidente também deixaram marcas em suas ideias. No entanto, apenas a dialógica, segundo ele, permite o diálogo entre a retórica, a dialética e o discurso dos teóricos atuais, possibilitando a articulação das diferenças entre eles. Este capítulo proposicional é um dos mais importantes no livro, ainda que, na realidade, os outros o complementem, esclarecendo melhor as possibilidades dialógicas entrevistas por Bialostosky entre a obra bakhtiniana e as artes do trivium.
O capítulo seguinte (3), Booth, Bakhtin e a cultura da crítica [Booth, Bakhtin, and the Culture of Criticism], é dedicado ao exame da crítica retórica a partir da visão pluralista de crítica literária contemporânea de Wayne Booth. Orientador de tese de Bialostosky, autor de The rhetoric of fiction5, introdutor da tradução de Problemas da poética de Dostoiévski e aristotelista da Escola de Chicago, é a ele que esta obra é dedicada. Bialostosky faz a leitura da obra de Booth, afirmando que ele, ao tentar chegar a bons termos com o trabalho do Círculo, defende (impositivamente) um posicionamento em relação às outras possibilidades de crítica que mais o aproxima da retórica do que da dialogia. Em Retórica, crítica literária, teoria e Bakhtin (4) [Rhetoric, Literary Criticism, Theory, and Bakhtin], defendendo a possibilidade de uma crítica retórica para a leitura de trabalhos literários de todos os tempos, o capítulo se dedica inicialmente a tratar do debate entre o desconstrutivismo e a Escola de Chicago (aristotélica). A seguir, dialoga com a leitura que Jeanne Fahnestock6 faz das figuras de pensamento como elementos de interação contextual, ampliando-a bakhtinianamente.
O quinto capítulo (5) denomina-se Bakhtin e a crítica retórica [Bakhtin and Rhetorical Criticism]. Trata-se de um ensaio bastante interessante para aqueles que se surpreendem com a posição hostil de Bakhtin em relação à retórica, querendo compreendê-la. Sua origem é o debate dos trabalhos de Kay Halasek e Michael Bernard-Donals, numa convenção da Modern Language Association, em 1990. Em relação à primeira, que atribui a hostilidade de Bakhtin à sua recusa a um monologismo e dogmatismo “em defesa da autoridade opressora” (o regime soviético), propondo uma retórica dialógica, Bialostosky recorre a texto de Nina Perlina. Segundo essa última, Bakhtin se opõe, de fato, ao teórico retórico formalista seu contemporâneo, Victor Vinogradov, uma voz oficial da propaganda soviética, para quem a retórica é um jogo agonístico, cuja intenção principal é tornar sua oratória a única manifestação discursiva efetiva de autoridade (Com certeza, posição a conferir!). Quanto a Bernard-Donals, que almeja uma abordagem mais científica ao debate retórica, responde sobretudo com as oposições aristotélicas entre retórica, dialética e analítica, atribuindo ao interlocutor uma posição platônica. O final do ensaio deve despertar um interesse especial nos educadores, pois o autor retoma a exercitatio retórica e suas semelhanças com o processo bakhtiniano de apropriação de palavras (a palavra própria e as semi-alheias), propondo que “[U]uma pedagogia crítica e produtiva da poderosa articulação entre retórica e dialógica pode se desenvolver por meio do aprofundamento da história e da prática da exercitatio em combinação com reflexões ulteriores acerca da formação dialógica do sujeito”7.
Finalizando a primeira parte o capítulo 6, Antilógica, dialógica e psicologia sofística social [Antilogics, Dialogics, and Sophistic Social Psychology] articula a dialógica com o renascimento dos sofistas na recente teoria retórica, e examina trabalhos do sociólogo Michael Billig sobre a retórica de Protágoras. O autor começa, então, a reelaborar a polêmica definição de retórica já apresentada, diluindo-a num não institucionalizado processo discursivo – uma “retoricalidade”, na segunda parte do livro.
É em torno dos textos de Bakhtin com tom mais filosófico, traduzidos posteriormente para o inglês – a coletânea Art and Answerability8, em 1990, e Toward a Philosophy of Act9, em 1993 -, que Bialostosky reúne os ensaios da segunda parte, Arquitetônica, poética, retoricalidade, educação liberal [Architectonics, Poetics, Rhetoricality, Liberal Education]. Considera-os, de fato, igualmente importantes para os trabalhos com a linguagem e a literatura e continua a buscar neles contribuições para uma renovada compreensão das artes do trivium, refutando uma leitura de Para uma filosofia do ato (PFA) como basicamente um tratado de ética. Ao longo dos ensaios, o autor conduz o leitor à noção de “retoricalidade”, difundida por Bender e Wellbery10, que caracterizam os trabalhos de Bakhtin como “tratados virtuais sobre a natureza e funcionamento da retoricalidade”, uma “retórica generalizada que penetra os mais profundos níveis da experiência humana, … não limitada por nenhuma organização institucional, … não mais o título de uma doutrina e de uma prática… [mas] alguma coisa como a condição de nossa existência” (p.14; minha tradução)11. Bialostosky abraça essa perspectiva dinâmica, preferível a uma arte dialógica disciplinada, restritiva ou reguladora, segundo ele.
No capítulo 7, O rascunho grosseiro de Bakhtin [Bakhtin’s ‘Rough Draft’], os interlocutores preferenciais do autor são Gary S. Morson e Caryl Emerson, especialmente em Mikhail Bakhtin: Creation of a Prosaics12; mas outros ainda que, como Helen Rothschild Ewald, defendem uma nova ênfase a questões éticas nesses primeiros trabalhos, praticamente invalidando quase uma década de apropriação da obra de Bakhtin nos estudos de composição, de modo predominantemente socioconstrutivista. Basicamente, Bialostosky não concorda com a leitura realizada por Morson e Emerson, que reduz a importância da linguagem e da sociedade na obra bakhtiniana, alegando que maior atenção deveria ser atribuída a “histórico”, como epíteto do ato responsável, assim como do enunciado concreto.
O capítulo 8, Arquitetônica, retórica e poética no primeiros estudos fenomenológicos e sociológicos do Círculo de Bakhtin [Architectonics, Rhetoric, and Poetics in the Bakhtin School’s Early Phenomenological and Sociological Texts] dá continuidade à argumentação anterior. E, junto aos dois seguintes, cap. 9 – A Retórica de Aristóteles e a teoria do discurso de Bakhtin [Aristotle’s Rhetoric and Bakhtin’s Discourse Theory] e cap.10 – Relendo o papel da retórica na Poética de Aristóteles à luz da teoria do discurso de Bakhtin: retórica como dianoia, poética como uma imitação da retórica [Rereading the Place of Rhetoric in Aristotle’s Poetics in Light of Bakhtin’s Discourse Theory: Rhetoric as Dianoia, Poetics as an Imitation of Rhetoric], são os ensaios que buscam mais detalhadamente compreender uma retórica bakhtiniana, concomitantemente a uma retórica e a uma poética clássicas a partir da teoria do discurso do Círculo. Nesses três capítulos, o autor nos leva a raciocinar em termos de categorias da retórica, da poética e da teoria do discurso bakhtiniana, abordando tanto os primeiros quanto os demais trabalhos de Bakhtin e membros do Círculo, e apontando o impacto que exercem na reconsideração de ambas as disciplinas clássicas. Indico a seguir apenas algumas questões levantadas por Bialostosky: a oposição de Bakhtin a um conhecimento sistematizado ou racionalizado em PFA aproximaria seu pensamento do modo de raciocínio retórico; a preocupação de seus textos com participação, avaliação, decisão e ação, e a questão do tom emotivo-volitivo, revelariam uma preocupação comum à retórica; o reconhecimento de que Bakhtin estrutura seu trabalho sobre a poética de Dostoiévsky a partir do fundo teórico da Poética de Aristóteles; ou ainda a observação de que, “em sua teoria do discurso, ele reabilita a mais abjeta parte da retórica aristotélica, a actio” – tratando do enunciado concreto, efetivamente realizado, “e subordina a mais importante – inventio, à dispositio, elocutio e actio13. A plena exposição do profundo raciocínio argumentativo do autor naturalmente não caberia em uma resenha…
Educação liberal, escrita e o indivíduo dialógico (11) [Liberal Education, Writing, and the Dialogic Self], o último artigo, é seu primeiro trabalho sobre Bakhtin e o ensino da escrita. Em parte um metatexto, na medida em que é um texto sobre a produção de textos, expondo o próprio trabalho de produção textual do autor, conta-nos das revisões e atualizações efetuadas no antigo manuscrito para inseri-lo nesta coletânea, das modificações requeridas ao mudar sua audiência, ou mesmo ao transformar a comunicação oral em escrita. Respondendo a teorias expressivistas e socioconstrutivistas, afirma que “ensinar a escrever de uma perspectiva dialógica é diferente de fazê-lo a partir de outras teorias sociais do discurso, em sua visão de pessoas ideologicamente situadas, envolvidas em lutas sobre o sentido das coisas e a propriedade das palavras” (p.152; minha tradução)14. Por meio de tal perspectiva, dá-se a descoberta da interação discursiva entre as disciplinas e suas diferentes linguagens, e a construção dialógico-discursiva do indivíduo, afirma. Enfim, segundo Bialostosky, a teoria bakhtiniana nos “alerta sobre as limitações em nossos modelos retóricos e, ao mesmo tempo, sugere modos de transcendê-las, ainda que sob o risco de perder a retórica, ou ao menos a retórica tal como a conhecemos”15 (p.13; minha tradução). Essa questão, a meu ver, o autor ousa enfrentar teórica e praticamente com sucesso e proveito, numa obra que mostra a coerência e a unidade do pensamento que desenvolveu ao longo de toda a carreira profissional.
Finalmente devo acrescentar que a obra apresenta uma lista de referências bastante útil para aprofundamento de qualquer um dos tópicos tratados, e um bem cuidado índice onomástico. Mas quero destacar ainda mais uma questão: a leitura da coletânea também oferece, com muita clareza, as condições concretas em que são produzidos os diferentes ensaios e, então, exotopicamente, observamos particularmente a grande importância do ensino da produção textual na universidade americana, ao lado da efervescência dos estudos retóricos, intimamente ligados às disciplinas de redação – composição de texto (acadêmico, poético ou ficcional) e crítica textual. Boa reflexão para nossas universidades…
2Currently he is Professor in the Composition, Literacy, Pedagogy, and Rhetoric track and Chair of the English Department at the University of Pittsburgh.
3VOLOSHINOV, V. N. Marxism and the Philosophy of Language. Trans. L. Matejka and I. R. Titunik. New York: Seminar, 1973; Discourse in Life and Discourse in Art. In Freudianism: A Critical Sketch. Ed. Neil H. Bruss. Trans. I. R. Titunik. Bloomington: Indiana University Press, 1987. Sem constar da tabela da p.vi, mas também citados: Os gêneros do discurso [The Problem of Speech Genres], que no inglês se encontra em BAKHTIN, M. M. Speech Genres and Other Late Essays. Ed. Michael Holquist and Caryl Emerson. Trans. Vern W. McGee. Austin: University of Texas P, 1986; Apontamentos de 1970-1971 [Extracts from ‘Notes’ (1970-1971)], que se encontra em BAKHTIN, M. M. Bakhtin: Essays and Dialogues on His Work. Ed. Gary Saul Morson. Chicago: University of Chicago Press, 1986; e Rabelais and His World. Trans. Helene Iswolsky. Cambridge, MA: MIT Press, 1968.
4BAKHTIN, M. M. The Dialogic Imagination. Four Essays. Edited and translated by Michael Holquist and Caryl Emerson. Austin: University of Texas Press, 1982. No inglês, encontram-se na coletânea os seguintes ensaios: O discurso no romance [Discourse in the novel]; Da pré-história do discurso romanesco [From the Prehistory of Novelistic Discourse]; Epos e romance (Sobre a metodologia do estudo do romance) [Epic and Novel]; e Formas de tempo e de cronotopo no romance (Ensaios de poética histórica) [Forms of Time and of the Chronotope in the Novel].
5The Rhetoric of Fiction. Chicago: University of Chicago Press, 1961.
6Rhetorical Figures in Science. New York: Oxford UP, 1999.
7No original: “A critically fruitful and pedagogically powerful articulation of rhetoric and dialogics might well grow out of further excavation of the history and practice of exercitatio in combination with further reflection on the dialogic formation of the subject” (p.72).
8BAKHTIN, M. M. Art and Answerability. Early Philosophical Essays by M. M. Bakhtin. Edited by Michael Holquist and Vadim Liapunov. Translation and notes by Vadim Liapunov. No inglês, encontram-se nesta coletânea os seguintes ensaios: Arte e responsabilidade [Art and Answerability (1919)], O autor e a personagem na atividade estética [Author and Hero in Aesthetic Activity (ca. 1920-1923)], Suplemento: O problema do conteúdo, do material e da forma na criação literária [Supplement: The Problem of Content, Material, and Form in Verbal Art (1924).
9BAKHTIN, M. M. Toward a Philosophy of the Act. Edited by Vadim Liapunov & Michael Holquist. Translation and notes by Vadim Liapunov. Texas: University of Texas Press, 1993.
10BENDER, J.; WELLBERY, D. E. The Ends of Rhetoric: History, Theory, Practice. Palo Alto: Stanford University Press, 1990.
11No original: “virtual treatises on the nature and functioning of rhetoricality” (p. 37), a “generalized rhetoric that penetrates to the deepest levels of human experience, . . . bound to no specific set of institutions, . . . no longer the title of a doctrine and a practice . . . [but] something like the condition of our existence” (p.25).
12MORSON, G. S.; EMERSON, C. Mikhail Bakhtin: Creation of a Prosaics. Palo Alto: Stanford University Press, 1990.
13No original: “In his theory of discourse, he rehabilitates the most abjected part of Aristotle’s rhetoric-delivery-and he subordinates Aristotle’s most important part-invention-to arrangement, style, and delivery” (p.122).
14No original: “A dialogic orientation to teaching writing differs from other social theories of discourse in its vision of ideologically situated persons involved in struggles over the meanings of things and the ownership of words” (p.152).
15No original: “His work alerts us to limitations in our rhetorical models and at the same time suggests ways to transcend them, even at the risk of losing rhetoric, or at least rhetoric as we know it” (p.13).
16Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUCSP/Bakhtiniana. Revista de Estudos do Discurso, São Paulo, São Paulo, Brazil; mhcpist@uol.com.br
17BAKHTIN, M. Problems of Dostoevsky’s Poetics. Translated into English by Caryl Emerson. Minneapolis, MN: University of Minnesota Press, 1984
18VOLOŠINOV, V. Marxism and the Philosophy of Language. Trans. L. Matejka and I. R. Titunik. New York: Seminar, 1973; Discourse in Life and Discourse in Art. In Freudianism: A Critical Sketch. Ed. Neil H. Bruss. Trans. I. R. Titunik. Bloomington: Indiana University Press, 1987. And without being directly referred in the table on p.vi, he also cites: The Problem of Speech Genres, which is in BAKHTIN, M. Speech Genres and Other Late Essays. Ed. Michael Holquist and Caryl Emerson. Trans. Vern W. McGee. Austin: University of Texas P, 1986; Extracts from ‘Notes’ (1970-1971), which is in BAKHTIN, M. Bakhtin: Essays and Dialogues on His Work. Ed. Gary Saul Morson. Chicago: University of Chicago Press, 1986; and, Rabelais and His World. Trans. Helene Iswolsky. Cambridge, MA: MIT Press, 1968.
19BAKHTIN, M. M. The Dialogic Imagination: Four Essays. Edited and translated by Michael Holquist and Caryl Emerson. Austin, TX: University of Texas Press, 1982. In this collection, we find the following essays: Discourse in the novel, From the Prehistory of Novelistic Discourse, Epic and Novel, and Forms of Time and of the Chronotope in the Novel.
20BOOTH, W. The Rhetoric of Fiction. Chicago: University of Chicago Press, 1961.
21FAHNESTOCK, J. Rhetorical Figures in Science. New York: Oxford UP, 1999.
22BAKHTIN, M. M. Art and Answerability: Early Philosophical Essays by M. M. Bakhtin. Edited by Michael Holquist and Vadim Liapunov. Translation and notes by Vadim Liapunov. Austin, TX: University of Texas Press, 1990. In this collection, we find the following essays: Art and Answerability (1919), Author and Hero in Aesthetic Activity (ca. 1920-1923), Supplement: The Problem of Content, Material, and Form in Verbal Art (1924).
23BAKHTIN, M. M. Toward a Philosophy of the Act. Edited by Vadim Liapunov & Michael Holquist. Translation and notes by Vadim Liapunov. Austin, TX: University of Texas Press, 1993.
24MORSON, G. S.; EMERSON, C. Mikhail Bakhtin: Creation of a Prosaics. Standford, CA: Stanford University Press, 1990.
Maria Helena Cruz Pistori – Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUCSP/Bakhtiniana. Revista de Estudos do Discurso, São Paulo, São Paulo, Brasil; mhcpist@uol.com.br.
Os gêneros do discurso – BAKHTIN (B-RED)
BAKHTIN, Mikhail. Os gêneros do discurso. Paulo Bezerra (Organização, Tradução, Posfácio e Notas); Notas da edição russa: Seguei Botcharov. São Paulo: Editora 34, 2016. 164p. Resenha de: BRAIT, Beth. Bakhtiniana – Revista de Estudos do Discurso, v.12 n.2 São Paulo May./Aug. 2017.
Por que determinados textos, literários ou não, comportam mais de uma boa tradução, dentro de uma língua, sem que a ordem de aparecimento desqualifique a anterior? E se pensarmos num mesmo tradutor, o que justificaria a (re)tradução? Evidente que as respostas são muitas e vão depender, necessariamente, da maneira como se considera a passagem de um texto de uma língua a outra. Se, por exemplo, compreendermos a tradução como uma relação singular, estabelecida entre um texto de partida e um contexto de chegada, implicando modos de ler/reler uma obra e seu autor, será possível considerar não somente as idiossincrasias do tradutor criterioso que se volta mais de uma vez para um mesmo texto, e que com sua lupa persegue as minúcias estilístico-significativas do diálogo aí estabelecido entre duas línguas, duas consciências produtivas e em tensão, mas também, a possibilidade de reconhecer singularidades do tempo-espaço em que as traduções e (re)traduções acontecem. O novo contexto de recepção envolve, ao mesmo tempo, uma tradição temporal e espacial de estudos a respeito do autor/obra/tradução e a possiblidade de conferir ao novo trabalho do tradutor, ao texto de origem e à (re)tradução um estatuto diferenciado das manifestações anteriores.
Assim deve ser compreendido Mikhail Bakhtin: os gêneros do discurso, livro que chegou ao leitor em 2016, representando ganhos e significados especiais para os estudos bakhtinianos no Brasil. O crítico, ensaísta, professor e pesquisador Paulo Bezerra, reconhecido por suas importantes traduções literárias e por ser um dos responsáveis pela existência de Mikhail Bakhtin em língua portuguesa, retoma dois textos por ele traduzidos diretamente do russo e publicados em 2003 na coletânea Estética da criação verbal – “Os gêneros do discurso” e “O problema do texto na linguística e nas outras ciências humanas: uma experiência de análise filosófica”, este último renomeado como “O texto na linguística, na filologia e em outras ciências humanas: um experimento de análise filosófica” – e a eles acrescenta dois inéditos – “Diálogo I. A questão do discurso dialógico e Diálogo II”, publicados pela primeira vez na Rússia em 1997.
Sem dúvida, esse evento tradutório, que interliga versões pontualmente modificadas de dois textos que, juntamente com outros do pensador russo, são centrais para a compreensão dos conceitos de gênero discursivo, enunciado, texto, cadeia comunicativa, cadeia da comunicação discursiva, campos da comunicação cultural, cadeia histórica da cultura, deixa os estudiosos entusiasmados por ao menos duas razões. Pela estética das traduções de Paulo Bezerra, produto do reconhecido rigor acadêmico-científico, pautado na ética da pesquisa, sempre atento ao estado da arte de suas traduções e ao estado atual do conhecimento dos escritos do autor de Problemas da poética de Dostoiévski, notadamente na Rússia, onde vai buscar e conferir fontes. E pela chegada de dois novos escritos, voltados para diálogo, outra grandeza essencial na reflexão teórico-filosófica bakhtiniana que, como afirma Bezerra, “mesmo sendo textos preparatórios de ‘Os gêneros do discurso’, discutem questões congêneres não contempladas nessa obra e trazem rascunhos de projetos teóricos que o mestre pretendia desenvolver, revelando sua permanente preocupação com o aprofundamento e uma maior abrangência de sua teoria do discurso em vários campos das humanidades” (p.151).
Portanto, o gesto que implica (re)tradução acrescida de tradução de inéditos acontece a partir de um retorno do tradutor-pesquisador às fontes russas, aí consideradas a edição de Estética da criação verbal (Moscou, Iskusstvo,1979, organização e notas de Serguei Botcharov) e o tomo 5 das Obras reunidas de M. M. Bakhtin, (Moscou, 1997, volume organizado por Botcharov e Liudmila Gogotichvíli). A consequência imediata, altamente positiva para o leitor brasileiro e para o conhecimento do pensamento bakhtiniano, é uma decisão editorial que repensa a natureza dos textos reunidos em Estética da criação verbal, obra publicada na Rússia após a morte do autor.
Bastante conhecida no Brasil, essa coletânea, que teve uma primeira tradução feita a partir da edição francesa (Maria Ermantina Galvão G. Pereira, 1992), tem desde 2003 tradução feita por Paulo Bezerra, diretamente do russo. E é nela que se encontram os textos “Os gêneros do discurso”, “O problema do texto na linguística, na filologia e em outras ciências humanas: uma experiência de análise filosófica”, assim como diversos outros trabalhos produzidos em diferentes momentos por Mikhail Bakhtin. Como afirma Paulo Bezerra, “não é um livro tematicamente uniforme; são três livros em um, todos diferentes entre si pelos objetos de análise e reflexão, além de dois textos sobre Dostoiévski e outros quatro sobre diferentes temas de ciências humanas” (p.151). Ou seja, trata-se de um conjunto que, de fato, poderia, por um critério de relação e coerência entre obras, ser desmembrado e, com isso, oferecer ao leitor de hoje um panorama mais esclarecedor da maneira como alguns constructos do pensamento bakhtiniano foram aparecendo, sendo trabalhados e retrabalhados, evidenciando seu papel, função e participação na edificação da arquitetônica que rege e abriga o conjunto desse forte pensamento sobre linguagem.
E é justamente essa perspectiva que, considerando a possibilidade de agrupamentos coerentes dos trabalhos presentes em Estética da criação verbal, apresenta Os gêneros do discurso como o primeiro de quatro volumes previstos. Nesse sentido, o leitor se pergunta: “E qual é a coerência temática que dá conta, nesse primeiro volume, dos dois trabalhos conhecidos somados aos dois inéditos?”.
Os estudiosos interessados em alguns dos fios condutores do pensamento bakhtiniano têm procurado estabelecer, dentre outras coisas, a relação existente entre os conceitos de enunciado (por vezes enunciado concreto ou mesmo enunciação em algumas traduções), texto, discurso, gênero do discurso, cadeia da comunicação discursiva, campos ou esferas da comunicação cultural, sem dúvida pilares da construção reflexiva bakhtiniana, voltada para a linguagem nas artes e nas ciências humanas e, especialmente, a maneira como esses elementos constituem unidades e elos para a compreensão do processo vivo da comunicação humana, das cadeias discursivas.
Essa busca leva, necessariamente, aos dois trabalhos produzidos por Mikhail Bakhtin nas décadas de 50 e início de 60, do século passado, aproximados de forma muito pertinente nesse volume: “Os gêneros do discurso” (1952 – 53) e “O texto na linguística, na filologia e em outras ciências humanas: um experimento de análise filosófica” (1959-61). Neles, os conceitos mencionados são apresentados, tematizados, discutidos e inseridos na construção de uma perspectiva dialógica de concepção e abordagem da linguagem, bem como interligados numa interdependência que evoca outros escritos de Bakhtin, caso de “O discurso no romance” (texto iniciado em 1929 e concluído entre 1934 e 1936, publicado pela primeira vez na União Soviética em 1972).
A tentativa constante de compreensão do significado desses constructos fundamentais para a perspectiva dialógica da linguagem, caso de gênero do discurso, enunciado, texto fica facilitada pela organização desse primeiro volume do desmembramento de Estética da criação verbal, justamente pela forma como discurso, gênero e enunciado se articulam em relação a texto e vice-versa.
Em “Os gêneros do discurso” encontra-se um momento da concepção bakhtiniana de linguagem que sistematiza a importância da noção gênero para a compreensão da língua em movimento, plena de vida e de mobilidade, flagrada no diz-que-diz do burburinho da vida e da cultura, da vida na cultura, quer artística ou científica, do enunciado como unidade dialógica de tensão entre um/outro, entre ao menos duas consciências, entre identidades/alteridades, entre a língua/unidade, preservada a duras penas pelas forças centrípetas, e a língua/plural, multifacetada, plenamente realizada pelas forças centrífugas provocadoras do plurilinguismo. E é precisamente por essa dualidade – unidade/unicidade – que em “Os gêneros do discurso” encontra-se a importante discussão sobre as realidades representadas pela oração, enquanto unidade/modelo do conjunto de possiblidades de um sistema, e o enunciado, oral ou escrito, proferido de forma concreta e única, por integrantes das diferentes esferas da atividade humana.
Se gênero do discurso é um tema que acompanha o pensador russo ao longo de toda a sua vida, podendo essa presença ser vivenciada em Problemas da poética de Dostoiévski e em O discurso no romance, por exemplo, a concepção de texto como unidade semiótico ideológica também se reitera ao longo do conjunto da obra, ganhando discussão específica em “O texto na linguística, na filologia e em outras ciências humanas: um experimento de análise filosófica”, no qual se pode ler: “[…] por trás de cada texto está o sistema da linguagem. […]. Concomitantemente, porém, cada texto (como enunciado) é algo individual, único e singular, e nisso reside todo o seu sentido […]. Esse segundo elemento (polo) é inerente ao próprio texto, mas só se revela numa situação e na cadeia dos textos (na comunicação discursiva de dado campo)” (p.74-75).
O trecho em destaque indica duas dimensões implicadas, como também se pode observar em Os gêneros do discurso, que são evocadas como condição de existência de um texto: a materialidade sígnica ou dimensão semiótica, que o constitui e o faz participante de um sistema; a singularidade que lhe é conferida a partir de sua participação ativa e efetiva na cadeia da comunicação discursiva da vida em sociedade. Essa combinatória constitutiva de elementos dados (sistema) e elementos criados (linguagem em uso) possibilita a um texto ser reconhecido como pertencente a um sistema (linguístico, pictórico, musical, etc.), e, ao mesmo tempo, como portador de valores, de posições que garantem a produção de sentidos, sempre em confronto com outras posições e valores presentes numa sociedade, numa cultura. De acordo com Bakhtin, “Onde não há texto não há objeto de pesquisa e pensamento” (p.71).
Os dois inéditos, por sua vez, tem um sabor muito especial. O título evoca uma das peças-chave da teoria bakhtiniana, que é o diálogo, concebido como constitutivo da linguagem humana e não apenas como estrutura de conversa. Escritos antes da versão definitiva de “Os gêneros do discurso”, “Diálogo I” (1950) e “Diálogo II” (1952), publicados em 1997 no volume 5 das Obras de Bakhtin (Editora Rússkie Slovarí), certamente surpreendem, conforme afirma Bezerra:
À primeira vista são rascunhos do que viria a ser o texto final de “Os gêneros do discurso”, porém, uma leitura atenta mostra que Bakhtin vai além do livro projetado. […] Em toda a concepção bakhtiniana a linguagem humana é vista sob um prisma dialógico, mas nesses “diálogos” atribui-se à própria língua uma natureza dialógica, o que, a meu ver, é uma novidade na teoria linguística de Bakhtin (p.111).
A esse coerente conjunto, Paulo Bezerra ainda acrescenta um posfácio, a bem da verdade um substancioso ensaio de quase vinte páginas, sugestivamente intitulado “No limiar de várias ciências”, por meio do qual caracteriza a coerência do quarteto, enquanto composição teórica interligada por uma das unidades temáticas própria do pensamento bakhtiniano, relacionando-a com outros trabalhos do autor, discutindo a importância desse conjunto e auxiliando, neste momento dos estudos bakhtinianos, a compreensão dos complexos meandros de “Os gêneros do discurso”, trabalho nem sempre pensado em suas reais especificidades, em consonância com outros trabalhos de Mikhail Bakhtin. E aí a (re)tradução se justifica, ganhando corpo e lugar na cultura brasileira.
Beth Brait – Pontifícia Universidade Católica de São Paulo-PUC-SP, São Paulo, Brasil; CNPq-PQ nº. 303643/2014-5; bbrait@uol.com.br.
História sociopolítica da língua portuguesa – FARACO (B-RED)
FARACO, Carlos Alberto. História sociopolítica da língua portuguesa. São Paulo: Parábola Editorial, 2016, 400 p. Resenha de: FIORIN, José Luiz. Bakhtiniana – Revista de Estudos do Discurso, v.12 n.1 São Paulo Jan./Apr. 2017.
Carlos Alberto Faraco, professor da Universidade Federal do Paraná, é um respeitado especialista em linguística histórica. É autor de um dos mais usados manuais dessa disciplina, Linguística histórica: introdução ao estudo da história das línguas, publicado inicialmente pela Editora Ática e atualmente pela Parábola Editorial. É também um dos maiores especialistas brasileiros na obra de Mikhail Bakhtin. Vem agora a lume sua alentada História sociopolítica do português.
Tradicionalmente a linguística histórica divide-se em linguística interna e linguística externa. Saussure, por exemplo, consagra, em seu Curso de linguística geral, um capítulo, intitulado Elementos internos e elementos externos da língua, a essa distinção. A linguística interna dedica-se unicamente a mudanças na estrutura de uma língua; ela faz dessas mudanças seu estudo exclusivo, observando o funcionamento do sistema linguístico, seu “mecanismo”. Na linguística externa a língua é examinada em sua relação com fenômenos sociais, geográficos, econômicos, políticos, culturais, etc. A linguística histórica, considerando, como dizia Saussure, que “a língua é um sistema que conhece somente sua própria ordem” (2006, p.31)1, sempre deu prioridade à linguística interna, tida como a linguística por excelência, relegando a linguística externa a um papel secundário. Na maioria das vezes, enquanto a linguística interna era objeto de minuciosas e aprofundadas análises, a linguística externa não passava de uma coleção de dados anedóticos. No entanto, o aparecimento de outras concepções de língua, como a utilizada pela sociolinguística, dá um papel de relevo ao que era chamado história externa da língua.
Faraco filia-se a essa nova corrente, partindo do ponto de vista de que “as línguas estão intimamente atadas às dinâmicas histórico-políticas e às construções imaginário-ideológicas das sociedades em que são faladas. Em outros termos, as línguas não existem em si e por si; elas não são entidades autônomas – as línguas são elas e seus falantes; elas e as sociedades que as falam” (p.9). Por isso, ele deixa claro que não pretende descrever as mudanças nos diversos subsistemas (fonológico, mórfico, sintático, lexical) que compõem a organização estrutural do português, isto é, não pretende ocupar-se do que foi chamado linguística interna, mas deseja estudar a intrincada rede de fenômenos sociais, econômicos, políticos, culturais que conformou o idioma chamado português, falado por diferentes povos em diversos continentes (p.9-10).
Poder-se-ia imaginar que se trata de mais uma história da formação e da difusão do português. Entretanto, a obra que Faraco nos apresenta não é mais uma história do português, mas é uma história apresentada sob perspectivas novas, porque recusa interpretações anacrônicas, abdica do “tópos do orgulho” (p.10), submete ao crivo impiedoso da documentação certas ideias longamente aceitas, destrói mitos sobre a expansão do português, desvenda ideologemas que estão na base do que é apresentado como natural ou científico.
O livro é dividido em dois longos capítulos, que concentram a exposição da matéria, e um breve terceiro capítulo, cujo conteúdo poderia ser considerado as conclusões. No primeiro, intitulado História, o autor fala da formação e da difusão do que viria, mais tarde, a ser denominado português. A língua que hoje chamamos português desenvolve-se a partir dos falares românicos que se constituíram após a dissolução do Império Romano do Ocidente na região abrangida pela Galícia, região autônoma da Espanha, e pelo norte de Portugal, isto é, na Gallaecia Magna dos romanos. Primeiramente, o autor vai mostrar os eventos sócio-históricos que levaram à expansão desses falares do noroeste ibérico até o Algarve, fazendo com que a faixa ocidental se destacasse claramente do restante da Península Ibérica.
Quando discute a expansão do português, o autor começa a recusar anacronismos (“a interpretação do passado pelo presente”) e o triunfalismo (“a interpretação […] que se pauta pela celebração do sucesso”). Começa por refutar a afirmação de historiadores da história de Portugal e do português de que D. Dinis transformou, em 1296, a língua “portuguesa” em língua “oficial” do reino (p.23). Na verdade, “o que aconteceu no reinado de D. Dinis foi que o uso da língua românica vernácula na documentação produzida pela Chancelaria Real se tornou sistemático e suplantou o uso do latim” (p.23). A interpretação da oficialização da língua é rejeitada, porque não se pode confundir a produção de documentos na Chancelaria Real com oficialização da língua, pois, no seu sentido moderno, língua oficial quer dizer “língua de uso obrigatório em todas as instâncias públicas” (p.24). Basta lembrar que o ensino “continuou a ser feito primordialmente em latim até o século XVIII” e os médicos prosseguiram receitando em latim pelo menos até o século XVII (p.24). Da mesma forma, não se pode falar em língua nacional nesse período, uma vez que o processo de construção nacional, no sentido moderno do termo, ocorre somente a partir do século XVIII.
O autor faz uma alentada discussão do nome da língua, já que “o recorte e a nominação de uma língua histórica (ou seja, o recorte de determinado conjunto de variedades linguísticas agrupadas sob um nome singular – português, galego, inglês, chinês, etc.) são fenômenos fundamentalmente socioculturais e políticos” (p.47), o que significa que uma língua histórica é muito mais uma instituição sociocultural do que uma entidade puramente linguística. Durante boa parte da Idade Média, a referência às variedades românicas não era feita por nomes específicos que as individualizassem. Nos textos dessa época, ocorrem apenas designações genéricas como vulgar, romanço/romance, linguagem, nossa linguagem. “A nominação da língua românica de Portugal como português ou linguagem/língua portuguesa teve de esperar, ao que tudo indica, o século XV, tornando-se definitivamente corrente a partir do século XVI” (p.48).
Em seguida, o autor vai estudar a expansão do português pelo mundo, a partir do século XV, na esteira do que foi denominado as grandes navegações, bem como suas consequências linguísticas, como, por exemplo, o surgimento de um pidgin de base portuguesa, e o aparecimento de línguas crioulas.
Ao apresentar a situação linguística em Goa, o autor vai discutir as razões do estímulo aos casamentos mistos, demolindo mais um dos mitos criados pelos ideólogos do colonialismo português de que a colonização portuguesa era tolerante e aberta à miscigenação com os nativos (p.73). Ao mostrar que, em 1974, só uma ínfima parcela da população dos territórios colonizados era alfabetizada e tivera acesso à educação básica, desvela a falácia do discurso da “missão civilizadora” com que o colonialismo europeu justificava suas ações em África e em Ásia (p.80).
A política linguística pombalina consubstanciada no Diretório de 1757 merece uma análise minuciosa. Refutando o lugar comum de que essa política foi um sucesso, pois foi ela que levou à expansão do português por todo o território nacional, o autor mostra que, na verdade, ela foi um fracasso (p.114). O português expandiu-se, no território em que se falava a língua geral amazônica, devido a profundas mudanças demográficas e econômicas que ocorreram na região (p.103). Mostra-se, assim, que a disseminação de uma língua não acontece por medidas voluntaristas, mas por uma intrincada teia de fatores econômicos e sociais.
As línguas gerais são analisadas como efeito da colonização (p.120). “A intervenção colonial europeia no Brasil, como na América em geral, redundou na desestruturação econômica, social e cultural das populações autóctones, em especial das que viviam no litoral ou em sua proximidade, submetendo-as à lógica da exploração colonial” (p.121). Isso ocasionou um novo quadro de relações sociointeracionais que afetou profundamente as línguas nela envolvidas, “fazendo, de um lado, emergir as chamadas línguas gerais (paulista e amazônica) e, de outro, traçando as primeiras grandes linhas que resultaram no modo polarizado pela qual se deu a disseminação da língua portuguesa no Brasil” (p.121).
A língua portuguesa torna-se hegemônica no Brasil, vindo a ser L1 da maioria absoluta da população, por uma complexa trama de acontecimentos ocorridos, no século XVIII, com a progressiva unificação territorial ocasionada pela descoberta do ouro em Minas Gerais: “o deslocamento de grandes contingentes populacionais para a região aurífera; a vinda maciça de portugueses metropolitanos”; a criação de redes comerciais para o abastecimento das Minas Gerais, “unindo o Centro, o Nordeste, o Sul, São Paulo e o Rio de Janeiro e, assim, favorecendo o trânsito inter-regional da língua portuguesa”; “o estabelecimento de uma sociedade urbana em grau até então nunca visto, nos espaços coloniais (o que fez surgir e crescer um segmento socioeconômico médio e letrado praticamente inexistente nos séculos anteriores)” (p.148). Assim, é somente no século XVIII que o português vai tornar-se língua de uso geral no Brasil.
Ao expor todo o processo de longa duração, determinado por fatores socioeconômicos, que faz o português suplantar as línguas gerais amazônica e paulista, o autor demole mais um dos ideologemas presentes nas histórias sociais das línguas, aquele que afirma que a vitória de uma língua sobre outra se deve à superioridade da língua vencedora. Entre nós, por exemplo, Serafim da Silva Neto é um dos difusores dessa ideia. Ele afirma: “A vitória do português não se deveu à imposição violenta da classe dominante. Ela explica-se pelo seu prestígio superior, que forçava os indivíduos ao uso da língua que exprimia a melhor forma de civilização” (p.142).
O autor debruça-se sobre a clivagem sociolinguística do português, para explicar sua gênese. Depois de estudar o que ocorreu com as línguas africanas no Brasil, conclui que a polarização sociolinguística do Brasil resulta do contato entre línguas e da adoção do português como L2 de aloglotas escravizados, bem como da posterior nativização desse modelo defectivo e da recusa dessas variedades pela elite (p.148). Ao mesmo tempo, sucedeu uma “‘lusofonização por cima’ da sociedade brasileira, garantindo, por seu turno, a relativa uniformidade do português brasileiro culto” (p.148). Assim, “não se pode falar de uma história sociopolítica única da língua portuguesa no Brasil. Numa sociedade socioeconomicamente polarizada desde o início da colonização, a língua caminhou, de fato, por duas grandes trilhas paralelas, cada qual com sua própria dinâmica” (p.150). Explanam-se, em seguida, as mudanças socioeconômicas ocorridas em especial durante o século XX que produzem uma dialética de interpenetração dessas duas trilhas, com o consequente redesenho do perfil sociolinguístico do Brasil. “Esse processo dialético é lento e complexo, mas constante e irreversível” (p.150). Embora a polarização sociolinguística e as atitudes discriminatórias continuem presentes, “são perceptíveis os muitos efeitos sobre a realidade sociolinguística do país”, “que apontam para a emergência de um certo nivelamento linguístico da sociedade brasileira” (p.150). A questão da língua dos imigrantes é analisada, mostrando que “não temos ainda muitos estudos sistemáticos das eventuais influências das línguas dos imigrantes sobre o português do Brasil” (p.159). Como se vê, o autor estuda, em toda a sua complexidade, a questão da implantação do português no Brasil e de sua heterogênea configuração.
O problema do nome da língua no Brasil merece especial atenção, pois, em nosso país, sempre se teve clara a ideia de que não se falava o português tal qual era falado na Europa, algumas vezes para exaltar essa variedade distinta da variedade europeia, muitas vezes para condená-la.
As variedades não nativas, ou seja, aquelas que emergiram “em sociedades coloniais quando a língua europeia foi apropriada basicamente como língua segunda por populações originárias do território ou para ele transpostas”, merecem análise, para mostrar que, se Portugal foi esquecido como o lugar da língua “verdadeira”, “certa”, “legítima”, “pura”, continua presente o imaginário de que essa língua mora no “território etéreo”, que “atende pelo nome” de Gramática ou de Norma Culta (p.174). Por isso, Faraco estuda detidamente o processo de construção da língua imaginária, “aquela idealização uniformizadora que paira sobre a diversidade concreta e fluida” (p.176-177). Começa analisando os “elogios” à língua portuguesa, como os escritos por João de Barros e Pero Magalhães de Gândavo, que buscavam demonstrar a “excelência” da língua portuguesa, por ser ela a mais próxima do latim, como já afirmara Camões em Os Lusíadas (I, 33), e mostrar sua superioridade em relação ao castelhano (p.178). Examina a dicionarização do português; estuda a questão da ortografia considerando desde os tratados sobre a matéria, cuja produção nos séculos XVII e XVIII foi relativamente copiosa, e as vicissitudes das reformas ortográficas em Portugal e no Brasil até o Acordo Ortográfico de 1990, em vigor apesar de todos os percalços. Finalmente, apresenta uma história da gramatização do português em Portugal e no Brasil, apontando que “o discurso gramatical se constituiu historicamente […] justamente para estatuir, em meio à variação e à mudança (que são inerentes a qualquer língua), a língua ‘verdadeira’, ‘legítima’, ‘certa’, ‘pura'” (p.200), adotando para isso ora critérios retórico-literários, ora critérios lógicos, ora critérios sociais (p.200-201). O autor termina esse capítulo perguntando “se não é chegada a hora de elaborar, na senda programática do trabalho de Celso Cunha & Lindley Cintra (1985), uma gramática ecumênica da língua portuguesa, tendo em conta a realidade do português como língua internacional e pluricêntrica” (p.225).
No segundo capítulo, denominado Rumo à lusofonia, examina-se essa entidade denominada lusofonia. A ideia de um Portugal maior que Portugal circula de diferentes maneiras desde que os portugueses saíram das fronteiras europeias ao conquistar Ceuta em 1415 (p.228). Se nos momentos de grandeza de Portugal, havia uma cultura imperial, no momento de crise e de decadência, elaboram-se ideias de grandezas futuras.
Momento fértil para o profetismo desabrido; tempo próprio para se fabular um maravilhoso Quinto Império: […] os tempos de provação estarão encerrados e o grande Império de Cristo e dos cristãos estará implantado, sob a liderança dos portugueses, cumprindo-se o destino manifesto do país, anunciado já no ‘milagre’ de Ourique (quando, antes da vitoriosa batalha contra os mouros em 1139, o próprio Cristo teria aparecido a Afonso Henriques) (p.230).
O grande ideólogo do Quinto Império foi o Padre Vieira. Fernando Pessoa formula a tese de que o Quinto Império será “um império encarnado na língua, porque não há de ser um Império material, mas cultural” (p.235). Como não há império sem imperador, Pessoa vai erigir Vieira em “Imperador da língua portuguesa”. O tópos do orgulho perpassa as formulações pessoanas, pois ele considera o português a mais rica e complexa das línguas românicas (p.239). O poeta chega a uma afirmação que virou lugar comum: “Minha pátria é a língua portuguesa”. O intelectual português Agostinho da Silva dará nova expressão a esse ideologema imperial. Foi ele o grande inspirador intelectual da CPLP (Comunidade dos Países de Língua Portuguesa).
O pensamento de Agostinho da Silva aliava, de certa forma, a nostalgia (certa imagem idealizada do passado medieval de Portugal) e a esperança mística (de um futuro de paz, fraternidade, liberdade e abundância para toda a humanidade a ser alcançado pela liderança dos povos de língua portuguesa na concretização da Era do Espírito Santo) (p.244).
Isso não seria, no entanto, tarefa do Portugal europeu, mas do Portugal maior do que Portugal, o dos cinco continentes. Reatualiza-se a ideia do Quinto Império, um Império da língua portuguesa que “só poderá surgir quando Portugal, sacrificando-se como Nação, apenas for um dos elementos de uma comunidade de língua portuguesa” (p.246). A língua portuguesa é, na obra de Agostinho da Silva, “portadora exclusiva de uma determinada cosmovisão redentora da humanidade enraizada na experiência medieval da sociedade portuguesa” (p.248). A CPLP “pode, então, ser entendida como o ponto de confluência dos dois grandes ideologemas imperiais que atravessaram a história de Portugal desde o século XVI: o político-econômico e o linguístico-cultural” (p.249).
Analisa-se a “teoria” de Gilberto Freyre sobre o lusotropicalismo. Embora reconheça que Freyre, com a perspectiva culturalista de sua obra, leva-nos a reconhecer a contribuição dos negros e dos índios para a formação da sociedade e da cultura brasileira e a repensar positivamente a questão da mestiçagem, o autor demonstra a fragilidade das teses lusotropicalistas. Na verdade, não passa de mito a ideia de que o colonialismo português foi diferente dos demais colonialismos europeus, por ter sido benigno e até amoroso, porque ele praticava uma “doce assimilação”. Para o sociólogo pernambucano,
[…] o colonialismo português criou uma grande ‘unidade de sentimento e cultura’, um grande complexo lusotropical que nasceu da miscigenação racial e cultural, um todo transnacional ou supranacional compreendendo Portugal e todas as áreas colonizadas pelos portugueses na América, África e Ásia (p.254).Freyre, sem nenhum fundamento empírico, glamouriza o colonialismo português e mesmo a escravidão. De fato, o colonialismo português, como os outros colonialismos, funda-se na
[…] dominação das terras e povos para a espoliação de suas riquezas naturais e agrícolas com base na exploração da força de trabalho da população dominada – autóctone ou transposta, o que pressupõe necessariamente uma inferiorização (de base racial) dessas populações, seja no plano ideológico (a justificar, pelo discurso, a exploração), seja no plano das ações concretas (as próprias práticas de discriminação e exploração) (p.251).Essa ideia de que os povos lusotropicais constituem uma grande comunidade é o germe do discurso da lusofonia e das justificativas para a criação da CPLP.
Já no que diz respeito à língua portuguesa, Gilberto Freyre “antecipa questões hoje presentes nos debates políticos sobre a língua, no plano nacional e internacional” (p.262), ao afirmar que o português é uma língua policêntrica. Por isso, opunha-se a qualquer purismo linguístico, defendendo a existência de uma pluralidade de normas, não dando a Portugal o privilégio de detentor da língua “verdadeira”.
Analisam-se, detidamente, as políticas (em geral, frustradas) que buscam aproximar, desde 1822, Portugal e o Brasil e que desaguam na criação da CPLP. Os oito países de língua oficial portuguesa, “apelando aos aspectos históricos, culturais e linguísticos, decidem congregar-se numa organização internacional voltada para o cumprimento de três grandes objetivos: a concertação político-diplomática, a cooperação em todos os domínios e a promoção e difusão da língua portuguesa” (p.303). A CPLP foi um projeto estratégico eminentemente português, nunca foi prioridade da política externa brasileira nem foi vista com entusiasmo pelos demais países de língua oficial portuguesa. Por isso, “não são muito alentadoras as possibilidades de a CPLP se firmar como um organismo internacional para além da retórica sentimental” (p.308). A CPLP, em quase 20 anos de existência, não passou de “uma rêverie geopolítica ou político-cultural de duvidoso sucesso” (p.311).
Chega-se então à questão da lusofonia, conceito que serviria de base, para congregar Portugal e suas ex-colônias. Esse projeto interessa primordialmente à antiga metrópole. “Seria um projeto político pós-colonial/neocolonial, uma tentativa de instauração de um poder ‘soft’, uma estratégia de continuidade de redes de dominação com outra roupagem, um espaço imaginário da nostalgia imperial” (p.327). Ele é visto com indiferença no Brasil e com suspeita nos outros países de língua oficial portuguesa. Há, no discurso da lusofonia, “uma ênfase ao papel que a língua exerce, em tese, como elemento aglutinador dos povos que a falam e daquilo que haveria de chão comum, dado pelo colonizador português, em suas respectivas culturas” (p.316). Analisam-se os diferentes conceitos, projetos e interesses a que essa palavra remete. Mostra-se que a lusofonia, ao contrário da francofonia, não se materializou como projeto político-econômico e, por isso, pretende-se um projeto linguístico-cultural. No entanto, mesmo a concepção de unidade cultural apresenta dificuldades, porque supõe uma homogeneidade dificilmente encontrável. Fala-se em traços culturais comuns, que nunca são especificados, mas são dados como evidência. O que se exalta são valores abstratos. Talvez o único ponto em que se pudesse falar de uma ação conjunta da CPLP seria a promoção da língua portuguesa. No entanto, essa promoção é totalmente divergente. Ademais, “por lhe faltar uma visão estratégica da língua e da cultura, o Brasil não assumiu até agora papel de maior protagonismo na gestão e promoção da língua, optando antes por certo imobilismo” (p.347).
Entretanto, o autor não é totalmente pessimista em relação à cooperação entre os países de língua oficial portuguesa. No breve terceiro capítulo, intitulado Alguma esperança para o mundo da língua portuguesa?, Faraco, depois de expor a situação do português no mundo e os problemas que os países de língua portuguesa têm no que se refere à questão do idioma, esboça um “programa” para a ação conjunta dos países de língua oficial portuguesa na implementação de uma política mais aguerrida de difusão do português. O livro termina com o seguinte parágrafo:
O efetivo destaque internacional futuro da língua portuguesa na galáxia das línguas dependerá de as sociedades que a falam melhorarem substancialmente seus índices socioeconômicos e culturais; sofisticarem suas economias; desenvolverem seus recursos de “reserva gráfica” (no sentido de Houaiss, 1985: 149-150 – um grande dicionário comum, os glossários científicos e técnicos, um vocabulário ortográfico comum, a literatura estética e a bibliografia geral); e, por fim, se projetarem como referência política internacional de um conjunto de valores fundamentais da Humanidade tais como a paz, a democracia, a justiça, a distribuição equitativa da riqueza e o equilíbrio ambiental. Afinal, uma língua não adquire peso e prestígio no vazio (p.367).
Como se nota por essa exposição dos conteúdos tratados na História sociopolítica da língua portuguesa, trata-se de uma obra fundamental não só para os que se dedicam aos estudos da língua portuguesa ou se interessam pelas questões da linguagem, mas também para todos os estudiosos das ciências humanas, pois ela não examina apenas questões relativas à constituição e difusão da língua, mas aborda também o problema da colonização portuguesa, as relações entre a ex-metrópole e as ex-colônias, o papel das línguas nas relações internacionais de poder e assim sucessivamente. O autor mobiliza uma vasta bibliografia para tratar de todos esses temas de uma maneira bastante singular, pois se propõe desconstruir mitos e ideologemas, corrigir interpretações errôneas, demolir lugares-comuns, desfazer conclusões ufanistas, retificar explicações anacrônicas. E cumpre o que promete. Por isso, essa obra vai ocupar um lugar especial na bibliografia das ciências humanas do Brasil em geral e dos estudos linguísticos em particular. Cabe destacar ainda que seu alcance vai muito além da matéria tratada, pois a obra de Faraco tem uma dimensão teórica não negligenciável para o tratamento da história das línguas. Por tudo isso, é uma obra indispensável e imperdível.
1SAUSSURE, F. Curso de linguística geral. Org. Charles Bally, Albert Secheyaye; com a colaboração de Albert Riedlinger. Trad. Antônio Chelini, José Paulo Paes, Izidoro Blikstein. São Paulo: Cultrix, 2006.
José Luiz Fiorin – Universidade de São Paulo – USP, São Paulo, São Paulo, Brasil; jolufi@uol.com.br.
Bakhtin and Theatre: Dialogues with Stanislavsky, Meyerhold and Grotowski – MCCAW (B-RED)
MCCAW, Dick. Bakhtin and Theatre: Dialogues with Stanislavsky, Meyerhold and Grotowski [Bakhtin e o teatro: diálogos com Stanislavsky, Meyerhold and Grotowski]. Abingdon: Routledge, 2015. 264p. Resenha de GONÇALVES, Jean Carlos. Bakhtiniana – Revista de Estudos do Discurso, v.11 n.3 São Paulo Sept./Dec. 2016.
Bakhtin and Theatre: Dialogues with Stanislavsky, Meyerhold and Grotowski foi escrito por Dick McCaw, professor de Drama e Teatro no Departamento de Drama e Teatro – Práticas de Performance da Royal Holloway, University of London, tendo sido publicado em 2015 em língua inglesa, e ainda sem tradução para o Português.
Fruto de uma iniciativa inédita, a obra examina as conexões entre o pensamento do autor russo Mikhail Bakhtin (1895-1975) e a produção teatral de diretores e pesquisadores teatrais contemporâneos de Bakhtin: Konstantin Stanislavsky (1863-1938), Vsevelod Meyerhold (1879-1940) e Jerzy Grotowski (1933-1999).
Esse estudo, extremamente pertinente e relevante, não só para aqueles que pesquisam e/ou se interessam pelos estudos teatrais, mas para todos que buscam conhecer e aprofundar seus conhecimentos sobre a obra de Bakhtin, oferece muito mais que um apanhado de referências sobre a aproximação do filósofo russo com a produção teatral de sua época. Trata-se da apresentação de um detalhado esboço sobre as relações entre técnicas, conteúdo e forma (estética) do teatro à luz dos estudos da filosofia da linguagem, elaborados por Bakhtin e o Círculo.
De um encontro quase acidental, durante um processo de pesquisa para uma peça dos Medieval Players (1981-1992), companhia teatral de que McCaw fazia parte, se estabelece entre o pesquisador e os estudos bakhtinianos uma profícua e duradoura relação que deu origem à sua tese de doutorado e posteriormente ao presente livro.
Bakhtin and Theatre discute a produção de três diretores/pedagogos que estavam constantemente questionando a si mesmos e uns aos outros sobre a natureza do teatro e do trabalho do ator. Embora Bakhtin mencione Stanislavsky e arrisque alguns apontamentos sobre a interpretação teatral em sua obra, seus livros não fazem qualquer referência a Meyerhold ou Jerzy Grotowski. Por sua vez, os escritos dos três profissionais de teatro examinados neste estudo não apresentam menção à teoria bakhtiniana.
A maior parte do argumento de Bakhtin and Theatre é traçada a partir de preocupações levantadas na produção intelectual inicial de Bakhtin, especialmente no que se refere aos textos Para uma filosofia do ato responsável (Tradução aos cuidados de Valdemir Miotello e Carlos Alberto Faraco. São Carlos: Pedro e João Editores, 2010) e O autor e o herói na atividade estética (in: Estética da criaçã o verbal. 4. ed. Trad. Paulo Bezerra. São Paulo: Martins Fontes, 2003, p.3-192), escritos entre 1920 e 1924. McCaw defende que esses textos, quando compreendidos como uma “filosofia por outros meios” podem subsidiar e ampliar questões sobre a personagem e a empatia, reverberando na aprendizagem e no desenvolvimento do ator.
McCaw questiona, por exemplo, se a noção de evento de Bakhtin pode ter alguma conexão com o conceito de circunstâncias dadas de Stanislavsky. Conceito este que se interessa, entre outros aspectos, pela criação da personagem teatral em uma dimensão expandida, ao considerar sua exterioridade como constitutiva da composição cênica (incluindo aí desde marcas discursivo-enunciativas de identidade como idade, classe social e gênero até perspectivas de ordem mais técnica como figurino, maquiagem e espaço cenográfico).
No que diz respeito à iniciativa de McCaw de investigar possíveis aproximações com um campo de estudos que não foi amplamente tratado na produção intelectual bakhtinana, é bom destacar o reconhecimento da obra por Caryl Emerson (Princeton University/EUA), que a aponta como um livro de referência que insere Bakhtin nas artes do espetáculo ao demonstrar como seu pensamento pode ser vivo e criativo quando o lugar privilegiado de reflexão é o teatro1.
O livro é dividido em seis capítulos, sendo que o primeiro fornece uma visão do pensamento de Bakhtin; os três capítulos seguintes examinam questões teatrais que surgem a partir de um diálogo entre os primeiros escritos de Bakhtin e Stanislavsky; os dois últimos capítulos exploram a forma como estas questões são desenvolvidas, reformuladas e respondidas por Meyerhold e Grotowski.
Depois de considerar como inegável a aproximação entre Bakhtin e os estudos da cena, cada ensaio traça a evolução cronológica do seu pensamento, destacando os principais conceitos associados a cada período de escrita. A primeira parte é visivelmente dedicada à discussão de seus primeiros manuscritos, que fornecem grande parte do material conceitual que embasa teoricamente todas as reflexões presentes ao longo do livro.
O primeiro capítulo – Bakhtin e o teatro – apresenta as obras pelas quais Bakhtin é mais conhecido, destacando-se aí o seu estudo sobre Dostoiévski. Também se constituem como alvo de reflexão algumas noções que percorrem a trajetória bakhtiniana, por meio de uma visita, breve, porém pontual, aos textos O discurso no romance (in: Questões de literatura e de estética – A teoria do romance. Trad. Aurora F. Bernardini et al. São Paulo: HUCITE/UNESP, 1993, p.71-210), escrito em 1934-35, Formas de tempo e de cronotopo no romance (in: Questões de literatura e de estética – A teoria do romance. Trad. Aurora F. Bernardini et al. São Paulo: HUCITEC/UNESP, 1993, p.211-362), de 1937-38 e revisto pelo autor em 1973, e A cultura popular na Idade Média e no Renascimento: O contexto de François Rabelais (Trad. Yara Frateschi Vieira. São Paulo: Hucitec; Brasília: Ed. da Universidade de Brasília, 1987), sua tese de doutorado, de 1940, publicada em 1965.
No segundo capítulo – Tempo e espaço no romance e no teatro – McCaw se debruça sobre a questão da ação na relação com o espaço, mais especificamente ao se perguntar como uma ação pode ser experimentada pela pessoa que a executa. É na centralidade da filosofia do ato, como discutida por Bakhtin, que o texto se encaminha para discussões sobre o tempo, o espaço e a significação nos universos bakhtiniano e stanislavskyano.
O Capítulo 3 – Atuação psicofísica – examina como a abordagem de Stanislavsky para a formação do ator pode se ampliar a partir das ideias de Bakhtin sobre a ação incorporada, ou seja, como a relação entre mente e corpo na experiência do sujeito no mundo (vida cotidiana) interessa, para além de uma análise de cunho mais literário, ao campo de estudo das artes do corpo e da performance.
O quarto capítulo – Criando uma personagem – traz o tema da autoria em Bakhtin e sua contribuição para a investigação da interpretação do ator. Por meio de uma abordagem situada na reflexão bakhtiniana sobre eu e o outro, o texto estabelece relações com a noção de irrepetibilidade, aferindo alguns questionamentos a respeito do espetáculo teatral como evento único e singular, o que lhe confere o status de arte efêmera e, ao mesmo tempo, (re)apresentada por noites seguidas para diferentes públicos e em diferentes espaços, resultando em diversas possibilidades de produção, circulação e recepção de sentidos, tanto na/da própria obra cênica e seu acabamento sempre provisório, quanto nos/dos inúmeros aspectos subjetivos que interferem na atuação e na apreciação cênicas.
No quinto capítulo – Meyerhold, a Revolution in the Stage – o autor aborda questões sobre como a ação do outro pode ser vivida por mim e como nós (eu e o outro) podemos lidar com o valor estético da ação. O autor afirma que uma possível conexão entre Bakhtin e Meyerhold vem da referência de ambos à Commedia dell’Arte. Foi a Commedia dell’Arte que levou Meyerhold a ultrapassar a fase de suas produções simbolistas de ordem mais estáticas, e foi o mesmo referencial de imagens populares que levou Bakhtin a um discurso filosófico denso e significativo sobre a obra de Rabelais.
No capítulo 6 – Grotowski, Beyond Theater – McCaw referencia a forte influência do trabalho de Stanislavsky e Meyerhold, sugerindo que, se Grotowski começou entusiasmado pelo Teatro Total de Meyerhold, ele terminou com um Teatro do Ato Total – O seu Teatro Pobre (expressão utilizada para ressaltar a importância de uma concepção de encenação desvinculada de recursos cênicos, compreendidos por Grotowski como acessórios desnecessários ao fazer teatral). A leitura desse capítulo coloca o leitor em contato com a exigência de Grotowski por um evento de significação, que ocorre em tempo e lugar reais, mesmo que protegido pela aura da ficção e para o qual não há álibi, ou seja, está dada a aproximação com a perspectiva de Bakhtin, para quem o sujeito, ao agir, está imerso em um ato responsivo do qual não pode se esquivar.
Nas conclusões do livro, o autor defende seu objetivo de mostrar que as questões sobre a atuação, e mais amplamente sobre teatro, tocam em temas e processos que são fundamentais para a nossa compreensão de nós mesmos e das outras pessoas. Bakhtin oferece duas explicações de tempo e espaço: a primeira é uma descrição fenomenológica da experiência de ser como corporificação, isto é, só é possível ser no tempo e no espaço. Mais tarde ele iria elaborar uma teoria dos gêneros ou formas de tempo e espaço em materialidades diversas. McCaw argumenta que a primeira é, particularmente, útil e aplicável à arte do ator, enquanto a segunda tem relação direta e uma contribuição inquestionável para as teorias teatrais e suas especificidades.
Para concluir, Dick McCaw afirma que as ideias de Bakhtin sobre o tempo e o espaço interessam às artes da cena porque obrigam um estudante de teatro a perceber as diferentes formas de vida, criação e compreensão do sentido de se fazer teatro, que não é o mesmo de se dedicar à escrita ou à crítica do romance. O autor adverte ainda que, mesmo encontrando na obra bakhtiniana alguns poucos apontamentos sobre atuação, estilos teatrais e arquitetura cênica, a produtividade de aplicação das teorias de Bakhtin diretamente ao campo das práticas teatrais precisa ser cautelosa, especialmente no que se refere à ética e à estética da personagem, ou seja, nem toda acepção de personagem em Bakhtin pode ser perfeitamente direcionada à esfera da criação cênica, com suas minudências e características próprias.
A relevância da obra Bakhtin and Theatre – Dialogues with Stanislávsky, Meyerhold and Grotowski destaca-se no cenário da pesquisa em teatro e linguagem, sobretudo, pelo estilo didático e aprofundado que seu autor escolhe para fazer imersões pontuais e certeiras nos temas abordados ao longo do livro. Na difícil tarefa de se comunicar com leitores e pesquisadores de Bakhtin e do teatro, o livro é de caráter ímpar e instigante, por proporcionar um olhar refinado e sofisticado para obra e vida de três ícones do teatro do século XX. Desse modo, as inovações de Stanislávsky, Meyerhold e Grotowski sobre as formas de fazer/praticar/pensar/teorizar/treinar/vivenciar o teatro na contemporaneidade, a partir de suas pesquisas e experimentos, ganham, na relação com a perspectiva bakhtiniana, pelas mãos de Dick McCaw, outro approach que certamente enriquecerá os referenciais bibliográficos de todo pesquisador que pretenda espiar e descobrir o teatro por um enfoque dialógico.
1A esse respeito, cf. EMERSON, C. Bakhtin and the Actor (with constant reference to Shakespeare) https://www.academia.edu/21884973/Bakhtin_and_the_actor_with_constant_reference_to_Shakespeare
Jean Carlos Gonçalves – Universidade Federal do Paraná – UFPR; Curitiba, Paraná, Brasil; PUC-SP/CNPq; jeancarllos@ufpr.br
Marcelo Cabarrão Santos – Secretaria de Estado da Educação – SEED; Curitiba, Paraná, Brasil; celocabarrao@gmail.com.
Dialogue with Bakhtin on Second and Foreign Language Learning – HALL et. al. (B-RED)
HALL, J.; VITANOVA, G.; MARCHENKOVA, L. (Eds.). Dialogue with Bakhtin on Second and Foreign Language Learning: New Perspectives [Diálogos com Bakhtin a respeito da aprendizagem de segunda língua ou de língua estrangeira: novas perspectivas]. Mahwah, New Jersey; London: Lawrence Erlbaum Associates, 2005. 241 p. Resenha de: MELO JÚNIOR, Orison Marden. Bakhtiniana – Revista de Estudos do Discurso, v.11 n.2 São Paulo May./Aug. 2016.
A obra Dialogue with Bakhtin on Second and Foreign Language Learning: New Perspectives [Diálogo com Bakhtin a respeito da aprendizagem de segunda língua e de língua estrangeira: novas perspectivas] – doravante Dialogue with Bakhtin – traz, em seu título, dois temas de grande interesse para os estudos da Linguística Aplicada: a abordagem dialógico-discursiva da linguagem apresentada e discutida pelo Círculo (de Bakhtin) e os estudos voltados ao processo de ensino-aprendizagem de uma segunda língua ou de uma língua estrangeira1. A preposição with [com] – Dialogue with Bakhtin – posiciona a obra dentro do escopo real de diálogo entre os temas, tendo em vista não haver, nos escritos do Círculo, um ensaio específico sobre o ensino de línguas estrangeiras, não permitindo que esse Dialogue with Bakhtin [Diálogo com Bakhtin] fosse apresentado como Bakhtin’s Dialogue [Diálogo de Bakhtin]. Essa observação torna, portanto, a obra, mesmo publicada em 2005, bastante relevante para as pesquisas no campo do discurso, em especial a Análise Dialógica do Discurso (ADD), por perceber a amplitude dos seus estudos, chegando ao campo do ensino de línguas, bem como para as pesquisas sobre o ensino de línguas (segunda e/ou estrangeira), por ser impactada pela concepção (dialógica) de linguagem do Círculo. É importante a lembrança, entretanto, de que Bakhtin discorre sobre questões de estilística no ensino de língua materna (russo) em um ensaio que, traduzido para o português por Sheila Grillo e Ekaterina Américo, foi publicado pela Editora 34 em 2013. Segundo Beth Brait, em sua apresentação à obra, “Bakhtin também se preocupava com um ensino [ensino da língua russa no ensino médio] que, tratando abstratamente a língua, não lograva de fato ensinar seu comportamento vivo aos alunos” (2013, p.9-10)2.
Dialogue with Bakhtin é organizado por Joan Kelly Hall, da Pennsylvania State University, Gergana Vitanova, da University of Central Florida, and Ludmila Marchenkova, da Ohio State University, ou seja, por três pesquisadoras de diferentes universidades que, em um encontro da American Association of Applied Linguistics [Associação Americana de Linguística Aplicada], em 2002, mostraram interesse em compartilhar os seus estudos sobre a filosofia de linguagem de Bakhtin e as implicações dessa concepção na aprendizagem de línguas. Ao ser publicada em 2005, a obra tornou-se, portanto, a primeira, nos Estados Unidos, a explorar a relevância dos estudos bakhtinianos para as pesquisas e as práticas pedagógicas voltadas à aprendizagem de segunda língua e/ou língua estrangeira.
Com 241 páginas, Dialogue with Bakhtin é dividido em dois blocos, sendo o primeiro o maior: enquanto a primeira parte do livro (p.9-169), intitulada Investigations into Contexts of Language Learning and Teaching [Investigações em contextos de aprendizagem e ensino de língua], é composta de sete capítulos, em que cada um apresenta um estudo de caso específico, a segunda parte (p.170-231), intitulada Implications for Theory and Practice [Implicações para a teoria e prática], traz três capítulos de discussão teórica (Capítulo 9: Language, Culture, and Self: The Bakhtin-Vygotsky Encounter [Língua, cultura e o indivíduo: um encontro entre Bakhtin e Vygotsky], Capítulo 10: Dialogical Imagination of (Inter)cultural Spaces: Rethinking the Semiotic Ecology of Second Language and Literacy Learning [Imaginação de espaços (inter)culturais: repensando a ecologia semiótica da aprendizagem de segunda língua e de letramento] e Capítulo 11: Japanese Business Telephone Conversations as Bakhtinian Speech Genre: Applications for Second Language Acquisition [Conversas de negócios ao telefone no Japão como gênero do discurso bakhtiniano: aplicação na aquisição de segunda língua]. É importante a menção, no entanto, de que o livro abre com um capítulo introdutório, escrito pelas organizadoras. Intitulado Introduction: Dialogue with Bakhtin on Second and Foreign Language Learning [Introdução: diálogo com Bakhtin a respeito da aprendizagem de segunda língua e de língua estrangeira], o texto se inicia com uma discussão sobre os estudos voltados à aprendizagem de língua e sobre a influência que a visão formalista exerceu sobre essa área do conhecimento. Diante das limitações impostas por essa perspectiva teórica no campo da linguagem (o que inclui o ensino de línguas estrangeiras), as autoras apresentam a contribuição de Bakhtin para a compreensão de um novo conceito de linguagem, que, deixando de ser entendida como um conjunto de sistemas fechados de formas normativas, é apresentada como “constelações dinâmicas de recursos socioculturais que estão fundamentalmente vinculados aos seus contextos sociais e históricos” (p.2)3. Com base nessa concepção de linguagem, apresentam, ainda que rapidamente, os conceitos de enunciado, gênero do discurso e dialogismo, e apontam para duas implicações da assunção dessa perspectiva para o entendimento do processo de ensino-aprendizagem de uma segunda língua e/ou língua estrangeira, ou seja, a compreensão (por professores e alunos) de que (1) a língua é viva e de que (2) a aprendizagem acontece na interação social (e não na cognição individual do aluno).
Por ser uma obra voltada às implicações da teoria dialógica no campo do ensino de segunda língua e língua estrangeira, Hall, Vitanova e Marchenkova compilam sete pesquisas empíricas na primeira parte do livro. Como não há uma explicação sobre a ordenação dos capítulos, faremos a sua breve apresentação segundo a própria distinção entre ensino de segunda língua e de língua estrangeira, reconhecendo que outros critérios poderiam ser adotados, como o nível de escolaridade dos alunos-sujeitos de pesquisa ou os conceitos da ADD utilizados. Quase todas as pesquisas estão relacionadas com o ensino de inglês, quer como segunda língua (English as a Second Language – ESL) quer como língua estrangeira (English as a Foreign Language – EFL). Apenas uma voltou-se ao estudo de suaíle em uma universidade americana, ou seja, ao suaíle como língua estrangeira (Swahili as a Foreign Language – SFL).
Os capítulos relacionados a ESL são os capítulos 2, 3, 4, e 8. O capítulo 2, intitulado Mastering Academic English: International Graduate Students’ Use of Dialogue and Speech Genres to Meet the Writing Demands of Graduate School [O domínio do inglês acadêmico: o uso do diálogo e dos gêneros do discurso por alunos estrangeiros de pós-graduação a fim de suprir as exigências da escrita acadêmica em cursos de pós-graduação], é o resultado de uma pesquisa feita por Karen Braxley da University of Georgia. Concentrando-se, em especial, nos conceitos de dialogismo e gêneros do discurso, ela busca ajudar cinco alunas de pós-graduação a apropriar-se dos gêneros acadêmicos escritos.
No capítulo 3, intitulado Multimodal Representations of Self and Meaning for Second Language Learners in English-dominant Classrooms [Representações multimodais do ser e do significado para aprendizes de segunda língua em salas de aula em Língua Inglesa], Ana Christina DaSilva Iddings da Vanderbilt University, John Haught e Ruth Devlin, ambos da University of Nevada, analisam, apoiados no conceito de dialogismo e na sua relação com o heterodiscurso e a noção de sentido, as relações entre signo, significado e língua estabelecidas por duas alunas estrangeiras, uma da Tailândia e a outra de Cuba, recém-chegadas aos EUA, em uma sala de aula do terceiro ano do ensino fundamental. Escolhemos usar o termo heterodiscurso (em vez de plurilinguismo ou heteroglossia) conforme apresentado por Paulo Bezerra em sua tradução do ensaio de Bakhtin O discurso no romance. Para Bezerra (2015), o termo heterodiscurso “traduz a estratificação interna da língua e abrange a diversidade de todas as vozes socioculturais em sua dimensão histórico-antropológica” (p.247)4.
O capítulo 4, Dialogic Investigations: Cultural Artifacts in ESOL Composition Classes [Investigações dialógicas: artefatos culturais em aulas de redação de inglês como segunda língua], apresenta a pesquisa de Jeffery Lee Orr da University of Georgia feita com cinco alunos estrangeiros no primeiro ano de curso universitário. Com base no conceito de dialogismo e na sua relação com significado e ideologia, o pesquisador busca demonstrar a seus alunos a natureza dialógica da língua, contribuindo dessa forma para o seu desenvolvimento ideológico.
No capítulo 8, Authoring the Self in a Non-Native Language: A Dialogical Approach to Agency and Subjectivity [Ter autoria de uma língua não nativa: uma abordagem dialógica aos conceitos de agente e subjetividade], Gergana Vitanova, da University of Central Florida, busca analisar, a partir de conceitos de agência e autoria, como cinco imigrantes do leste europeu nos EUA podem ter autoria dos seus discursos em uma segunda língua e como podem exercer um papel de agente. Essa pesquisa é apresentada de forma completa na obra Authoring the Dialogic Self [Dando autoria ao ser dialógico], publicada em 20105.
Os capítulos relacionados à língua estrangeira são o 5, 6 e 7, sendo o 5 e 6 a EFL (inglês como língua estrangeira) e o 7, a SFL (suaíle como língua estrangeira). No capítulo 5, intitulado Local Creativity in the Face of Global Domination: Insights of Bakhtin for Teaching English for Dialogic Communication [Criatividade local em face da dominação global: insights de Bakhtin no ensino de inglês para a comunicação dialógica], Angel M. Y. Lin, da City University of Hong Kong, e Jasmine C. M. Luk, da Hong Kong Institute of Education, a partir do conceito de dialogismo e da sua relação com o heterodiscurso e a criatividade linguística, investigam como a prática do ensino de língua inglesa reflete e refrata a hegemonização da língua no país e como os professores podem recriar a sua ação pedagógica a fim de auxiliar os alunos a por em diálogo a língua inglesa e os estilos e as variações linguísticas do seu idioma local e a usar a própria criatividade linguística deles. O texto, muito mais reflexivo do que empírico (apesar da amostragem do trabalho feito com 40 alunos do ensino médio em Hong Kong), chama a atenção para os currículos escolares que necessitam promover o acesso dos alunos ao heterodiscurso social, dando-lhes espaço para tornar o inglês “uma língua própria ao povoá-la com seus significados e vozes” (p.95)6, permitindo, dessa forma, “o enriquecimento do processo de ensino-aprendizagem do inglês como uma língua para a comunicação globalizada e para o questionamento de temas locais e globais que concernem os diferentes papéis e posições das diferentes formas de uso do inglês no mundo” (p.96)7. Esse posicionamento das pesquisadoras, na contramão de posições hegemônicas da língua inglesa e de seu ensino, remete ao conceito de World English [inglês mundial], apresentado por Kanavillil Rajagopalan, em seu artigo The Concept of ‘World English’ and its Implications for ELT [O conceito de inglês mundial e suas implicações no ensino de língua inglesa]8. Para o autor, “falar inglês é simplesmente outra maneira de chamar a atenção ao fato de que ele [o World English] é uma arena onde interesses e ideologias conflitantes estão constantemente em jogo” (p.113)9.
O capítulo 6, ainda no campo de EFL, é intitulado Metalinguistic Awareness in Dialogue: Bakhtinian Considerations [Consciência metalinguística em diálogos: considerações bakhtinianas]. O texto apresenta a pesquisa feita por Hannele Dufva e Riikka Alanen, da University of Jyvaskyla, com 20 crianças entre 7 e 12 anos em uma escola de ensino fundamental na Finlândia. As pesquisadoras, com base nos conceitos de dialogismo de Bakhtin e de mediação de Vygotsky, visam a investigar a consciência metalinguística (na ação) de alunos e a sua relação com a aprendizagem de língua estrangeira.
No último capítulo a ser apresentado, o 7º., intitulado “Uh uh no hapana”: Intersubjectivity, Meaning, and the Self [“Uh uh no hapana”: intersubjetividade, significado e o ser], Elizabeth Platt, da Florida State University, investiga, com base no conceito de dialogismo e da sua relação com intersubjetividade e a noção de sentido, como duas alunas estrangeiras em um curso de pós-graduação produzem sentido a partir do conhecimento limitado que tinham do suaíle (SLE), língua-alvo das aulas, e como construiriam a sua própria identidade de aprendizes dessa língua.
Dialogue with Bakhtin [Diálogo com Bakhtin] é, portanto, não apenas um diálogo com a concepção de linguagem proposta pelo Círculo (de Bakhtin), mas um diálogo entre pesquisas e pesquisadores de diferentes universidades em diferentes partes do mundo que, ao se apropriarem total ou parcialmente do aporte teórico do Círculo ou ao promoverem um encontro de Bakhtin com outros autores, refletem sobre o ensino de segunda língua ou língua estrangeira. A riqueza da obra fica estabelecida pelo fato de ela trazer não uma “aplicação” dos conceitos para a área do ensino de línguas, mas de promover um diálogo entre as duas áreas, permitindo que o ensino seja impactado por essa concepção de linguagem, que vê a interação verbal como a sua realidade fundamental (BAKHTIN/VOLOCHÍNOV, 2010, p.127)10.
Por conseguinte, o conceito de dialogismo, ou de concepção dialógica da linguagem, foi bastante recorrente entre os pesquisadores. No entanto, ao trazerem Volochínov para o centro de suas discussões por meio da obra Marxismo e filosofia da linguagem (2010), apenas Dufva e Alanen, no capítulo 6, na seção Discussion [Discussão], apontam para o fato de o autor russo ter ventilado a questão da aprendizagem/assimilação de língua, que, para ele, só acontece quando os indivíduos “penetram na corrente da comunicação verbal” (BAKHTIN/VOLOCHÍNOV, 2010, p.111)11. Entretanto, em nenhum momento, nem Dufva e Alanen, nem os outros pesquisadores apresentam a discussão que Volochínov desenvolve sobre a diferença entre sinal e signo, sendo sinal o conteúdo imutável, abstraído do domínio da ideologia, e a relação desses conceitos com a aprendizagem de línguas. Segundo Volochínov (2010, p.97), quando a assimilação de uma língua estrangeira se encontra no nível da sinalidade (como sinal), do mero reconhecimento, “a língua ainda não se tornou língua. A assimilação ideal de uma língua dá-se quando o sinal é completamente absorvido pelo signo e o reconhecimento pela compreensão”12. O próprio Volochínov traz uma nota de rodapé em que discorre, de forma abreviada, sobre métodos eficazes de ensino de línguas vivas estrangeiras e assevera que “um método eficaz e correto de ensino prático exige que a forma seja assimilada não no sistema abstrato da língua […], mas na estrutura concreta da enunciação, como um signo flexível e variável” (BAKHTIN/VOLOCHÍNOV, 2010, p.98)13. Acreditamos que essa discussão enriqueceria a obra, pois permitiria que seus leitores compreendessem que, apesar de não haver um ensaio específico sobre o ensino de línguas (estrangeiras), o tema não passou despercebido do Círculo, chegando a ser formalmente discutido por Bakhtin (2013)14 e de forma mais abreviada por Volochínov (2010)15.
Por fim, Dialogue with Bakhtin [Diálogo com Bakhtin] é uma grande contribuição para a Linguística Aplicada no que tange ao diálogo feito com Bakhtin a respeito da aprendizagem de segunda língua ou de língua estrangeira. Esperamos, portanto, que a obra seja mais divulgada em nosso país, tendo em vista o crescimento do número de pesquisadores da área de ensino de línguas estrangeiras que passam a adotar a perspectiva dialógica da linguagem nas suas práticas pedagógicas, bem como de analistas do discurso que ampliam o seu escopo de pesquisa para discursos voltados ao ensino de línguas.
1É necessário se estabelecer a diferença entre a aprendizagem de segunda língua e de língua estrangeira. Segundo o Longman Dictionary of Language Teaching & Applied Linguistics (2010), apesar de aprendizagem segunda língua ser um termo mais genérico, ao ser contrastado com o de língua estrangeira, passa a ter um sentido mais específico: diferentemente da aprendizagem de língua estrangeira, a aprendizagem de segunda língua acontece em um espaço onde essa língua exerce um papel importante de comunicação, comércio, escolaridade, etc. Como exemplo dessa definição, poderíamos citar as seguintes situações: ao fazermos, como falantes do português brasileiro, um curso de inglês em uma universidade estadunidense, o inglês é estudado (e abordado) como segunda língua. Entretanto, se estudarmos inglês em uma escola de idiomas ou em um curso de Letras-Inglês no Brasil, como o oferecido pela UFRN, o inglês é estudado (e abordado) como língua estrangeira. [RICHARDS, J.; SCHMIDT, R. Longman Dictionary of Language Teaching & Applied Linguistics. 4.ed. Harlow, England: Pearson Education, 2010.]
2BAKHTIN, M. Questões de estilística no ensino de língua. Trad. Sheila Grillo e Ekaterina Américo. São Paulo: Editora 34, 2013.
3No original: “dynamic constellations of sociocultural resources that are fundamentally tied to their social and historical contexts”.
4BAKHTIN, M. Teoria do romance I: a estilística. Tradução, prefácio, notas e glossário de Paulo Bezerra; organização da edição russa de Serguei Botcharov e Vadim Kójinov. São Paulo: Editora 34, 2015.
5VITANOVA, G. Authoring the Dialogic Self: Gender, Agency and Language Practices. Amsterdam; Philadelphia: John Benjamins Publishing Co., 2010.
6Texto no original: “a language of their own by populating it with their own meanings and voices”.
7Texto no original: “to enrich the learning of English as a language for globalized communication and for interrogating both local and global cultural issues revolving around the differential roles and statuses of different ways of using English in our world”.
8RAJAGOPALAN, K. The Concept of ‘World English’ and Its Implications for ELT. ELT Journal, vol. 58, n. 2, p.111-117, 2004. Disponível em: [http://eltj.oxfordjournals.org/content/58/2/111.full.pdf+html]. Acesso em: 27 fev. 2016.
9Texto no original: “to speak of English as a world language is simply another way of drawing attention to the fact that it is an arena where conflicting interests and ideologies are constantly at play”.
10BAKHTIN, M./VOLOCHÍNOV. Marxismo e filosofia da linguagem: problemas fundamentais do método sociológico na ciência da linguagem. Trad. Michel Lahud e Yara F. Vieira. 14. ed. São Paulo: HUCITEC, 2010.
11Para referência, ver nota de rodapé 10.
12Para referência, ver nota de rodapé 10.
13Para referência, ver nota de rodapé 10.
14Para referência, ver nota de rodapé 2.
15Para referência, ver nota de rodapé 10.
Orison Marden Bandeira de Melo Júnior – Universidade Federal do Rio Grande do Norte – UFRN, Natal, RN, Brasil; junori36@uol.com.br
Dialogismo: teoria e(m) prática – BRAIT; MAGALHÃES (B-RED)
BRAIT, Beth; MAGALHÃES, Anderson Salvaterra (Orgs.). Dialogismo: teoria e(m) prática. São Paulo: Terracota, 2014. 322 p. Resenha de: WALL, Antony. Um Bakhtin bem jovem. Bakhtiniana – Revista de Estudos do Discurso, v.11 n.1 São Paulo Jan./Apr. 2016.
Organizado por Beth Brait e Anderson Salvaterra Magalhães, a recente obra Dialogismo: teoria e(m) prática, recebida com muito entusiasmo, constitui uma vibrante e muito bem vinda adição aos estudos bakhtinianos internacionais. As dezesseis contribuições publicadas nesse livro bem editado, de 322 páginas (acompanhadas de um pequeno prefácio de Carlos Alberto Faraco e uma introdução de três páginas dos organizadores), exemplificam a presente jovialidade dos estudos bakhtinianos no Brasil, que se apresentam com uma verve interdisciplinar e uma energia intelectual revigoradora.
De várias formas, esta obra pode ser lida como uma excelente introdução à área – em constante crescimento – dos estudos bakhtinianos desenvolvidos no Brasil atualmente (em particular, em São Paulo). O alcance disciplinar dos ensaios é amplo, compreendendo as seguintes áreas: Análise do discurso, Estudos de textos e imagens, Estudos de tradução, Estudos de comunicação e mídia, Estudos teatrais, Educação, Estudos literários, História da arte. Em sua maioria, esses trabalhos estão embasados em uma premissa teórica interessante, ou seja, a de que, para se revitalizar a noção bakhtiniana de dialogismo, seria necessário fazer conhecer os diálogos implícitos entre autores de ensaios acadêmicos que trabalham em vários campos das disciplinas das Humanidades e das Ciências Sociais e seus objetos de estudo discursivamente constituídos. O dialogismo, discutido de forma tão convincente na introdução, é, por conseguinte, melhor entendido como sendo o criador de conexões e inter-relações humanas. Segundo os editores afirmam nas páginas iniciais, engajamo-nos “em relações graças à linguagem, por meio da linguagem” (p.14). Propõe-se, portanto, uma metodologia dialógica para ser seguida em disciplinas voltadas à Arte, segundo a qual não é mais possível considerar “objetos” de estudo sem vida, compreendidos de fora: o ponto de vista deve ser o de perguntas e respostas múltiplas que emanam de ambos os lados da díade pesquisador-pesquisa; ou seja, não parte somente da ótica do acadêmico que investiga e escreve, mas da perspectiva do material vivo com o qual ele se engaja. Dessa forma, o pesquisador é obrigado a participar da interação intervocal e interpessoal, em outras palavras em diálogo (p.14).
Logo nas primeiras páginas, o jogo com palavras proposto pelo subtítulo – teoria e(m) prática – na sobrecapa, permite que seja sentida sua influência semântica sobre a forma como a maioria dos capítulos é concebida e sobre os “objetos de estudo” a serem investigados. De forma significativa, o teórico Bakhtin e o seu Círculo são muito mais do que uma mera fachada nesses ensaios, são muito mais do que fontes citadas perifericamente. De forma notável, os autores russos estão virtualmente presentes em cada uma das contribuições publicadas e, no seu interior, fundamentam as discussões sobre o cerne dos problemas desenvolvidos. Todos os autores mostram um acentuado conhecimento dos recentes estudos sobre Bakhtin e o seu Círculo, publicados no mundo lusófono, mas também – e de forma muito impressionante – no mundo acadêmico anglo-americano, na Rússia e na França. Virtualmente, todos os importantes conceitos bakhtinianos são trazidos à tona em pelo menos um, se não em mais de um, dos ensaios aqui publicados. Além do “dialogismo”, conforme anunciado no título da obra, há uma discussão bastante produtiva sobre responsabilidade, gênero, discurso, ideologia, o grande tempo, cronotopo, linguagem escrita e oral. Surpreendentemente, se o tema do carnaval é, talvez, a noção bakhtiniana menos discutida nos ensaios, o livro em si é disposto como uma suntuosa festa rabelaisiana de ideias na qual Bakhtin e seu pensamento são constantemente incentivados, questionados, revitalizados, reinstrumentalizados, muitas vezes virados de cabeça para baixo e, dessa forma, produtivamente colocados em movimento.
Em mais da metade dos ensaios, a abordagem especial aos estudos bakhtinianos meticulosamente desenvolvida ao longo da última década por Beth Brait, uma teórica bakhtiniana prolífica, apresenta-se na forma daquilo que ela chama de discursos “verbo-visuais”. O pensamento inovador de Brait no campo dos estudos culturais desenvolve-se na análise de objetos multiconstituídos e híbridos em que é impossível a separação de suas dimensões inerentemente icônicas e linguísticas. Infelizmente, o seu trabalho ainda não é tão conhecido no mundo anglófono1. De maneira ampla, a presente obra Dialogismo: teoria e(m) prática é uma importante homenagem à natureza produtiva da obra de Brait, tendo em vista que mais da metade dos autores dos ensaios é formada por colaboradores atuais e/ou por ex-alunos de doutorado ou pesquisadores em pós-doutorados que têm atuado, às vezes por longos períodos de tempo, sob sua liderança notoriamente exitosa. Para ser franco, Beth Brait representa um dos pensadores (se não ‘o’) mais importantes que surgiram nos últimos quinze anos no Brasil, país onde há, no presente, uma boa dúzia ou mais de canteiros intelectuais de estudos bakhtinianos.
O livro, no entanto, não deve ser considerado uma mera coletânea clássica de ensaios que reconhece o lugar de proeminência de uma mestra na academia. De fato, as várias propostas teóricas desta coletânea provêm de um espaço fora do seu campo de trabalho intelectual, que, ao longo dos anos, foi por ela construído na Universidade de São Paulo e na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Ademais, esta coletânea de ensaios não está, de forma alguma, limitada a simples variantes dos princípios de análise de discursos “verbo-visuais” que ela desenvolveu. No interior da obra, muitas aventuras intelectuais em outras esferas são propostas também. O livro é dividido em três partes, sendo a seção mais substanciosa das três (140 páginas de extensão) a que é intitulada Dialogismo na vida. Ela contém sete ensaios, incluindo aqueles assinados pelos organizadores da obra. No primeiro ensaio dessa seção, escrito por Anderson Salvaterra Magalhães, uma discussão teórica densa sobre a história da imprensa é acompanhada por um estudo provocador de uma série de reportagens de jornal sobre o movimento neonazista brasileiro, pleno do uso inventivo da distinção feita por Bakhtin entre pequeno e grande tempo. Com Bruna Lopes-Dugnani, Beth Brait co-assina um artigo em que se debruçam sobre as conexões inextricáveis entre corpos, discurso verbal e imagem a partir de cartazes, escritos à mão ou impressos, que manifestantes levaram às ruas nas grandes manifestações em junho de 2013, que ficaram conhecidas, por vezes, como o movimento “V-de vinagre”. Aqui, constelações polimórficas do “nós” nos enunciados dos manifestantes são analisadas com o objetivo de revelar as forças heterogêneas de interlocução que se desvelam simultaneamente nas várias mídias expressivas, ao mesmo tempo que evidenciam o espaço ou espaços em que tais enunciados são produzidos e recebidos. Outras contribuições estudam a complexa interpenetração entre discursos jurídicos e jornalísticos no que tange a um julgamento de homicídio que foi bastante noticiado (Maria Helena Cruz Pistori) ou a relações intrínsecas entre cor, layout e fonte na publicação de uma série de capas de revistas em que aparecem imagens do ex-presidente Lula (Miriam Bauab Puzzo).
Esta parte central do livro é separada por duas seções menores (aproximadamente 70 páginas de extensão cada) – uma antes, outra depois – que são intituladas, respectivamente, Dialogismo: produção de conhecimento à brasileira e Dialogismo na arte. Enquanto na primeira parte encontramos contribuições sobre os gêneros do discurso, jornalismo e, especialmente, um artigo esclarecedor sobre os problemas para traduzir Bakhtin para a língua portuguesa (Sheila Vieira de Camargo Grillo e Ekaterina Vólkova Américo), na última seção do livro, encontram-se análises inteiramente bakhtinianas em áreas de estudo como a museografia, onde palavras e imagens entrelaçadas têm um papel proeminente na recente exibição sobre o escritor Jorge Amado (Adriana Pucci Penteada de Faria e Silva), as ilustrações da fábula A cigarra e as formigas de Esopo (Elaine Hernandez de Souza), os discursos indiretos livres em Vidas secas de Graciliano Ramos (Maria Celina Novaes Marinho), ou, finalmente, a presença subversivamente oculta da voz de uma mãe e uma discussão instrutiva sobre o uso de nomes próprios no romance amplamente aclamado de Guimarães Rosa Grande sertão: veredas (Sandra Mara Moraes Lima).
Os variados objetos de estudo propostos e discutidos nos ensaios desta coleção criam um caminho recompensador para o leitor que deseja uma visão detalhada dos direcionamentos contemporâneos dos estudos do pensador russo nesse centro cultural incontestável dos Estudos Bakhtinianos no mundo, isto é, o Brasil. A jovialidade dos articulistas não está entre as características menos atrativas do livro (apesar de se desejar que, ao serem feitas citações às obras do Bakhtin e do Círculo, as edições usadas fossem as mesmas em todos os capítulos, evitando, assim, que cada autor usasse edições próprias). Dado o agrupamento dos ensaios ter sido, de certa forma, inesperado, objetos de estudo semelhantes foram encontrados em várias contribuições em diferentes partes do livro. O desfecho positivo dessa escolha editorial é que os objetos de estudo, em sua dinâmica, não ficaram compartimentados em seções específicas do livro, tendo em vista que, simultaneamente, vários pontos de vista metodológicos e teóricos estão justapostos de forma produtiva, ou seja, de forma quase dialógica na sua disposição paratática, permitindo que o leitor, ao ir de um ensaio ao outro, perceba a insensatez que seria restringir a sua curiosidade para uma única parte do livro ou para um único “objeto” de estudo.
Por fim, o livro Dialogismo: teoria e(m) prática não é apenas uma homenagem muito justa ao trabalho de Beth Brait, que deve ser colocado no centro dos estudos bakhtinianos brasileiros. A obra também fornece um testemunho bastante convincente da alta qualidade das pesquisas feitas por muitos jovens acadêmicos em São Paulo e em outras partes do Brasil na atualidade.
Traduzido por Orison Marden Bandeira de Melo Júnior – junori36@uol.com.br
1Essa lacuna por parte de pesquisadores que não leem português é lamentável. Alguns dos trabalhos vigorosos de Brait sobre (e com) Bakhtin podem ser encontrados na seguinte lista de publicações, que está longe de ser exaustiva: (1) Ironia em perspectiva polifônica [Campinas, SP: Editora da Unicamp, 1996/2008]; (2) Bakhtin, dialogismo e construção do sentido [Campinas, SP: Editora da Unicamp, 1997/2013]; (3) Estudos enunciativos no Brasil: histórias e perspectivas [Campinas, SP: Pontes/FAPESP, 2001]; (4) Bakhtin: conceitos-chave [São Paulo: Editora Contexto, 2005]; (5) Bakhtin: outros conceitos-chave [São Paulo, Editora Contexto, 2006]; (6) Bakhtin: dialogismo e polifonia [São Paulo: Editora Contexto, 2009]; (7) Bakhtin e o Círculo [São Paulo: Editora Contexto, 2009]; (8) Literatura e outras linguagens [São Paulo: Editora Contexto, 2010]. Ela é, claro, a fundadora e editora-chefe do periódico eletrônico Bakhtiniana.
Anthony Wall – University of Calgary, Calgary, Alberta, Canadá; awall@ucalgary.ca.
Teoria do romance I: a estilística – BAKHTIN (B-RED)
BAKHTIN, Mikhail. Teoria do romance I: a estilística. Tradução, prefácio, notas e glossário de Paulo Bezerra; organização da edição russa de Serguei Botcharov e Vadim Kójinov. São Paulo: Editora 34, 2015. 256p. Resenha de: FARIA E SILVA, Adriana Pucci Penteado de. Bakhtiniana – Revista de Estudos do Discurso, v.11 n.1 São Paulo Jan./Apr. 2016.
Serguei Botcharov (1929) e Vadim Kójinov (1930-2001) herdaram os direitos autorais da obra de Bakhtin. No início da década de 1960, quando ainda eram jovens estudantes em Moscou, foram responsáveis, com outro colega, Géorgui Gachev, pelo fenômeno da redescoberta de Bakhtin. Isso se deveu ao empenho dos jovens em editar os trabalhos do autor, cujos textos conheceram em seminários da pós-graduação.
A redescoberta, de certa forma, continua até hoje. Empenhado em recuperar os originais de Bakhtin, Botcharov foi um dos protagonistas do projeto da nova edição russa de suas Obras reunidas1. Dentre os resultados desse projeto, há uma nova edição do trabalho A teoria do romance, escrito por Bakhtin nos anos 1930. Essa edição corresponde ao terceiro tomo das Obras reunidas e foi publicada na Rússia apenas em 2012, mas tanto Kójinov como Botcharov trabalharam em sua organização.
Em relação à edição anterior, de 1975, intitulada Vopróssi literaturi e estétiki, traduzida no Brasil como Questões de literatura e de estética. A teoria do romance2, em primeira edição de 1988, há significativas diferenças no volume publicado em russo, em 2012.
Uma alteração visível apenas por via da comparação dos sumários é a supressão do ensaio que constitui o capítulo inicial de Questões de literatura e de estética, ou seja, O problema do conteúdo, do material e da forma na criação literária, de 1924. Tal ensaio, nas Obras reunidas em russo, está no Tomo 1, de 2003, que reúne trabalhos sobre filosofia e estética publicados majoritariamente na década de 1920.
Mais significativa diferença, porém, reside na base do novo volume, que é o original datilografado por Bakhtin, recuperado pelos já citados organizadores. A nova edição russa incorpora, como notas de rodapé, todas as anotações feitas à mão pelo pensador russo, além de trazer também, com clara distinção sobre a natureza de cada inserção, as notas do texto original que já eram conhecidas dos leitores da publicação anterior.
Ao leitor brasileiro ainda cabe o privilégio de ter mais uma tradução diretamente do russo da obra bakhtiniana Teoria do romance. Nosso Questões de literatura e de estética. A teoria do romance3 também veio de forma direta da língua russa e sua tradução foi realizada por uma equipe liderada pela pesquisadora Aurora Fornoni Bernardini. É um trabalho de qualidade incontestável, que ganha, em 2015, a possibilidade do diálogo com a tradução de Paulo Bezerra, nome de destaque no cenário da recepção das obras de Bakhtin no Brasil.
Paulo Bezerra, de fato, é um dos expoentes dos estudos bakhtinianos no Brasil. Sua carreira docente estendeu-se pela Universidade de São Paulo/USP, onde defendeu a livre-docência, pela Universidade Estadual do Rio de Janeiro/UFRJ e pela Universidade Federal Fluminense/UFF, na qual, já aposentado, continua a atuar como professor de crítica literária. Na página 253 de Teoria do romance I: a estilística, a seção identificada como Sobre o tradutor traz mais detalhes de sua carreira, além de listar algumas das mais de quarenta obras que Paulo já traduziu do russo, com destaque para títulos assinados por Dostoiévski.
Paulo Bezerra é também responsável pelas edições traduzidas diretamente do russo de importantes obras de Bakhtin, como Estética da criação verbal4 e Problemas da poética de Dostoiévski5. Seu conhecimento profundo do horizonte cultural da Rússia e seu empenho por sua divulgação foram reconhecidos pelo governo daquele país, que lhe concedeu, em 2012, a Medalha Púchkin. É, portanto, o mediador ideal para que o leitor brasileiro estabeleça um diálogo com a voz de Bakhtin em Teoria do romance I. A estilística.
As badanas do livro trazem uma apresentação de Cristóvão Tezza, que ressalta, como leitor apaixonado, a importância do trabalho de Bakhtin que o leitor tem em mão.
No prefácio, Bezerra contextualiza a nova tradução, explica algumas decisões dos organizadores e narra a gestação do trabalho Teoria do romance por Bakhtin. Também apresenta a decisão, que atribui a si e à editora, de publicar no Brasil a nova e definitiva versão de Teoria do romance em três volumes. Na última subseção, intitulada Esta tradução, Bezerra aponta, com elegância, para lacunas ou incoerências que afetam algumas edições em português da obra de Bakhtin e questiona as consequências que elas podem gerar na apreensão do pensamento bakhtiniano. Um destaque nesta discussão é a justificativa de sua escolha pelo termo heterodiscurso para o conceito anteriormente traduzido como heteroglossia ouplurilinguismo.
No corpo do texto, nesse primeiro volume, apresenta-se, em comparação com a tradução anterior, apenas o capítulo O discurso no Romance. Estão ausentes, portanto, capítulos nomeados em Questões de literatura e de estética como Formas de Tempo e de cronotopo no romance (Ensaios de poética histórica) e suas subdivisões, bem como Da pré-história do discurso romanesco; Epos e romance (sobre a metodologia do estudo do romance) e Rabelais e Gógol (Arte do discurso e cultura cômica popular).
O leitor que conhece Questões de literatura e de estética: a teoria do romance6 notará, ainda, a inclusão de um subtítulo para a introdução do único capítulo presente na nova tradução: As questões da estilística do romance. Na edição anterior, apenas dois parágrafos, reunidos em uma única página, (p.71, na edição de 1993), constituíam tal introdução. Na edição nova, além de ganhar um subtítulo, a introdução, de nove parágrafos divididos em três páginas e meia, tem acréscimos importantes de considerações de Bakhtin sobre os desafios de se elaborar um estudo sobre a linguagem do romance “à luz das ideias do realismo socialista” (BAKHTIN, 2015, p.19).
Nos demais subtítulos do capítulo O discurso no romance, há importantes alterações, já que na edição anterior as anotações manuscritas de Bakhtin haviam sido ora suprimidas, ora inclusas no corpo do texto, e não como notas de rodapé.
Veja-se, por exemplo, a nota que indica uma anotação manuscrita de Bakhtin na página 42 de Teoria do romance I: a estilística: “A comunhão de cada enunciado com um ‘língua única’ […] e, ao mesmo tempo, com o heterodiscurso social e histórico (forças centrífugas, estratificadoras)”. Em Questões de literatura e de estética: a teoria do romance, essa nota foi incorporada ao texto, fechando o segundo parágrafo que se inicia na página 82 (edição de 1993).
O mesmo se observa em diversos outros pontos, como a nota correspondente a um trecho manuscrito de Bakhtin na página 137 da nova tradução, sobre a palavra autoritária: “A zona do contexto moldurador também deve ser distante, aí, o contato familiar é impossível O descendente distante percebe e interpreta; a discussão é impossível”. Tal nota, na edição anterior, estava incorporada ao texto, aparecendo no terceiro parágrafo da página 144 (edição de 1993).
Perceber o que estava à margem, como reflexão ainda não incorporada ao texto, leva o leitor a compreender que, por vezes, o que pode parecer uma ideia truncada ou circular não estava, na verdade, inserido por Bakhtin no fio de seu discurso. Essa é uma das grandes contribuições da nova edição russa e do novo trabalho de tradução de Bezerra.
Voltando às diferenças no sumário, os subtítulos do capítulo O discurso no romance, na tradução anterior, eram os seguintes: I A estilística contemporânea e o romance; II O discurso na poesia e o discurso no romance; III O plurilinguismo no romance; IV A pessoa que fala no romance e V Duas linhas estilísticas do romance europeu. Na nova tradução, encontramos: 1. A estilística atual e o romance; 2. O discurso na poesia e o discurso no romance; 3. O heterodiscurso no romance; 4. O falante no romance e 5. As duas linhas estilísticas do romance europeu.
Notas do tradutor explicam a maioria das escolhas que acarretaram as mudanças mais significativas em termos lexicais. O leitor ainda tem à disposição, no final do livro, a seção Breve glossário de alguns conceitos-chave, em que Bezerra traz muitos termos no original russo, em alfabeto cirílico, sua transliteração para o alfabeto latino, uma breve explanação do conceito e a justificativa das escolhas de tradução.
A obra Teoria do romance I: a estilística é o inicio de um novo diálogo com um dos textos de Bakhtin mais conhecidos pelos pesquisadores brasileiros. Conhecer uma forma que se aproxima mais do original datilografado não poderia deixar de ser, para bakhtinianos, a entrada num novo mundo de sentidos e de conteúdos por essa forma gerados.
Haverá, talvez, a concorrência de termos advindos de traduções diferentes para tratar de mesmos conceitos. É difícil prever se o termo heterodiscurso, talvez contaminado pela forma que remete a questões de gênero em embate com a heteronorma, substituirá o já consagrado termo plurilinguismo nos trabalhos dos pesquisadores brasileiros que se debruçam sobre o pensamento bakhtiniano, ou se a expressão “a pessoa que fala no romance” será naturalmente substituída por “o falante no romance”. Esses termos estiveram à nossa disposição por vinte e dois anos e povoam uma infinidade de publicações sobre os mais diversos tópicos de pesquisa à luz dos estudos bakhtinianos.
No entanto, a contribuição da nova tradução não pode, de maneira nenhuma, ser reduzida a uma maior precisão terminológica. Trata-se de um texto que se aproxima da voz de seu autor, do próprio acabamento estético que Bakhtin deu à sua obra. E contemplar esse trabalho na companhia de Paulo Bezerra é, indubitavelmente, um grande privilégio.
1Sobre essa edição, ver a resenha de Sheila Grillo em Bakhtiniana, São Paulo, v. 1, n. 1, p.170-174, 1º sem. 2009. A autora gentilmente nos cedeu as seguintes informações: o projeto inicial previa a publicação dos sete tomos citados na resenha, mas o sétimo, que traria as obras de autoria disputada, não será realizado. Os demais tomos foram publicados e o projeto está concluído.
2BAKHTIN, Mikhail. Questões de literatura e de estética: a teoria do romance. Trad. Aurora Fornoni Bernadini et al. 5 ed. São Paulo: Editora da UNESP e HUCITEC, 1993.
3Ver nota anterior para referências.
4BAKHTIN, M. M. Estética da criação verbal. Trad. Paulo Bezerra. 4. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2003.
5BAKHTIN, M.M. Problemas da poética de Dostoiévski. 5. ed. revista. Trad. Paulo Bezerra. Rio de Janeiro, Forense Universitária, 2010.
6Ver nota 2.
Adriana Pucci Penteado de Faria e Silva – Universidade Federal da Bahia – UFBA, Salvador, Bahia, Brasil; appucci@ufba.br.
Argumentação – FIORIN (B-RED)
FIORIN, José Luiz. Argumentação. São Paulo: Contexto, 2015. 272 p. Resenha de: GRÁCIO, Rui Alexandre. Bakhtiniana – Revista de Estudos do Discurso, v.10 n.3 São Paulo Sept./Dec. 2015.
Embora o Professor Fiorin informe aos seus leitores, logo no prefácio, que vários dos textos que compõem esta obra retomam trabalhos já publicados em diversas revistas ou livros, ele esclarece também que “tudo foi ampliado e reorganizado para ganhar a exaustividade e a coerência que a publicação deste livro exigia” (p.10).
Argumentação é um livro que se propõe “discutir as bases da argumentação” e “expor as principais organizações discursivas, ou seja, os principais tipos de argumentos” (p.10). Este objetivo é levado a cabo de uma forma sistemática e completa, aliando-se a erudição do autor a uma escrita clara e abundante em exemplos provenientes de fontes diversas.
A obra apresenta um estrutura tripartida. A parte I intitula-se “Problemas gerais de argumentação”, a parte II “Os argumentos” e a parte III “A organização do discurso”. Pela amplitude e natureza da divisão apresentada não é difícil ver que a palavra que dá título à presente obra remete, de facto, para o domínio do discurso retórico-argumentativo. Se, no prefácio, é avançada a tese de que “todo o discurso tem uma dimensão argumentativa” (p.10), ideia suportada pela referência ao dialogismo inerente ao funcionamento do discurso tal como Bakhtin o concebeu – devendo, portanto, o estudo da argumentação ir para além das microanálises que a sua teorização como “argumentação na língua” possibilita e situar-se, também, num plano discursivo – é igualmente afirmado, por outro lado, que “a retórica é, sem dúvida nenhuma, a disciplina que, na história do Ocidente, deu origem aos estudos do discurso” (p.22).
Poderíamos, pois, dizer que este livro assume que a abordagem retórico-argumentativa se tornou hoje uma perspetiva de importância crucial no campo dos estudos discursivos e que a junção dos termos retórica e argumentação implica que a chamada “retórica restrita”, cingida ao estudo estilístico e ornamental das figuras, evoluiu de novo para uma abordagem que a entrelaça com o discurso argumentativo. Nesse sentido, afirma o Professor Fiorin que “se as figuras retóricas não podem ser consideradas enfeites do discurso, então precisam de ser analisadas na sua dimensão argumentativa” (p.27). Mas, diferentemente do que acontece em Figuras de retórica (FIORIN, 2013), este livro ocupa-se de um espectro mais alargado de assuntos e não se cinge à questão das figuras. Antes mergulha nos aspectos essenciais da argumentação sem perder de vista o pano de fundo das estratégias retóricas.
Um dos aspectos essenciais através do qual se faz progredir um discurso é a sua tessitura inferencial. Ela é analisada neste livro de três pontos de vista: o lógico, o semântico e o pragmático.
No que diz respeito ao primeiro, são elencados e exemplificados diversos tipos de inferência: a eliminação, a afirmação do consequente, a negação do antecedente, a disjunção exclusiva, a regra de encadeamento, a contraposição, a regra do nem/nem, a regra de não as duas ou de negação da disjunção dupla, a regra da bicondicionalidade e, finalmente, a regra da dupla negação. Todas estas operações lógicas são determinadas por relações entre proposições e regem-se pela inferencialidade necessária.
No que toca às inferências semânticas, que colocam em jogo a relação entre o explícito e o implícito, o autor detém-se sobre o pressuposto (e respectivos marcadores) e o subentendido, assinalando neste último a característica dele permitir “dizer sem dizer” ou “sugerir, mas não afirmar” (p.39).
Finalmente, e no que concerne à inferência pragmática, a referência fundamental são os princípios que governam a utilização da linguagem na troca verbal tal como foram enunciados nas quatro máximas de Grice. Elas são aqui enunciadas, explanadas e abundantemente exemplificadas.
Após a análise da inferência, na sua tríplice dimensão, são estudadas formas de raciocínio: a dedução, a indução e a analogia.
A abordagem da dedução centra-se no silogismo. Depois da caracterização, enumeração e exemplificação das suas regras extensionais, o autor passa em revista os modos e as figuras, fazendo ainda referência aos silogismos complexos como o epiquirema, o sorites e o polissilogismo. Debruça-se também sobre o ntimema, optando pela visão que o define como um silogismo cuja conclusão se funda em premissas prováveis e não necessárias, ainda que o entimema possa ser também visto como um silogismo truncado na medida em que uma das suas premissas não é explícita.
Na indução, são diferenciadas a completa e a amplificante, sendo analisadas as condições em que uma indução é forte ou fraca.
Finalmente, no que diz respeito à analogia – cuja conclusão é também sempre provável -, o autor descreve e exemplifica o funcionamento do raciocínio analógico e mostra o que faz com que uma analogia possa ser forte ou fraca. Inclui também a comparação e o exemplo nas formas de raciocínio analógico. Note-se ainda que, em muitas situações, o autor não só explica o funcionamento do raciocínio como analisa também o modo de questionar e refutar certos tipos de raciocínio, pondo assim em prática o princípio da antifonia.
Depois desta passagem pela lógica – que aliás sugere que o autor valoriza uma visão proposicionalista da razão, ou seja, que faz da proposição o elemento essencial do discurso – dá-se entrada nos “fatores da argumentação” justamente com a seguinte definição: “Um argumento são proposições destinadas a fazer admitir uma dada tese” (p.70), fazendo equivaler o “fazer admitir” à “finalidade de persuadir”. Se as considerações sobre a lógica remetiam para o discurso monológico da demonstração, a finalidade da persuasão abre para a dimensão dialógica e retórica do discurso. Dialógica porque qualquer discurso habita o interdiscurso, e retórica pela presença de um auditório a persuadir pelo discurso e em que têm de ser tomados em consideração o ethos, o pathos e o logos.
O éthos é a imagem de si construída discursivamente pelo orador: “O éthos (…) é um autor discursivo, um autor implícito” (p.70). Essa construção pode ser mais ou menos eficaz em termos de credibilidade do orador e podemos encontrar as suas marcas no interior da “materialidade discursiva da totalidade” (p.71).
No que diz respeito ao auditório, ele surge, do ponto de vista retórico, como uma variável essencial da força dos argumentos e é crucial que o orador conheça “o pathos ou o estado de espírito do auditório” (p.73). Este conhecimento é, de facto, uma construção do orador que não é sem reflexos para o discurso que, de algum modo, tem que adaptar-se ao auditório ao qual se dirige.
Já o logos, ou discurso, sempre considerado numa situação de comunicação em que se tem de considerar a adesão do auditório, não pode ser senão do domínio do plausível, do verosímil, do provável. As conclusões das argumentações não têm um carácter coercivo, nem possuem uma validade impessoal. Pelo contrário, elas põem em jogo o preferível e só podem socorrer-se da intensidade variável da força dos argumentos.
Advoga ainda o Professor Fiorin que, apesar da distinção entre demonstração e argumentação proposta por Perelman, ela não tem de ser interpretada em termos de oposição rígida: “A distinção entre argumentação e demonstração não é tão rígida. De um lado, mesmo se fundando no preferível, a argumentação pode comportar elementos demonstrativos. Do outro, mesmo as ciências apresentam controvérsias muito grandes e, portanto, seu discurso é argumentativo no sentido de Perelman” (p.78). Parece-nos, contudo, importante assinalar que a argumentação remete, segundo Perelman, para o domínio do opinável e que este não comporta critérios formais de validação. É nesse sentido que este teorizador afirma que “a correção está para a gramática como a validade para a lógica e a eficácia para a retórica”1, acrescentando ainda que todo o discurso que não aspira a uma validade impessoal cai sob a alçada da retórica e das práticas argumentativas2.
A argumentação implica o uso da linguagem e, asserta mesmo o autor, “a argumentação é uma questão de linguagem” (p.78). Ora, a linguagem é não apenas polissémica como é também susceptível de vagueza e de ambiguidade. Ela é indissociável da interpretação e, por isso, ideias como “objetividade”, “imparcialidade” e “neutralidade” são, na realidade, conceitos impossíveis: “a linguagem” – escreve o Professor Fiorin – “está sempre carregada dos pontos de vista” (p.83) e a linguagem nunca é neutra. Dizemos sempre coisas usando certas palavras e deixando na sombra outras. Ou seja, o dizer é simultaneamente um processo de saliência e de filtragem. A seletividade interpretativa é pois uma inultrapassável condição dos usos humanos da linguagem.
No entanto, se a ambiguidade e a vagueza são inerentes à linguagem natural, remetendo para “formações discursivas que implicam interpretações e apreciações conflitantes” (p.81), nem por isso deixa de haver ambiguidades que devem ser evitadas. Estão nesse caso as ambiguidade lexicais e as ambiguidades sintáticas, para além de outros equívocos associados à polissemia das palavras.
Ressalva contudo o autor que “a linguagem natural tem a sua lógica própria, o que leva a que, no seu uso cotidiano, nem sempre se possam aplicar as leis da Lógica” (p.87). Isso mesmo também foi salientado por Perelman ao classificar a argumentação como uma lógica informal e ao associá-la à retórica e à questão da adesão.
Na senda de Perelman, também o Professor Fiorin vê no acordo prévio uma condição de qualquer argumentação. Poderíamos assim dizer que os argumentadores são pessoas que se entendem sem estar de acordo: entendem-se porque partilham pontos comuns (por exemplo, a importância e os termos de um problema), mas não estão de acordo porque diferem quanto à solução para esse problema. É claro que até os pontos de acordo podem ser estrategicamente negociados e hoje em dia muita gente se recusa a responder a perguntas feitas em termos que não aceitam.
De qualquer forma, na sociedade há sempre valores partilhados e lugares comuns (não no sentido de clichés) que são propícios a acordos prévios e Aristóteles identificou muitos deles. O Professor Fiorin retoma parte deles, explanando-os e exemplificando o seu funcionamento. O mesmo faz relativamente aos valores, salientando que eles podem funcionar de uma forma inclusiva ou exclusiva e que não são sem relação com a doxa.
A segunda parte do livro trata de diferentes tipos de argumentos. Organiza-se nas suas partes aceitando a repartição dos argumentos proposta por Perelman e Tyteca. Assim, o autor debruça-se, sucessivamente, sobre os argumentos quase lógicos, sobre os que se fundamentam na estrutura do real e sobre os argumentos que fundam a estrutura do real, não deixando de analisar também o procedimento da dissociação de noções. No entanto, a retoma da tipologia de Perelman e Tyteca é feita de uma forma alargada, com explicitações de grande valia pedagógica e com exemplificações que o autor vai buscar a diversas fontes. Aliás, o autor vai mesmo para além da tipologia proposta por Perelman e Tyteca, fazendo uma incursão por “outras técnicas argumentativas” geralmente associadas à ideia de falácia. Nesse sentido, leva em consideração a posição normativa inerente a todos aqueles que acham possível estabelecer critérios para avaliar as argumentações e distinguir os bons dos maus argumentos. Esta posição estava já patente na importância que na primeira parte do livro o autor atribuiu à lógica e ao raciocínio lógico, tendo nós assinalado a visão proposicionalista da razão para que essa valorização dos elementos lógicos apontava.
Este sublinhado é importante porquanto muitos dos atuais teorizadores da argumentação não consideram ser a proposição a melhor unidade de abordagem e estudo das argumentações. Por exemplo, para Ruth Amossy “a natureza argumentativa do discurso não implica que sejam usados argumentos formais, nem sequer significa que uma ordem sequencial de premissa conclusão é imposta ao texto oral ou escrito”3. A unidade escolhida por esta teórica para a análise das argumentações é o discurso, e foi para afastar a sua teoria da lógica e da “argumentação na língua” que ela designou a perspetiva que defende como “argumentação no discurso”. Outros, como Michel Meyer4, preferiram eleger como centrais a noção de problema e o par pergunta-resposta. Outros ainda, como Marc Angenot5, falam da argumentação retórica como algo de antilógico, havendo ainda quem defenda que a unidade propícia ao estudo das argumentação é a noção de “assunto em questão”6.
No entanto, o estudo das falácias tem a sua produtividade na medida em que coloca uma questão central no estudo da argumentação: a dimensão da avaliação das argumentações, embora esta deva ser tratada diferentemente nos discursos monológicos, nos dialógicos e nos dialogais.
Seguindo o esquema anteriormente referido, o Professor Fiorin passa em revista os argumentos quase lógicos, os argumentos fundamentados na estrutura da realidade e os argumentos que fundamentam a estrutura do real. É assim exposta toda uma tipologia de argumentos, explicado o seu funcionamento e exemplificada a sua utilização. O inventário é muito completo e rico e a ele sucede-se uma referência à dissociação de noções. O autor segue aqui de novo Perelman, que tinha definido os procedimentos de ligação e de dissociação como os procedimentos fundamentais das técnicas argumentativas.
Finalmente, e transcendendo os parâmetros da tipologia perelmaniana dos argumentos, o autor reserva uma secção do livro, como se referiu já anteriormente, a “outras técnicas argumentativas”. Trata-se de fazer aqui referência àquilo que tradicionalmente foi apelidado de “falácias”, mas que, como bem sublinha o autor, quando abandonamos uma visão teórica normativa da argumentação, mais não são do que estratégias argumentativas: “o que foi chamado falácia, no entanto, são estratégias argumentativas que sempre foram empregadas no discurso público, na publicidade, etc.” (p.200).
É claro que o que aqui está em causa é muitas vezes o uso abusivo que se faz de uma estratégia argumentativa. Quando, apelando a valores, se pretende fazer passar algo como natural ou normal, é sempre bom desconfiar desta naturalização e pensar na dimensão de historicidade das noções e das concepções. O mesmo se pode dizer do recurso a lugares-comuns e a lugares específicos na aliança com as narrativas que possibilitam construir. Também o uso dos implícitos na argumentação é uma estratégia que em certos casos pode ser questionada, nomeadamente quando se pretende fazer passar algo de implícito como inquestionável, dando origem ao que o autor chama “persuasão encoberta” (p.209).
No rol de estratégias consideradas como falaciosas ou potencialmente falaciosas, o autor refere a utilização das perguntas capciosas (ou, seja, aquelas que apresentam afirmações implícitas cuja resposta acaba por confirmar), o secundum quid (ou generalização indevida), a petição de princípio (ou raciocínio circular), a ignoratio elenchi (ou fuga ao assunto), a distorção do ponto de vista do adversário ou o argumento do espantalho (nas suas diferentes modalidades), o uso de paradoxos, ironias e silêncios (enquanto recursos argumentativos) e o argumento do excesso (hiperbólico).
Ao passar este conjunto de estratégias em revista – umas respeitantes ao raciocínio e outras ligadas à interação – o autor está ciente de que “hoje a teoria da argumentação não pode pensar o debate em termos de uma racionalidade normativa” (p.215). Com efeito, isso é também visível no conjunto de estratégias argumentativas analisadas pelo autor quer sob a designação de “argumentos que apelam ao pathos“, aí se incluindo o argumentum ad populum, o argumentum ad misericordiam e o argumentum ad baculum, quer sob a da ideia de recursos relacionados com o éthos do enunciador.
A parte final do livro debruça-se, como anteriormente se disse, sobre a organização do discurso. O autor retoma aqui a dispositio da retórica antiga e fornece indicações quer quanto à organização do discurso (retomando Aristóteles), quer relativas à organização de textos dissertativos.
Como balanço final, impõe-se dizer que estamos perante um livro que, não entrando no debate sobre os diversos pontos de vista teóricos sobre a argumentação e a retórica, proporciona ao leitor um valioso e exaustivo conjunto de conhecimentos sobre o discurso retórico-argumentativo, familiariza-o com a metalinguagem ou com a terminologia essencial deste campo de investigação – sempre recorrendo a esclarecedores exemplos que permitem perceber a atualidade da análise retórica-argumentativa – e, finalmente, proporciona-lhe uma visão simultaneamente clara e sintética dos principais conceitos que dão forma a este fascinante domínio dos estudos da linguagem. Todos estes ensinamentos são de extrema importância quando situados no quadro da vida social e quando pensamos, nas palavras do Professor Fiorin, numa das suas principais conquistas: a compreensão de que “não se poderiam resolver todas as questões pela força, era preciso usar a palavra para persuadir os outros a fazer alguma coisa” (p.9).
1PERELMAN, CH. E OLBRECHTS-TYTECA, L. Rhétorique et Philosophie.Pour une théorie de l’argumentation en philosophie. Paris: Presses Universitaires de France, 1952. p.38.
2Escreve Perelman: “[…] todo o discurso que não aspira a uma validade impessoal depende da retórica. (…) Assim concebida, a retórica cobre o campo imenso do pensamento não formalizado […]”. (Perelman, Chaïm. O império retórico. Trad. Rui Grácio e Fernando Trindade. Porto: Edições ASA, p.172-173).
3AMOSSY, R. Argumentation in Discourse: A Social Approach to Arguments. Informal Logic, Vol. 29, n. 3, 2009, p.254.
4Cf. MEYER, M. Principia Rhetorica. Une théorie générale de l’argumentation. Paris: Fayard, 2008.
5Cf. ANGENOT, M. Dialogues de sourds. Traité de rhétorique antilogique Paris: Mille et une nuits, 2008.
6Cf. GRÁCIO, R. A. Para uma teoria geral da argumentação. Questões teóricas e perspectivas didácticas. Coimbra: Grácio Editor, 2012.
Rui Alexandre Grácio – Universidade Nova de Lisboa, Lisboa, Portugal; rgracio@gmail.com.
Apologie de la polémique – AMOSSY (B-RED)
AMOSSY, R. Apologie de la polémique. Paris: Presses Universitaires de France, 2014. 240 p. [Coleção L’interrogation philosophique]. Resenha de: CARLOS, Josely Teixeira. Bakhtiniana – Revista de Estudos do Discurso, v.10 n.3 São Paulo Sept./Dec. 2015.
O livro Apologie de la polémique (Apologia da polêmica)1 é a mais recente obra em língua francesa de Ruth Amossy, professora emérita do departamento de francês da Universidade de Tel-Aviv e diretora do Grupo de Pesquisa Analyse du discours, Argumentation & Rhétorique (ADARR)2. Resultado de uma pesquisa global sobre o discurso polêmico na esfera democrática, realizada no quadro da Fundação de Ciências Israelense (ISF), foi publicado em março de 2014 pela editora Presses Universitaires de France, na coleção L’interrogation philosophique, dirigida pelo filósofo Michel Meyer, reconhecido pesquisador na área de Retórica e Argumentação e professor da Université libre de Bruxelles.
Fundamentada em um quadro teórico-metodológico preciso e na análise detalhada de casos concretos, e considerando que a polêmica não é de nenhum modo “uma comunicação desordenada”, Amossy mostra que a polêmica pública enquanto modalidade argumentativa, apesar de ser depreciada, desempenha um papel vital nas democracias pluralistas. O livro está organizado em três partes. Em sua Introdução, com relação à presença da polêmica no mundo contemporâneo, a autora enfatiza que os conflitos de opinião ocupam um lugar preponderante na cena política e que os meios de comunicação não param de forjar e de difundir de forma persistente as mais variadas polêmicas, ditas de interesse público. Uma prova disso é o uso constante do próprio termo “polêmica” na imprensa escrita francesa (Le Monde, Libération, etc.)3. Segundo a pesquisadora, essa presença poderia ser explicada duplamente tanto pela incapacidade dos cidadãos e dos políticos em seguir as regras de um debate racional, quanto pela curiosidade perversa do público no que se refere ao espetáculo da violência verbal. Mais do que constatar esse fato, Amossy defende que é necessário investigar em profundidade a natureza (o funcionamento e as funções sociais) dos debates conflituais nos quais se sustenta contemporaneamente a democracia em uma sociedade pluralista. No bojo dos estudos discursivos, das ciências sociais e das reflexões de Habermas, Perelman, Mouffe, dentre outros, para a professora interessa, portanto, verificar como, no âmbito de um espaço público e democrático, a polêmica se constrói no nível discursivo e argumentativo e modela a comunicação. No que toca ao posicionamento do pesquisador e às questões metodológicas na observação de debates polêmicos, ela chama a atenção para o fato de que o analista jamais pode se tornar também um polemista, exigindo deste o exame das controvérsias (seu surgimento, sua regulação, seus papéis sociais), mas nunca a tomada de partido por uma ou outra causa.
A primeira parte da obra apresenta as reflexões teóricas do trabalho e está dividida em dois capítulos. No primeiro – Gerir o desacordo na democracia: por uma retórica do dissensus, Amossy aborda por um lado a insistente busca pelo consenso e a obsessão pelo acordo, que está na base mesma da Retórica e dos estudos de persuasão, da Retórica clássica de Aristóteles à Nova Retórica de Perelman e Olbrechts-Tyteca, ao mesmo tempo em que descreve na sociedade contemporânea as condenações do dissensus e da polêmica, desde o Tratado da argumentação 4 de Perelman e Olbrechts-Tyteca, abrangendo as teorias da argumentação que o sucederam, como a lógica informal de Douglas Walton e a pragma-dialética da Escola de Amsterdam e de Van Eemeren.
Também nesse capítulo, a autora evoca a obra de Habermas, na qual é construída a noção de um espaço público gerado pelo discurso argumentativo, ou seja, segundo concebe esse autor, a esfera pública basear-se-ia em um modelo de discussão racional na qual os cidadãos alcançariam o acordo através da troca discursiva. A seguir, Amossy discorre sobre outro papel do dissensus (ou da divergência), apresentando um quadro teórico diverso do anterior, no qual existe uma revalorização do dissensus em diferentes domínios, particularmente no da Sociologia e da Ciência Política. Assim, a autora, partindo das reflexões advindas das ciências sociais, feitas por Lewis A. Coser, George Simmel, Chantal Mouffe e Pierre-André Taguieff, coloca a seguinte questão à página 37: “Estas perspectivas sociopolíticas podem ser traduzidas em termos de retórica para autorizar a consideração da polêmica e suas funções construtivas?”. Amossy sustenta que, se em uma democracia pluralista o conflito é inevitável e o acordo utópico, é necessário então o desenvolvimento de uma retórica do dissensus, na qual a confrontação polêmica seja vista como incontornável e útil na gestão dos conflitos.
No capítulo seguinte – O que é a polêmica? Questões de definição, a analista retoma categorias como debate, discussão, disputa, querela, altercação, controvérsia, interessando-se sobretudo por apresentar as especificidades da polêmica. Para tanto, fundamenta-se em três fontes diferentes: as definições lexicográficas dos dicionários, o discurso corrente e as conceitualizações dos pesquisadores em ciências da linguagem. A professora analisa aqui dois exemplos de polêmicas: uma em torno de uma foto “politicamente incorreta”, que exibe um homem de costas utilizando a bandeira da França no lugar do papel higiênico; e a outra acerca do exílio fiscal do ator Gerard Depardieu, após o projeto de reforma dos impostos lançado pelo presidente François Hollande em 2012. A partir da análise, constata que a polêmica é de fato um debate em torno de uma questão atual e de interesse público, que perpassa variados gêneros (panfleto, artigo de opinião etc.) e tipos de discurso (jornalístico, político etc.) e que deve ser distinguida de uma deliberação ordinária.
Na continuação do capítulo, Amossy avalia a polêmica de interesse público como modalidade argumentativa, compreendida em um continuum que passa pela dicotomização (choque de opiniões antagônicas, uma excluindo a outra), polarização (dois antagonistas diametralmente opostos polemizam diante dos espectadores da polêmica, que também devem se posicionar) e desqualificação do adversário (depreciação do ethos dos sujeitos, grupos, ideologias e instituições concorrentes). Na sequência da obra, todos os capítulos permitirão a visualização dessas modalidades em variados gêneros de texto5, investigados em sua materialidade discursiva e configuração argumentativa, bem como o esclarecimento das seguintes questões específicas: como funciona o discurso polêmico; como se constrói uma polêmica pública; qual a atuação da racionalidade nessas polêmicas; como se pode compreender, nelas, o papel e limites da violência.
É por esse prisma que a segunda parte do livro abordará as modalidades da polêmica, materializadas nos meios de comunicação, a partir do exemplo do estatuto das mulheres em dois espaços públicos diferentes: na França e em Israel. Antes de iniciar a análise, a professora evidencia que é necessário distinguir uma polêmica do discurso polêmico e da interação polêmica. “Uma polêmica” se refere ao conjunto das intervenções antagonistas sobre uma dada questão em um momento específico. Já o “discurso polêmico” define a produção discursiva de cada uma das partes antagonistas, nas quais necessariamente se inscreve o discurso do outro, como classifica Kerbrat-Orecchioni. A “interação polêmica”, por outro lado, corresponde à interação, face a face ou não, na qual dois ou mais adversários se engajam em uma discussão oral ou escrita, sempre se reportando um ao outro. Enquanto o discurso polêmicoé constitutivamente dialógico, mas não dialogal, a interação polêmica é por definição dialogal.
Com base, portanto, nessa distinção teórica, Amossy se debruça, no capítulo 3, na análise do discurso e interação polêmicos, entre junho de 2009 e outubro de 2010, no contexto do projeto de lei que pretendia proibir o uso da burca no espaço público francês. A autora exemplifica, assim, o discurso polêmico, analisando um artigo de opinião, assinado por Bénédicte Charles, da revista de esquerda Marianne (de junho de 2009), no qual examina os seguintes aspectos: a estrutura actancial e o jogo das dicotomias, o plano de enunciação e a responsabilidade jornalística, a polêmica como evento midiático, a polarização na imprensa escrita, a jornalista como polemista. Já a interação polêmica é explorada em dois exemplos: uma interação face a face no debate televisionado entre o político Jean-François Copé e uma mulher com véu; e dois posts de um fórum de discussão eletrônico que respondem ao artigo de Marianne. Qualificando a polêmica como polílogo, para muito além do diálogo, Amossy destaca então que tanto o discurso quanto a interação polêmicos desempenham funções importantes, dentre as quais a da denúncia, a do protesto, a da chamada à ação, bem como a do entretenimento.
No capítulo 4, a autora exemplifica a polêmica pública em torno da fórmula “a exclusão das mulheres” em Israel, analisando o caso da jovem Tanya Rozenblit, que em dezembro de 2011, ao subir em um ônibus da linha Ashdod-Jerusalém, sentou-se na parte da frente do transporte público, quando a prática consuetudinária estabelecia que as mulheres devem sentar-se na parte de trás, para que os homens não possam olhá-la. O episódio ganhou, a partir daí, grande repercussão pública, fortemente alimentada pela imprensa (meios de comunicação pró ultra-ortodoxos e contra os ultra-ortodoxos), convertendo-se em um debate de ordem ideológica e identitária.
Amossy afirma que essa polêmica, protagonizada por discursos laicos, de um lado, e por discursos religiosos tanto moderados quanto ultra-ortodoxos, de outro, além de transformar a jovem Rozenblit em um símbolo da resistência contra o fanatismo religioso, mostra que mesmo que as posições antagônicas não se falem diretamente, não se entendam e não cheguem a um acordo com relação às noções de espaço público, do respeito ao direito das mulheres, do lugar da religião no Estado e da liberdade individual em uma democracia, de uma certa forma elas se comunicam, na medida em que tratam dos mesmos referentes e concordam sobre o fato de que é preciso discutir. Por essa perspectiva aparentemente contraditória, é justamente a polêmica pública, enquanto interação agônica, que permite a coexistência no dissensus, através de suas funções sociais que reúnem indivíduos de opinião radicalmente opostas.
Na terceira e última parte da obra, igualmente dividida em dois capítulos, Amossy analisa o lugar da razão, da paixão e da violência nos debates polêmicos. No capítulo 5 – Racionalidade e/ou paixão, questionando se o pathos é um traço distintivo da e indispensável à polêmica, a pesquisadora se volta para a observação do debate polêmico ocorrido na França, em pleno momento de eclosão da crise financeira de 2008, acerca das formas de remuneração bonus e stock-options, distribuídos pelo Estado aos dirigentes dos bancos e das grandes empresas que declarassem estar em situação precária. Ao longo da análise, ela elucida que os debates polêmicos não se manifestam necessariamente por marcas discursivas de emoção e de paixão, esta última compreendida, no sentido retórico, como tentativa de suscitar afetos no auditório e como sentimento expresso com veemência por um locutor extremamente implicado em seu propósito. No entanto, no que concerne à presença da paixão na polêmica, a autora julga que dois fatos são inegáveis: a paixão não produz a polêmica, mas ela exacerba as dicotomias, a polarização e o descrédito ao outro; a paixão e a razão aparecem como dois componentes que só podem ser entendidos em uma imbricação e nunca dissociados. É com esse olhar que Amossy propõe a seguir a consideração de uma racionalidade da paixão e das razões das emoções. Por esse viés, no que concerne à referência ao outro, paixão e razão se manifestariam através de três modalidades do discurso polêmico: a acusação (emoções fortes centradas na indignação e na cólera, com o uso de argumentos que revelam indiretamente as razões da emoção), a injunção (emoções fortes de maneira menos marcada, apresentando argumentos que as justificam) e a instigação(denúncia velada que recorre a argumentos racionais e mostra o pathosde modo superficial).
No capítulo 6 – A violência verbal: funções e limites, a pesquisadora investiga o papel da violência na polêmica, lançando luz para o fato de que esta é fundada pelo conflito, e não pela agressividade verbal. Baseada na análise de conversas digitais, mais particularmente do fórum de discussões na internet do jornal Libération sobre os bonus e stock-options distribuídos em período de crise, Amossy assegura que a violência verbal não é nem uma condição suficiente, nem necessária para a polêmica, configurando-se mais como um acessório do que como um traço definidor dos embates públicos. Por essa ótica, a violência verbal pode ser compreendida como um registro discursivo, e não como uma modalidade argumentativa. Como o pathos, ela igualmente amplifica a dicotomização, a polarização e o descrédito. Dentro desse quadro, a professora demonstra que a violência verbal não é de nenhum modo selvagem ou descontrolada, mas, pelo contrário, é regulada a partir de certas funções e limites, agindo diferentemente a depender do gênero do discurso na qual se manifesta (um debate na TV, uma carta aberta, uma discussão política entre amigos).
Na conclusão do livro – A coexistência no dissensus. As funções da polêmica pública, Amossy consolida e expande pontos centrais tratados no decorrer das análises, dentre os quais o fato de a polêmica pública não poder ser medida em termos de diálogo e o papel da mídia na construção da polêmica. A autora resume que a polêmica desempenha funções sociais e discursivas relevantes exatamente por aquilo em que nela é reprovado: a gestão verbal do conflito operada através do desconsentimento. Apesar de esta afirmação parecer paradoxal, a analista reforça que fazer uma apologia da polêmica ou defender a coexistência no dissensus é permitir a preservação do pluralismo e da diversidade no espaço social, na medida em que a polêmica pública ou a coexistência entre posições e interesses divergentes procura um meio de lutar por uma causa e de protestar contra as intolerâncias, de efetuar reagrupamentos identitários que provoquem interações mais ou menos diretas com os adversários, de gerar os desacordos, mesmo os profundos. Assim, a polêmica nos debates públicos é entendida como fundamento indispensável da vida democrática e contemporânea.
Importa notar que a publicação do livro Apologie de la polémique surge em um momento sensível da história da França, tendo antecipado um quadro de reflexões logo a seguir visíveis, em janeiro de 2015, no contexto do atentado terrorista ao jornal Charlie Hebdo, no qual a violência física e o ato desleal de um “antagonista” pulveriza a possibilidade de construção de um espaço democrático, produzido e mantido pela divergência de posicionamentos. Se a obra de Amossy evoca uma apologia da polêmica, não posso deixar de ressaltar que a polêmica tratada pela pesquisadora se constitui em uma guerra de plumas, em uma guerra verbal 6, pois, quando a divergência de posições e a discussão verbal dão lugar à agressão física, podem ser comprovados aí os verdadeiros riscos da atividade polêmica, como chama a atenção Mesnard7. Amossy admite, similarmente, que a violência verbal sob suas diferentes formas possa combater o outro simbolicamente, mas salienta que ela jamais pode servir de passarela a uma ação que inscreva a violência no corpo.
Em um mundo digital ao alcance das mãos, no qual a expressão e difusão de posicionamentos discursivos é tão intensa quanto imensa, Apologie de la polémique se configura como obra de referência não apenas para os estudiosos da linguagem verbal, da argumentação e da análise do discurso polêmico, mas para todos aqueles que defendem a necessidade de se cultivar diuturnamente o respeito ao outro, a liberdade de pensamento e de expressão, a tolerância e a convivência pacífica com as diferenças.
1A tradução para o português dos textos em língua francesa são de minha responsabilidade.
2Obras de sua autoria: L’argumentation dans le discours. Paris: Nathan, 2000; Paris: Armand Colin, 2012 [A argumentação no discurso]; La présentation de soi: Ethos et identité verbale. Paris: PUF, 2010; em português: Imagens de si no discurso: a construção do ethos. Trad. D. F. da Cruz et al. São Paulo: Contexto, 2005. Amossy também é editora-chefe da revista on-line Argumentation et analyse du discours.
3Comprovando que o discurso polêmico está presente em variadas esferas discursivas, analiso em minha tese de doutorado a atuação da polêmica no campo das Artes, mais especificamente no da música brasileira do século XX (CARLOS, J. T. Fosse um Chico, um Gil, um Caetano: uma análise retórico-discursiva das relações polêmicas na construção da identidade do cancionista Belchior686 p. Tese de Doutorado – área de concentração Análise do Discurso – Programa de Pós-Graduação em Filologia e Língua Portuguesa, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2014).
4PERELMAN, C.; OLBRECHTS-TYTECA, L. O. Tratado da argumentação. A nova retórica. São Paulo: Martins Fontes, 1996. Original: Traité de l’argumentation. La nouvelle rhétorique. 6. ed. Bruxelles: Université libre de Bruxelles, 2008. (1. ed. 1958).
5Amossy afirma que as particularidades de cada um desses textos manifestam traços gerais, esclarecedores da natureza e das funções do fenômeno global discurso polêmico.
6Confrontar o texto de Kerbrat-Orecchioni La polémique et ses définitions. In: KERBRAT-ORECCHIONI, C.; GELAS, N. (Orgs.). Le discours polémique. Lyon: Presses Universitaires de Lyon, 1980. p.03-40.
7Para o autor, “ofensiva ou defensiva, a polêmica implica riscos, quando a paixão aumenta, chegando ao confronto armado, ou até mesmo ao mínimo ataque físico”. In: COLLECTIF. Cahiers V. L. Saulnier 2. Traditions polémiques, n° 27, Université Paris-Sorbonne, 1985. p.127-129. [Collection de L’École Normale Supérieure de Jeunes Filles].
Josely Teixeira Carlos – Université Paris Ouest Nanterre La Défense – Paris Ouest, Nanterre, Hauts-de-Seine, France; josyteixeira@usp.br.
La palabra y el puño: perfiles de la retórica nazista en el Mein Kampf de Adolfo Hitler – RAMÍREZ VIDAL (B-RED)
RAMÍREZ VIDAL, Gerardo. La palabra y el puño: perfiles de la retórica nazista en el Mein Kampf de Adolfo Hitler [A palavra e o punho: perfis da retórica nazista no Mein Kampf de Adolfo Hitler]. México D.F.: Instituto de Investigaciones Filológicas, Universidad Nacional Autónoma de México, 2013. 152 p. [Colección de Bolsillo; 40]. Resenha de: VITALE, Maria Alejandra. Bakhtiniana – Revista de Estudos do Discurso, v.10 n.2 São Paulo May/Aug. 2015.
“Palabra y puño” [Palavra e punho] são dois signos que, no título da obra resenhada, funcionam como equivalentes e remetem, por isso, à concepção retórica da palavra como uma arma na vida político-social1, ao mesmo tempo em que sintetizam o vínculo indissolúvel que o discurso e a violência estabeleceram na retórica nazista. A dedicatória do livro é outro paratexto chave, permitindo compreender o interesse do autor em relação ao tema estudado e a sua pertinência para os leitores mexicanos, particularmente, e latino-americanos, em geral: “Àqueles que com coragem e perseverança têm lutado contra a ditadura priista”2. Gerardo Ramírez Vidal, doutor em Línguas Clássicas pela Universidade Nacional Autônoma do México (UNAM) e pesquisador do Centro de Estudos Clássicos do Instituto de Pesquisas Filológicas da mencionada Universidade, não compara, claro, o PRI (Partido Revolucionário Institucional) com o regime nazista. A finalidade da dedicatória é orientar a leitura do seu livro para que os destinatários vinculem determinadas características daquilo que o autor denomina “retórica autoritária”, analisada em Mein Kampf, com a retórica do PRI, concebido, como é feito pelas organizações civis de esquerda do seu país, como uma ditadura. Esse compromisso de Ramírez Vidal com a realidade sociopolítica do seu tempo e com a atualidade da Retórica tem-se plasmado também em seu constante trabalho para constituir e consolidar associações de Retórica que reúnem acadêmicos da América Latina e da Ibero América. De fato, Ramírez Vidal assumiu o cargo de primeiro presidente da Associação Latino-america de Retórica e da Associação Mexicana de Retórica e atualmente preside a Organização Ibero-americana de Retórica.
Ramírez Vidal aborda Mein Kampf a partir de uma ideia muito atrativa: considera-a “un ars rhetorica sui generis“, i.e., um “manual” ou “tratado” prático de retórica “que poderia oferecer aos eventuais divulgadores do nazismo, e não só aos dirigentes da organização partidária, uma série de elementos técnicos que lhes permitiriam difundir, de modo eficaz, a ideologia do autor” (p.14)3. Fiel seguidor de Aristóteles, para quem a Retórica é amoral, servindo tanto para o bem quanto para o mal, nosso autor parte da questão sobre a eficiência do texto de Adolf Hitler e não de suposições axiológicas ou normativas.
O livro realiza uma rigorosa análise retórica de Mein Kampf, chamando a atenção os profundos conhecimentos que Ramírez Vidal possui sobre a Retórica. O autor explica as noções retóricas que usa, porém evita as citações eruditas, o que agiliza a leitura e constitui um indício de que o texto não se dirige apenas a especialistas na área. La palabra y el puño possui, de fato, uma função didática que se sustenta na proposta de que a Retórica possui um valor essencial na formação dos cidadãos e na vida cívica própria da democracia.
La palabra y el puño se compõe de uma Introdução, dois capítulos com subseções e as conclusões. A Introdução inclui o estado da arte, e nela Ramírez Vidal sintetiza os principais estudos prévios sobre as habilidades oratórias de Hitler e sobre Mein Kampf, expõe o eixo de sua leitura – o texto funcionou como um “manual prático” de retórica – e resume o conteúdo dos capítulos.
O capítulo 1, intitulado Mein Kampf, concentra-se, em sua primeira seção, nos aspectos de caráter macrorretórico (termo retirado de Livio Rossetti)4, isto é, a finalidade da obra, os destinatários e as circunstâncias do tempo e do espaço em que foi elaborada, aspectos a que Hitler se adequou de forma exitosa. A partir de abundante bibliografia clássica e atual, Ramírez Vidal refere-se, assim, às condições econômicas desfavoráveis da Alemanha após o Tratado de Versalhes, o Putsch de Münich dos dias 8 e 9 de novembro de 1923, à posterior prisão de Hitler – que implicou sua “conversão” ao “haver-se transformado no verdadeiro enviado que haveria de salvar a Alemanha” (p.28)5, à ascensão do Partido Nazista e à própria história de Mein Kampf. Texto em dois volumes, o primeiro foi escrito no presídio de Landsberg, em 1924; foi posteriormente corrigido e reescrito por diversas pessoas e publicado em 1925. O segundo volume foi escrito já fora da prisão e publicado em 1926; em 1930, publicou-se a obra pela primeira vez em um volume só.
Ramírez Vidal retoma o termo kairós, momento oportuno que propicia ou determina uma ação. Em relação a Mein Kampf, o primeiro momento oportuno foi o prestígio conquistado por Hitler devido ao seu encarceramento e à publicação desta obra e o segundo, a falência alemã devida à grande depressão de 1930 e 1933, que fez de Hilter “um dirigente nacional e um mito da direita alemã” (p.34)6.
A segunda parte do capítulo 1 expõe o acesso à obra (accessus ad operam), extremamente fundamental para demarcar a finalidade (telos, finis). A finalidade de Mein Kampf é oferecer aos seguidores do movimento nacional-socialista uma série de princípios fundamentais que deveriam adotar em seu trabalho propagandístico. Para atingir essa meta, Hitler recorre ao procedimento denominado paradigma, porque os seguidores entenderiam, pelo exemplo de sua própria vida, os objetivos do movimento e o seu desenvolvimento para poder realizar uma difusão adequada. No que se refere à natureza da obra (quid), Ramírez Vidal considera-a um “tratado”, no sentido mais amplo do conceito, mesmo que esteja marcado por subjetividade, o que não é próprio desse gênero. É um “tratado retórico” porque “expõe, de maneira mais ou menos sistemática, completa e com fins didáticos, uma série de ensinamentos sobre a forma como se deve construir um texto oral ou escrito de natureza política para a propagação eficaz da ideologia nacional-socialista” (p.42-43)7.
O capítulo 2, Elementos de retórica nazista, é o mais extenso e possui quatro subseções. A primeira trata da figura do orador com base na ideia principal de que uma retórica autoritária, seja de direita ou de esquerda, se funda no ditador, aquele que articula o discurso. Ramírez Vidal considera, aplicadas a Hitler, as habilidades que se deve ter para ser um excelente orador e que são mencionadas em Mein Kampf: naturais, práticas e técnicas ou teóricas. Sobre as primeiras, destaca, como traço positivo, a sua voz, “uma voz de barítono, que sabia modular desde o piano ao fortissimo“8 e suas mãos, “bem formadas e expressivas” (p.51)9, apesar de seu físico e baixa estatura constituírem deficiências naturais. Em relação a fatores práticos, Hitler apreciou a retórica do prefeito de Viena, Karl Lueger – antissemita declarado -, tomou como modelo outro conhecido antissemita, o pensador austríaco Georg von Schoenerer (1842-1921) e exercitou-se com o grupo de propagandistas do segundo regimento de infantaria do Reichswehr (nome das Forças Armadas Alemãs). No que tange às competências teóricas, como agente antibolchevique Hitler fez cursos de oratória organizados pelo Departamento de Informação e, em 1919, participou de cursos de formação na Universidade de Münich. Ramírez Vidal comenta a bibliografia dos livros que Hitler leu, tema sobre o qual não há consenso, mas aponta para o fato de que a sua eloquência parece refletir os 38 estratagemas da dialética erística contida na obra Dialektik, de A. Schopenhauer, em especial o último estratagema, que se refere à forma de denegrir o adversário. Ao concluir a subseção, Ramírez Vidal reflete sobre a relação entre técnicas erísticas e a violência física. Entre outras características da retórica de Hitler, inclui a defesa de ponto de vista próprio sem atentar aos argumentos do adversário; a busca de que sua vontade se paralise; a simbiose unidirecional do orador para com o seu auditório, de quem não admite réplicas, e o ataque como melhor meio de defesa. Com exemplos concretos, Ramírez Vidal, explica muitos dos sucessos de Hitler com base na aliança entre “palabra” e “puño”. De fato, a sentença de Mein Kampf “A coação só se rompe mediante a coação e o terror com o terror” (p.72-73)10 vincula-se com o ataque aos adversários em lutas de rua, a sabotagem e as técnicas de interrupção nas assembleias e a promoção de enfrentamentos para converter o Partido Nacional-Socialista Operário Alemão em notícia.
A segunda seção do capítulo 2 é dedicada a Inventio. Nela, Ramírez Vidal inclui três pontos principais. Um deles se refere aos locais de onde são retirados os argumentos, classificando-os, a partir disso, em lógicos (relativos ao assunto), éticos (relativos ao orador) e emocionais (relativos ao destinatário). Nesse sentido, nosso autor destaca que na retórica democrática a ordem de importância dos argumentos é lógicos-éticos-patéticos enquanto na retórica autoritária a ordem é éticos-patéticos-lógicos11. Outro ponto se constitui na classe e na estrutura dos argumentos, isto é, os entimemas e os paradigmas. Em Mein Kampf, Hitler mesmo se apresenta como o paradigma por excelência do orador nacional-socialista; em relação aos entimemas, Ramirez Vidal, fundamentando-se em TheUses of Argument, de S. Toulmin, destaca que a grande falácia da argumentação nazista é a ausência de garantias para sustentar as leis de passagem. O último ponto é a distinção entre lugares comuns e lugares próprios, que correspondem àquilo que Hitler denomina “ideias básicas” ou “amplos pontos de vista”. Estes são formulados nos seis primeiros capítulos de Mein Kampf e constituem os dogmas da argumentação totalitária, como a superioridade ariana, o ódio contra o judeu, a necessidade da intolerância, o treino físico como meio de preservação da raça, o antiparlamentarismo, entre outros.
Ramírez Vidal concentra-se no primeiro desses pontos. Dessa forma, descreve alguns argumentos lógicos usados em Mein Kampf, como o fim e os meios. Entretanto, dado que a retórica autoritária não pondera sobre esse tipo de argumento, a análise se detém nos argumentos éticos e patéticos, adequados para Hitler diante de uma massa que é percebida, de modo explícito, como incapaz de compreensão e de memória. Toda a primeira parte de Mein Kampf procura construir uma imagem eficaz de Hiltler, um êthos do homem superior, apelando a tópicos do gênero epidítico que sustentam um autoelogio, como a raça, a cultura ou a história pessoal. Ramírez Vidal recupera a bibliografia mencionada nas leituras que Hitler fez sobre a psicologia das massas e identifica estratégias que tendem a gerar emoções no auditório (em especial ódio, temor, angústia, asco e seus contrários), como a dramatização da história universal ou o emprego de certas expressões que designam uma conspiração internacional ou o enriquecimento dos judeus.
A terceira seção do capítulo 2 aborda a Elocução. Ramírez Vidal atribui a Hiltler o estilo humilde ou baixo e faz questão de recomendar o emprego de palavras comuns e correntes, apresentando modelos de uso para que seus seguidores imitem e ensinem aos outros. Em relação às virtudes elocutivas (correção, clareza, adequação e ornato), Hitler privilegia a clareza e a adequação, sem preocupar-se com a correção. Ramírez Vidal destaca, no ornato, o uso de personificações e alegorias; prioriza, principalmente, a análise das figuras retóricas do símile, a metáfora, a hipérbole, a antítese e o uso de provérbios ou expressões proverbiais. Esses recursos não provam nada no sentido de argumentos lógicos, porém geram emoção e se articulam com estereótipos ou mitos, o que lhes dá grande força persuasiva. A força desses elementos microrretóricos dependeu do modo como Hitler adequou e aproveitou os elementos macrorretóricos, particularmente o contexto em que escreveu Mein Kampf e no qual ele foi recebido.
A última seção do capítulo 2 é dedicada a Actio, aludido por Hitler em Mein Kampf, quando menciona os mecanismos verbais que seguia. Além disso, Hitler estabelece com clareza a diferencia entre o discurso oral e o escrito, valorizando o primeiro sobre o segundo por ter esse alto poder de produzir, por razões psicológicas, mudanças realmente significativas. Ademais, considera que o discurso oral permite uma ampla adequação aos ânimos do público, atingindo grande parte das massas, sendo o texto propagandístico escrito, em geral, somente lido pelos simpatizantes do partido.
As conclusões de La palabra y el puño explicitam a finalidade que Ramírez Vidal atribui a seu livro: “o conhecimento dos processos discursivos a que recorrem os líderes dos regimes autoritários tem o fim prático de encontrar antídotos que façam frente aos mecanismos da ditadura” (p.141)12. Recapitula, dessa forma, as características da retórica autoritária: aproveita condições sociais e econômicas desfavoráveis, complementa-se com a violência física, parte de dogmas incontestáveis estabelecidos por um indivíduo que se diz iluminado, prioriza argumentos emocionais que apoiam o culto à pessoa e tendem a gerar medo ou pânico, usa uma linguagem de caráter polar, sentencioso e hiperbólico, que cria estereótipos desmerecendo o adversário, e recorre a uma Actio com gesticulações, tom patético e atitude inflamada, chamejante embravecida. Como contrapartida, é caracterizada a retórica democrática.
Ramírez Vidal faz questão de enfatizar que a formação retórica do cidadão é essencial na vida democrática; somente sua educação cívica e o respeito às leis podem evitar que a retórica autoritária se expanda. De alguma forma promove aquilo que Ph-J. Salazar13 denomina “alfabetização retórica”, que ajuda a evitar que a democracia se transforme em uma manipulação de opiniões.
Frente a Mein Kampf, protótipo da retórica usada para o mal, o livro de Ramírez Vidal é uma maravilhosa aposta na retórica empregada para o bem; se a obra de Hitler se constituiu um manual para que seus seguidores difundissem o nacional-socialismo, La palabra y el puño sobressai como um valioso manual de análise retórico, modelo para trabalhos futuros, que aspira a contribuir com a democracia e a justiça no México, desejo que se prolonga para toda a América Latina.
Tradução para o português por Gabriel Jiménez Aguilar – aguilar.jgabriel@gmail.com
1Sobre esse assunto, veja LÓPEZ EIRE, A. La naturaleza retórica del lenguaje, Logo. Revista de Retórica y Teoría de la Comunicación 8/9, 2005, p.5-254.
2Texto no original: “A quienes con valentía y perseverancia han luchado en contra de la dictadura priista”. Priista: pertencente ao Partido Revolucionário Institucional (PRI), partido político do México que manteve o poder político de maneira hegemônica entre 1929 e 1989.
3Texto no original: “que podría ofrecer a los eventuales divulgadores del nazismo, y no solo a los dirigentes de la organización partidista, una serie de elementos técnicos que les permitiría a ellos mismos difundir de manera eficaz la ideología del autor”.
4Neste sentido, pode-se vincular a noção de aspectos macrorretóricos com a noção de Intellectio (CHICO RICO, F. La Intellectio. Notas sobre una sexta operación retórica. Estudios de Literatura 14, 1989, p.47-55). A Intellectio é considerada – junto com a Inventio, Dispositio, Elocutio, Actio e Memoria – a sexta operação retórica, que consiste no conhecimento panorâmico e orientador da causa; implica a consideração inter-relacionada dos componentes do processo comunicativo constituídos pelo texto, seu produtor, seu receptor e o contexto comunicativo geral em que ambos se encontram situados. Sobre a macrorretórica, ver ROSSETTI, L. Estrategias macro-retóricas: el “formateo” del acontecimiento comunicativo. México: Universidad Nacional Autónoma de México, 2009.
5Texto no original: “se había transformado en el verdadero enviado que habría de salvar a Alemania”.
6Texto no original: “un dirigente nacional y en un mito de la derecha alemana”.
7Texto no original: “expone de manera más o menos sistemática, completa y con fines didácticos una serie de enseñanzas de cómo debe construirse un texto oral o escrito de naturaleza política para la propagación eficaz de la ideología nacionalsocialista”.
8Texto no original: “una voz de barítono, que sabía modular desde el piano al fortissimo“.
9Texto no original: “bien formadas y expresivas”.
10Texto no original: “La coacción sólo se rompe mediante la coacción y el terror con el terror”.
11No marco da análise do discurso sustentado sobre dados descritivos da linguística textual, Adam e Herman (ADAM, J-M. y HERMAN, Th., Reformulation, répétition et style périodique dans l’appel du 18 juin 1940, Semen, 12, Répétition, altération, reformulation dans les textes et discours, 2000 [en línea], puesto en línea el 4 de mayo de 2007. URL: http://semen.revues.org/document1862.html) advertiram a respeito de algo semelhante, nesse caso contrastando o “Llamamiento del 18 de junio” [Chamamento de 18 de junho] do general De Gaulle com o discurso feito pelo Marechal Pétain um dia antes, o 17 de junho de 1940. Esses autores diferenciam a argumentação, que está baseada no êthos, o pathos e o logos como três polos complementares, da manipulação, que abandona o polo do logos e se concentra no êthos e no pathos. De Gaulle argumenta; Pétain, como Hitler, manipula.
12Texto no original: “El conocimiento de los procesos discursivos a los que recurren los líderes de los regímenes autoritarios tiene el fin práctico de encontrar antídotos que contrarrestren los mecanismos de la dictadura”.
13Tomar el poder por la palabra. Elementos de fabricación de la retórica electoral, Rétor 2 (2), 2012, p.260-263.
María Alejandra Vitale – Universidade de Buenos Aires, UBA, Buenos Aires, Argentina; vitaleale@fibertel.com.ar.
Discurso citado e memória – Ensaio bakhtiniano sobre Infância e São Bernardo – CASTRO (B-RED)
CASTRO, Gilberto de. Discurso citado e memória – Ensaio bakhtiniano sobre Infância e São Bernardo. Chapecó: Argos, 2014. 158 p. Resenha de: LIMA, Sandra Mara Moraes. Bakhtiniana – Revista de Estudos do Discurso, v.10 n.2 São Paulo May/Aug. 2015.
Essa obra de Gilberto de Castro, resultado de sua tese de doutorado, além de proporcionar ao leitor fruição estética, ao trazer um olhar sensível para as duas obras literárias de Graciliano Ramos, apresenta contundentes esclarecimentos em torno do arcabouço teórico do Círculo bakhtiniano, sobretudo no que diz respeito ao discurso citado que, como bem afirma o autor, raramente são objetos de estudos e análise.
Lendo o livro de Castro, compreendemos que essa lacuna se faz grave, uma vez que, segundo o autor, o discurso citado, não apenas se encontrar preponderantemente integrado à teoria da linguagem elaborada pelo Círculo, como é um dos elementos fundamentais para compreensão do caráter ontológico da linguagem, bem como da ordem do discurso.
O leitor se depara na obra com uma ampla abordagem do que vem a ser o discurso citado, caracterizado como o encontro de vozes que forja o discurso, demonstrando que é por meio dos processos de citação e referência às palavras de outrem que o discurso se organiza. Nesse contexto, o autor deixa clara a perspectiva teórica do Círculo, cuja abordagem não se atém aos aspectos formais da linguagem: “[…] falar em discurso citadonão significa tratar de mera justaposição de vozes, ideias, pensamentos, mas antes pensar numa abordagem ampla do encontro vocal sem que deixemos de lado a sua dimensão ideológica e valorativa” (p.39 – grifos do autor).
Importa considerar, no que diz respeito ao discurso citado, que o romance oferece o ambiente privilegiado para esse estudo, uma vez que o texto romanesco possui uma
[…] estreita ligação com a vida, manifestada na absorção intensa e sensível da multiplicidade dos demais gêneros discursivos (simples e complexos) e das diferentes visões de mundo, que o romance acabou se transformando na fonte empírica mais importante para o estudo dos processos de citação (p.43).Castro se debruçou sobre duas narrativas de Graciliano Ramos, densas e consagradas, apresentando, no primeiro capítulo, as bases teóricas do trabalho e, nos demais capítulos, uma análise minuciosa das formas de citação no gênero autobiografia que caracteriza tanto Infância quanto São Bernardo.
No tocante ao embasamento teórico, dá a conhecer as diversas formas de citação da palavra alheia, trazendo o argumento de Bakhtin sobre a importância da citação no quadro geral da comunicação, uma vez que, segundo o teórico russo, pelo menos metade de todas as palavras, no cotidiano das pessoas, é de outrem. Nesse sentido, o autor, de maneira fecunda para os estudos da linguagem, deixa esclarecida a perspectiva bakhtiniana que, mais do que qualquer outra coisa, busca expor o aspecto metodológico de análise da linguagem. Isso significa que a preocupação é de compreensão do caráter ontológico da linguagem e não a catalogação de formas esquemáticas. A essa proposta do Círculo, o autor pretende ser fiel, apresentando uma teoria que esteja embasada substancialmente na essência da linguagem.
Nessa direção o livro esclarece, com didatismo e síntese, o processo do discurso citado que encontra suas formas gramaticalizadas socialmente, integrando-se à narrativa, basicamente de duas formas: em estilo linear e em estilo pictórico.No primeiro, a fronteira que delimita a citação é bem estabelecida, preservando integralmente o discurso de outrem. O segundo caracteriza-se por uma elaboração mais sutil, facultando ao enunciador interferir, imprimindo ao discurso citado o tom apreciativo do narrador.
Nesse contexto, ainda no primeiro capítulo, o autor pontua a análise efetuada por Volochínov em relação aos textos literários russos, onde são enumeradas algumas variantes do discurso direto e indireto, situando as especificidades estilísticas de cada um. Castro esclarece pormenorizadamente – amparado nas análises de Volochínov dos fragmentos de textos literários russos – o processo de funcionamento, primeiramente das variantes do discurso indireto – discurso indireto analisador do conteúdo (DIAC), discurso indireto analisador da expressão (DIAE) e discurso indireto impressionista (DII)); – e posteriormente passa a tratar de algumas variedades do discurso direto – discurso direto preparado (DDP), discurso direto esvaziado (DDE), discurso direto retórico (DDR) e discurso direto substituído (DDS),sendo este último muito próximo do discurso indireto livre (DIL).
No segundo capítulo – A voz abrangente: o discurso citado em Infância e São Bernardo, Castro analisa as formas de citação nos romances de Graciliano Ramos, partindo do caminho teórico construído, em que apresentou as formas abordadas por Volochínov, trazendo, com originalidade e clareza, uma ampliação da teoria ao designar algumas formas de citação, especialmente quando trata do discurso direto constituidor (DDC) como discurso revelador da visão de mundo do narrador. Em Infância, segundo o autor, Graciliano Ramos evidencia, por meio desse discurso (DDC), a visão de mundo acerca de seu passado como um mundo onde preponderava a brutalidade, o despotismo e o preconceito, sem lugar para a bondade, generosidade e sensibilidade. E as formas de citação que ocorrem nessa obra – discurso indireto livre (DIL), discurso direto esvaziado (DDE), discurso indireto indeterminado (DII), discurso indireto elíptico (DIE) – apontam para uma fuga dos diálogos, o que significa que as falas alheias que aparecem no texto de Ramos estão a serviço de colorir, dar o tom do discurso constituidor do narrador, revelando uma estratégia de obnubilar a voz das personagens, controlando o que elas dizem.
São Bernardo, de acordo com Castro, apresenta uma narrativa bem diversa de Infância, com enredo regular e formas de citação bem mais simplificadas. Entretanto, a maneira de organizar o discurso, em que o discurso direto constituidor (DDC) revela o acabamento e as marcas da visão de mundo do narrador, é semelhante ao que ocorre em Infância. Também em São Bernardo o narrador volta ao passado para reconstituir sua história e o tom emocional-volitivo desse narrador expressa o perfil de um homem endurecido, frio, calculista, autoritário e sem escrúpulos para atingir seus objetivos.
Na narrativa de São Bernardo predomina o discurso direto, cunhado por Castro de discurso direto dialógico (DDD), havendo raros momentos do discurso indireto. No entanto, segundo o autor, presencia-se, no meio do discurso direto dialógico, a intercalação do discurso indireto, designado pelo ensaísta de discurso indireto dialógico (DID), tendo em vista a função dialógica que esse discurso promove no discurso direto dialógico em que se insere.
Confirmando o caráter analítico e teórico, o livro de Castro esclarece também, de maneira inusitada, que há outra forma de citação no meio dos diálogos, denominada pelo ensaísta de discurso direto repetido (DDRe), forma em que o narrador repete a fala da personagem explicitada no discurso direto de modo a expressar uma crise ou conflito vivido pelo narrador, especialmente nos momentos em que o narrador experimenta o sentimento de ciúmes por sua esposa Madalena.
Outra de forma de citação descrita por Gilberto Castro também frequente em São Bernardo, é o discurso direto esvaziado (DDE), que ocorre como uma maneira de contextualização, uma expressão de um sentimento ou uma exclamação, evidenciando o tom do que está sendo narrado e aparece, mais enfaticamente, tal como o DDRe, nos momentos de crise vividos pelo narrador com sua mulher Madalena.
O autor encerra o segundo capítulo concluindo que, embora o romance São Bernardo apresente diferença em relação à obra Infância, há muita semelhança na forma de conduzir a narrativa dos dois enunciados, pois ambos revelam um narrador que monopoliza as falas de modo a dar o tom de seu depoimento, de sua história, evidenciando o centralismo da narrativa e, tanto em Infância como em São Bernardo “Todas as formas de citar estão, assim, a serviço deste narrador centralizador – autor/narrador no primeiro caso e narrador/personagem no segundo caso” (p.125).
No terceiro e último capítulo, o autor retoma a teoria bakhtiniana acerca da polifonia, asseverando que Bakhtin considerar Dostoiévski como criador de uma nova modalidade romanesca não coloca o romance polifônico acima das demais obras literárias, isto é, não diminui o valor dos romances que não se enquadram na categoria de polifônicos. Nesse contexto, tanto Infância quanto São Bernardo são discursos autobiográficos, construídos em narrativa de primeira pessoa, cuja perspectiva e visão de mundo preponderante, ao contrário do romance polifônico, é a do narrador. E, sendo as duas narrativas autobiográficas, a forma de citar, promovendo uma perspectiva centralizadora do narrador, é inevitável, é condição desse gênero de prosa literária. “A autobiografia é, portanto, uma narrativa autocentrada na figura do narrador, fazendo com que a sua voz ecoe mais forte do que todas as outras, dominando-as e submetendo-as ao seu monopólio avaliativo” (p.131). O objetivo dos narradores em questão, segundo o autor, não está centrado no interesse em discutir o tema, nem dialogar com as supostas falas citadas, mas construir a narrativa no sentido do desabafo, o que estabelece uma perspectiva diferente da que ocorre numa estética polifônica.
E, considerando a diferença entre as duas obras no que diz respeito à ficcionalidade, embora em Infância haja a constatação de que a obra se refere à vida do escritor, assumindo um caráter de veracidade, segundo o ensaísta, isso não é suficiente para gerar diferença entre a narrativa autobiográfica das obras, uma vez que, “Do ponto de vista da constituição do gênero autobiográfico, parece que o que é mais significativo, não é o efeito de realidade que se pode criar […] mas muito mais a perspectiva narrativa assumida por quem conta a história” (p.144).
São retomadas, com síntese e clareza excepcionais, nesse capítulo, as análises efetuadas nas formas de citação das obras de Graciliano selecionadas, reiterando, primeiramente em Infância e depois em São Bernardo, que todo o conjunto de citações é estratégia de obscurecer e diminuir a liberdade das vozes citadas, passando parte da responsabilidade das palavras citadas para o narrador, uma vez que ele conta sozinho os fatos passados. É esse posicionamento, expressando a visão de mundo forjada a partir das experiências, nascida das memórias, tanto do autor Graciliano Ramos como do narrador-personagem Paulo Honório, que Castro designa, como já mencionado, como discurso direto constituidor (DDC).
Enfim, o ensaio de Gilberto Castro traz para estudiosos da linguagem, pesquisadores, leitores interessados nas questões discursivas e no gênero discursivo uma potente contribuição teórica acerca do discurso citado e, sobretudo, acerca do gênero discursivo, mais especificamente o gênero da autobiografia. O leitor vai encontrar uma abordagem que esclarece com eficiência e síntese a teoria do Círculo e ultrapassa-a, fornecendo, para os diversos modos de citação, uma nomenclatura original e esclarecedora. O livro também agradará, certamente, aos amantes da literatura brasileira pelo olhar sensível e perspicaz que o ensaísta lança sobre as obras de Graciliano Ramos, proporcionando, ao mesmo tempo, leitura prazerosa e conhecimento teórico. Nesse ponto, a obra é notável por tornar menos densas e demarcadas as fronteiras, às vezes territórios cerrados, entre os estudos da linguagem e os estudos da literatura, promovendo uma abertura que, inevitavelmente, contribui para a compreensão geral dos processos discursivos, sobretudo os modos de citar, em que todos estamos inexoravelmente, sem álibi, submetidos, imersos.
Sandra Mara Moraes Lima – Secretaria de Estado da Educação do Espírito Santo – SEDU-ES; Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUC/SP, São Paulo, Brasil; sandralima605@gmail.com.
Civil society and participatory governance: municipal councils and social housing programs in Brazil – DONAGHY (B-RED)
DONAGHY, Maureen M. Civil society and participatory governance: municipal councils and social housing programs in Brazil. New York: Routledge, 2013. 200p.
Maureen Donaghy (2013) investiga o impacto dos conselhos municipais de habitação do Brasil sobre as políticas públicas, avaliando se essas inovações institucionais são capazes de produzir alterações que beneficiem as camadas da população mais necessitadas de políticas habitacionais. Seu objetivo é entender como os avanços da democracia podem ser aproveitados para resolver os profundos problemas sociais do presente.
A exemplo de outras pesquisas sobre as instituições participativas – conselhos gestores, orçamentos participativos, audiências públicas, etc. –, Donaghy (2013) avalia as participatory governance institutions como um tipo particular de instituição democrática inovadora, capaz de incorporar a sociedade civil no processo descentralizado de promoção de políticas públicas e promover a accountability. A autora parte da hipótese de que a existência dessas instituições obriga os governos municipais a adotarem um número maior de programas sociais voltados para as necessidades dos segmentos pobres, o que inclui a habitação (p. 10).
O estudo fundamenta-se nos pressupostos do Novo Institucionalismo (p. 77) e desenvolve esquemas teóricos para compreender como as regras institucionais podem condicionar os comportamentos e os resultados, oferecendo incentivos aos atores envolvidos. Assim, por meio de variações nas instituições (os conselhos gestores) e em suas regras, seria possível observar diferenças nas políticas públicas e em seus resultados nos municípios pesquisados. O desenho da pesquisa inclui um método misto de abordagem, que envolve estudo de casos e métodos quantitativos large-N, que permitem a comparação de grande quantidade de dados estatísticos, como os dados da pesquisa MUNIC do IBGE, que trazem informações sobre os conselhos gestores de todos os municípios do país. A combinação de métodos é positiva, porque, embora nem sempre tais métodos indiquem resultados semelhantes, eles se complementam e suprem lacunas eventualmente observadas em um ou outro método isoladamente, dando confiabilidade às conclusões.
No capítulo 2, a discussão se concentra na política habitacional do Brasil, contrastada com a de outros países em desenvolvimento, salientando o uso do termo “moradia” em vez de “habitação” (housing), porque o primeiro tem sentido mais amplo. A moradia, como política pública, é apresentada como de fundamental importância nos países em desenvolvimento, sendo uma questão diretamente ligada à democracia, ao desenvolvimento e aos direitos humanos, capaz de reduzir a pobreza e a desigualdade social (p. 27). Na comparação entre programas habitacionais de países em desenvolvimento, Donaghy (2013) destaca falhas do mercado em prover moradia satisfatória para as camadas de renda mais baixa e conclui que, na maioria desses países, nos dias atuais, prevalece um conjunto de políticas que inclui projetos estatais, projetos comunitários, ao lado de projetos desenvolvidos pela iniciativa privada, além da incorporação dos segmentos mais pobres e de representantes da sociedade civil no processo de planejamento e de execução de diferentes políticas habitacionais (p. 37-38), a exemplo do Sistema Nacional de Habitação de Interesse Social (SNHIS), criado no Brasil no ano de 2005. Uma ressalva quanto à inclusão desses segmentos na gestão das políticas públicas é que essa política não tem alcançado a amplitude inicialmente esperada por pesquisadores e militantes dos movimentos sociais.
O capítulo 3 traz argumentos teóricos sobre os efeitos das participatory governance institutions sobre as políticas públicas, testando as hipóteses de que os conselhos municipais de habitação podem aumentar as probabilidades de os municípios adotarem diversificados programas sociais de habitação. O argumento principal é de que esses espaços formais de deliberação são capazes de beneficiar a população pobre através de programas de habitação social e também podem reduzir as possibilidades de corrupção, do seu uso político e da sua captura pelas elites (p. 49).
A autora discute, no capítulo 4, as hipóteses de que um elevado número de organizações da sociedade civil per capita (densidade associativa) tem um forte efeito na capacidade de as instituições de governança participativa produzirem políticas sociais, o que não se confirmou com os dados testados, enfraquecendo uma variável essencial em muitos estudos. Esse achado sugere que a densidade associativa é menos importante do que a incorporação formal das organizações da sociedade civil nas instituições deliberativas como os conselhos de habitação (p. 74).
No capítulo 5, são avaliados os efeitos da dinâmica entre a sociedade civil e o Estado e das regras institucionais sobre o processo de produção das políticas de habitação pelos conselhos municipais, e nele se buscam evidências sobre quando e como o contexto é determinante para as instituições participativas (p. 75). Por meio de uma análise comparativa entre os municípios brasileiros, a pesquisa evidencia que o partido político no exercício do poder, a influência do setor privado e as estratégias das organizações da sociedade civil são fundamentais na dinâmica entre a sociedade civil e o governo local. A análise se completa com um estudo de caso em três cidades brasileiras: São Paulo, Salvador e Santo André.
A utilização de métodos qualitativos e quantitativos levou a resultados diversos: os estudos de caso apresentaram fortes evidências de que o partido no poder influencia a dinâmica entre a sociedade civil e o Estado, com reflexos no processo político do conselho municipal de habitação. Entretanto, os resultados quantitativos não confirmaram a importância inicialmente aventada de que uma administração petista seria relevante para os resultados dos programas habitacionais: a disponibilidade de recursos orçamentários tem peso maior do que a ideologia partidária (p. 113). Esse resultado contraria pressupostos iniciais de algumas pesquisas pioneiras sobre as instituições participativas no Brasil, mas ele já havia sido detectado, por exemplo, em pesquisas que constataram a disseminação do orçamento participativo por municípios de diferentes regiões, governados por diversos partidos.
No capítulo 6, há uma avaliação sobre como as razões para a criação das instituições de governança participativa podem afetar o comprometimento dos gestores públicos e dos membros da sociedade civil representados nessas instituições e se esse comprometimento influi nos resultados das políticas públicas. Confirma-se algo já constatado em outros estudos: o comprometimento ideológico dos gestores públicos, ou a “vontade política”, tem papel significativo na atuação e nos resultados produzidos pelos conselhos municipais (bottom-up), ao contrário daqueles conselhos criados tão somente em função da exigência federal para a liberação de recursos destinados à política habitacional (top-down). Os casos estudados e os testes estatísticos revelaram que o comprometimento dos atores é fator crítico para a efetividade dos conselhos municipais de habitação (p. 118).
Já o capítulo 7 é inteiramente dedicado ao estudo do caso do Conselho de Habitação do município de São Paulo, em dez anos de funcionamento (2002-2012), para avaliar as mudanças sofridas por uma instituição participativa ao longo do tempo, a sua adaptação para fazer frente às mudanças nas demandas sociais, nos recursos federais disponíveis, na atuação do setor privado, além das mudanças na percepção sobre as necessidades habitacionais.
A autora reitera: “Participatory governance institutions do matter” (p. 164). Um dos principais achados da pesquisa é que as instituições de governança participativa fazem diferença para a aprovação de políticas sociais que possam beneficiar os setores mais pobres da população. Além disso, a existência do conselho municipal, embora não seja o único fator determinante, pode ampliar as possibilidades de adoção de uma maior variedade de programas sociais de habitação. Outra conclusão significativa de Donaghy (2013) é que a adoção desses programas pode ocorrer a despeito da existência de uma forte “densidade associativa”.
Em tempos de questionamentos sobre o papel do Estado, a pesquisadora conclui que esse ente ainda é relevante para incentivar o mercado da habitação e implementar diretamente alguns programas (p. 165). Apesar da amplitude do estudo – que evidencia a importância do design institucional subnacional para a promoção de resultados em termos das políticas públicas –, a autora admite que não foi possível vincular a ação dos Conselhos Municipais de Habitação a alterações nas condições de vida nos municípios brasileiros, o que não diminui a importância de sua pesquisa.
Flávio Santos Novaes – Doutorando em Administração. Pesquisa a gestão pública, especificamente a participação popular no orçamento público e em outros fóruns, como os conselhos gestores de políticas públicas. Atualmente pesquisa a participação social nos conselhos municipais de habitação de Salvador, Vitória da Conquista e Camaçari flavaonovaes@yahoo.com.br
Cad. CRH vol.28 no.74 Salvador May/Aug. 2015
Literatura e racismo: uma análise intercultural – MELO JR (B-RED)
MELO JR., Orison Marden Bandeira de. Literatura e racismo: uma análise intercultural. Recife: Ed. Universitária da UFPE, 2013. 111 p. [Coleção Étnico-racial]. Resenha de: SANTOS, Rubens Pereira. Bakhtiniana – Revista de Estudos do Discurso, v.10 n.1 São Paulo Jan./Apr. 2015.
Literatura e racismo: uma análise intercultural, de Orison Marden Bandeira Jr., é um livro atraente. Resultado de uma pesquisa de mestrado, na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, o autor transita pelos mais variados setores da cultura: filosofia, história, antropologia, literatura, e realiza uma rigorosa análise de duas obras escritas no século XIX: O mulato (1881), de Aluísio Azevedo e The house behind the cedars (1900), do escritor americano Charles Chesnutt. Ambas são ambientadas na década de 1870 e a proposta do autor, para a análise literária, foi a de utilizar-se dos estudos bakhtinianos na intenção de apontar a existência de um discurso marcadamente racista, em especial, na fala do narrador. Como apoio para suas argumentações, Orison investiga obras anteriores, comprovando a presença de ecos de um discurso preconceituoso em relação ao negro e também ao mulato. Dos autores brasileiros, o autor demonstra que em Memórias de um sargento de milícias (1854), de Manuel Antônio de Almeida, As vítimas algozes: quadros da escravidão (1869), de Joaquim Manuel de Macedo, O tronco do ipê (1871), de José de Alencar, A escrava Isaura (1875), de Bernardo Guimarães e Iaiá Garcia (1871), de Machado de Assis, há muitas situações em que o discurso empregado pelo narrador resvala para o preconceito. A mesma comprovação é feita no romance americano A Cabana do Pai Tomás (1852), da escritora Harriet B. Stowe. Publicado em 2013, pela Editora Universitária (UFPE), o livro faz parte de uma coleção comemorativa aos dez anos da lei 10639/2003, projeto da Pró-Reitoria de Extensão da Universidade Federal de Pernambuco.
Composto por uma breve Introdução, dez capítulos e as Considerações Finais, o autor envereda por questões da mais alta importância para os estudos literários: ancorado em Bakhtin, Volochínov, Fiorin, dentre outros, estabelece as bases para a sua análise, explorando narrativas que, potencialmente, apontam para a existência do discurso racista. No capítulo 1, encontram-se os pressupostos da pesquisa. O título, bastante significativo, indica o que vai ser discutido: “Uma análise literária intercultural a partir dos conceitos de palavra, enunciado, dialogismo e compreensão” (MELO Jr., 2013, p.17). O método utilizado pelo autor é claramente bakhtiniano, baseado na Análise Dialógica do Discurso. Apoia-se, inicialmente, em estudiosos da temática, como Beth Brait (Análise e teoria do discurso), José Luiz Fiorin (Introdução ao pensamento de Bakhtin), para depois ir à fonte com Volochínov (Marxismo e filosofia da linguagem) e Os gêneros do discurso, de Bakhtin. Todos os autores têm a mesma visão sobre o texto literário e sobre a conceituação da palavra [“signo ideológico por excelência, possuindo duas dimensões: a dimensão semiótica (materialidade) e a dimensão ideológica (metalinguagem)” (MELO Jr., 2013, p.18)].
Municiado pela concepção de linguagem de Mikhail Bakhtin (o enunciado e/ou a palavra é perpassada pelo diálogo do outro), Orison trabalha o capítulo 2, apresentando teóricos do racismo que defendiam a inferioridade da raça negra, como o zoólogo suíço Agassiz. Em Voyage au Brésil (1867), escrito em parceria com a mulher, ele relata o encontro que teve com uma “população inferior”, composta por negros, mulatos e índios. Vejamos, por exemplo, o que diz o suíço a respeito das suas ideias sobre os negros, quando fala sobre a educação da mulher no Brasil: “[…] é a consequência do contato incessante com os criados pretos e mais ainda com os negrinhos que existem sempre em quantidade nas casas. Que baixeza habitual e os vícios dos pretos sejam ou não efeitos da escravidão, o certo é que existem” (AGASSIZ; AGASSIZ, 2000, p.26)1.
As ideias raciais de Agassiz encontraram espaço nos Estados Unidos e também no Brasil. Sílvio Romero, em História da literatura brasileira, concordou com a doutrina de superioridade da raça branca, creditando ao português o galardão, por ser o principal agente da cultura brasileira. Romero falava do “embranquecimento” da população brasileira, vaticínio que não prosperou. Na esteira do teórico brasileiro há nomes importantíssimos da “intelligentsia” nacional, como o abolicionista Joaquim Nabuco e Nina Rodrigues. Interessante é o caso de Nabuco, por ser um veemente abolicionista: estranha-se sua posição sobre a superioridade da raça branca, chegando a afirmar que o negro exercia uma influência negativa em relação ao branco.
No capítulo 3, o autor discute essas teorias racistas e os possíveis ecos do discurso racial em obras brasileiras. Memórias de um sargento de milícias, As vítimas algozes: quadros da escravidão, O tronco do ipê, A escrava Isaura e Iaiá Garcia foram os romances selecionados para rápidas análises. Em todas elas o narrador utiliza palavras ou frases que determinam a existência de preconceito racial. De fato, o leitor verificará que, mesmo naquelas obras que tenham o cunho de defender o negro, há referências a um discurso racialista. Macedo, em As vítimas algozes, por exemplo, coloca na voz do narrador a necessidade da abolição da escravatura porque “os escravos são perniciosos ao convívio dos brancos, seus senhores” (MELO Jr., 2013, p.34), assegurando que “nunca em parte alguma do mundo houve senhores mais humanos e complacentes que no Brasil” (MACEDO, 1991, p.62)2. Na obra macediana, o escravo é descrito como “imoral”, “ignóbil”, “perverso”, “violento”. Ressalte-se que o leitor terá ao final do capítulo um resumo do que foi exposto. Por exemplo, em Memórias de um sargento de milícias encontramos o estereótipo do “escravo desprezível”, em As vítimas algozes encontram-se os estereótipos do “escravo demônio”, do “escravo desprezível” e do “escravo imoral”. Em A escrava Isaura e Iaiá Garcia destaque para o estereótipo do “escravo nobre”.
O capítulo 4 traz ao leitor uma análise d’O mulato. O autor faz uma breve introdução sobre a recepção da obra em São Luiz do Maranhão. Raimundo Menezes, em sua biografia sobre Aluízio, diz que a repercussão não foi boa, pois os moradores da cidade viam nos personagens do romance uma crítica a si mesmos. Apesar de o romance apresentar uma crítica feroz ao preconceito, denunciando os maltratos sofridos pelos negros escravos, explicitando a perversidade dos senhores, há momentos em que, contraditoriamente, o leitor encontra ao longo da narrativa “descrições preconceituosas de personagens negras secundárias” (MELO Jr., 2013, p.45). Como exemplo, pode-se citar a descrição que o narrador faz sobre os negros fugidos: “escravos fugidos com suas mulheres e seus filhos, formando uma grande família de malfeitores” (AZEVEDO, 1992, p.48)3, ou essa outra caracterização sobre a falta de asseio dos escravos: “à insuficiente claridade de uma lanterna suja, o sinal gorduroso das mãos dos escravos” (AZEVEDO, 1992, p.132)4. São sinais evidentes do discurso racista, e o narrador “deixou várias marcas subjacentes deste preconceito na sua fala, através de palavras e frases de cunho preconceituoso […]” (MELO Jr., 2013, p.50). Para o autor, existe “uma representação estereotipada do elemento negro na narrativa e há a descrição do herói afrodescendente com características de heróis brancos” (MELO Jr., 2013, p.50). Um outro ponto a destacar no capítulo é uma comparação que o narrador faz sobre Benedito, uma criança escrava “um pretinho seco, retinto, muito levado dos diabos… (…) atravessou a sala com uma agilidade de macaco” (AZEVEDO, 1992, p.63)5. Citando Bakhtin, que em Questões de literatura e de estética (2002) afirma que “uma linguagem particular no romance representa sempre um ponto de vista particular sobre o mundo, que aspira a uma significação social” (MELO Jr., 2013, p.135)6, Orison reafirma, com muita propriedade, que o “símile do escravo com o macaco não pode passar despercebido, já que essa linguagem encontra uma significação particular no mundo científico do século XIX” (MELO Jr., 2013, p.49). Nos dias atuais esta relação adquiriu foros de realidade, em função dos atos de preconceito perpetrados por uma minoria racista em todo o mundo.
Do capítulo 5 ao capítulo 8, o foco é o romance de Charles Chesnutt The house behind the cedars. Diferentemente do que acontecia no Brasil, nos Estados Unidos havia leis que definiam se o cidadão era negro ou branco. Se ele tivesse 1/8 de sangue negro era considerado negro, lei criada em 1705, na Virgínia, e já no século XIX (entre 1830 e 1840, houve um arrochamento da lei com a criação da regra one-drop (uma gota). A regra determinava que pessoas, mesmo que não tivessem quaisquer traços negroides – mas se tivessem apenas uma gota de sangue negro, estavam proibidas de se casarem com pessoas brancas. Isso está explícito no romance de Chesnutt, quando o juiz Straight declara que “uma gota de sangue negro torna todo o homem negro” (CHESNUTT, 1993, p.113)7. O autor realiza o mesmo procedimento que fez com O Mulato: antes de analisar The house behind the cedars, buscou elementos de preconceito racial no romance A cabana do Pai Tomás, de Harriet B. Stowe. Tomás, o protagonista, é descrito como um homem conformado com o seu destino, nega-se – inclusive – a fugir para não deixar o seu senhor em má situação. Mudando de senhor, mantinha-se fiel como um cão. Apesar do grande sucesso alcançado pelo romance que era visto como antiescravista, estudiosos afirmam o contrário: a narrativa apresenta uma visão romântica do escravo, o protagonista é o estereótipo do “escravo fiel”, humilde, resignado, cuja passividade é comparada à do burro de carga. A discussão sobre a color line (linha de cor) é esclarecedora para a compreensão do romance chesnuttiano. Algumas regras segregacionistas foram estabelecidas e todos deviam obedecê-las, por exemplo, “o homem negro não podia cumprimentar um homem branco com aperto de mãos; os negros não podiam mostrar afeição entre si em público; os negros sempre eram apresentados aos brancos, nunca o inverso” (PILGRIM, 2000)8.
O capítulo 8 apresenta a análise dos elementos discursivos em The house behind the cedars. O contexto social era de segregação racial, portanto a fala do narrador vai por esse caminho. A casa atrás dos cedros constituía-se no ambiente segregado, negros e mulatos viviam afastados da pequena cidade de Patesville, na Carolina do Norte. A heroína é Rena, filha de Mis’ Molly Walden, “uma afrodescendente livre, filha de pais livres e legalmente casados” (MELO Jr., 2013, p.52). O pai de Rena era um homem branco e rico, apesar de sua ascendência negra sua tez não denunciava isto, podia passar-se por branca, desde que saísse da “casa atrás dos cedros”, da cidade e do estado. Se quisesse pertencer ao “mundo dos brancos” teria que ultrapassar a linha de cor. Foi para Clarence (Carolina do Sul), acompanhando o irmão, e para anular de vez a sua origem mudou até de nome, passando a chamar-se Rowena Warwick. Rena apaixonou-se por um amigo de seu irmão, George, e estavam prestes a marcar a data do casamento. Mas um imprevisto mudou completamente a vida de Rena. Tendo que voltar à cidade natal em virtude da doença da mãe, a sua origem foi descoberta, por acaso, pelo noivo. George viu-a sair de um consultório e soube pelo médico que ela era mestiça. Apesar de manter segredo sobre a situação de Rena e de seu irmão, recusou-se a casar com ela. Rena, abatida e triste, voltou a casa atrás dos cedros e lá morreu. Franz Fanon, em Pele negra máscaras brancas, dizia que a mulher negra tinha um objetivo: “tornar-se branca; a mestiça, por outro lado, não queria apenas tornar-se mais branca; queria não voltar a escurecer” (MELO Jr., 2013, p.75). Rena sentia-se superior aos outros afrodescendentes porque era “embranquecida”, mas para os brancos ela era inferior. Assim como fez em O mulato, o autor coloca um quadro com as palavras e frases encontradas na fala do narrador nas descrições de personagens, semelhantes às dos estereótipos, pontuados por Brookshaw: “escravo fiel” (fidelidade, devoção, senhor, fiel, fatalismo passivo), “escravo nobre” (superiores em sangue, qualidade superior, autoridade natural, movimentos graciosos, elegância discreta). Rena incorpora o estereótipo do “escravo nobre”, mas também foi objeto de adoração do negro, por ter a pele “embranquecida” é superior aos demais afrodescendentes.
Por fim, os capítulos 9 e 10. Neles, o leitor encontrará os traços comuns entre os dois romances (capítulo 9) e as especificidades de cada romance (capítulo 10). Após um rápido olhar sobre a literatura comparada, o autor enumera os traços comuns encontrados: as cidades escolhidas (pequenas, pobres, cheias de preconceito); eventos históricos (Guerra Franco-Prussiana, O mulato e pouco depois da Guerra Civil, The house behind the cedars); narrador onisciente; palavras preconceituosas nas falas do narrador; protagonistas embranquecidos; a morte (incapacidade do mestiço em sobreviver à lei da selva) e conflito de relacionamento.
Os traços individuais de cada romance são dois, de acordo com o autor: ângulo de visão e consciência ou não da ascendência negra. A primeira é bastante nítida, porque em O mulato a narrativa é sobre o mundo dos brancos, com a introdução do elemento afrodescendente; já no romance chesnuttiano a narrativa é sobre o mundo dos negros, no qual um elemento afrodescendente insere-se no mundo dos brancos. A segunda diferença também é clara, pois Raimundo desconhecia totalmente a sua condição até o momento da revelação, enquanto Rena tinha plena consciência de sua situação desde a infância. O capítulo termina com uma afirmação de Orison, com a qual concordamos inteiramente: a de que se pode chegar à conclusão de que os romances apresentam dois elementos fundamentais para a pesquisa. Estes elementos são o verbal (palavra) de cunho preconceituoso e o elemento discursivo, representado na fala de seus narradores. A escolha de “heróis embranquecidos” se deu num momento em que a comunidade científica branca de ambos os países clamava pelo “embranquecimento de sua raça como solução para a presença do elemento negro, considerado inferior na sua sociedade” (MELO Jr., 2013, p.97).
A contradição apresentada pelo narrador em ambos os romances (o combate ao preconceito com o uso de palavras e frases preconceituosas) corrobora a concepção bakhtiniana a respeito do discurso dialógico. Como bem diz Fiorin, citado na página 20, “todo discurso é inevitavelmente ocupado, atravessado, pelo discurso alheio”. Foi o que o autor constatou nas análises feitas. Com a publicação do livro, a Editora Universitária (UFPE) revela a preocupação que os acadêmicos pernambucanos têm com os problemas étnico-raciais brasileiros. A obra é um ótimo exemplo do empenho na divulgação dessas questões, que são de grande utilidade para nossas reflexões. Espera-se que o excelente trabalho de Orison Marden Bandeira tenha continuidade, pois a presente edição é uma boa mostra do compromisso do autor com as questões que afligem a sociedade brasileira.
1AGASSIZ, L.; AGASSIZ, E. C. Viagem ao Brasil. Trad. Edgar Süssekind de Mendonça. Brasília: Conselho Editorial, 2000. [Coleção O Brasil Visto por Estrangeiros]
2MACEDO, J. M. As vítimas algozes: quadros da escravidão. 3.ed. São Paulo: Scipione, 1991.
3AZEVEDO, A. O mulato. 11.ed. São Paulo: Ática, 1992. [Série Bom Livro]
4Ver nota de rodapé 3.
5Ver nota de rodapé 3.
6BAKHTIN, M. O discurso no romance. In: BAKHTIN, Mikhail. Questões de literatura e de estética: a teoria do romance. Trad. Aurora Fornoni Bernadini et al. 5 ed. São Paulo: Hucitec: Annablume, 2002. p.71-210.
7CHESNUTT, C. W. The House behind the Cedars. New York: Penguin Classics, 1993.
8PILGRIM, D. What was Jim Crow? Big Rapids, MI, Jim Crow Museum of Racist Memorabilia, 2000. Disponível em <http://www.ferris.edu/htmls/news/jimcrow/what.htm>. Acesso em: 18 maio 2013.
Rubens Pereira dos Santos – Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquista Filho” – UNESP, Assis, SP, Brasil; reviru@terra.com.br.
Saussure: a invenção da Linguística – FIORIN et. al. (B-RED)
FIORIN, José Luiz; FLORES, Valdir do Nascimento e BARBISAN, Leci Borges (orgs). Saussure: a invenção da Linguística. São Paulo: Contexto, 2013.174 p. Resenha de: FARIA E SILVA, Adriana Pucci Penteado de. Bakhtiniana – Revista de Estudos do Discurso, v.9 n.1 São Paulo Jan./July 2014.
Por que ainda ler sobre Saussure? Há obras, como a organizada por José Luiz Fiorin, Valdir do Nascimento Flores e Leci Borges Barbisan – Saussure: a invenção da linguística -, que respondem a essa pergunta e esclarecem o importante lugar que o mestre genebrino ocupa na cadeia discursiva da História das reflexões sobre a linguagem, integrando-se à série de homenagens no centenário de sua morte.
Saussure: a invenção da linguística organiza-se pela perspectiva de três reconhecidos saussurianos brasileiros – Fiorin, Flores e Barbisan -, os quais assinam o capítulo inicial, intitulado Por que ainda ler Saussure? Essa instigante indagação é o mote para o que o leitor vai encontrar nos onze capítulos que integram o livro. Nesse exórdio, os organizadores, antes de apresentar a estrutura da obra, inserem o discurso saussuriano em seu tempo, destacando outros discursos com os quais ele dialogou em sua constituição. Desenvolvem, então, fundamental reflexão sobre as fontes saussurianas, que inclui uma revisão das condições de produção do Curso de linguística geral (doravante CLG).
A importância da gênese desse marco fundador ganha destaque nas reflexões presentes no capítulo introdutório, em que se ressaltam, ainda, as mudanças ocorridas a partir de 1957, quando acontece a publicação da tese Les sources manuscrites du Cours de linguistique générale de F. de Saussure, de Robert Godel, que marca um período de (re)descoberta de fontes, dentre as quais os manuscritos de Saussure. Tais considerações levam os organizadores a concluir que os diálogos que se instauram hoje com o mestre de Genebra não prescindem do estabelecimento do ponto de vista do pesquisador, que, por sua vez, leva à opção de recortes na “infinidade de textos que integram o que poderíamos chamar de corpus saussuriano” (p.13). Esses recortes determinam os diversos corpora de pesquisa, como os estabelecidos pelos autores dos diversos capítulos de Saussure: a invenção da linguística.
O que, então, constitui o corpus saussuriano? Fiorin, Flores e Barbisan apontam como constitutivos das fontes: os textos publicados em vida por Saussure, a edição crítica de Rudolf Engler, o já citado trabalho de Robert Godel, os Cahiers Ferdinand de Saussure e uma série textos que cada descoberta de fontes levou os exegetas de Saussure a estabelecer. À apresentação desse amplo retrato do corpus saussuriano seguem-se considerações sobre a eleição de um corpus de pesquisa. Assim, Fiorin, Flores e Barbisan mostram que o objeto de cada pesquisador aponta para determinada seleção de um corpus, recorte que não se confunde com o universo que é o corpus saussuriano. Nessa discussão, trazem postulados de Bouquet, Kyheng e Trabant, autores que reconhecem a especificidade de cada fonte disponível e afastam-se de improdutivas discussões sobre o “verdadeiro” e o “falso” Saussure.
Os trabalhos que compõem os capítulos posteriores do livro têm em comum justamente o estabelecimento de recortes no corpus saussuriano e a definição de um corpus de pesquisa. Juntos, compõem “uma imagem da produtiva pesquisa saussuriana atual no contexto da Linguística brasileira” (p.17). Sem querer competir com a apresentação feita pelos próprios organizadores no capítulo inicial de Saussure: a invenção da linguística, destaco, a seguir, os autores dos trabalhos que compõem a obra e os temas por eles abordados.
Em Sobre mitos e história: a visão retrospectiva de Saussure nos três Cursos de Linguística Geral, Cristina Altman faz uma resenha crítica dos três cursos ministrados por Saussure e consegue, com isso, explicar a dimensão mítica do mestre de Genebra.
No capítulo seguinte, Uma contradição aparente em Saussure: o problema da relação língua-história, Márcio Alexandre Cruz questiona a representação de Saussure como fundador de uma ciência sincrônica e mostra como os discursos do genebrino são fundadores de diferentes abordagens da Linguística contemporânea, as quais não excluem de suas preocupações as noções de sujeito, sentido e história.
Eliane Silveira, em O lugar do conceito de fala na produção de Saussure, propõe-se a mostrar o caráter inacabado de um dos conceitos centrais da teoria saussuriana, postulando que a interpretação que aponta a exclusão da fala do objeto da Linguística não é a única possível. Para isso, mostra o lugar que o conceito ocupa numa das teorias com que Saussure dialoga, a Gramática Comparada, para, então, estudar esse lugar no CLG e nos manuscritos saussurianos.
Com O Curso de linguística geral: unde exoriar? Hozanete Lima, estabelecendo um diálogo entre o CLG e os manuscritos saussurianos, problematiza os conceitos de signo e de eixos paradigmático e sintagmático.
Valdir do Nascimento Flores, em Mostrar ao linguista o que ele faz: as análises de Ferdinand de Saussure, retoma as angústias do mestre de Genebra sobre o ofício do linguista e busca responder a uma série de questões: “Como Saussure caracterizou o fazer do linguista? Quais tarefas reservou-lhe? Que problemas supôs que deveria resolver?” (p.72) O autor deixa claro que as fontes que compõem seu corpus de pesquisa, que têm como eixo central o CLG, não trazem explicitamente repostas a essas perguntas. O fenômeno linguístico da analogia, entendido como criação, e não como mudança, é a categoria central nas análises do pesquisador, que consegue demonstrar o importante papel da fala na descrição do fazer do linguista que se depreende do corpus analisado.
Em seu Pequeno ensaio sobre o Tempo na teorização saussuriana, Maria Fausta Pereira de Castro reflete sobre o tratamento dado por Saussure à questão a língua em um estado específico ou numa sucessão de estados. Apoiada em reflexões de importantes exegetas saussurianos, articula a questão da ação do tempo sobre a língua com as noções de arbitrariedade do signo e de linearidade, ressaltando o papel da “massa falante” nessa discussão.
José Luiz Fiorin, em O Projeto Semiológico, explica que princípios centrais na construção saussuriana do objeto língua – como o da arbitrariedade do signo e do valor – são também fundamentais para o estudo das linguagens e, portanto, para os estudos semiológicos. O autor explicita como, no CLG, Saussure indica “duas dimensões no estudo da Semiologia: a do sistema e a do processo” (p.105). A partir de então, estabelece diálogos entre o projeto semiológico saussuriano que se depreende do CLG, o pensamento de Hjelmslev e teóricos que, de certa maneira, dão continuidade a esse projeto, concluindo que “Barthes e Greimas só puderam realizar a grande aventura semiológica do século passado depois do Curso de Saussure” (p.110).
Em Efeitos do pensamento de Saussure na teorização sobre erros e sintomas na fala, Maria Francisca Lier-DeVitto confere às falas sintomáticas um lugar no “tecido heteróclito das manifestações linguísticas” (p.115). Com isso, apresenta a contribuição teórica, metodológica e clínica que a (re) leitura da obra do mestre de Genebra e de seus exegetas deu para sua atuação como docente, linguista e pesquisadora, com destaque para as atividades relacionadas aos Grupos de Pesquisa sobre Aquisição de Linguagem do IEL-Unicamp e sobre Aquisição, Patologias e Clínica da Linguagem, do Lael-PUC-SP.
Mônica Nóbrega e Raquel Basílio, em A contribuição de Ferdinand de Saussure para a compreensão do signo linguístico, fazem uma delimitação precisa e muito bem justificada de seu corpus de pesquisa para, então, discutir a construção teórica saussuriana do conceito de signo linguístico. Abordam a relação do signo com a arbitrariedade, o sistema e a produção de valores. Apontam, ainda, para as contribuições de tal construção teórica para os estudos do interacionismo sociodiscursivo.
O capítulo Presenças do Curso de linguística geral na Análise do Discurso, assinado por Carlos Piovezani, problematiza a presença do discurso de Saussure a respeito da fala em discursos posteriores, com o objetivo de analisar o diálogo que se pode perceber entre os ecos do corpus saussuriano e os postulados da Análise do Discurso francesa, sobretudo no que se refere aos estudos de Pêcheux, Robin e Maldidier. Piovezani encerra as reflexões com uma análise desses ecos nos hodiernos estudos discursivos no Brasil, apontando, como fizeram alguns autores de capítulos precedentes, para equívocos por vezes flagrados na formação de nossos linguistas, já que “entre iniciantes, e eventualmente, mesmo entre iniciados, não são raros os casos em que somente se reitera a censura cristalizada às pretensas ‘exclusões’ promovidas por Saussure […]” (p.157).
Encerrando a obra, Leci Borges Barbisan, em Do signo ao discurso: a complexa natureza da linguagem, propõe que a defesa da indissociabilidade entre língua e discurso pode ser depreendida de trechos do CLG e dos Écrits de linguistique générale, embora encontre aí apenas questionamentos, e não respostas, sobre a atuação das noções de valor e de relação para que o signo “constitua discurso” (p.166). Segundo a autora, uma possível resposta para a questão estaria na Semântica Linguística e na Teoria da Argumentação da Língua, de Ducrot.
Muitos são os diálogos que os autores de Saussure: a invenção da linguística estabelecem e muitas são, também, as salutares lacunas da obra. Destinada a um público amplo, deixará ávidos por um segundo volume estudiosos de escolas e correntes de pensamentos linguísticos e discursivos que não foram abordados em sua relação com o pensamento saussuriano, como a Análise do Discurso de linha bakhtiniana ou a Linguística Textual.
Para todos, porém, iniciantes ou iniciados nos estudos linguísticos e discursivos, torna-se obra obrigatória e constitutiva do corpus saussuriano do Brasil.
Adriana Pucci Penteado de Faria e Silva – Universidade Federal da Bahia – UFBA, Salvador, Bahia, Brasil; appucci@uol.com.br.
Figuras de retórica – FIORIN (B-RED)
FIORIN, José Luiz. Figuras de retórica. São Paulo: Contexto, 2014. 205 p. Resenha de: PISTORI, Maria Helena Cruz. O argumento é o que realça, o que faz brilhar uma ideia. Bakhtiniana – Revista de Estudos do Discurso, v.9 n.1, São Paulo, Jan./July 2014.
Ao datar o Prefácio de sua obra, o professor Fiorin utiliza esta forma pouco usual: “São Paulo, numa brumosa tarde de inverno de 2013”. A referência é ao tempo acinzentado, pouco luminoso e coberto de névoas do inverno. Mas a figura das brumas, que muitas vezes encobrem nosso olhar (e nossa compreensão), com muita propriedade pode ser evocada nesta apresentação de Figuras de retórica. Sim, porque se trata de iluminar, esclarecer e definir conceitos que nem sempre têm sido bem compreendidos, apesar do fascínio que vêm exercendo sobre os estudiosos da linguagem há mais de dois milênios. E já adiantamos aqui: é obra que surge para se tornar referência na área.
Linguista renomado e reconhecido, José Luiz Fiorin professa um interesse pela retórica que não é de hoje. Para um público mais amplo do que o propriamente acadêmico, basta lembrar sua contribuição semanal à revista LÍNGUA Portuguesa desde 2006, na seção que logo passa a levar o nome da disciplina – Retórica. Mas penso que é justamente sua profunda formação de linguista – estudioso de Saussure, Benveniste, Hjelmslev…, ao lado de seu conhecimento da literatura, do grego, do latim, da própria língua portuguesa, que tornam singular sua última publicação: Figuras de retórica.
Não se trata de um catálogo de figuras, avisa o mestre, mas da apresentação de mecanismos de construção de sentido, operações enunciativas de intensificação ou atenuação dos significados presentes no discurso “a serviço da persuasão” (p.10). Mas, ainda que não seja um catálogo, a lista é longa: são apresentadas ao leitor mais de uma centena de figuras (alguns afirmam que a “fúria taxionômica” dos antigos chegou a classificar centenas delas…). E, em sua definição e análise, por muitas vezes o autor recupera o debate que sobre ela travaram os antigos, os clássicos e os contemporâneos: Cícero, Quintiliano, a Retórica a Herênio, Pierre Fontanier, Jakobson, o Grupo µ…
A compreensão de cada uma das figuras e de sua argumentatividade no discurso é precedida dos três capítulos iniciais que dão ao leitor os fundamentos do trabalho, apresentando e analisando com acuidade as relações entre linguística e retórica e levando o leitor a perceber as dimensões tropológicas e argumentativas da linguagem, ambas constituindo sua retoricidade geral. A cada figura é dedicado, ao menos, um capítulo (o funcionamento argumentativo da metáfora, “rainha” das figuras, e da metonímia merecem mais capítulos). O quarto capítulo mostra ao leitor o modo como o autor sistematizou a apresentação das figuras. Na realidade, mesmo se tratando de uma “reorganização de textos que apareceram originalmente na revista LÍNGUA Portuguesa, da Editora Segmento”, conforme informa o autor no Prefácio, esse todo, agora, adquire novos sentidos e, indubitavelmente, maior relevância para os estudiosos da linguagem.
Sabemos que, há mais de dois mil anos, os estudos da retórica são parte da cultura humana. No entanto, ora se constituíram em torno das quatro ou cinco operações de construção do discurso persuasivo que se encontram nos tratados gregos e latinos – inventio, dispositio, elocutio, actio e memoria (nem sempre a memoria estará presente), ora se restringiram a algumas delas, de preferência à elocutio. Mesmo esta última, porém, e seu interesse no estilo, só com Górgias (ca.485 aC-ca.380 aC) passa a integrar a disciplina. De modo sucinto, Fiorin refaz esse percurso da disciplina ao longo dos séculos, indicando os períodos em que se restringiu ao estudo das figuras e, mais recentemente, em que ela foi retomada em sua inteireza, com o foco na argumentação. Mais importante, porém, não é a retomada histórica, mas seu modo de contextualizá-la em relação aos estudos discursivos, pois será sempre este o eixo de toda a obra – o discurso.
Destacamos tal posicionamento principalmente porque a revitalização da retórica no séc. XX foi primeiramente obra de filósofos (ou jusfilósofos), preocupados com os raciocínios que envolviam a ética, a moral e o direito; o marco na área é o conhecido Tratado da argumentação. A nova retórica, de Chaïm Perelman e Lucie Olbrechts-Tyteca, de 1958. Esse compêndio da argumentação não trata exatamente de processos de linguagem, escapando assim ao escopo da Linguística, mas do que os autores denominaram “técnicas discursivas” de argumentação; só mais tarde passa o Tratado a se constituir fonte de pesquisa para linguistas. O foco de Fiorin, porém, é outro: já quando apresenta motivos para o declínio da retórica, praticamente reduzida ao estudo das figuras entre o séc. XIX e meados do séc. XX, mostra-nos como “novas condições discursivas” alteram nosso modo de vê-la e, sobretudo, como novas concepções de ciência, de objetividade/neutralidade e de modelos de comunicação vão permitir a aproximação da Linguística com a antiga disciplina. Na realidade, destaca que tal aproximação foi possível também por causa da alteração e ampliação do próprio objeto da linguística, de Saussure a Benveniste; agora se trata de uma linguística que vai além da frase, abrangendo o texto, plano de manifestação do discurso, adverte Fiorin. É a partir da consideração de uma “retoricidade geral na linguagem” que o autor propõe que a linguística do discurso deva herdar os ensinamentos da retórica; isto é, defende o aproveitamento de seus estudos na compreensão daquilo que “perturba a gramática da língua e uma pretensa lógica da linguagem”, o campo da retórica (p.23), e não a mera aplicação de uma doutrina fixada na Antiguidade.
O texto vai retomando, então, os primeiros trabalhos na área a aproximar Linguística e Retórica: o “célebre texto de Jakobson intitulado ‘Dois aspectos da linguagem e dois tipos de afasia’ (1963: 43-67)” (p.15), que trata da metáfora e da metonímia como processos simbólicos de construção de sentido em todas as linguagens; a seguir, o trabalho do Grupo µ, de 1974, tentativa de classificação das figuras de um ponto de vista metodológico mais rigoroso. Fiorin também apresenta o modo como o famoso aide-mémoire – A antiga retórica, de Roland Barthes, publicado em 1970 na revista Communications, reaviva o interesse pela retórica entre os linguistas.
No segundo capítulo, ressaltamos o esclarecimento do significado inicial de ornatus, no latim, e a maneira como, segundo o autor, deve ser compreendido na retórica: “bem argumentado”, “bem equipado para exercer sua função”; e do próprio termo argumento, cuja raiz grega argu– significa “fazer brilhar, cintilar”. E aí devemos destacar a posição-chave do autor em relação às figuras de retórica: “não há uma cisão entre argumentação e figuras, pois estas exercem sempre um papel argumentativo” (p.27). Ora, aqui o Prof. Fiorin está dialogando com aqueles que as consideram como “ornamentos”, um embelezamento da linguagem ou uma forma de expressão que se distancia da “natural”. Dialoga ainda com o posicionamento de Perelman e Tyteca que, no Tratado, fazem uma distinção entre figuras argumentativas e figuras de estilo, afirmando que só será argumentativa a figura que acarrete “mudança de perspectiva” ao leitor em relação à nova situação de emprego. Caso isso não ocorra, “a figura será percebida como ornamento, como figura de estilo. Ela poderá suscitar a admiração, mas no plano estético, ou como testemunho da originalidade do orador” (Tratado da argumentação. A nova retórica. São Paulo: Martins Fontes, 1996, p.192). Outros, como Olivier Reboul, consideram que, ao lado das “figuras de retórica” – persuasivas, existem as não retóricas, como as poéticas, humorísticas (Introdução à retórica. São Paulo: Martins Fontes, p.113). A obra de Fiorin contextualiza o estudo das figuras a partir da retórica antiga mas, no presente, integra-as – todas, aos estudos do discurso, como operações enunciativas criadoras de efeitos de sentido argumentativos.
Como se pode observar, esses primeiros capítulos são essenciais para a compreensão e possível aprofundamento do todo da obra. No terceiro, tomamos contato com autores mais recentes, como Ricouer, Greimas & Courtès, Denis Bertrand, que propõem aparato teórico-metodológico que servirá ao autor para exposição das figuras e suas funções no discurso: avivar ou abrandar determinado sentido. Sem dúvida, a clareza do texto é virtude comum nos textos do professor; e neste, em particular, o aspecto didático – mas não simplificador – é outra de suas qualidades. Dessa forma, conceitos como intensidade-extensão das grandezas linguísticas, aceleração-desaceleração, elasticidade-condensação, entre outros, são compreendidos sobretudo por meio da argumentação pelo exemplo, no que o autor é mestre. Vejamos um pequeno trecho deste terceiro capítulo. Retomando Ricoueur e Benveniste, ele chega à afirmação:
[…] a retórica é a disciplina da impropriedade do sentido. Exemplifiquemos isso. Quando se diz, no capítulo XXXVII de Memórias póstumas de Brás Cubas, de Machado de Assis, que ‘o homem é uma errata pensante’, apreende-se a metáfora, quando se observa que há uma não pertinência em considerar que o homem é uma errata. Afinal, errata se usa para escritos. No entanto, essa predicação impertinente estabelece uma tensão entre identidade (correção de erros, aprimoramento) e diferença (em cada edição/em cada estágio da vida) e, assim, ganha pertinência (p.28-9).Na classificação das figuras de que vai tratar ao longo da obra, o autor se vale da sistematização dos antigos, dividindo-as conforme ocorram (1) por adjunção ou repetição, aumentando o enunciado; (2) por supressão, diminuindo-o; (3) por transposição de elementos, ou seja, a troca de seu lugar no enunciado; (4) e pela mudança ou troca de elementos. “Na verdade, os tropos realizam um movimento de concentração semântica, que é característica da metáfora, ou um de expansão semântica, que é a propriedade da metonímia” (p.31). Cada figura é definida não apenas formalmente, mas de modo que o leitor realmente possa verificar como o efeito de sentido argumentativo se constrói discursivamente. Para isso, sempre será amplamente exemplificada e contextualizada: nunca apenas a linha onde ela ocorre, mas todo o trecho em que aparece, tornando possível ao leitor recuperar minimamente o contexto.
O farto exemplário é, com certeza, uma das riquezas da obra. Os autores citados recuperam a lusofonia como um todo, no tempo e no espaço, e em diferentes gêneros: brasileiros, portugueses, angolanos… Dos clássicos (Camões, Vieira, Machado…) aos modernos e contemporâneos (João Cabral de Melo Neto, Graciliano Ramos, Fernando Pessoa, Guimarães Rosa, José Paulo Paes, Ondjaki, José Eduardo Agualusa…); de autores de todo o séc. XVIII e XIX (Dom Francisco de Vasconcelos Coutinho, Alencar, Castro Alves, Garret, Eça de Queirós…) àqueles que se dedicaram à canção (Chico Buarque, João Bosco e Aldir Blanc, Paulo Soledade e Marino Pinto…). A lista é imensa. Há também o discurso jornalístico, representado pelo Jornal do Brasil – o exemplo da informação meteorológica no dia posterior à decretação do AI-5 é imperdível, a revista Veja, O Estado de S. Paulo… Sempre encontramos ainda o cuidado de exemplificação em outras linguagens que não a verbal, pois, afirma o mestre, “se a semiótica, que se quer uma teoria geral da significação, pretende voltar à retórica, para herdá-la, é preciso tratar da linguagem em geral” (p.30). E, nesse ponto, lamentamos a falta de ilustrações, pois os exemplos visuais são apenas descritos. Finalmente, a obra apresenta um Índice remissivo, que facilita ao leitor o encontro de qualquer figura pela qual tenha interesse, e uma bibliografia que abrange obras da retórica antiga, clássica e nova, da Linguística, da Semiótica, Pragmática, de Gramática.
Duas questões fecham estes comentários. Primeiramente, uma obra como esta realmente fazia falta em nossas estantes. Hoje encontramos apenas pequenas amostras de figuras em listas breves, ora no fim de algumas gramáticas, ora em obras que tratam da linguagem jurídica, ora em obras que tratam da retórica, ou em livros didáticos. Obras específicas sobre o tema (algumas foram publicadas na década de 80), além de esgotadas, não se propunham a perspectiva discursiva nem a profundidade teórica encontrada nesta Figuras de retórica.
E, para concluir, gostaria de retomar uma afirmação de Fiorin no Prefácio, justamente porque, a meu ver, indica a importância da obra de forma ampla, já que as figuras são apenas parte de todo o complexo retórico que herdamos dos antigos: a “retórica foi uma aventura do espírito humano para, na construção da democracia, em que são essenciais a dissensão e a persuasão, compreender os meios de que se serve o enunciador para realizar sua atividade persuasória” (p.11). A questão é de compreensão: quais sentidos são construídos, quem os constrói, como se constroem, para quem, com que finalidade… E é esta a relevância e “utilidade” da obra: mostrar como compreender a/as linguagem/linguagens que permeiam nossa atividade cotidiana numa sociedade democrática, com a possibilidade (idealista?) de, nas palavras do professor, “tornar os homens mais humanos”.
Maria Helena Cruz Pistori – Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, São Paulo, Brasil; CNPq; mhcpist@uol.com.br.
Vocabulário crítico de argumentação – GRÁCIO (B-RED)
GRÁCIO, Rui Alexandre. Vocabulário crítico de argumentação. Prefácio de Rui Pereira. Coimbra: Grácio Editor/Instituto de Filosofia da Linguagem da Univ. Nacional de Lisboa, 2013. 144 p. Resenha de: MOSCA, Lineide do Lago Salvador. Bakhtiniana – Revista de Estudos do Discurso, v.9 n.1 São Paulo Jan./July 2014.
Soma-se agora à obra de Rui Grácio mais este trabalho, que traz no próprio título o espírito que o guia, ou seja, a visão crítica de quem convive de longa data com as questões relacionadas à argumentação e ao fazer persuasivo. De fato, desde 1993 vêm a lume algumas de suas obras que configuram esta linha de pesquisa e que tiveram grande repercussão nas Ciências da Linguagem, no que toca à Retórica e domínios afins, tais como a Filosofia, as Ciências Jurídicas e as Teorias da Comunicação.
Em Racionalidade argumentativa (1993), Grácio chega à oportuna junção entre a racionalidade e a sua natureza, apontando para a especificidade que delineia o quadro da argumentação, com uma lógica própria, aquela que é do domínio da incerteza, do plausível, enfim, daquilo a que se tem chamado razoabilidade. Seguem-se Consequências da retórica (1998); Discursividade e perspectivas; Questões de argumentação (2009), já como editor; A interacção argumentativa (2010); Fenomenologia, hermenêutica, retórica e argumentação (2011); Teorias da argumentação (2012) e em 2013 mais dois livros, Perspectivismo e argumentação e aquele que é alvo desta resenha: Vocabulário crítico de argumentação. Neste número temático da revista Bakhtiniana sobre Discurso e Argumentação, julgamos que ele vem bem a calhar, como síntese dos pontos-chave que circulam nas mais diversas teorias do assunto, independentemente das posições assumidas. São os conceitos e sua aplicação que prevalecem.
Constituem esse Vocabulário 69 verbetes-artigos, que trazem os principais conceitos que presidem a teoria e a prática da argumentação. Grácio transita pelos mais diversos autores de referência nas questões examinadas em cada tópico, incorporando a postura de que o importante são as ideias e noções com que se trabalha, independentemente de correntes, escolas ou posições de origem. Isso reforça o fato de que não há uma teoria única e exclusiva de estudos da argumentação, diferenciando-se estes quanto aos recortes sob os quais examinam os objetos discursivos e suas respectivas ênfases.
Assim, aproveitam-se os aportes originários de várias procedências teóricas, tais como os da Pragma-dialética, encabeçados por Frans van Eemeren, da Universidade de Amsterdam, com a consideração das normas que regem uma discussão inteligente e, portanto, de um ponto de vista prescritivo, o que faz descartar a intervenção de todo tipo de falácia numa argumentação colaborativa, especialmente os argumentos ad hominem, ad personam, ad ignorantiam, entre outros.
Citemos, a esse respeito, para ilustrar o que estamos expondo, o verbete “Abordagens descritivas e abordagens normativas” (p.14 – 16), em que Grácio delineia os principais enfoques encontrados no estudo da argumentação. Segundo o autor, para a Análise do Discurso, o que conta em primeiro plano é a argumentatividade, podendo-se inclinar para uma visão descritiva ou normativa, caso se volte para o estudo das estratégias, dos mecanismos e dos critérios, responsáveis pela eficiência do discurso ou, então, se centralize na avaliação dos argumentos, segundo um pensamento crítico. Este tipo de análise se preocupa também em compreender a força dos argumentos sobre o outro da interlocução e é essencialmente descritiva.
A visão normativa volta-se para a validade e aceitabilidade dos argumentos e dos raciocínios, isto é, sobre os modos de argumentar, estabelecendo regras universais e ideais para as práticas argumentativas concretas.
A perspectiva interacionista faz o acoplamento dessas duas visões, descritiva e normativa, em que se defrontam um discurso e um contradiscurso em torno de uma questão controversa. Desse ponto de vista, dá-se um ato argumentativo, propriamente dito, quando se estabelece um ponto crítico, uma questão, destacando-se os papéis da interlocução: um proponente, um oponente e um terceiro. São citados autores como Perelman, Toulmin, Plantin, Angenot, Ducrot, Amossy e outros.
As citações bibliográficas, disseminadas nos diversos verbetes, dão mostra do muito que se tem realizado no campo da argumentação, com estudiosos de inúmeros países, de especialidades que vão da filosofia à sociologia e, naturalmente, aos estudos do discurso.
A escolha dos conceitos básicos que servem de entrada neste Vocabulário crítico de argumentação conduz ao delineamento da disciplina e à constituição de um todo harmonioso, ao juntarem-se as partes dessa trajetória. Não são peças aleatórias, mas componentes cuja somatória dão a estrutura básica de todo ato argumentativo. Por esta e outras razões, julgamos que não se trata de um simples “Vocabulário”, ainda que se lhe atribua o adjetivo “crítico”. O resultado é, na realidade, um compêndio de argumentação, condensando nos verbetes as discussões levantadas sobre os seus temas e o estado de questão em que se encontram, podendo ser operacionalizados no ensino, com aplicações nos mais diversos tipos de discurso e de linguagens.
Bastam alguns exemplos para retratar este caráter explanatório e crítico da obra em questão: vejam-se os verbetes auditório, kairós, ethos, topoi, situação argumentativa, entre muitos. O leitor poderá fazer a correlação entre eles para chegar a uma visão sintetizadora da disciplina. É o que se dá entre situação argumentativa e kairós, a noção de oportunidade, cara a Aristóteles, é o que liga esses conceitos, sem os quais a argumentação não pode se realizar a contento. Nesse caso, o planejamento não invalida o improviso, necessário para fazer face às variações que se apresentarem na prática em si, no momento da ocorrência argumentativa.
Os verbetes recobrem, além da descrição do fenômeno, uma análise crítica da parte do autor, ao comentar as várias posições acerca do assunto, porém sempre com flexibilidade e sem dar soluções definitivas às questões polêmicas. Tomemos, a título de apresentação, o verbete “Tipologia dos diálogos” (p.123-124), em que Grácio apresenta um quadro de Walton, de 1989, com as principais modalidades de diálogo, em função de suas finalidades e contexto: debate, escaramuça, discussão crítica, negociação, busca de informação, busca de ação, difusão de conhecimento. O verbete aponta as vantagens de tal classificação, a sua valia, ao considerar a argumentação em função de objetivos e de contextos determinados por finalidades, isto é, numa visão pragmática, mas também ressalta as suas fraquezas, assinalando o fato de que as interações não vêm organizadas de modo tipificado, nem se prestam a uma finalidade única, devendo-se considerar essas funções em sua multidimensionalidade, que vai sendo construída no próprio ato da interação.
Como podemos constatar, com esta obra e outras, Rui Grácio tem impulsionado os estudos da Argumentação e da Retórica, participando do movimento de revitalização daquela que foi uma ciência de prestígio na Antiguidade e que, em sua visão integral e integradora, permanece ainda como essencial à definição do humano e à formação da cidadania. Os estudos do discurso têm uma longa história no pensamento ocidental e, ainda hoje, estão associados à produção dos antigos filósofos gregos. De fato, a arte de bem dizer fazia parte da educação do cidadão, constituindo a competência discursiva um quesito-chave à sua atuação naquela sociedade. Ainda hoje, entende-se a capacidade de argumentação como uma atividade fundamental da vida social e como uma forma básica assumida pelo pensamento em diversas situações, remetendo a um processo dialógico de grande complexidade, uma vez que nele entram procedimentos cognitivos, componentes psicológicos e passionais. Considerando-se a atividade argumentativa como ação sobre outro e, ao mesmo tempo, conformada pelo outro, não é ela isenta de implicações de natureza ética e política, por seu caráter decisório, levando a tomadas de decisão.
Por todas essas razões e muitas outras, os estudos contemporâneos da argumentação foram retomados por vários estudiosos, revitalizando o legado de um importante passado e propiciando novos avanços, entre os quais se destaca o trabalho de Rui Grácio, que ora colocamos em destaque. Seu trabalho nos obriga a uma leitura retrospectiva e, simultaneamente, a uma leitura prospectiva, prestando contribuição ao presente e preparando o futuro.
Lineide do Lago Salvador Mosca – Universidade de São Paulo – USP, São Paulo, São Paulo, Brasil; lineide@usp.br.
Língua, texto, sujeito e (inter) discurso – BRUNELLI et. al. (B-RED)
BRUNELLI, A. F.; MUSSALIM, F.; FONSECA-SILVA, M. C. (org.). Língua, texto, sujeito e (inter) discurso. São Carlos: Pedro & João Editores, 2013, 226 p. Resenha de: MACHADO, Ida Lucia. Bakhtiniana – Revista de Estudos do Discurso, v.9 n.1, São Paulo, Jan./July 2014.
Uma das primeiras coisas que nos chamou atenção neste livro foi sua lista de autores: por que doze professores e pesquisadores de diferentes universidades brasileiras e apenas um professor/pesquisador francês? Mas, apenas a leitura iniciada, a razão desta seleção tornou-se evidente e logo percebemos que a escolha dos autores foi judiciosa. Beth Brait, Raquel Salek Fiad, Carlos Alberto Faraco, Maria Irma Hadler Coudry, Maria da Conceição Fonseca-Silva, José Luiz Fiorin, José Borges Neto, Fernanda Mussalim, Roberto Leiser Baronas, Anna Flora Brunelli, Luciani Ester Tenani, Luciana Salazar Salgado e Dominique Maingueneau não figuram neste livro apenas para mostrar pontos de vista vindos do Brasil ou da França sobre a obra de um intelectual brasileiro: há um algo a mais que ultrapassa qualquer pertencimento a esta ou aquela universidade e que liga todos eles a Sírio Possenti: a voz do apreço.
Gostaríamos, pois, de felicitar as três organizadoras do livro pela ótima ideia que tiveram ao prestar uma homenagem a Sírio Possenti por meio desta Coletânea. Parabenizo-as pelo cuidado e delicadeza que mostraram para compor e reger esse conjunto de vozes vindas de colegas do Professor objeto da homenagem. É fácil notar que os onze capítulos da obra relatam momentos em que os autores se sentiram mais próximos de Possenti, seja por pesquisas realizadas em comum (em algum de seus Projetos), seja pela leitura de um de seus livros, seja por terem em comum a mesma paixão por algum corpus ou o mesmo interesse por certos conceitos discursivos, ou ainda por participar dos mesmos grupos de pesquisa.
Simpática e importante homenagem esta! Já lemos muitos livros em “homenagem a” cujos autores parecem se esquecer de que estão ali para falar do homenageado; já tivemos contato com outros em que o excesso de louvores apagou as virtudes teóricas e o saber difundido pelo homenageado… Existem livros e livros de homenagem. Alguns bons, outros nem tanto.
Ora, Lingua, Texto, Sujeito e (Inter) Discurso, no entanto, não se encaixa em nenhuma das classificações supracitadas. O livro é bom. Os textos são bons. O todo é harmonioso. Há nele um raro equilíbrio entre autores que, ao discorrer sobre o saber científico do intelectual, não escondem sua admiração e simpatia pelo ser humano. Mais que um livro de “homenagem a” o que vemos aqui é uma publicação de excelente conteúdo teórico que celebra a amizade que une um pesquisador a outros. As vozes que no livro – pelo viés teórico – testemunham amizade a Sírio representam também vozes de muitos outros professores/pesquisadores/alunos que conhecem sua produção (ou parte desta) e que também, em um momento ou outro de suas vidas, já tiveram ocasião de comprovar que grandes pesquisadores são pessoas simples e simpáticas, como ele.
Língua, texto, sujeito e (inter) discurso é um livro saboroso, que se lê quase como uma narrativa de vida (teórica) feita por treze locutores; catorze com Sírio, voz que perpassa por todos os capítulos. Aqui a teoria explica a vida, uma se imbrica na outra, com graça e leveza.
Embora cada um dos autores da obra tenha uma opinião, um estilo para falar sobre diferentes temas ligados aos estudos discursivos e às contribuições de Possenti, em todos os capítulos palpita um mesmo objetivo: o de fomentar um diálogo a respeito desse instigante objeto de estudos que é a linguagem e sua prática. Diálogo este que deve ser visto no sentido crítico e positivo da palavra, ou seja: aquele que visa a oferecer ao leitor material para reflexões e trocas construtivas, a exemplo do que é o trabalho do homenageado.
O livro mostra diversas facetas teóricas de Possenti. Quem pouco sabe de sua atuação e produção científica ficará surpreso ao ver as dimensões de seu trabalho e como este pesquisador luta pela efetivação não só dos estudos discursivos, mas também para uma melhor e mais atual aplicação didática destes. Todos sabem que trabalhar com a linguagem é algo complicado; mas poucos sabem que a grande virtude está em descomplicar a complicação. É o que Possenti tem feito e é o que os autores da coletânea mostram em seus escritos.
O livro começa com uma detalhada Apresentação feita pelas organizadoras. Elas não só explicam o “porquê” da homenagem como também apresentam o intelectual, o professor e autor Possenti. Mas, deixemos ao futuro leitor o prazer de descobrir a descrição sintética, porém bem elaborada, de cada autor e de cada capítulo do livro dessa primorosa Apresentação.
Como homenagear alguém cuja produção tem um aspecto tão amplo, como a de Possenti? Embora o livro não tenha imposto temas precisos – o que é bom, pois tal atitude é libertária e sem dúvida estimulou a inspiração dos autores – para melhor resenhá-la, reagrupamos por nossa conta e risco a coletânea em cinco pontos: (i) Estilo, autoria e AD; (ii) Análises e comentários de livros de Possenti; (iii) O cômico e o humor; (iv) Estudos sobre conceitos linguísticos diversos (línguas naturais, ethos, cenografia) e, finalmente (v) O FEsTA. Comentaremos, rapidamente, cada um desses reagrupamentos, seguindo a ordem.
A questão do Estilo, cujo enfoque na análise do discurso atual se torna cada vez mais premente, é abordada por Beth Brait, com sua maestria de sempre. Destacamos, nesse primeiro capítulo, a tão necessária volta ao passado, operada pela autora, para poder melhor abarcar seu tema, no presente. É sempre agradável ver que existem pesquisadoras como Beth Brait que não se esquecem das aquisições de precursores dos estudos discursivos. É essa viagem ao passado por ela efetuada que nos faz lembrar ou nos ensina que a célebre frase o estilo é o homem vem de um francês que viveu no século XVIII, George-Louis Leclerc, conde de Buffon. Para tecer seu tema e sua trama, a autora parte de um enunciado do Presidente dos EUA Barak Obama dirigido ao então Presidente do Brasil, Luiz Ignácio Lula da Silva: Esse é o cara. Os segmentos consagrados a Estilo e análise do discurso e a Estilo e pensamento bakhtiniano ajudarão mais de um pesquisador em estudos discursivos a ampliar ou a fortificar seus pensamentos. Eis um capítulo essencial para todo analista do discurso e um belo modo de se homenagear Possenti.
Ainda no item (i) teremos, no segundo capítulo, as considerações de Raquel Salek Fiad sobre estilo e autoria na aquisição da linguagem escrita. A autora apresenta o diálogo que manteve com Sírio Possenti sobre o tema em pauta. Seu texto tem o mérito de discorrer sobre o assunto, do ponto de vista teórico e, além disso, mostrar também sua aplicabilidade na prática didática: aquela que irá ajudar professores de crianças e jovens a valorizar os escritos de seus alunos e a encorajá-los a escrever cada vez mais, sem receio, deixando-os seguros de sua autoria. Salek Fiad fecha o capítulo com algumas “orientações básicas” (op.cit., p.47) bastante úteis para os professores.
No item (ii), reunimos dois artigos. O capítulo 3, de autoria de Carlos Alberto Faraco, já anuncia em sua epígrafe que o texto do autor foi inspirado no livro de Possenti (1996) intitulado Por que (não) ensinar gramática na escola. Faraco reflete sobre a (não) interação entre linguistas com o ensino do português e os esforços que os primeiros têm empreendido para colaborar com o ensino da língua. A teoria já deveria ter sido colocada na prática, mas Faraco lembra que, apesar de livros tão inovadores como o já citado livro de Possenti, pouca coisa mudou na prática escolar. Este capítulo é escrito com uma emoção apenas contida, que reflete os sentimentos do autor, sua indignação para com aqueles que afirmam erroneamente que linguistas se recusam a dialogar com colegas professores de português. “Talvez minha miopia esteja se acentuando com o passar da idade”, diz Faraco (op.cit., p.51), em um belo uso irônico, pois a miopia é de outros e não sua. Nem de Possenti.
Ainda dentro da questão levantada no ponto (ii) temos o capítulo 8, concebido a quatro mãos, por Fernanda Mussalim e Roberto Leiser Baronas. A proposta dos pesquisadores é ampla: comentar todos os artigos da coletânea Questões para análise do discurso (2009) de Sírio Possenti, catorze ao todo. Trabalho árduo! Porém, em apenas 26 páginas, os dois autores conseguem este feito. O que se vê nessas páginas é um belo desfile de importantes noções caras à análise do discurso, enriquecidas pelos comentários dos autores do capítulo. Para melhor explicar seus procedimentos, Mussalim e Baronas estabelecem um reagrupamento dos assuntos apresentados no livro, operando um recorte eficaz, que enfatiza questões que preocupam o dia a dia do analista do discurso. Sem dúvida de modo inconsciente, o capítulo assume as formas de uma bela construção em mise en abyme: ele forma um pequeno livro dentro de um livro que por sua vez está contido em outro (a coletânea).
No item (iii) de nosso reagrupamento estão os artigos sobre o cômico e o humor, ou seja, os capítulos 4 e 5, escritos, respectivamente, por Maria Irma Hadler Coudry e Maria da Conceição Fonseca-Silva. A primeira mostra que, em um trabalho realizado com Possenti, conseguiu a façanha de, pelo humor, desdramatizar algo tão grave e triste como a fala dos afásicos. O humor aparece assim no que tem de mais belo e humano: ele não zomba do outro. Assim, embora para uns isso possa parecer paradoxal eis um belo caso de transgressividade discursiva em seu sentido mais positivo: o encontro feliz da afasia com o humor.
Já a segunda autora, também profunda conhecedora desse fenômeno linguageiro que é o Humor, mostra que, por trás do riso que causam as tirinhas de Maitena, centradas nos problemas das mulheres de hoje que trabalham, cuidam da casa, do marido e dos filhos e ainda têm que ser bonitas, talentosas, sedutoras, etc. há a parte social, não tão sorridente desta vida, imposta por uma sociedade machista. São assim ressaltados os dois lados do humor: o seu caráter jubilatório e também a sua tragicidade. Tomando por base conceitos discursivos entre os quais a da memória discursiva, bem como o caráter ético-político do humor, Fonseca-Silva reencontra assim o caminho traçado por Possenti que considera o humor na perspectiva da análise do discurso.
No item (iv) reagrupamos capítulos que tratam de temas diversos. Por exemplo, o capítulo 7: nele José Borges Neto discorre sobre e comenta as línguas naturais, tais como o Português, objeto de estudos que sempre interessou a Possenti. Trata-se de um texto que – não sem uma deliciosa ponta de humor irônico – fala de um assunto nosso, de todos os dias: como encaramos o mundo e suas representações através da língua. O olhar lançado pelo autor sobre o assunto é bem atual: para ele as palavras não podem sempre ter um significado fixo, livre do contexto e de seus falantes e das situações de comunicação. E é assim que ele (op.cit., p.140) consegue explicar, de modo claro, questões que nos tocam a todos, ao destacar certos “pecados originais” que ainda hoje vigoram, ou seja, os “equívocos terminológicos”.
O capítulo 6, escrito em homenagem a uma paixão que seu autor – José Luiz Fiorin – mantém em comum com Possenti, é delicioso. Trata-se de um texto concebido sobre um tema do dia, o futebol brasileiro e seus hinos & discurso. A análise realizada pelo autor tomando por base hinos de diversos clubes de futebol, embora seja séria e pertinente, não pode nos impedir o sorriso face à descrição da profusão de elogios, amor, sentimentos pátrios, guerreiros, luta e sangue se preciso for! que difundem tais hinos. O leitor tem a sensação de estar ouvindo ecos dos romanos da Antiguidade, assistindo a lutas romanas no Coliseu… Mas que isso não o iluda: a análise das letras dos hinos é muitíssimo pertinente ao desvelar seus explícitos e implícitos, por meio de um cuidadoso trabalho que examina as artimanhas de um léxico bem empregado, nos hinos em questão, com o fim de suscitar, entre tantas outras coisas, paixões viris e o desejo guerreiro de combate.
No antepenúltimo capítulo tomam a palavra duas pesquisadoras, Anna Flora Brunelli e Luciani Ester Tenani, que irão fornecer explicações bem pontuadas sobre a noção de ethos discursivo. Mas, antes disso, em uma oportuna Introdução, as autoras lembram algo simples, mas que, no entanto, alguns analistas do discurso teimam em esquecer… Para tanto, elas se apoiam em ditos de Possenti. Trata-se do seguinte: no afã da busca da descoberta do sentido, dá-se muitas vezes uma importância exagerada aos fatores extralinguísticos e uma importância menor à materialidade linguística… ora, na busca dos sentidos, uma coisa não vai sem a outra e elas provam isso ao propor uma análise linguística do discurso da Amway. Nesta aparecem os entornos que tais enunciados carregam e isso leva enfim ao ethos da instância analisada.
No penúltimo capítulo, Dominique Maingueneau apresenta três questões que interessam a Possenti: a do discurso político, a da cena de enunciação e a do ethos. Em vez de mostrar uma das muitas propagandas eleitorais dos candidatos da esquerda ou da direita francesa (eleições presidenciais de 2007), Maingueneau inova: o leitor vai conhecer José Bové, candidato ativista-altermundialista. O texto analisado é a profissão de fé do candidato francês. Para melhor explicar seus ditos, o autor se baseia em conceitos discursivos que lhe são caros: a cena da enunciação, a questão da identidade & espaço, as propriedades do enunciador… Neste último item é proposto um quadro bem instigante que mostra o “termo modificador” que caracteriza o ethos que Bové vai construir enquanto candidato. O autor lembra que o grande desafio de um político é fazer com que o eleitor entre no mundo por ele anunciado e construído pela sua enunciação.
O livro se encerra com um capítulo que fizemos entrar em nossa categoria (v). O leitor poderá estranhar nossa divisão em grupos, pois o último tem apenas um capítulo a representá-lo! Ora, se concedemos ao capítulo 11 um lugar privilegiado é porque ele trata da criação de um Centro de estudos, coordenado por Possenti, que reúne diversos pesquisadores, Centro este cujo nome – FEsTA – nós parece ser um clin d’oeil da relação que este pesquisador entretém com o trabalho acadêmico que, em meio a tantos problemas e dores de cabeça, proporciona também momentos de júbilo. Segundo o relato da autora Luciana Salazar Salgado, FEsTA é a sigla do Centro de Pesquisa Fórmulas e Estereótipos: Teoria e Análise. É um núcleo que reúne ex-alunos, alunos e colegas de Possenti. A autora mostra alguns dos ecos do trabalho deste Centro; eis uma bela maneira de se fechar a Coletânea.
Como já dissemos, o livro é excelente. No entanto, sentimos a ausência de um fio condutor da leitura em sua capa. O título ali apresentado é amplo e, ao ler o livro, entendemos que ele buscou retraçar os caminhos percorridos por Possenti. Mas, o fato de não se mencionar – talvez como subtítulo, nesta capa, que a Coletânea presta uma homenagem a Sírio Possenti, deixou algo vago no ar. Evidentemente, trata-se apenas de uma observação que não tira o brilho nem a utilidade da obra.
Ida Lucia Machado – Universidade Federal de Minas Gerais – UFMG, Belo Horizonte, Minas Gerais, Brasil; idaluz@hotmail.fr.
Estudo dialógico-discursivo da canção popular brasileira – CARETTA (B-RED)
CARETTA, Álvaro Antônio. Estudo dialógico-discursivo da canção popular brasileira. São Paulo: Annablume, Fapesp, 2013. 217 p. Resenha de: MAGALHÃES, Anderson Salvaterra. Bakhtiniana – Revista de Estudos do Discurso, v.9 n.2 São Paulo July/Dec. 2014
O livro de Álvaro Antônio Caretta resulta de seus estudos de doutoramento e apresenta inegável contribuição em, pelo menos, dois domínios: teórico-metodológico e histórico-cultural. Tais domínios estão inter-relacionados em sua discussão, portanto, os destaques ora feitos não devem ser lidos como eixos estanques, mas interdependentes, para garantia de compreensão da originalidade do estudo.
O título da obra – Estudo dialógico-discursivo da canção brasileira – dispensa subtítulo e indica metonimicamente aquilo que é tratado e desenvolvido ao longo dos cinco capítulos, além da Introdução e da Conclusão. Acrescentem-se, ainda, uma trajetória bibliográfica listada ao final, bem como uma preciosa relação das 55 canções citadas no estudo, ambas sinalizando, por um lado, a responsabilidade acadêmica de investigação e, por outro, o valor histórico e cultural daquilo que é tomado como objeto de estudo: a canção popular brasileira.
Como o autor pontua logo na Introdução, em variadas esferas ao longo do século XX, a canção popular brasileira foi valorada diferentemente, sendo, por vezes, cotejada como manifestação estética não padrão, por vezes, reconhecida como gênero de excelência na esfera musical. De qualquer modo, a despeito do juízo que a ela se tenha atribuído e para além de seu caráter prosaico evidente por sua circulação no cotidiano brasileiro, músicos, poetas e mesmo acadêmicos têm dirigido sua atenção para aquilo que se consolida indubitavelmente como um fenômeno estético relevante na construção de identidades brasileiras. Sim, identidades, e não identidade, já que, como bem argumenta o autor ao longo do livro, os movimentos discursivos que dão vida às canções participam de processos variegados e, por isso, refletem a diversidade do que pulula no universo cultural brasileiro e refratam valores de diferentes orientações ideológicas.
No primeiro capítulo, O gênero canção popular brasileira, o autor pondera acerca da construção da canção como gênero discursivo. Com a consolidação das cidades, as manifestações musicais vão se transformando até que se distinguisse a canção popular urbana da folclórica. Assim, a segunda metade do século XV marca o início de um cantar amoroso que se vulgarizaria entre cancionistas populares. No cenário brasileiro, especialmente nos três primeiros séculos de colonização portuguesa, as manifestações indígenas e de escravos africanos misturam-se com as cantigas europeias dos colonizadores, estabelecendo um contexto de fronteiras e de interação estética que propiciam a gênese do que hoje se reconhece como canção popular brasileira. Decisivo para esse acabamento estético é a chegada do gramofone. Como destaca o autor, a “relação entre os músicos populares e a nova tecnologia é condição sine qua non para o estabelecimento da canção popular no início do século” (p.43).
No segundo capítulo, O dialogismo na canção popular brasileira, o autor promove uma importante e original discussão teórica interdisciplinar, articulando os estudos bakhtinianos, que no Brasil têm consolidado uma vertente de análise discursiva intitulada Análise Dialógica do Discurso, a Análise do Discurso de base enunciativa, especialmente aquela desenvolvida pelo linguista Dominique Maingueneau, e a Semiótica de base greimasiana, em particular os estudos brasileiros voltados para textos sincréticos, como aqueles desenvolvidos pelo professor e pesquisador Luiz Augusto de Moraes Tatit. E por que mobilizar diferentes campos do conhecimento? O autor responde: “[esses campos do conhecimento] partem do mesmo objeto, o enunciado, particularmente o linguístico, seja ele o oral, o escrito ou aquele que é objeto de nosso estudo, o cantado” (p.15). Por essa articulação interdisciplinar, o autor não cunha os conceitos, mas constrói duas categorias descritivo-analíticas muito profícuas que são contribuição valiosa tanto para os estudos bakhtinianos, de modo geral, como para o estudo das canções, de maneira mais específica: inter e intradialogismo. No livro, este se define pelas relações dialógicas dentro de uma mesma esfera discursiva – no caso do trabalho, relações entre canções dentro da esfera musical – e aquele pelas relações que se estabelecem entre canções e gêneros de outras esferas. Apesar de serem ali mobilizados especificamente para analisar as teias discursivas e interdiscursivas das canções, os conceitos se mostram produtivos para descrição e análise do funcionamento discursivo de maneira geral, sendo relevante contribuição teórico-metodológica do estudo.
No terceiro capítulo, Letra e melodia na amplificação da canção popular brasileira, o autor demonstra como o inter e o intradialogismo se atualizam nas condições materiais da canção, que necessariamente extrapolam a dimensão verbal. Como o autor destaca, “na canção, as palavras e suas possibilidades estilísticas se voltam para a melodia” (p.122) e, ainda, “o dialogismo entre letra e música, inerente ao caráter sincrético da canção, caracteriza esse gênero discursivo” (p.122). A partir daí, o autor pondera acerca de como a canção também constitui lugar de manifestação plurilíngue, ou seja, lugar de relação entre diferentes vozes sociais, articulando não apenas elementos de língua, mas também aspectos musicais, por exemplo, e os sentidos por eles mobilizados.
No quarto capítulo, A enunciação na canção popular brasileira, os lugares sociais instaurados pelas relações intersubjetivas entretecidas nas e pelas canções são os protagonistas. A partir delas, sempre lembrando que o dizer da canção se dá por meio da articulação de elementos linguísticos e musicais, desenham-se diferentes modos de apresentação do ethos, isto é, consolidam-se imagens do enunciador, como a de malandro, por exemplo, que caracteriza os sambistas cariocas na década de 1930.
Tendo construído o objeto de estudo e desenhado um percurso descritivo-analítico, no quinto capítulo, Um caso exemplar, a canção Dá nela, de Ary Barroso, passa pelo escrutínio de um estudo dialógico-discursivo. Evidentemente não é a única canção analisada no livro. Toda a discussão é recheada de análises e exemplos que pontuam e dão concretude à reflexão teórica empreendida. Neste último capítulo, porém, a canção selecionada é pormenorizadamente analisada, com especial destaque para relações intradialógicas estabelecidas intertextual e interdiscursivamente com o samba Dá nele, do sambista e compositor Sinhô.O caso exemplar funciona, então, como um estudo metonímico da proposta construída.
A maneira como o autor mobiliza a noção bakhtiniana de gênero discursivo e articula com os consolidados estudos em semiótica da canção, em especial da canção popular brasileira, bem como com os estudos em Análise do Discurso de base enunciativa, deixa evidente a originalidade da reflexão teórica e do tratamento metodológico dado à canção popular brasileira. Entretanto, como já pontuado aqui, não é apenas esta a contribuição do estudo. As canções mencionadas e as análises desenvolvidas também convocam uma memória cultural importante para a construção identitária brasileira. Não se trata da memória subjetiva de indivíduos particulares ou de personagens célebres, mas da memória que funciona como um thesaurus brasileiro e que fomenta o conjunto de vetores dos discursos de brasilidade.
Menções à Tia Ciata, Donga, Chiquinha Gonzaga, Noel Rosa, Vicente Paiva e Jararaca, entre tantos outros, permeiam o livro e destacam personagens memoráveis da história da canção popular brasileira. Semelhantemente, as canções propriamente ditas habitam o estudo, trazendo a ele um caráter também documental de fragmentos da história cultural-musical brasileira. Assim, os versos do samba Camisa listrada, de Assis Valente, da marchinha Jardineira, de Benedito Lacerda e Orlando Porto, por exemplo, deixam entrever não apenas lampejos de uma época como também uma memória brasileira que se constitui na articulação da poesia com a arte melódica. A polêmica que encadeia Feitiço da Vila, Conversa fiada, Palpite infeliz, Frankenstein da Vila e Terra de cego faz saltar ao leitor um agitado diálogo – no sentido bakhtiniano, que recupera tanto a dimensão prosaica do funcionamento discursivo quanto o plano teórico conceitual refinado – de modo a tornar o leitor uma espécie de testemunha das relações interdiscursivas e intertextuais vetores de sentido. Nesse contexto, a análise linguístico-melódica da marchinha Mamãe eu quero não deve surpreender pela apresentação retórica, mas pela articulação teoria-metodologia-história, que afasta uma leitura enfadonha em prol de uma agradável aula acerca das linguagens que, por um lado, mobilizamos e que, por outro, nos constroem na esfera musical.
Em poucas palavras, é possível afirmar que Estudo dialógico-discursivo da canção popular brasileira figura como relevante investigação acerca das relações de linguagem constitutivas de um fenômeno ou, de outro ponto de vista teórico preciso, de um gênero discursivo de destaque na construção da ideia de brasilidade. Sem abrir mão da linguagem acadêmica e do rigor conceitual e metodológico de um estudo responsável e ético, o livro parece travar uma conversa por meio da qual discorrem personagens marcantes e canções inestimáveis. Assim, o leitor poderá aprender sobre este importante ingrediente da historicização brasileira – a saber: a canção popular – e, de lambuja, retornar à infância, lembrar velhos tempos, reviver o que já passou e ressignificar vivências e épocas. Tudo isso a um só tempo pelas lentes desse Estudo.
Anderson Salvaterra Magalhães – Universidade Federal de São Paulo – UNIFESP, Guarulhos, São Paulo, Brasil; asmagalhaes@unifesp.br.
Questões de estilística no ensino da língua – BAKHTIN (B-RED)
BAKHTIN, Mikhail. Questões de estilística no ensino da língua. Tradução, posfácio e notas de Sheila Grillo e Ekaterina Vólkova Américo. São Paulo: Editora 34, 2013. 120 p. Resenha de: ANDRADE, Augusto Baptista de Andrade. Bakhtiniana – Revista de Estudos do Discurso, v.9 n.2, São Paulo July/Dec. 2014.
A obra aqui apresentada tem como cerne a tradução do artigo intitulado Questões de estilística nas aulas de língua russa no ensino médio, assinado por Mikhail M. Bakhtin, com notas de Liudmila Gogotichvíli e colaboração de Svetlana Savtchuk. O texto foi traduzido por Sheilla Grillo e Ekaterina Vólkova Américo, diretamente do russo.
As tradutoras, ao perceberem a relevância da obra para o estudo de qualquer língua, optaram por transpor para a versão brasileira como Questões de estilística no ensino da língua. Dessa forma, proporcionam à comunidade acadêmica mais um relevante trabalho desenvolvido por Bakhtin, abordando uma faceta pouco discutida no Brasil: seu lado docente. Não apenas o docente voltado para as discussões sobre estratégias de ensino ou sobre desenvolvimento de conteúdo, mas, principalmente, o professor/pesquisador/professor, que observa o desempenho dos estudantes, analisa as suas produções e, sustentando-se em aspectos teóricos, leva à sua prática diária o que se tem chamado de práxis: uma educação criativa e autocrítica, na qual o homem produz (cria) e transforma o conhecimento para uma constituição real da aprendizagem. É esse docente que se pode observar no artigo traduzido, pois representa a ação direta do professor do Ensino Médio, função exercida por Bakhtin em duas escolas no interior da Rússia entre 1937 e 1945.
Trata-se, pois, de um texto indispensável, não apenas para pesquisadores da área de Língua e Linguística, mas para professores do Ensino Fundamental e Médio que há tanto tempo ouvem sobre uma Educação Linguística que passa pelos mesmos problemas discutidos por Bakhtin.
Algumas questões importantes despontaram durante a leitura. A primeira relacionada diretamente ao universo de significações que a publicação proporciona. É possível perceber com clareza a noção de dialogia defendida por Bakhtin e seu Círculo, pois ela irrompe em todo o artigo e na própria construção estrutural da obra pelo entrelaçamento das vozes de Grillo, Américo, Faraco, Brait e Gogotichvíli.
Outro aspecto a destacar é que a obra é sui generis, pois não é uma organização formal de capítulos como se vê normalmente em livros e em coletâneas. Na realidade, são alguns especialistas que refletem sobre o artigo de Bakhtin e oferecem, mesmo em pequenas notas, importantes contribuições que complementam nosso olhar sobre ele. As partes que compõem a obra – orelha, apresentação, artigo, notas da edição russa e posfácio das tradutoras – conversam de forma fina entre si e dão a complementaridade necessária para que os leitores possam perceber as nuances do trabalho realizado pelo filósofo/docente da linguagem.
Se o artigo, que é o objeto de reflexão em todas as partes do livro, impressiona, tendo em vista as discussões muito próximas à contemporaneidade, os demais textos oferecem outras vozes, que aguçam os olhos e os ouvidos do leitor para a importância da compreensão que Bakhtin dá à Estilística no ensino de língua.
Dessa maneira, pretende-se apenas apresentar nesta resenha algumas considerações que ressaltam a qualidade da obra em pauta, ainda que aqui não haja uma ordem sequencial de apresentação da estrutura do livro. Assim, a proposta é unir as vozes que falam sobre o artigo de Bakhtin em uma imagem caleidoscópica, que possibilite mostrar um dos caminhos para que o professor de língua possa experienciar, criando duas possibilidades igualmente importantes para o ensino: a de observar reais mudanças na expressividade textual de seus alunos e conhecer (além de elaborar) estratégias que ofereçam subsídios para uma leitura e produção textual eficientes, a partir de um estudo de Gramática que observe a língua viva.
Com essa intenção, já na orelha da obra, Faraco pontua que o artigo traduzido mostra que o foco do autor não está em discussões teóricas, mas no fazer pedagógico do docente que deveria proporcionar o gosto e o amor por efeitos estilísticos diferenciados, tendo em vista o que se pretende dizer em cada contexto de produção. Em seu artigo, a partir de uma articulação metodológica, Bakhtin apresenta e demonstra como observar os efeitos de sentido do período composto por subordinação sem conjunção e, como caminho de construção para essa trajetória, escolhe o diálogo com seus alunos, procurando evitar uma linguagem livresca e impessoal, tal qual observa Faraco.
Saltando para o posfácio, Baktin, Vinográdov e a estilística, observar-se as tradutoras discorrerem sobre como encontraram Serguei Gueórguevitch Botcharov para solicitar autorização formal para a tradução do artigo e como foram recebidas prontamente após informarem que Bakhtin era uma referência em documentos oficiais da educação básica no Brasil. Passam, posteriormente, a discorrer sobre a questão estilística apontando que Bakhtin procura demonstrar a importância de se refletir sobre uma estilística da língua que não está preocupada apenas com a caracterização de autores e correntes literárias, ao explicitar a estilística do discurso. Para tanto, as tradutoras retomam o que foi apontado por Vinográdov sobre a estilística da língua, estrutural e do discurso, como diferentes tipos e atos de uso, explicitando que a estilística da língua ocupa-se das “inter-relações e interações dos grandes estilos de uma língua em conexão com as funções interativa, comunicativa e persuasiva da linguagem” (p. 103), para, posteriormente, refletir sobre a do discurso, mostrando a importância de Vinográdov nas discussões sobre o tema. Grillo e Américo retomam os conceitos de Estilo e Estilística, argumentando que na Rússia, apesar da influência constante da Estilística europeia, as reflexões/discussões adquirem certa particularidade. Para tanto, tecem um rápido contexto histórico dessas proposições, a fim de apresentar tais nuances, salientando a importância da interlocução com Viktor Vinográdov que, apesar de ter sido opositor constante de Bakhtin, foi várias vezes citado em Problemas da poética de Dostoiévski.
Na apresentação, Lições de gramática do professor Mikhail M. Bakhtin, Brait retoma a importância de se discutir o ensino de língua materna, salientando que o texto de Bakhtin, ora traduzido, demonstra que todas as preocupações em torno de uma Educação Linguística de qualidade parecem perdurar no tempo, pois já era para o filósofo/professor um problema a ser tratado. Tal problema persiste no Brasil, sem sinais de evolução, e pode ser constatado pelos resultados de avaliações nacionais amplamente divulgados. O que nos parece ser fundamental, já apontado na apresentação, é que os autores do Círculo tiveram a preocupação de estabelecer uma relação entre procedimentos metodológicos de ensino/aprendizagem, interligando Gramática, leitura, produção de sentidos e autoria. Brait afirma que sua apresentação não pretende roubar do leitor o prazer da leitura surpreendente e gratificante do livro como um todo; no entanto, sem os resgates desenvolvidos em seu texto, o contexto da obra perderia uma voz importante para a plena compreensão do que se deseja enfatizar, principalmente o reforço que se dá à atenção que Bakhtin oferecia ao contexto escolar, pois, se há uma crise do ensino de língua em curso desde o início do século XX, faz-se necessário continuar a procura de novas possibilidades para reverter tal situação.
A presente publicação, em específico, cumpre esse papel, ou seja, propõe uma revisão do ensino de Gramática praticado nas escolas. Nesse sentido, observa-se no artigo de Bakhtin uma orientação sobre procedimentos didáticos que envolvem a interação docente/discente na parceria necessária para a consecução de uma aprendizagem real, pautada nas questões de produção textual e tendo como suporte a Estilística.
Se não bastassem as notas apresentadas, as tradutoras incluíram outros apontamentos que estavam na edição russa, registrados por Liudmila Gogotichvíli, Sobre o texto de Bakhtin. Observa-se, nessa seção, uma série de comentários de grande relevância para a compreensão geral do texto do professor/filósofo da linguagem. As discussões sobre inter-relação entre Gramática e Estilística são retomadas no âmbito escolar, perpassando aspectos discutidos pelo Círculo, no que se refere aos gêneros do discurso, a fim de que seja compreendida a concepção bakhtiniana das relações entretidas entre Gramática e Estilística. Há referência a alguns autores que trabalharam com a questão, dentre eles estudiosos europeus. Entre tantas discussões que poderiam ser aqui apontadas, para não extrapolarmos o objetivo desta resenha, frisa-se a indicação de que, apesar de certas mudanças científico-metodológicas entre 1921 e 1922 que fundamentavam o ensino de língua russa, especialmente na defesa da separação da Gramática de outros aspectos da língua, para Bakhtin tal proposição era equivocada, pois o teórico considerava que enquanto a Gramática levasse o estudante ao conhecimento sobre a língua, a estilística o conduziria à prática.
O artigo, propriamente dito, apresenta as considerações desse pensador em relação ao ensino de língua e demonstra sua grande preocupação com o que se fazia na Rússia. Coerente com sua concepção dialógica da linguagem, o texto sustenta a necessidade de se observar os estudos das formas gramaticais em consonância com os aspectos semânticos e estilísticos da língua, o que não é tarefa fácil, pois como o autor alerta, raramente o professor dá ou sabe explicitar tais relações.
Em caráter de exemplificação, para que se possa compreender a que o artigo se propõe, destaca-se a possibilidade do modo como a oração subordinada adjetiva poderia ser ou não transformada em particípio. Exercícios dessa natureza são realizados com frequência, no entanto, comumente o aluno fica sem compreender o objetivo da realização de tal atividade, dado que o aspecto puramente gramatical, sem a percepção estilística, não oferece a clareza necessária para a mudança. Nas palavras do mestre, ao citar o exemplo: A notícia que eu ouvi hoje me interessou muito e A notícia ouvida por mim hoje me interessou muito, o professor deveria explicitar, como aponta Bakhtin, que “[…] ao transformar uma oração subordinada desenvolvida em uma reduzida de particípio, diminuímos a natureza verbal dessa frase, realçamos o caráter secundário da ação, expresso pelo verbo ouvir, assim como diminuímos a importância da palavra indicativa de circunstância hoje. Por outro lado, essa alteração provoca uma concentração de sentido e de ênfase no protagonista dessa frase, na palavra notícia, ao mesmo tempo em que se obtém uma grande concisão expressiva” (p.25-26). Fica explicitado, dessa maneira, que alterações gramaticais podem produzir efeitos de sentidos variados, por isso a importância de se trabalhar a Gramática e a Estilística em conjunto, razão pela qual em toda sua extensão o artigo continua laborando essa perspectiva.
Deve-se, sem dúvida, parabenizar a iniciativa da tradução da obra, bem como a reunião de pesquisadores, cujo trabalho tem se voltado, no Brasil, à chamada Análise Dialógica do Discurso. De modo que a importância de sua leitura é aqui reafirmada, tanto para pesquisadores que se dedicam ao estudo da língua/linguagem, quanto para professores dos diversos níveis educacionais, pois a presente publicação traduz para o universo da Educação Linguística reflexões fundamentais para o exercício consciente da docência.
É importante dizer ainda que a presente resenha não teve a pretensão de propor um percurso para a leitura da obra. Cabe a cada leitor buscar seu caminho e dialogar com os profissionais que se dedicaram à tradução, à elaboração do livro e às discussões apresentadas.
Carlos Augusto Baptista de Andrade – Universidade Cruzeiro do Sul – UNICSUL, São Paulo, São Paulo, Brasil; carlos.andrade21@hotmail.com.
Narrativas do exílio: cosmopolitismo além da imaginação liberal – TIHANOV (B-RED)
TIHANOV, Galin. Narrativas do exílio: cosmopolitismo além da imaginação liberal. Série Diálogos dirigida por Maria Isabel de Moura. Trad. Camila Caracelli Scherma; Marina Haber de Figueiredo; Mateus Yuri Passos; Michele Viana Trevisan; Nanci Moreira Branco; Rômulo Augusto Orlandini; Tatiana Aparecida Moreira. São Carlos: Pedro e João Editores, 2013, 186 p. Resenha de: AMÉRICO, Ekaterina Vólkova. Bakhtiniana – Revista de Estudos do Discurso, v.9, n.2 São Paulo, July/Dec. 2014.
A literatura russa costuma ser dividida em três etapas: a literatura russa clássica e modernista até a revolução de 1917, a literatura soviética e a pós-soviética. No entanto, nesse esquema falta um elo muito importante: a contribuição valiosa de escritores, poetas e críticos literários que por diversas razões, predominantemente políticas, deixaram a Rússia pré-revolucionária e depois a União Soviética e passaram a escrever no exílio. A história da literatura russa e da literatura da sua emigração como uma “realidade paralela” tornou-se foco de várias palestras proferidas recentemente por Galin Tihanov, professor de Literatura Comparada e História Intelectual da Universidade de Londres, nas universidades brasileiras (entre elas USP, PUC-SP e UNESP). Narrativas do exílio: cosmopolitismo além da imaginação liberal é um conjunto de quatro ensaios escritos em diferentes ocasiões, mas unidos por um tema central: cosmopolitismo como característica principal da cultura de emigração. Como o exílio é analisado tanto como um fenômeno universal quanto concreto (no caso dos literatos que emigraram da Rússia), o livro certamente atrairá um número significativo de leitores interessados nesse tema.
Seria um equívoco muito grave tratar a literatura da emigração, ou do exílio, segundo o termo utilizado por Tihánov, como secundária e menos importante em relação à literatura-mãe. Muitos dos autores emigrantes tornaram-se mundialmente conhecidos, entre eles Ivan Búnin (1870-1953), laureado com o prêmio Nobel de literatura de 1933 e Vladímir Nabókov (1899-1977), que escreveu muitas das suas obras em inglês. Já na área da crítica literária, foi importantíssima a contribuição do também emigrante Roman Jakobson, responsável inclusive pela descoberta e divulgação da obra de Mikhail Bakhtin, e de muitos outros autores fora da União Soviética. Dessa forma, trata-se de um fenômeno original, que não só possui muito em comum com a cultura russa e soviética, mas também diverge dela e, portanto, merece uma análise profunda. Infelizmente, até os tempos recentes esse assunto era muito pouco estudado, principalmente devido à proibição da literatura de emigração na União Soviética e o seu desconhecimento subsequente pela grande maioria dos russos. O livro de Tihanov supre essa lacuna oferecendo um trabalho sério e detalhado, que confronta vários equívocos e mitos em relação a esse fenômeno tão importante.
No ensaio “Narrativas do exílio: cosmopolitismo além da imaginação liberal”, Tihanov afirma a necessidade de se criar uma metodologia que possa ser aplicada à análise do fenômeno da emigração. Sua proposta é libertar o conceito de exílio de todos os mitos existentes sobre ele, principalmente no que diz respeito à sua posição periférica e dependente em relação à literatura de origem.
O menosprezo e até a “exclusão” da literatura de emigração se deve também à eterna dicotomia da cultura russa entre o “seu próprio” e o “alheio” (é um dos temas fundamentais da obra do semioticista Iúri Lotman), que tem como resultado o fato de que todos os elementos da cultura “estrangeira” passam a ser vistos como estranhos e potencialmente perigosos. Tal conduta diante do desconhecido origina-se no isolamento histórico da Rússia em relação aos outros países europeus no decorrer de vários séculos, interrompido com a europeização do país na época de Pedro, o Grande, e retomado durante o regime soviético com o fechamento da “cortina de ferro”.
Segundo Tihanov, um dos principais equívocos ao se tratar da literatura do exílio é a ideia de que a cultura de emigração seja voltada inteiramente para a pátria perdida, almejando o reencontro e o reconhecimento pelo leitor russo. De acordo com essa visão, condenada pelo autor como muito limitada, as relações entre a União Soviética e a emigração seriam as de centro e periferia. Voltando à questão da literatura da emigração, seria ela realmente periférica em relação à literatura-mãe? A complexidade da correlação centro/periferia é agravada mais ainda pelo fato de que a Rússia, por sua vez, durante centenas de anos se sentiu e ainda continua a se sentir como periferia em relação à Europa e a cultura ocidental em geral. Vista por essa ótica, a literatura do exílio deixa de ser periférica e torna-se mais próxima do centro do que a literatura-mãe, que, então, passa a ser “periférica”. A filosofia, a literatura e a cultura alemã e francesa foram, desde o século XVIII, grandes norteadores da cultura russa e não por acaso os primeiros emigrantes se concentram justamente em Berlim e em Paris.
Combatendo a ideia da emigração como um afastamento e isolamento, Tihanov sugere que se trate de uma inserção da cultura russa dentro de outra(s) cultura(s), o que resulta em um enriquecimento mútuo. Por exemplo, se Nabókov nunca tivesse deixado a Rússia, sua obra certamente não seria a mesma que conhecemos.
Uma das áreas que mais se beneficiaram com a emigração foi a teoria literária. O formalismo russo teve seu renascimento na obra de Víktor Chklóvski e Roman Jakobson. Em Praga, juntamente com o folclorista Piotr Bogatyriov (1893-1971), Jakobson continuou as tradições da OPOIAZ (Sociedade do Estudo da Linguagem Poética) de São Petersburgo e do Círculo Linguístico de Moscou. Foi assim, graças à emigração, que surgiu o Círculo Linguístico de Praga: “O trabalho do Círculo Linguístico de Praga, em particular, atuou numa situação de verdadeira poliglossia (…); Jakobson, Trubetzkoy e Bogatyrev estavam, cada um, escrevendo em pelo menos duas ou três línguas ao mesmo tempo (russo, alemão, tcheco)”. Um dos trabalhos mais importantes do Círculo foi escrito em 1929 por Bogatyriov e Jakobson. Trata-se do ensaio “O folclore como forma específica de arte”2 em que os autores defendiam a necessidade de tratar os estudos do folclore e os estudos literários como ciências diferentes, bem como a de aplicar uma combinação do método sincrônico e diacrônico em ambos os casos. Dessa forma, o trabalho do Círculo de Praga é uma premissa do estruturalismo e da metodologia estrutural-tipológica desenvolvida pela escola semiótica de Tártu-Moscou. A emigração teve um enorme significado para a teoria literária moderna. Utilizando o termo de Chklóvski, Tihanov observa que, ao se afastarem da Rússia, os intelectuais tiveram oportunidade de “estranhar” a cultura russa, isto é, olhar para ela a distância. “O exílio, em vez de agir como um fator de entrave, foi o coração de desenvolvimentos salutares que promoveram o crescimento da teoria literária no período entre-guerras” (TIHANOV, 2013, p.78).
Já no campo da crítica literária, ocorreu uma reavaliação da herança da literatura clássica do século XIX, principalmente a de Púchkin e Lérmontov. Se na União Soviética os futuristas propunham jogar ambos “fora do barco da modernidade”, a emigração discutia, nos anos 1930, qual dos autores clássicos seria mais importante para o futuro literário. Enquanto Georgui Adamóvitch (1892-1972) afirmava a primazia de Lérmontov como um poeta mais “ocidental”, cujo espírito romântico, revoltado e solitário, era mais próximo ao dos emigrantes, outro literato emigrante proeminente, Vladislav Khodasiévitch (1886-1939), defendia a supremacia de Púchkin.
Como uma das consequências do “estranhamento” e da possibilidade de olhar a cultura do seu país à distância, nos anos 1920-30, entre os emigrantes russos, surgiu o movimento chamado de eurasianismo (evrazíistvo), que visava repensar a posição cultural e política da Rússia não como uma cisão entre a Europa e Ásia, mas como parte de um único continente Eurásia e, portanto, como uma combinação peculiar dos traços ocidentais e orientais. Hoje, as ideias do eurasianismo ganharam muitas repercussões na mídia russa.
O artigo “Cosmopolitismo no panorama discursivo da modernidade: duas articulações do Iluminismo” é uma análise das transformações sofridas pelo conceito “cosmopolitismo” ao longo de sua existência, desde suas origens, na filosofia kantiana, até os dias de hoje. A atualidade desse tema é comprovada pela frequência do seu uso, assim como de outros termos com significados semelhantes: “internacionalismo”, “universalismo”, “multiculturalismo”, “transnacionalismo” e “globalização”.
A história da modernidade, assim, pode ser descrita como uma oscilação entre dois polos, o nacionalismo e o cosmopolitismo. Como exemplo, Tihanov lembra a trajetória dos estudos comparativos na Rússia e na União Soviética. Em decorrência do processo geral de integração entre a Rússia e os países europeus, no final do século XIX se firmou o método comparativo, cujos princípios foram relatados por Aleksandr Vesselóvski (1838-1906) em obra monumental, apesar de não ter sido concluída, Poética histórica (Историческая поэтика) de 1899. Entre outros fundadores dos estudos comparativos estava o formalista Iúri Tyniánov (1894-1943), que em seus artigos “O fato literário” (1924) e “Da evolução literária” (1927) expôs as leis que determinam a sucessão de gêneros literários na história da literatura mundial. Em 1928 foi lançada a Morfologia do conto maravilhoso3 de Vladímir Propp (1895-1970), que empregava o método comparativo aos estudos dos contos maravilhosos de diferentes países. Outro grande estudioso da cultura e literatura russa e universal, Mikhail Bakhtin, também utilizava o método comparativo como uma das principais ferramentas de sua análise. Assim, no livro Problemas da obra de Dostoiévski de 1929, ele aborda a questão do gênero na obra do clássico russo e encontra suas origens na literatura antiga e medieval.
Porém, meio século depois da fundação dos estudos comparativos, nos últimos anos do governo de Stalin, iniciou-se uma campanha ideológica realizada contra os comparativistas, denominada “luta contra os cosmopolitas”. As perseguições eram direcionadas principalmente contra os intelectuais judeus, embora isso nunca tenha sido dito oficialmente. A luta teve seus motivos políticos, entre eles o estabelecimento das relações diplomáticas entre Israel e os Estados Unidos em 1948. Em fevereiro de 1949, os mais conhecidos e importantes comparativistas soviéticos, todos judeus, foram acusados de pregarem as tendências antirrussas. Entre eles estavam: Boris Eichenbaum, Víktor Jirmúnski, Mark Azadóvski e Grigóri Gukóvski. Todos eles perderam o emprego; já Gukóvski foi preso e morreu sem nunca ter sido liberado. Esse estreitamento dos limites do Estado por meio da perseguição dos elementos “alheios” foi uma consequência da volta do nacionalismo como a principal ideia do país, assim como acontece na Rússia de hoje.
No contexto brasileiro, a emigração do Leste Europeu na primeira metade do século XX também foi de grande valia: basta citarmos nomes como Clarice Lispector, Tatiana Belinky e Boris Schnaiderman, este último responsável pela fundação dos estudos russos no Brasil. Graças a essa contribuição, hoje testemunhamos uma verdadeira explosão de traduções diretas dos grandes autores da literatura e crítica literária russa e dos trabalhos acadêmicos dedicados às questões literárias e culturais. A emigração russa, vista como um fenômeno importante da cultura universal, tampouco passa despercebida pelos pesquisadores no Brasil4.
Ao que tudo indica, a conclusão sobre o efeito enriquecedor do cosmopolitismo cultural foi inspirada na experiência pessoal do autor: nascido em 1964 na Bulgária, que naquela época fazia parte do bloco soviético, nos anos 1990 Tihanov muda-se para a Inglaterra em busca de aperfeiçoamento acadêmico. Ele, assim como outras gerações de historiadores da cultura e literatura emigrantes, entre eles os seus conterrâneos Tzvetan Todorov e Julia Kristeva, é um mediador da cultura do Leste Europeu que contribui para a sua recepção no Ocidente. É inegável o fato de que o cosmopolitismo tornou-se a principal característica do nosso tempo e todos nós lidamos constantemente com influências das diversas culturas. E é justamente por esse motivo o estudo realizado por Tihanov em seus quatro ensaios é muito bem-vindo no Brasil.
1 Embora sendo estrangeira e não estando inteiramente apta para avaliar a fluência e a clareza da tradução, tive oportunidade de comparar a tradução brasileira dos ensaios de Tihanov com a sua versão em russo e, em alguns casos, notam-se lacunas na transmissão das ideias do autor. Além disso, infelizmente, os tradutores não observaram as normas de padronização da transliteração dos nomes russos, utilizadas convencionalmente em todas as traduções diretas recentes de autores russos, como, por exemplo, no caso de Vladímir Maiakóvski (que aparece como Mayakovsky), Víktor Chklóvski (transliterado como Shklovsky), Iúri Tyniánov (Yuri Tynianov) e assim por diante.
2 BOGATYRIOV, P., JAKOBSON, R. O folclore como forma específica de arte. In: Mitopoéticas: da Rússia às Américas. Org. de Aurora Fornoni Bernardini, Jerusa Pires Ferreira; coorganização Programa de Pós-graduação em Literatura e Cultura Russa – USP e Núcleo de Poéticas da Oralidade – PUC-SP. São Paulo: Humanitas, 2006, p.29-44.
3 PROPP, V. I. Morfologia do conto maravilhoso. Rio de Janeiro: Forense-Universitária, 1984.
4 BYTSENKO, A. Imigração da Rússia para o Brasil no início do século XX. Visões do Paraíso e do Inferno. 2006. 134 f. Dissertação. (Mestrado em Literatura e Cultura Russa) FFLCH, USP, São Paulo; MIKAELYAN, Y. Serguei Dovlátov no contexto da terceira onda de emigração russa. RUS, São Paulo, v. 02, p.87-97, 2013; SCHNEIDER, G. Vladímir Nabókov: As Artes da Tradução. Tradterm, São Paulo, v. 18, p.103-122, 2011.
Ekaterina Vólkova Américo – Universidade de São Paulo, São Paulo, São Paulo, Brasil; katia-v@yandex.ru.
A construção do mito Mário Palmério: um estudo sobre a ascensão social e política do autor de Vila dos Confins – FONSECA (B-RED)
FONSECA, André Azevedo da. A construção do mito Mário Palmério: um estudo sobre a ascensão social e política do autor de Vila dos Confins. São Paulo: Editora da Unesp. 2012. Resenha de: OLIVEIRA, Michel. O avesso de um mito: uma análise da ascensão pública de Mário Palmério. Estudos Históricos, v.27 n.54 Rio de Janeiro July/Dec. 2014.
Alguns mitos são de carne, osso e ideologia. Essa é uma das muitas premissas que se pode depreender da leitura de A construção do mito Mário Palmério: um estudo sobre a ascensão social e política do autor de Vila dos Confins, livro lançado em novembro de 2012 pela Editora Unesp. A obra de 306 páginas, distribuída nas versões impressa e digital, é resultado da pesquisa de doutorado do pesquisador e professor André Azevedo da Fonseca.
O autor, jornalista, doutor em História e pós-doutor em Estudos Culturais, apresenta uma obra que reflete essa trajetória acadêmica. O livro imbrica diversas facetas: do relato documental à análise da ascensão mítica de Mário Palmério através de um recorte baseado na História Cultural. Fonseca iniciou a pesquisa que resultou no livro durante a monografia de sua especialização em História, em 2004, e a finalizou em 2010, quando defendeu a tese de doutorado. Durante esse período, analisou diversos documentos relacionados a Palmério, como fotografias, recortes de jornais e até boletins escolares. O material coletado durante a pesquisa foi reunido no Memorial Mário Palmério, fundado pelo autor na Universidade de Uberaba (Uniube).
A narrativa tem início com uma apresentação do cenário: Uberaba, no Triângulo Mineiro. A cidade, cuja economia se baseava na pecuária, viveu tempos de progresso nas primeiras décadas do século XX devido ao terminal ferroviário ali instalado. A expansão da linha férrea para cidades vizinhas descentralizou a distribuição de produtos e a circulação de pessoas. Gradativamente, Uberaba foi perdendo o prestígio e entrou num processo de estagnação econômico-cultural.
Na década de 1940, a elite local decidiu investir na modernização do centro do município, a fim de dar um novo ânimo à população e avivar o brio dos ricos criadores de gado. O pesquisador deixa claro como as relações de poder eram motivadas por adulações. A própria imprensa local era responsável por açular o ego dos pecuaristas e de outras figuras de destaque da sociedade. Segundo o autor, uma cultura em que a elite encenava um verdadeiro “teatro social”. Foi nesse contexto que Mário Palmério construiu seu legado, aproveitando-se dessa conjuntura social para consolidar uma imagem mítica.
Essa teatralização fica clara desde o sumário da obra, dividido em duas partes principais, chamadas pelo autor de atos. Essa escolha não foi aleatória, e já mostra ao leitor que a trajetória de vida de Mário Palmério será apresentada como um espetáculo que deve ser acompanhado num crescente narrativo: da infância até a consolidação profissional e política.
O primeiro ato, intitulado “Mário Palmério na escalada do reconhecimento social”, é dividido em quatro cenas principais. Na primeira delas, “O prestígio familiar”, o autor faz uma apresentação do contexto: Palmério era o filho caçula do engenheiro e advogado Francisco Palmério e de Maria da Glória Palmério, casal notório da sociedade uberabense. Ao longo dessa primeira parte, o autor explicita como o personagem sempre trabalhou na construção de uma imagem pessoal forte, na tentativa de alcançar a importância do pai e dos irmãos.
A cena seguinte, “A socialização de Mário Palmério”, relata o retorno do personagem a Uberaba, depois de uma temporada de estudos em São Paulo. Para o autor, essa volta marcou a “emancipação simbólica” do personagem e deu início à terceira cena: “A ascensão profissional”, que mostra o começo da carreira docente de Palmério, com a criação do Liceu Triângulo Mineiro, passando pela Escola do Comércio do Triângulo Mineiro até o apogeu com a abertura da Faculdade de Odontologia.
O primeiro ato tem como desfecho “A consagração pública”, etapa na qual Palmério se consolida enquanto figura de prestígio da elite e do povo. Mesmo que no íntimo fosse avesso à teatralização social, o personagem participou do jogo de encenação para alcançar seus objetivos pessoais. Nesse ponto, há um avanço na narrativa que culmina no segundo ato, denominado “A consagração do mito”, dividida em três cenas principais.
A segunda fase da história é introduzida com o pensamento de Schwartzenberg, além de Balandier e Girardet, que analisam o poder político a partir do arquétipo mítico do herói como um enviado capaz de conduzir o povo à terra prometida. Esse prólogo delineia um novo rumo na narrativa, que tem início na cena “O tempo da espera”, na qual o autor relata o conturbado momento político do pós-guerra num Brasil marcado pela consolidação do Estado Novo.
A cena seguinte, “Crises”, apresenta uma série de perturbações de diversas ordens, social, econômica, política e identitária, que afetaram Uberaba e o Triângulo Mineiro entre as décadas de 1940 e 1950, crises essas que culminaram numa proposta de separação da região do Triângulo do território de Minas Gerais. Foi esse contexto que serviu de pano de fundo para a cena seguinte: “O anúncio do herói”. Nessa fase, Palmério já era figura de bastante destaque na cidade, sempre à frente de projetos educacionais e assistencialistas. O anúncio de sua candidatura a deputado federal, em 1950, foi quase que uma consequência de sua ascensão apoteótica.
Depois de um pleito bastante agitado, o professor saiu vitorioso. Para o autor, essa sagração só foi possível graças à maneira como Palmério gerenciou a própria imagem. Depois de alguns mandatos e cargos públicos, o último deles como embaixador do Brasil no Paraguai, Palmério desiludiu-se com a política e passou a se dedicar à literatura, período em que escreveu seu segundo romance: Chapadão do Bugre (1965). Em 1970, ele concorreu novamente à prefeitura de Uberaba mas foi derrotado, encerrando sua carreira pública sem grande prestígio.
A proposta apresentada pelo autor, de analisar a biografia de Mário Palmério através de um recorte da História Cultural, mostrou-se bastante válida, pois não se debruçou apenas na narrativa de vida, apresentando o contexto e as relações sociais e de poder como elementos constitutivos de uma teia mais ampla. Esse viés, muitas vezes deixado de lado nas biografias, faz com que o leitor possa compreender os fatos e ir além do que está narrado.
A obra traz ainda o diferencial de apresentar a ascensão de Palmério como consequência de uma construção mítica de sua imagem, dando aplicabilidade às teorias dos autores estudados durante a pesquisa. Dessa forma, o leitor pode compreender a História como um contexto em que fatos e ideologias se fundem na construção daquilo que tomamos como realidade.
O livro se destaca também por apresentar elementos visuais e gráficos, como fotografias, recortes de jornais e tabelas comparativas, que servem não apenas para ilustrar, mas para contextualizar o enredo e os cenários. Esses elementos se somam à narrativa ampliando as esferas de compreensão. Decerto, a proposta apresentada por André Azevedo pode ser replicada na reconstrução de outras biografias e fatos históricos ou até mesmo de contextos sociais.
Michel Oliveira – Mestrando em Comunicação e aluno de Especialização em Fotografia: Práxis e Discurso Fotográfico na Universidade Estadual de Londrina (UEL) (michel.os@hotmail.com.br).
Bakhtine démasqué: Histoire d’un menteur, d’une escroquerie et d’un délire collectif – BRONCKART; BOTA (B-RED)
BRONCKART, Jean-Paul & BOTA, Cristian. Bakhtine démasqué: Histoire d’un menteur, d’une escroquerie et d’un délire collectif, Genève: Droz, 2011. 629 p. Resenha de: NOSSIK, Sandra. Bakhtiniana, Revista de Estudos do Discurso, v.9 n.spe, São Paulo, Apr./July 2014.
A publicação1 de Bakhtin desmascarado2, escrito por Jean-Paul Bronckart e Cristian Bota, faz eco às diversas e recentes exegeses francófonas dos escritos do chamado “Círculo de Bakhtin”, e especialmente à retradução de Marxismo e filosofia da linguagem por Patrick Sériot, lançada em 20103. Esses dois trabalhos independentes estabelecem, contudo, objetivos distintos: se o prefácio de Sériot empreendia uma recontextualização histórica e epistemológica da obra de Valentin Voloshinov, o livro de Bota e Bronckart se dedica principalmente a restabelecer a verdade sobre a paternidade dos “textos disputados” de Mikhail Bakhtin. Três textos lançados na URSS no fim dos anos 1920, Marxismo e filosofia da linguagem4 e O freudismo, um esboço crítico5, publicados sob a autoria de Voloshinov, e O método formal nos estudos literários6, publicado sob a autoria de Pavel Medvedev, foram de fato atribuídos a Bakhtin em numerosas edições e traduções a partir dos anos 1970, após a declaração, pelo linguista russo Vjačeslav Ivanov, de que esses textos tinham sido manifestamente escritos por Bakhtin (Ivanov [1973] 1975, KULL & VELMEZOVA, 2011). Essa afirmação sem prova foi rapidamente aceita e difundida, notadamente nas traduções francófonas, o que ensejou leituras e interpretações dessas obras como de um corpus unificado proveniente de um mesmo autor, e, portanto, uma apropriação científica que estabelece, sem discussão, pontes teóricas entre textos particulares. A obra de Bronckart e Bota defende a tese de que esses textos foram mesmo escritos pelos seus respectivos signatários Voloshinov e Medvedev, tese partilhada atualmente por muitos pesquisadores. O livro se propõe, todavia, ir mais longe no “desmascaramento” de Bakhtin, apresentando uma tese desta vez inédita: o célebre Problemas da poética de Dostoiévski7, lançado pela primeira vez em 19298 sob autoria de Bakhtin, e cuja paternidade nunca havia sido questionada até agora, seria ele mesmo resultado de uma combinação de textos distintos escritos por Bakhtin, mas também por Voloshinov.
A obra de Bronckart e Bota divide-se em duas partes: a primeira dedica-se a uma pesquisa sobre as sucessivas recepções no mundo ocidental (principalmente anglófono e francófono) dos escritos de Bakhtin, Voloshinov e Medvedev, comparando as diferentes reações que precederam e seguiram o anúncio da onipaternidade de Bakhtin, e desvelando suas contradições e incoerências. Esse panorama se completa pelo estudo dos depoimentos tardios fornecidos por Bakhtin pouco antes de sua morte. Numa segunda parte, Bronckart e Bota propõem um retorno aos escritos principais de Bakhtin, Voloshinov e Medvedev, visando, através de uma análise textual comparativa, a revelar as profundas divergências tanto formais quanto metodológicas e teóricas que distinguem essas três autorias, e ainda a demonstrar que o Dostoiévski resulta, ele mesmo, do trabalho de dois autores distintos. Se é impossível abarcar rigorosamente o conjunto de informações contidas nessa obra imponente (600 páginas)9, proporemos agora uma síntese necessariamente limitada das ideias importantes desse estudo.
A primeira parte do livro dedica-se então ao caso dos “textos disputados”, isto é, ao modo como a paternidade de Bakhtin sobre os três textos em questão foi anunciada e, em seguida, o mais amiúde, aceita, difundida e sustentada pelos pesquisadores ocidentais. O livro de Bronckart e Bota opera por arcos cronológicos complexos, comparando entre si as recepções dos textos posteriores e anteriores à eclosão do caso nos anos 1970, comparando também as biografias de Bakhtin escritas na década de 1980 a dados factuais provenientes de fontes mais tardias. Essas várias contextualizações comparadas trazem a lume as múltiplas e contraditórias argumentações que foram empregadas para provar a coerência e a importância da obra supostamente produzida por um autor único.
O leitor francófono encontrará assim, notadamente, o relato da recepção dos textos do “Círculo” na França a partir da publicação, em 1977, de Marxismo e filosofia da linguagem, na tradução realizada por Marina Yaguello, prefaciada por Roman Jakobson e publicada sob o nome de Bakhtin. Bronckart e Bota se detêm particularmente sobre o livro de Tzvetan Todorov lançado em 1981, Le principe dialogique [O princípio dialógico], que contribuiu consideravelmente para popularizar na França os trabalhos de Voloshinov e Bakhtin, ao mesmo tempo naturalizando de fato a paternidade de Bakhtin sobre o conjunto desses textos, que se viam apresentados como um corpus único, graças, particularmente, a capítulos temáticos reunindo excertos oriundos de textos assinados por autores distintos.
Uma atenção particular também é dedicada aos trabalhos dos eslavistas americanos Katerina Clark e Michael Holquist, cuja obra Mikhail Bakhtin, publicada em 198410, constitui o “apogeu hagiográfico” dos estudos bakhtinianos (BRONCKART & BOTA, 2012, p.119). A glorificação da obra de Bakhtin aí se dá paralelamente a uma depreciação das figuras de Voloshinov e de Medvedev, brevemente apresentados, um como um intelectual medíocre, o outro como um arrivista cínico. Conquanto tenha influenciado de maneira duradoura o campo dos estudos literários, essa hagiografia foi seguida de textos reticentes denunciando o desenvolvimento da Bakhtin Industry, a exemplo da importante contrabiografia de Gary S. Morson e Caryl Emerson (1990)11. Bronckart e Bota sublinham a importância desta última obra que se empenha em destacar as incoerências da tese da onipaternidade bakhtiniana; mas denunciam, ao mesmo tempo, o posicionamento ideológico dos autores americanos, que seguramente concorreu para sua determinação em distinguir entre as obras de Voloshinov (mais marxizantes à primeira vista) e as de Bakhtin.
Enfim, Bronckart e Bota examinam os depoimentos tardios fornecidos por Bakhtin nos anos que precederam sua morte em 1975, e publicados por seus editores e divulgadores no início da década de 1990. Longe de trazerem dados novos que permitam atestar a paternidade dos textos disputados, essas entrevistas e depoimentos recolhidos avolumam, pelo contrário, as inúmeras contradições que permeiam os sucessivos relatos de Bakhtin sobre as condições de redação de todos esses textos no fim dos anos 20. Eles não acrescentam, no mais, nenhum dado preciso sobre a existência do suposto círculo de intelectuais batizado posteriormente “Círculo de Bakhtin”, e confirmam a relação flutuante que Bakhtin parecia manter com a própria biografia, que ele apresentou, ao longo de sua vida, em versões variadas.
Bronckart e Bota oferecem assim, nesta primeira parte de sua obra, um panorama das incoerências factuais e das justificações contraditórias que se supõe, desde 1975, sustentarem a tese da onipaternidade de Bakhtin. A recusa de Bakhtin, até sua morte, em assinar um documento reconhecendo oficialmente sua autoria, a ausência de outros testemunhos diretos além daquele do próprio Bakhtin e de sua mulher sobre a redação dos textos disputados, ou ainda as incompatibilidades biográficas (tais como a suposta produtividade de Bakhtin, que teria escrito quatro livros e nove artigos entre 1926 e 1929, demonstrando um ritmo de escrita inédito em sua trajetória, haja vista sua produção anterior e posterior) são todos, portanto, argumentos factuais que desacreditam a tese da onipaternidade. Bronckart e Bota também enfatizam a ausência de dados que provem a existência do chamado “Círculo de Bakhtin”, ou de uma influência do suposto mestre Bakhtin sobre seus discípulos: se vários intelectuais soviéticos, incluindo Bakhtin, Voloshinov, Medvedev, mas também Matvei Kagan ou Lev Pumpiânski, de fato costumavam se encontrar e trabalhar juntos nos anos 1920, verifica-se, por um lado, que cada um deles participava de diferentes reuniões e não de um círculo único, e, por outro, que nenhum desses círculos parece ter sido dirigido (nem material nem intelectualmente) por Bakhtin.
O acúmulo das explicações contrárias invocadas para justificar as assinaturas dos textos disputados contribui igualmente para desacreditar a tese da autoria de Bakhtin: com efeito, a publicação desses textos sob os nomes de Voloshinov e de Medvedev foi sucessivamente interpretada como um “presente” de Bakhtin para os seus amigos, ou, pelo contrário, como o estratagema de um Bakhtin premido pela necessidade de poder publicar seus textos e recuperar seus direitos autorais, argumento este refutado pela publicação, no mesmo ano de 1929, do Dostoiévski, sob seu próprio nome. Bronckart e Bota mostram ainda o curioso expediente de argumentação, que eles qualificam de “hermenêutica especular”, através do qual os exegetas ocidentais de Bakhtin sustentaram a tese de sua onipaternidade: esse procedimento hermenêutico consiste em justificar a substituição de autores por meio de conceitos oriundos dos próprios textos de Bakhtin, como se sua trajetória editorial tivesse sido o reflexo prático de “sua” obra. Bakhtin teria, então, feito publicar certos textos sob o nome de Voloshinov ou de Medvedev pelo gosto da máscara, em razão da atmosfera carnavalesca que dominava em seu círculo, ou ainda porque seu trabalho era dirigido a esses signatários numa interação dialógica… Assim reunidas e postas em confronto por Bronckart e Bota, essas justificações múltiplas e contraditórias demonstram a fragilidade da afirmação segundo a qual Bakhtin seria o autor dos textos disputados.
A segunda parte do livro de Bronckart e Bota pretende ser uma análise detalhada dos respectivos escritos de Bakhtin, Voloshinov e Medvedev, examinados individualmente de modo linear, “em sua globalidade e em sua coerência geral” (BRONCKART & BOTA, 2012, p.288). Longe da montagem de excertos de obras apresentada por Todorov em seu tempo, trata-se aqui, portanto, de estudar o “corpus bakhtiniano” no seu conjunto, a fim de discernir seus contornos teóricos e estilísticos.
A análise dos autores se dedica, num primeiro momento, aos textos de juventude de Bakhtin, três artigos escritos nos anos 1920 e não publicados: Para uma filosofia do ato12, O autor e o herói13, e O problema do conteúdo, do material e da forma na criação literária14. Bronckart e Bota distinguem aí as principais características da “ontologia religiosa” de Bakhtin (BRONCKART & BOTA, 2012, p.309), marcada por uma exaltação do estatuto religioso da vida humana, bem como da responsabilidade do sujeito sobre seus atos: essa responsabilidade determina especialmente o trabalho do escritor, que, no exercício de sua arte, tem por dever transmitir através de seu personagem a essência moral dos atos humanos. Os autores destacam igualmente “o estilo empolado”, o “caráter obscuro” e a “ausência de planejamento textual explícita” dos escritos bakhtinianos (BRONCKART & BOTA, 2012, p.287), essa escrita confusa e identificável desempenhando um papel importante na argumentação dos dois sobre a paternidade dos textos estudados.
A obra de Volóshinov, em seguida, especialmente O freudismo e Marxismo e filosofia da linguagem, é objeto, ao contrário, de um estudo laudatório, que destaca as divergências ao mesmo tempo teóricas e formais que a opõem à obra de Bakhtin. É abordada particularmente “a deliberada fundamentação” do trabalho de Voloshinov “no marxismo” (BRONCKART & BOTA, 2012, p.351), assim como temas que garantiram a posteridade de Voloshinov entre os linguistas contemporâneos, como o dialogismo, as formas do discurso reportado, ou ainda os gêneros do discurso. Bronckart e Bota notam que esses temas, igualmente presentes em Medvedev, estão ausentes dos primeiros textos de Bakhtin. Enfim, O método formal nos estudos literários é por sua vez analisado pelos autores, que novamente sublinham o contraste entre a “poética sociológica” e “marxista” proposta por Medvedev e o programa religioso de Bakhtin (BRONCKART & BOTA, 2012, p.402).
O estudo comparado desses diferentes escritos, cuja complexidade e exaustividade uma síntese concisa como a nossa não chega a refletir, permite assim aos autores afirmar que as “abordagens radicalmente apartadas e amplamente antagônicas” de Bakhtin, Voloshinov e Medvedev, “nos planos teórico, conceitual, metodológico” e “estilístico”, não mais admitem a dúvida quanto à paternidade dos textos disputados (BRONCKART & BOTA, 2012, p.423). Mais ainda: essa análise textual lhes permite fundamentar a tese-chave da obra, segundo a qual o Problemas da poética de Dostoiévski não teria sido escrito unicamente por Bakhtin, mas resultaria de uma combinação de textos de Bakhtin e de Voloshinov. A primeira edição do livro em 1929, segundo eles, contém de fato capítulos curiosamente contrastantes, e mesmo “incompatíveis” (BRONCKART & BOTA, 2012, p.452), uns correspondendo aos objetos de estudo trabalhados por Voloshinov na época, mas ausentes dos estudos de Bakhtin (o dialogismo, o discurso reportado, abordados numa ótica sociologizante e marxizante), outros evocando, ao contrário, a tonalidade “religiosa e tradicionalista” dos primeiros textos bakhtinianos (BRONCKART & BOTA, 2012, p.490). A segunda edição do livro, em 1963, impulsionada e dirigida pelos divulgadores de Bakhtin, mostra, por sua vez, uma redução das fórmulas sociologizantes e das passagens dedicadas ao tema do dialogismo, ao passo que é acrescentado um capítulo sobre o tema bakhtiniano da carnavalização.
Além da análise textual, Bronckart e Bota fundam sua demonstração sobre dados biográficos: em seus depoimentos tardios, Bakhtin parece ter sempre renegado essa obra, e lamentado sua tonalidade marxizante. Por outro lado, a obra é publicada uma primeira vez em 1929, quando Bakhtin é preso por suas atividades religiosas e se vê ameaçado de um exílio nas ilhas Solovski: a essa prisão se seguiu na época uma campanha de apoio a Bakhtin iniciada por seus amigos, período durante o qual a boa recepção crítica do Dostoiévski certamente contribuiu para abrandar a pena prevista. Segundo Bronckart e Bota, no contexto dessa campanha de apoio, é plausível que Medvedev e Voloshinov tenham pretendido acelerar a publicação de uma obra de Bakhtin, e tenham consequentemente escolhido reunir esboços de Bakhtin com escritos de Voloshinov para produzir e publicar o Dostoiévski sob o nome de Bakhtin. Bronckart e Bota advertem, contudo, “não disporem de prova material” para sustentarem sua tese (BRONCKART & BOTA, 2012, p.490).
Os autores concluem, enfim, sua obra com um capítulo dedicado aos textos tardios de Bakhtin, como o célebre Os gêneros do discurso, textos que, segundo eles, revestem-se do mesmo caráter “apócrifo” (BRONCKART & BOTA, 2012, p.464). É, assim, a uma releitura total e a um questionamento profundo dos escritos publicados sob o nome de Mikhaïl Bakhtin que Bronckart e Bota convidam.
Antes de comentar o propósito dessa obra de fôlego, notemos que, apesar da impressionante quantidade de informações aí comunicadas, e apesar dos retornos cronológicos complexos que caracterizam sua construção, a leitura de Bakhtin desmascarado revela-se surpreendentemente leve e agradável, graças à sua estruturação habilmente orquestrada, e ao cuidado constante dos autores para com o leitor, conduzindo-o, particularmente, através de numerosas sínteses explicativas ao longo de todo o seu estudo. Notemos igualmente que, refletindo o subtítulo da obra (História de um mentiroso, de uma fraude, de um delírio coletivo), o tom radicalmente polêmico de Bronckart e Bota destoa do estilo universitário usual, os autores afirmando claramente seu posicionamento no seio dessa “tenebrosa questão” (BRONCKART & BOTA, 2012, p.19), e qualificando, por exemplo, sem concessão, os escritos de Bakhtin como “literatura ateórica bem-pensante”, como “trama de considerações ultrafenomenológicas e devotas” (BRONCKART & BOTA, 2012, p.430), ou ainda mencionando a biografia de Clark & Holquist como uma “prosa” capaz de provocar “desgosto” (BRONCKART & BOTA, 2012, p.136).
Para além de sua forma inabitual, pela soma de pistas e propostas novas que apresenta, o livro motivaria múltiplos comentários e desdobramentos, que ele não deixará de suscitar. Dentro dos limites de nossas competências, vamos nos contentar aqui em comentar brevemente sua metodologia, e em propor algumas comparações de pontos específicos com outros trabalhos francófonos atualmente disponíveis.
O livro de Bronckart e Bota assenta inteiramente em traduções dos textos russos estudados. As traduções utilizadas (somente uma tradução para cada texto no original russo), diretamente comparadas entre si, divergem pelos seus autores, pelas suas datas, e às vezes pelo seu idioma de chegada (francês, italiano, inglês). A imprecisão terminológica e conceitual que poderia resultar dessas fontes secundárias heterogêneas é tanto mais problemática considerando-se que o objetivo anunciado dos autores é trazer à luz as divergências “estilísticas” entre os textos de Bakhtin, Voloshinov e Medvedev, divergências “decorrentes de sua organização argumentativa global, tanto quanto de sua organização sintática e macrossintática” (BRONCKART & BOTA, 2012, p.424). Se a lista das traduções utilizadas é explicitamente apresentada nas páginas de abertura da obra, poderíamos, contudo, lamentar a ausência de comentários reflexivos onde os autores evocassem os obstáculos suscitados por sua metodologia. O corpus de traduções sobre o qual se apoia exclusivamente a pesquisa, porém, limita necessariamente o número de fontes consultadas, a interpretação dos depoimentos tardios de Bakhtin, assim como a interpretação dos próprios textos de Bakhtin, Voloshinov e Medvedev. Assinalemos, por exemplo, que a comparação textual entre a primeira e a segunda edição do Dostoiévski (comparação destinada a fundamentar a tese-chave do livro, segundo a qual o Dostoiévski foi em parte escrito por Voloshinov) se apoia sobre a confrontação entre a tradução em italiano da sua primeira edição e a tradução em francês da sua segunda edição, a mudança na língua de chegada pesando talvez sobre a comparação entre os dois textos.
Na leitura interpretativa detalhada que Bronckart e Bota propõem das obras de Bakhtin e de Voloshinov, os autores se detêm particularmente sobre o caráter marxista dos escritos de Voloshinov, inscrevendo-se, pois, contra a leitura “desmarxizante” de Voloshinov que se podia fazer nos anos 1980, quando se tratava de demonstrar que seus textos e os de Bakhtin provinham de uma mesma e única instância autoral. Os autores se empenham, assim, em demonstrar que, longe de ser um verniz superficial e retórico, a orientação marxista integra plenamente os programas de pesquisa de Voloshinov e de Medvedev, que não podem, portanto, ser confundidos com o de Bakhtin. A leitura de Bronckart e Bota se opõe, nesse ponto, àquela de outros exegetas russistas contemporâneos, como Sériot ou ainda Alpatov, que observa que, se para Volóshinov o marxismo constituía “uma base de referência”, “uma tonalidade sociológica geral” de seus trabalhos, estes não deixavam de lhe tomar distância desde que ali não mais se achassem as ferramentas conceituais necessárias (2003, p.19). Sériot (2008a, 2010, 2011) ou Ageeva (2008), por sua vez, chamam atenção para os falsos amigos que são os conceitos de “ideologia” ou de meio “social”, por estes induzirem nos leitores francófonos contemporâneos “efeitos de reconhecimento” que não correspondem necessariamente à acepção que mantêm em seu contexto sócio-histórico e epistemológico de produção. Posicionando-se explicitamente à distância das interpretações propostas por Sériot, que aproxima notadamente os escritos de Voloshinov de certas correntes filosóficas europeias reacionárias do século XVIII (2008b, p.89), o livro de Bronckart e Bota delineia por sua vez uma oposição axiológica entre a figura de Bakhtin, plagiário, mentiroso e medíocre escritor místico-religioso, e as de Voloshinov e Medvedev, intelectuais brilhantes e corajosos, mortos demasiado cedo (um de tuberculose, o outro fuzilado), e cuja “obra fundadora” (BRONCKART & BOTA, 2012, p.387) e engajada continuaria a incomodar certos críticos americanos liberais. Esses últimos perfis traçados contrastam novamente com aqueles, mais matizados, propostos por Sériot e, particularmente, com um Voloshinov descrito como adepto ele mesmo do ocultismo e dos círculos místicos em sua juventude (2010, p.52).
“Parece haver tantos Bakhtins quantos sejam os países de recepção [de sua obra]” (SÉRIOT, 2007): parece até mesmo haver tantos Bakhtins e Voloshinovs quantos sejam os leitores, e a essa multiplicidade de interpretações, brevemente esboçada aqui, nós acrescentaríamos a multiplicidade de reconstituições históricas e científicas dessas obras atualmente disponíveis. Essas exegeses recentes e divergentes, entre as quais o livro de Bronckart e Bota, estimulam o linguista francófono, convidando-o a uma releitura mais historicizada e rigorosa dos textos tão frequentemente citados nos estudos discursivos contemporâneos.
Contudo, para além da recontextualização de que essas obras são objeto, e para além dos questionamentos levantados atualmente sobre as suas condições de escrita, a influência profunda dos textos de Bakhtin, Voloshinov e Medvedev nos estudos francófonos parece seguir seu singular destino desde as primeiras traduções francesas: extremamente heurísticas no que concerne a apreensão do já dito, do já existente, dos discursos outros discerníveis num texto, as noções de dialogismo e de polifonia, de bom grado conjugadas ao interdiscurso de Pêcheux, ao campo enunciativo de Foucault ou ao sujeito dividido de Lacan, suscitaram assim, continuamente, um bom número de propostas teóricas e de trabalhos fundadores para a análise do discurso. Da heterogeneidade enunciativa teorizada por Jacqueline Authier-Revuz e da polifonia enunciativa de Oswald Ducrot às noções mais recentes de fórmula (Alice Krieg-Planque) ou de memória interdiscursiva (Sophie Moirand), dos trabalhos da praxemática aos da corrente escandinava da ScaPoLine, os escritos de Voloshinov e de Bakhtin, tais como tinham sido compreendidos e reinvestidos na França muitas décadas atrás, continuam a inspirar uma certa esfera linguística, cuja produtividade não parece entravada pelos mal-entendidos de paternidade provocados por suas primeiras traduções…
Referências
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SERIOT P. Vološinov, la sociologie et les Lumières. In: VAUTHIER B. (ed.). Bakhtine, Vološinov et Medvedev dans les contextes européen et russe,Slavica Occitania 25, p.89-108, 2008b.
SERIOT P. Préface. Vološinov, la philosophie de l’enthymème et la double nature du signe. In: VoloŠinov, V. N. Marxisme et philosophie du langage. Les problèmes fondamentaux de la méthode sociologique dans la science du langage, Limoges: Lambert-Lucas, 2010, p.13-109. [1929]
SERIOT P. Vološinov, la philosophie du langage et le marxisme, Langages, 182, p.83-96, 2011. [ Links ]
Traduzido por Michelle Jácome Valois Vital – michellevalois7@gmail.com.
1 Esta resenha foi publicada primeiramente em francês em Semen n. 33, pages 209-217, 2012, http://semen.revues.org/
2 A cada menção ou citação, o leitor será remetido à tradução de Marcos Marcionilo: BRONCKART, Jean-Paul & BOTA, Cristian, 2012. Bakhtin desmascarado: história de um mentiroso, de uma fraude, de um delírio coletivo. São Paulo: Parábola, 509 p. (N. da T.)
3 Ver referências bibliográficas do original em francês no final da resenha. (N. da T.)
4 Cf. BAKHTIN, Mikhail. Marxismo e filosofia da linguagem. Problemas fundamentais do método sociológico na ciência da linguagem. Trad. Michel Lahud e Yara Frateschi Vieira. São Paulo: Hucitec, 1979. (N. da T.)
5 Cf. BAKHTIN, Mikhail. O freudismo: um esboço crítico. Trad. Paulo Bezerra. São Paulo: Perspectiva, 2001. (N. da T.)
6 Cf. MEDVIÉDEV, Pável Nikoláievitch. O método formal nos estudos literários: introdução crítica a uma poética sociológica. Trad. Ekaterina Vólkova Américo e Sheila Camargo Grillo. São Paulo: Contexto, 2012. (N. da T.)
7 Doravante Dostoiévski.
8 Cf. Problemas da poética de Dostoiévski. Trad. Paulo Bezerra. Rio de Janeiro: Forense-Universitária, 1981. A primeira edição da obra, não traduzida em português ou francês, levava o título de Problemas da obra de Dostoiévski. (N. da T.)
9 A edição brasileira tem 509 páginas. (N.daT.)
10 Cf. CLARK, Katerina; HOLQUIST, Michael. Mikhail Bakhtin. Trad. Jacó Guinsburg. São Paulo: Perspectiva, 1998. (N. da T.)
11 Cf. MORSON, Gary Saul; EMERSON, Caryl. Mikhail Bakhtin: criação de uma prosaística. Trad. Antonio de Pádua Danesi. São Paulo: Edusp, 2008.
12 CF. BAKHTIN, M. M. Para uma filosofia do ato responsável. Trad. do italiano aos cuidados de Valdemir Miotello e Carlos Alberto Faraco. São Carlos: Pedro & João Editores, 2010.
13 Cf. BAKHTIN, M. O autor e o herói. In: BAKHTIN, M. Estética da criação verbal. Trad. (a partir do francês) de Maria Ermantina Galvão G. Pereira. São Paulo: Martins Fontes, 1992.; BAKHTIN, M. O autor e a personagem na atividade estética. In: BAKHTIN, M. Estética da criação verbal. Trad. (a partir do russo) Paulo Bezerra. São Paulo: Martins Fontes, 2003. (N. da T.)
14 Cf. Bakhtin, M. O problema do conteúdo, do material e da forma na criação literária. In: Questões de literatura e de estética: a teoria do romance. Trad. Aurora Fornoni Bernardini et al. São Paulo: Hucitec, 1988.
Sandra Nossik – Université Franche-Comté, Besançon, Franche-Comté, França; sandra.nossik@gmail.com.
Petit traité de la bêtise contemporaine: suivi de comment (re)devenir inteligente – AMORIM (B-RED)
AMORIM, Marília. Petit traité de la bêtise contemporaine: suivi de comment (re)devenir inteligente. Toulouse. Éditions Érès. 2012. 141 p. Resenha de: FLORES, Valdir do Nascimento. Bakhtiniana – Revista de Estudos do Discurso, v.8 n.2, São Paulo July/Dec. 2013.
O livro de Marília Amorim surpreende em todos os sentidos da palavra: o tema é inusitado, a perspicácia do olhar é incomum, a originalidade da abordagem é inspiradora, as conclusões são impactantes.
O Petit traité está dividido em três partes (Parole et identité, Parole et mémoire, Une intelligence bête) seguidas de Conclusão e de uma generosa Bibliografia, tudo distribuído ao longo de mais de 140 páginas. O livro é conciso, escrito em estilo dialógico, com raciocínio construído sobre uma infinidade de exemplos retirados, em sua maioria, do cotidiano das sociedades europeia (em especial, a francesa) e latino-americana (em especial, a brasileira).
A linguagem utilizada por Marília Amorim, na elaboração de seu livro, merece uma nota especial. O leitor é convocado, a cada instante, a uma posição ativa de interlocução. A autora conversa com o leitor, dirige-lhe a palavra, chama-lhe a atenção. Esse estilo está em absoluta sintonia tanto com a temática da obra quanto com a visão teórica que a sustenta. Falemos, primeiramente, sobre a temática.
É difícil dizer em poucas palavras qual é o tema do livro, dada a sua complexidade. A primeira parte do título, embora pareça um recurso retórico (poderia receber, em português, a tradução literal de Pequeno tratado da besteira contemporânea, mas também caberia, numa tradução mais livre, da idiotice, da imbecilidade, da estupidez ou, em uma tradução mais livre ainda, da bestagem contemporânea) é absolutamente adequado. A autora recorta um objeto de análise, a besteira, por uma via específica, a da fala que torna o homem estúpido (bête). Sua hipótese é que existem maneiras de falar que colocam o interlocutor numa posição que o impede de exercer sua inteligência plenamente, a menos que haja um trabalho de resistência por parte desse interlocutor, uma resistência que implica análise crítica do que o cerca.
Essa forma de falar que torna o homem estúpido – e este é um dos grandes ganhos teóricos do raciocínio de Amorim – independe do conteúdo do que é dito (pode ser uma bula de remédio, uma recomendação de segurança em um transporte público, as recomendações de reciclagem de uma embalagem qualquer, etc.). É, na verdade, a posição enunciativa em que ele é colocado – e não, propriamente, o conteúdo – que define um lugar bête de fala. Marília Amorim, para desenvolver essa primeira parte de seu raciocínio, toma por base a ciência linguística da enunciação, de Émile Benveniste, muito especialmente, o aspecto figurativo do aparelho formal da enunciação, compreendendo-o, à moda benvenistiana, como a base das relações a partir da qual é possível falar. Eu fala a um Tu a propósito de um Ele.
A autora elabora uma categoria de análise – o enunciado fusional – que permite visualizar uma crise contemporânea do paradigma enunciativo, enquanto marca profunda da cultura pós-moderna. O enunciado fusional – no livro, há variações terminológicas: forma enunciativa fusional (p.13), forma fusional da enunciação (p.19) e enunciação fusional (p.20), por exemplo – opera uma fusão, com o perdão da redundância, entre aquele que fala e aquele a quem se fala. As consequências disso são inúmeras. Vejamos um exemplo dado pela autora.
Em uma bula de remédio, é possível encontrar, além das informações técnicas, aquelas dirigidas ao paciente em que o dito deixa de ser assumido pelo especialista farmacêutico para se tornar um enunciado que é colocado a partir da posição do paciente. São enunciados como: como devo utilizar este medicamento? Ou ainda: em que caso não devo utilizar este medicamento? Eis um exemplo da forma fusional de enunciar, que opera uma mistura que permite suprimir a voz de autoridade do especialista.
Exemplos como esses são abundantes na obra de Amorim: recicle minha embalagem (escrito em uma embalagem de bolo); eu me identifico (escrito em um site de revista científica na internet). Quem pede para ser reciclado? A embalagem? Quem diz que se identifica? O usuário?
Há uma espécie de infantilização do destinatário. E o questionamento que se impõe é: em que a enunciação fusional poderia ser mais compreensível que a enunciação ordinária? Por que há uma tentativa de fazer com que o locutor ocupe, formalmente, lugares de fala tão bobos?
Um das conclusões de Amorim (p.29) é instigante: esta fusão/confusão de lugares enunciativos produz uma supressão da distância/referência e da tensão entre quem fala e seu destinatário. De certa forma, o desaparecimento da assimetria dos lugares enunciativos atende a uma tática que busca diluir a voz de autoridade e de toda instância injuntiva. Para a autora, essa forma de discurso instaura um outro modo de alteridade, que ela denomina de metamorfose: “o Tu se metamorfoseia em Eu, o Ele se metamorfoseia igualmente em Eu, pois a nova injunção enunciativa não admite mais que as primeiras pessoas” (p.35). Somente o que expusemos até aqui já seria o suficiente para comprovar que estamos frente a um livro que inova. Mas o leitor encontrará mais.
A autora dispõe-se, ainda, a tocar no tema da linguagem vista pela sua relação com a memória e, por aí, com a cultura. Amorim, para tanto, formula um axioma (p.40): a fala que torna inteligente é aquela que transmite a cultura.
Sem dúvida, estamos, aqui, em um dos pontos altos da reflexão da autora. É a linguagem mesma que é colocada sob exame. Para ela, cada vez que falamos, “confirmamos e atualizamos o patrimônio comum que é a língua. Lugar do laço social, a língua apenas existe se ela é falada. Cada ato de fala a faz viver e, pelo mesmo gesto, faz viver uma humanidade comum” (p.41).
Mais uma vez, é necessário ir além do conteúdo: trata-se da transmissão da língua propriamente dita. É o aparelho combinatório que a constitui que está em questão, o que permite em cada época criar novas palavras e eliminar outras, o que “permite a cada esfera social de atividade renovar o estoque e as variações dos gêneros discursivos” (p.41). A diversidade e a complexidade de uma língua são enormes. É próprio de uma língua, simultaneamente, conservar-se e transformar-se. As formas da língua, assim como as da cultura em geral, que deixam de ser usadas caem no esquecimento. E o “emprego generalizado ou exclusivo de certas formas produz um empobrecimento das possibilidades do ‘aparelho linguístico'” (p.44). Ora, “se nossa língua se reduz à linguagem informal e familiar, […], nós perdemos a possibilidade de habitar outros espaços simbólicos” (p.48).
Isso posto, a autora pode exteriorizar com maior propriedade seu raciocínio, neste momento; ” […] a fala que torna inteligente transmite, antes de qualquer coisa, a língua em todas as suas possibilidades e as relações de lugar que constituem as condições do diálogo” (p.53). A partir dessa discussão, o leitor é levado a se deparar com outra questão fundamental: a do objeto cultural entendido como um objeto falante. Inspirada na teoria de Mikhail Bakhtin, a autora considera que um objeto cultural – tomado como todo o objeto cuja função é a de remeter à própria cultura (p.55) –, sendo construído como qualquer objeto, é portador de uma memória coletiva. Ambos – objeto e memória –possuem uma dimensão discursiva que “completa a dimensão enunciativa”, tratada acima: o objeto cultural comporta uma abordagem polifônica pela qual ele é entendido como um objeto falante. Em outras palavras, sempre que um objeto é colocado em posição de fazer falar a cultura que o torna possível, ele se transforma em um objeto cultural.
Na terceira e última parte de seu livro – Une intelligence bête –,Marilia Amorim dedica-se, entre outras coisas, a analisar a televisão em sua fala A pergunta da autora é: como fala a televisão? O leitor será, mais uma vez, agraciado com uma reflexão, no mínimo, original.
A autora inicia falando na relação entonação/sentido e propõe o termo entonação falseada/deformada (intonation/fausée) para aquela entonação idêntica e invariável utilizada pelos repórteres de televisão para falar qualquer conteúdo, independentemente de sua natureza. Para Amorim, “a entonação cessa de ser uma pista para a construção do sentido das informações transmitidas para se tornar o componente de um formato de emissão” (p.79). E acrescenta: “um formato que busca nos dizer ‘mesmo se eu acabei de informá-lo que uma catástrofe chegou, não se preocupe muito e, principalmente, ‘fique conosco”” (p.79). A essa discussão seguem três capítulos: As duas inteligências (Les deux intelligences), O sistema sem sujeito (Le système sans sujet) e Memória e educação (Mémoire et éducation). O leitor experimentará um misto de riso e indignação ao ler Le système sans sujet. A autora, em um texto leve, que vai do irônico ao sarcástico, discute a automatização dos serviços e, especialmente, a personagem denominada de sistema. Sim, aquele sistema dos bancos, das companhias telefônicas, das companhias áreas, etc. Um sistema sem sujeito, que caminha sozinho, pela simples troca de informação.
Como se pode notar, são muitos os objetos da reflexão de Marília Amorim em seu grande Petit traité de la bêtise contemporaine. Antes de finalizar, falemos um pouco sobre a visão teórica assumida pela autora. Além de Benveniste – cujo aparelho formal da enunciação é apresentado como um modelo político uma vez que instaura um modo de relação de alteridade que se encaixa no ideal moderno de ligação social –, o leitor encontrará no Pequeno tratado uma plêiade de linguistas, filósofos, antropólogos, cientistas sociais, psicanalistas, etc. Vemos referências a Levinas, Lyotard, Bakhtin, Freud, Lacan, Dufour, Martinet, Bourdieu, entre muitos outros. Tudo apresentado em linguagem simples, elegante e, o principal, garantindo a complexidade do que está sendo exposto.
Tudo no livro convoca a lê-lo: sua originalidade, sua linguagem, sua erudição despojada, sua elegância de raciocínio. O texto da contracapa bem que avisa: “o leitor se encontra embarcado em uma aventura: ver o que ele não via, entender o que ele não entendia, compreender o que ele não compreendia”. Abra, leitor, o Petit traité de la bêtise contemporaine e veja por que faltam palavras para tudo aqui dizer.
Como se vê, o leitor encontrará mais.
Valdir do Nascimento Flores – Universidade Federal do Rio Grande do Sul – UFRGS, Porto Alegre, Rio Grande do Sul, Brasil; CNPq; valdirnf@yahoo.com.br.
Texto ou discurso? – BRAIT; SILVA (B-RED)
BRAIT, Beth; SOUZA-e-SILVA, Maria Cecília (orgs.). Texto ou discurso? São Paulo: Contexto, 2012. 302 p. Resenha de: LEITE, Luci Banks. Bakhtiniana – Revista de Estudos do Discurso, v.8 n.2, São Paulo July/Dec. 2013.
Não há dúvidas de que este é um livro que faltava em nossas bibliotecas!
O título, em forma interrogativa, – Texto ou discurso? – desperta o interesse do leitor, que não encontrará nele, porém, uma resposta claramente formulada dos modos de distinguir texto e discurso. As organizadoras esclarecem, desde o início, que o objetivo é apresentar, discutir e problematizar diferentes maneiras de compreender os vários elementos envolvidos nessa questão. É efetivamente o que se encontrará nos estudos apresentados.
Sabe-se que a temática é de grande relevância e atualidade, uma vez que, nas últimas décadas, o estudo da atividade da linguagem tem-se concentrado em torno de noções de texto e de discurso. No entanto, esses termos são passíveis de abordagens profundamente diversas.
Ao apresentar mais de uma dezena de estudos, em diferentes perspectivas das Ciências da Linguagem – bakhtiniana, foucaultiana, AD Francesa, Linguística Textual, Semiótica, Gramática, Estudos discursivos, Linguística de Corpus -, baseados em exemplos ou em análise de corpora, este conjunto de textos dá uma ideia bastante ampla e diversificada das várias maneiras de se entender discurso e texto, bem como das múltiplas formas de se conceber possíveis entrelaçamentos e relações entre esses conceitos. Ao fazê-lo, possibilita, igualmente, um amplo panorama dos estudos da linguagem, uma vez que, ao discutir as questões centrais, os textos esclarecem e mobilizam noções próprias a cada perspectiva e abordam, de maneira mais ou menos explícita, e em diferentes níveis, outros conceitos que permeiam esse campo: língua, significado e sentido, sujeito, enunciado/enunciação e cenas da enunciação, gêneros discursivos, interação, exterior/interior da língua, funcionamento da linguagem, processos de compreensão-produção de enunciados ou de textos.
Entre os catorze capítulos que compõem o livro, alguns focalizam claramente a distinção entre texto e discurso e sua inter-relação e, por isso, valem ser destacados.
O primeiro – Perspectiva dialógica – é o de Beth Brait que, ao percorrer trabalhos do Círculo de Bakhtin, ressalta uma inter-relação entre texto e discurso, aquele não sendo considerado autônomo, mas inserido em uma perspectiva mais ampla com a qual o texto se liga “ao enunciado concreto que o abriga, a discursos que o constituem” (p.10), bem como a esferas de atividade, produção, circulação, interação. Ao trazer a contribuição do Círculo, mobiliza elementos desse quadro conceitual – enunciado, interação, signo e ideologia – enfatizando a dimensão dialógica de todo enunciado, termo esse mais empregado do que “texto” pelos autores dessa linha. Brait encerra esse denso capítulo, com a análise de uma canção de Zeca Baleiro, “Bola dividida”, um texto constituído por vários discursos, ilustrando bem como texto e discurso se distinguem, mas também se entrelaçam, se confrontam pelo uso, por exemplo, de expressões bivocalizadas.
Tratando igualmente de maneira frontal essa questão, em Da necessidade da distinção entre texto e discurso, Fiorin ressalta que texto e discurso, ambos produtos da enunciação, “diferem quanto ao modo de existência semiótica” (p.148): o discurso é da ordem da imanência, o texto é do domínio da realização. Assim sendo, o mesmo discurso pode se concretizar em textos diversos; Fiorin traz o exemplo de “A hora da estrela”, romance de Lispector, transposto para o cinema por Suzana Amaral; e pode-se pensar também em vários outros, um deles emblemático – Zazie dans le metro -, romance de Queneau que deu origem ao filme de Louis Malle com o mesmo título. Nesses casos, o mesmo discurso se concretiza em um texto escrito – o romance – e em um filme, que é um texto no qual se mesclam várias linguagens – a visual, a auditiva, a verbal. Para discutir as várias nuances que envolvem as relações texto e discurso, Fiorin salienta os conceitos de interdiscurso, portanto, a dialogia presente nos discursos, e o de intertextualidade, ilustrando esses e outros conceitos através da análise de obras literárias, filmes, quadros. Dessa forma, afasta-se dos que tratam texto e discurso como sinônimos, como, por exemplo, os que situam seus trabalhos na perspectiva de algumas tendências da Linguística Textual.
Em concordância com o anterior, Possenti, em Notas sobre língua, texto e discurso, enfatiza a distância existente entre a maneira pela qual a Linguística Textual trata o texto e a abordagem da Análise do Discurso Francesa (ADF), quadro no qual ele próprio insere seu trabalho. Antes, porém, apresenta os três conceitos em pauta, busca suas inter-relações, ao percorrer os diferentes momentos dos estudos da ADF; levanta questões centrais de ordem teórico-metodológica, tais como a da natureza da língua, lançando mão das formulações de Pêcheux, mas igualmente das de Courtine e de estudos de Maingueneau, lembrando ainda a contribuição do epistemólogo Granger, para quem as línguas naturais são semissistemas simbólicos, e a de Franchi, que considera a língua como um sistema semiestruturado. Assinala ainda que, ao construir o conceito de discurso, a ADF precisou tratar de outros muitos, como fala, texto, léxico, autoria, sujeito/falante, análise, e buscou, acima de tudo, explicitar as relações entre língua e discurso.
Maingueneau, em Texto, gênero de discurso e aforização, lembra que, na perspectiva de Bakhtin, as noções de texto e gêneros de discurso são indissociáveis, porém distintas: “um texto pertence a um gênero de discurso do qual ele é o traço; de forma recíproca, todo gênero de discurso produz um texto” (p.109). Contudo, cabe a questão: pode-se considerar como “texto”, apenas uma frase? Aqui o objeto de estudo é o de frases sem texto, os “enunciados destacados”, privilegiando-se os mais frequentes: slogans, provérbios, máximas, manchetes, sem esquecer, porém, aquelas frases que foram extraídas / destacadas de um texto. Conclui-se que a enunciação aforizante segue uma ordem própria e que as aforizações não constituem um fenômeno marginal, mas ligam-se a textos e a gêneros discursivos.
Em sintonia com os autores ligados à AD Francesa, explorando a Perspectiva foucaultiana, Rocha contribui com um estudo sobre as FD (formação discursiva), tópico essencial, não apenas pela importância dessa noção no pensamento de Foucault, mas também por ser fundamental na AD Francesa. Levando em conta a definição de FD como “um conjunto de enunciados que provém de um mesmo sistema de formação” (discurso clínico, econômico, psicológico, jurídico…), discurso não se confunde com texto. Rocha lembra ainda o que é um enunciado para Foucault e que o sujeito do enunciado não se confunde nem com o sujeito gramatical, nem com a instância que produz o enunciado. Ilustrando essa perspectiva, efetua um ensaio de análise discursiva, à la Foucault, de um texto publicitário – um folder – desses que são distribuídos nos semáforos de nossas cidades, em que se anuncia um investimento imobiliário na Barra da Tijuca, Rio de Janeiro, incitando o interlocutor a realizar uma “revolução francesa” em sua vida. Texto plurissemiótico constituído por imagens – telas de Delacroix e de David, recortadas/reformuladas -, refrões, textos, além de enunciados em outra língua. Ao trazer um texto com início, meio e fim, geralmente propício às abordagens conteudísticas, o autor ilustra uma forma de procedimento analítico original, distinta das habituais.
Souza-e-Silva, em Texto/Discurso: qual a relação com a leitura? assinala a primazia do interdiscurso sobre o discurso, elegendo-o, então, como unidade de análise. Seguindo Maingueneau, afirma que os discursos “se constituem, de maneira regulada, no interior de um interdiscurso” (p.183), no que concerne a sua gênese. Tendo, portanto, essa abordagem como referência, a autora analisa dois conjuntos de textos cujo tema é objeto de debate público: a participação das Forças Armadas do Brasil na Missão de estabilização das Nações Unidas no Haiti. Um desses conjuntos é o das Forças Armadas, portanto, o discurso oficial, o outro é o da “vulgarização”, ou seja, o que é publicado em revistas, blogs, internet. Ao delimitar esses conjuntos, reúne condições para tratar, interdiscursivamente, a relação texto e discurso, focalizando o discurso como submetido a coerções históricas. Assim, são abordados dois “posicionamentos discursivos” entre os quais há uma divergência: um no qual a presença das Forças Armadas significa Intervenção/Invasão/Ocupação e o outro em que essa presença significa Pacificação/Reconstrução/Estabilização. Decorre dessa análise uma reflexão sobre a leitura concebida como um modo de interpretação discursiva de textos.
Os demais trabalhos tratam de temas importantes para o aprofundamento dos conceitos de texto e discurso sob enfoques diversos: em Cor e sentido, na perspectiva da Semiótica Discursiva francesa, Barros traz uma instigante análise de cores dos esmaltes para unhas; a partir de alguns conceitos elaborados/empregados pela Linguística textual – referenciação, objeto do discurso, intertextualidade – Koch busca apreender alguns flagrantes da construção interacional dos sentidos; por sua vez, em Discurso e produção de conhecimento, Van Dijk concebe o discurso como um objeto complexo e multimodal e trata do processamento do discurso, valendo-se do aporte de modelos de teorias cognitivistas; Boutet, sociolinguista, insere-se em um enfoque anglo-saxão, o da Discourse Analysis, e elege o estudo do discurso como objeto empírico, com exemplos de análises multidimensionais de conversações e interações socialmente situadas. A partir da noção de “fórmula”, elaborada por Krieg-Planque, que enfatiza questões lexicais no âmbito da AD Francesa, Sardinha emprega procedimentos da Linguística de Corpus para evidenciar como esta pode oferecer subsídios para a Análise do Discurso e para o próprio estudo das fórmulas; por sua vez, Zaslavsky trata da midiatização de um caso jurídico por meio da análise de um corpus da imprensa escrita de jornais do México; e Quadros Leite, em Interação, texto falado e discurso, refere-se à “normatividade” que, segundo ela, caracteriza os gêneros discursivos, e examina exemplos para melhor compreensão do que é da ordem do inesperado na interação entre interactantes. Moura Neves, na ótica da teoria funcionalista da linguagem, propõe importantes reflexões sobre gramática e organização discursivo-textual.
Se, há mais de uma década, em nosso país, texto e discurso têm sido objeto de estudos de diferentes linhas teóricas, tais como consideradas por Barros em Estudos do texto e do discurso no Brasil (DELTA. Documentação de Estudos em Linguística Teórica e Aplicada, vol.15. São Paulo, 1999), nota-se que a grande maioria foi contemplada nesse livro. Assim sendo, na medida em que se avança na leitura, destacam-se as possibilidades e limites de cada quadro teórico-metodológico, bem como relações, interdependências, fronteiras entre as diferentes perspectivas em pauta; em suma, inferem-se possíveis articulações e até intersecções, mas também as oposições existentes entre elas. Há um aspecto geral, comum, que consiste, necessariamente, no afastamento de perspectivas voltadas para o estudo de frases tomadas como unidade de análise.
Fica também claro que os temas tratados não se esgotam nos textos apresentados, e o panorama está longe de ser exaustivo. Alguns poderiam lamentar a ausência de abordagens que levem em conta questões de aquisição de linguagem, do ensino-aprendizagem da primeira ou segunda língua ou de problemas relativos à tradução; enfim temas mais próximos do campo da Linguística Aplicada, tendo em vista a relevância desses conceitos – texto e discurso – em pesquisas realizadas por especialistas desse domínio. Nessa mesma linha, poder-se-ia objetar que o tratamento das várias questões focaliza mais o teórico do que o empírico, trazendo pouco material relativo às efetivas práticas socioculturais e/ou didático-pedagógicas.
Entretanto, vale insistir que uma coletânea elaborada nos moldes aqui eleitos, organiza, estabelece uma “ordem” primordial para os interessados em compreender e realizar pesquisas sobre a linguagem – professores, pesquisadores, estudantes e estudiosos de muitas questões que abordam, direta ou tangencialmente, esses dois conceitos centrais. Esses estudos apresentam-se, pois, como de importância essencial, por constituírem um ponto de referência que torna possível inúmeros desdobramentos em várias direções e o aprofundamento de problemas tratados por áreas afins.
Ana Lúcia Trevisan – Professora da Universidade Presbiteriana Mackenzie – UPM, São Paulo, São Paulo, Brasil; ana.trevisan@mackenzie.com.br.
Enunciação e discurso: tramas de sentidos – DI FANTI; BARBISAN (B-RED)
DI FANTI, Maria da Glória; BARBISAN, Leci Borges (orgs.). Enunciação e discurso: tramas de sentidos. São Paulo: Contexto, 2012. 196 p. Resenha de: MOTTA, Ana Raquel. Bakhtiniana – Revista de Estudos do Discurso, v.8 n.1, São Paulo Jan./June 2013.
Enunciação e discurso: tramas de sentidos reúne doze artigos, de onze pesquisadores brasileiros e um francês, que abordam fenômenos da linguagem a partir de diferentes teorias do texto e do discurso. Trata-se, sem dúvida, mais de uma coletânea de artigos que de um livro organizado, no sentido de que não é fácil perceber uma linha que o defina com clareza, seja ela teórica ou temática. Essa característica o faz heterogêneo, não em termos de qualidade de cada artigo isolado, pois são todos textos interessantes e relevantes.
No entanto, ao invés de encarar essa característica como uma fragilidade, podemos ver aí uma proposta corajosa: o estabelecimento de uma ponte de diálogo entre teorias que, embora se dediquem a tentar explicar “o mesmo” fenômeno (com todas as ressalvas que pudermos fazer a esse “mesmo”, considerando que “o ponto de vista cria o objeto”), muitas vezes se ignoram mutuamente. Agrupar então, em um volume, artigos que abordam o discurso da perspectiva da análise da conversação ou da análise do discurso pecheutiana, da semiótica de origem francesa ou da teoria da argumentação na língua (dentre outras teorias), torna-se um manifesto importante no sentido de busca de contato entre diferentes linhas.
Seria possível argumentar que apenas colocar esses artigos lado a lado, compartilhando um ISBN, é pouco. Discordo. Primeiro porque geralmente não temos, em nossa área e em nosso país, o hábito de lermos produções de outras vertentes teóricas diferentes da que praticamos, ainda que se proponham a explicar um “mesmo” aspecto da linguagem. Segundo porque reunir uma coletânea de artigos num livro nunca é simplesmente colocá-los lado a lado. Trata-se, de algum modo, de propor parecerias, escolhas e debates, que é o que Enunciação e discurso: tramas do sentido faz.
O livro se divide em três seções, cada uma com quatro artigos. A primeira, Enunciação e discurso, engloba os artigos de Dominique Maingueneau, Diana Pessoa de Barros, José Luiz Fiorin e Marlene Teixeira. A segunda, Enunciação, discurso e produção de sentidos, contém os textos de José Gaston Hilgert, Aracy Ernst Pereira, Rosângela Hammes Rodrigues e Maria Cecília Souza-e-Silva. Por fim, a terceira, Enunciação, discurso e argumentação na língua, se compõe de um conjunto mais homogêneo e articulado, pois os três primeiros de seus quatro artigos tomam como fundamentação teórica a teoria da argumentação na língua (Anscombre e Ducrot) e seus atuais desdobramentos na teoria dos blocos semânticos (Ducrot e Carel). Os autores dessa seção são Leci Borges Barbisan (que também é coorganizadora e tradutora do artigo de Maingueneau), Telisa Furlanetto Graef, Tânia Maris de Azevedo e Valdir do Nascimento Flores. O artigo de Flores, que fecha o livro, é uma leitura atenta do Curso de linguística geral, de Saussure, destacando e analisando o tratamento dado à linguística da fala. Trata-se de um artigo de discussão teórica de base, que compõe harmoniosamente a terceira seção, embora não mencione diretamente Ducrot e a teoria da argumentação na língua.
Portanto, as duas primeiras seções, assim como seus títulos, deixam mais para o leitor a construção de sua coerência interna e suas possíveis parcerias e embates. Já a terceira apresenta-se como um pequeno dossiê mais amarrado entre si, quase um livro organizado dentro do livro maior. É a seção mais “comportada” do livro, não no sentido de falta de ousadia de seus artigos, mas no sentido da harmonia teórica e homogeneidade no uso de termos e conceitos entre seus artigos.
Não é dado ao leitor conhecer o projeto que motivou o livro, apenas inferimos alguma espécie de “encomenda” no início do artigo de Pereira (“Devo, porém, confessar que inicialmente várias questões me interpelaram: o que eu deveria ou poderia falar sobre texto e discurso?”(p.96)), mas não sabemos de onde veio esta demanda. Na Apresentação, as organizadoras assinalam, como ponto em comum entre os autores, o fato de todos se situarem nos estudos do discurso. Retomando o que ficou conhecido como “corte saussuriano” e refletindo sobre ele a partir das novas descobertas sobre Saussure (especificamente Escritos de linguística geral, publicado em 2002), as organizadoras afirmam que “as várias teorias do discurso têm como ponto em comum, o que permite colocá-las em um mesmo campo, a compreensão de que a língua e o emprego da língua são indissociáveis” (p.8). Após essa reflexão inicial, o texto da Apresentação se dedica a descrever cada um dos artigos, em parágrafos sucessivos, passando de um a outro sem relacioná-los (com a exceção já feita à terceira seção) e também sem explicitar o que levou a reuni-los em cada uma das três seções e a nomeá-las como foram nomeadas: a primeira sem acréscimos ao próprio título do livro – Enunciação e discurso -, e a segunda com o acréscimo de produção de sentidos – Enunciação, discurso e produção de sentidos.
Após a enumeração de um resumo de cada um dos artigos, as organizadoras concluem, a respeito especificamente dos textos que compõem o livro, que “são diferentes olhares voltados para um mesmo fim: explicar o funcionamento da linguagem em variadas materializações” (p. 10). Finalizando a Apresentação, convidam o leitor “a percorrer os labirintos da linguagem postos em cena” (p.10).
Todos os artigos compartilham uma maneira de fazer linguística que não se restringe ao sistema, e que inclui a situação de enunciação e a análise de textos efetivamente produzidos em contextos sócio-históricos localizados. Se fizermos, portanto, uma primeira separação geral entre pesquisas linguísticas que não levam em conta fatores sócio-históricos em suas análises e as que os levam, todos os doze artigos de Enunciação e discurso: tramas de sentidos estarão no segundo grupo. Teixeira chega a afirmar que “há uma espécie de consenso em torno da ideia de que o fechamento no sistema linguístico tem produzido o efeito equívoco de afastar o linguista de questões que (…) movimentam o debate contemporâneo e exigem uma tomada de posição e até mesmo uma intervenção” (p.63). Considero que a percepção e nominalização desse “consenso” (mesmo relativizado por “uma espécie de”) podem indicar a convicção da autora sobre a legitimidade deste segundo grupo.
Alguns dos artigos abordam justamente sua pertença à tendência acima mencionada e afirmam a legitimidade desse grupo. Isso acontece de maneira central no caso de Flores, Rodrigues e Barbisanou e, ainda, como estabelecimento da base teórica, no caso de Barros, Fiorin, Teixeira, Hilgert, Graeff e Azevedo. Outros não discutem essa questão, tomando sua pertença a uma linguística sócio-histórica como aspecto já estabelecido. É o caso de Maingueneau, Pereira e Souza-e-Silva. Partindo desse aspecto comum, o leitor que percorrer o livro todo poderá estabelecer pontos de aproximação e contato entre os artigos, bem como igualmente interessantes pontos de distanciamento entre eles.
Barros e Fiorin, por exemplo, compartilham o embasamento teórico na semiótica greimasiana, e alguns conceitos mobilizados pelos artigos de ambos são, por isso, expostos duas vezes no livro, como o caso da “enunciação enunciada” e o “enunciado enunciado”. O mesmo ocorre entre Teixeira e Souza-e-Silva quando expõem os pressupostos da ergologia, abordagem interdisciplinar da atividade de trabalho. Também há explanações teóricas semelhantes nos três primeiros artigos da terceira seção (Barbisan, Graeff e Azevedo), sobre as origens e fases do percurso teórico de Ducrot. Tais “repetições” parciais me pareceram relevantes, pois propiciam ao leitor entrar em contato com diferentes pontos de vista a respeito das teorias abordadas, podendo, inclusive, compará-los.
Outro tipo de relação também pode ser levantada no livro, quando diferentes autores, com referências teóricas diferentes, tomam “um mesmo” aspecto ou fenômeno da linguagem como objeto. É o caso, por exemplo, do quadro da enunciação proposto por Benveniste e retomado de modo diferente por Teixeira -que ressalta a importância de acolher a referência nesse quadro, argumentando ser possível “transitar com Benveniste para o âmbito do discurso socialmente situado” (p.62) – e por Barbisan -que destaca, do quadro de Benveniste, a noção de “forma vazia” atribuída aos dêiticos e propõe sua relativa ampliação a todos os signos. Hilbert, sem citar Benveniste, afirma algo semelhante. De modo análogo, as reflexões de Maingueneau mobilizam o conceito de gênero de Bakhtin para situá-lo frente à problemática da aforização e da autoria (duas formas de tensionar o gênero), diferentemente de Rodrigues, que também mobiliza, de forma central em seu artigo, o conceito de gênero, mas para propor que haja maior incorporação dos estudos de gênero pelos estudos linguísticos. Outras análises de “mesmo” objeto ou conceito, tomados de formas diferentes, poderiam ser igualmente postas em relevo aqui.
Indo das aproximações teóricas e passando pelas coincidências de objeto ou conceito, chegamos aos pontos de maior distanciamento entre os artigos deste livro, que fazem dele um volume heterogêneo, que abriga polêmicas, mesmo que elas não estejam explicitadas. Por isso, obviamente ficando longe de ser exaustiva, apenas destaco duas questões que perduram após percorrido todo o livro e que contribuem fortemente para que eu recomende sua leitura.
A primeira: Fiorin trata da argumentação como pertencente ao discurso, e não à língua. Já os três primeiros artigos da terceira seção falam da teoria da argumentação na língua, insistindo que o pressuposto teórico de que “a argumentação está na língua” (p.167) é de suma importância para toda a teoria de Ducrot.
A segunda: Hilbert trata do fenômeno da compreensão, “ou melhor, [d]a intercompreensão (…) [como] condição pressuposta para a eficiência comunicativa nas relações sociais” (p.77), chegando a afirmar que a situação de compreensão é como o ar que respiramos. Bastante diversa é a concepção de Pereira, que se filia a uma teoria (análise do discurso pecheutiana) “cuja proposta é a construção de interpretações que levam em conta a língua, em sua incompletude e equivocidade; o sujeito, em sua determinação pelo inconsciente e pela ideologia; e o sentido, em sua dimensão sócio-histórica” (p.96). Poderíamos, ainda, contrastar a noção de “intercompreensão”, exposta por Hilbert, com a de “interincompreensão regrada”, conceito de Maingueneau (1984) mobilizado no artigo de Souza-e-Silva.
Por fim, retomando a característica apontada como comum entre os autores reunidos em Enunciação e discurso: tramas do sentido, a de praticar uma linguística que leva em conta os aspectos sócio-históricos da enunciação e do discurso, cabe agora refletir sobre as consequências dessas aproximações e distanciamentos. Será que essas diferentes abordagens são marcas de diferenças quanto ao conceito de língua e de discurso? Parece-me que sim. São fortes o suficiente para que possamos questionar a pertença mútua a esse grupo de “linguistas da fala”? Penso que cabe a todos nós construir essa resposta. Acredito que as diferentes concepções têm muito a ensinar umas às outras, e que não devemos ter a pretensão de uma teoria única para abarcar toda a complexidade da linguagem. O confronto de abordagens leva ao refinamento das teorias e é isso que a leitura deste livro pode fazer. Por isso, é um tipo de publicação que vale a pena ler, e encarar os debates que, mesmo indiretamente, propõe.
Ana Raquel Motta – Pós-doutoranda da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo -PUC/SP/FAPESP, São Paulo, São Paulo, Brasil; anaraquelms@gmail.com.
História das ideias: diálogos entre linguagem, cultura e história – ZANDWAIS (B-RED)
ZANDWAIS, Ana (org.). História das ideias: diálogos entre linguagem, cultura e história. Passo Fundo-RS: Editora Universidade de Passo Fundo, 2012. 312p. Resenha de: DRESCH, Márcia. Bakhtiniana – Revista de Estudos do Discurso, v.8 n.1 São Paulo Jan./June 2013.
História das ideias: diálogos entre linguagem, cultura e história é uma coletânea de 12 textos escritos por linguistas e analistas do discurso e tem na linguagem sua matriz. O que caracteriza a obra é, de um lado, a expansão da reflexão para os campos da história, da filosofia, da linguística e do discurso, e, de outro, a reunião de textos que tematizam os estudos linguísticos na Rússia e na União Soviética do final do século XIX até meados do século XX, ou que se debruçam sobre noções e fundamentos teóricos da obra de Bakhtin e Voloshinov.
Nesta resenha, divido a coletânea em três blocos, que, ainda que não reflitam a sequência proposta pela organizadora, em muito dela se aproxima.
No primeiro bloco estão os textos de Patrick Sériot (Universidade de Lausanne, Suíça), Craig Brandist (Universidade de Sheffield, Inglaterra), Mika Lähteenmäki (Universidade de Jyväskylä, Finlândia), EkaterinaVelmezova (Universidade de Lausanne, Suíça) e Vladimir Alpatov (Instituto de Estudos Orientais, Moscou). Esses textos permitem tomar contato com teorias e discussões acerca da linguagem que acompanharam o final do século XIX, o advento da revolução russa e seus desdobramentos ao longo do século XX e, sobretudo, com o contexto em que essas teorias e discussões se desenvolveram. Grandes momentos de ruptura política são acontecimentos históricos e discursivos que instauram um intenso trabalho de dizer o mundo de outra forma. Mais do que a história dos estudos russos e eslavos sobre a linguagem, esses textos situam pontualmente o papel da língua naquele processo revolucionário, que se tornou, pela própria conformação da URSS – diversidade étnica, alto índice de analfabetismo e pobreza –, primeira pauta do socialismo soviético.
No texto de Patrick Sériot, o autor assinala que, de 1920 a 1930, quando a União Soviética passa por um processo de organização e consolidação do novo regime, por trás de ações que buscavam erradicar o analfabetismo e normalizar línguas de literalização recentes, havia um projeto de caráter antropológico. Trata-se de período de questionamento sobre a relação entre língua e sociedade, língua e espaço político, bem como sobre o poder das instituições linguísticas. Ele salienta o movimento de representações que se desloca em direção à unidade e à homogeneidade, justamente numa sociedade com camadas temporais que coexistiam – antigas classes, antigos modos de produção, novas forças produtivas. Ou seja, para se fundar, o socialismo tinha de apagar as diferenças.
Craig Brandist sustenta em seu texto que a revolução bolchevique trouxe condições para o desenvolvimento de uma forma insipiente de sociolinguística na Rússia, muito antes de estudos similares no Ocidente. Alega que a fusão dos estudos linguísticos e literários numa mesma disciplina de filologia permitiu que linguistas estivessem atentos às dimensões sociais da linguagem. Seu texto permite compreender como a linguística soviética se desenredou da psicologia, dando lugar a uma visão sociológica da linguagem. Ele analisa os estudos linguísticos na Rússia desde o século XIX, quando sob influência da psicologia, até chegar ao outro extremo, a teoria dialógica de Bakhtin.
Em seu texto, Mika Lähteenmäki distingue temporalmente as produções de Voloshinov, no final da década de 20 e início da de 30, e de Bakhtin, no início dos anos 30 até o início dos anos 50. Marxismo e filosofia da linguagem, publicado na Rússia em 1929, foi relegado ao esquecimento após sua publicação e retomado apenas quarenta anos depois, já fora do contexto original de sua produção. A obra foi escrita antes do marrismo se estabelecer como doutrina linguística oficial e numa época em que ainda se debatia o que é uma linguística marxista. Prevaleceu, porém, a partir de uma compreensão equivocada das ideias de Voloshinov, uma visão marxista vulgar, sustentada pela postura teórica determinista apoiada por Marr. Lähteenmäki discute, a partir da noção de ideologia, a concepção dialógica da linguagem, a questão da interação e do signo linguístico em Voloshinov.
O trabalho de Nikolai Jakovlevitch Marr (1865-1934), principal linguista da União Soviética dos anos 20 e 30, cujas teorias foram muito contestadas por seus colegas contemporâneos, é abordado especificamente em dois textos da obra em análise. No primeiro texto, Ekaterina Velmezova reconhece a crítica feita a Marr, todavia afirma que sua teoria tem de ser estudada como qualquer outra. Em seu artigo, propõe-se a analisar as noções de povos e línguas eslavas na Nova teoria da linguagem, de Marr, e a responder por que Stalin interviu contra o marrismo. O outro texto é de Vladimir Alpatov, que se pergunta por que razão de tempos em tempos retorna o interesse pelos estudos de Nicolai Marr na Rússia. Ele identifica a revitalização do autor entre 1950 e 1980 mais como contestação à política stalinista do que a uma questão teórica linguística. E, se na década de 90 ele aponta o ostracismo de Marr, ultimamente, afirma, cresce o interesse entre linguistas jovens pelo autor. Implacável, Alpatov diz que, por sua personalidade e sua formação, Marr poderia ter sido profeta, revolucionário, menos intelectual. As perguntas que ficam são do próprio autor: O alvo continuaria sendo Stalin? Seria sua luta contra a ciência positivista? Ou a volta de Marr é decorrência da instalação de uma crise das ciências humanas na Rússia?
Ao começar o segundo bloco, rompo com a sequência original do livro, e passo ao texto de Beth Brait (PUC de São Paulo/Universidade de São Paulo), que aproxima o primeiro grupo de textos, de teóricos estrangeiros, e os demais textos brasileiros que formam a coletânea. Esse texto reconstitui a chegada do pensamento de Bakhtin ao Brasil no final dos anos 60 e nos anos 70, quando pesquisadores, professores, estudantes de pós-graduação, poetas e tradutores ligados à área de Letras e Linguística começam a ter contato com as obras de Bakhtin e dos demais membros do Círculo. A singularidade do texto está na tomada de depoimentos daqueles que participaram ativamente dessa história, seja como alunos, no caso de Carlos Alberto Faraco, que viria a ser um dos maiores estudiosos brasileiros da obra de Bakhtin, Sírio Possenti e Wanderley Geraldi; seja como professor no curso de Pós-Graduação da Unicamp, no caso de Carlos Vogt. Tanto a fala da autora quanto os depoimentos que compõem o texto sugerem que El signo ideológico y la filosofia del lenguaje – edição argentina, traduzida do inglês, que chegou ao Brasil em 1976 – para além da descoberta de perspectiva linguística que incluísse o social, o sujeito e a ideologia, representou também uma forma de resistência à arbitrariedade do regime militar.
Neste bloco, encontram-se os textos de Amanda Eloina Scherer (Universidade Federal de Santa Maria, RS) e de Ana Zandwais (Universidade Federal do Rio Grande do Sul), que discutem a questão da homogeneidade da língua; e ainda os de Maria Cristina Hennes Sampaio (Universidade Federal de Pernambuco) e de Maria do Socorro Aguiar de Oliveira Cavalcante (Universidade Federal de Alagoas), que discorrem sobre as ideias que fundam a filosofia da obra de Bakhtin-Voloshinov.
Scherer, que se coloca nos campos teóricos da análise do discurso e da história das ideias linguísticas, analisa três instrumentos de ensino de língua implantados em diferentes épocas – Basic English, na Inglaterra, 1923-1927; Français élémentaire, na França, 1949-1960; e Português fundamental do Brasil, final de 1960-início de 1970. A autora se pergunta de que maneira tais instrumentos apontam para as formas de constituição, institucionalização e circulação de políticas linguísticas em diferentes momentos sócio-históricos. As reflexões que faz ao longo do texto sobre as designações para língua (universal, internacional, artificial, etc.) sustentam sua análise sobre esses instrumentos que, entre outras coisas, buscam fugir da babelização e estão à procura da língua transparente, controlada, descritível e universal. Em seu artigo, Zandwais discute a utopia indispensável da homogeneidade da língua em diferentes formas de organização humana. O texto retoma o ideal da Antiguidade, de uma língua homogênea e universal, cuja origem pode ser vista na narrativa bíblica sobre o “sonho de Babel” e, aprofundando a questão, estabelece analogia entre a organização tribal primitiva e a chegada ao Estado de Direito do século XIX. Salienta que, quando o Estado transforma o pluri em monolinguismo, o que só se faz por meio de uma língua de cultura inacessível à maioria, formam-se contingentes de falantes linguisticamente desaparelhados. A reflexão se fundamenta nas noções de monoglossia, heteroglossia e refração de Bakhtin-Voloshinov.
Maria Cristina Sampaio, por sua vez, estabelece um diálogo entre as filosofias de Bakhtin, Heidegger e Lévinas. A questão que ocupa a autora são os fundamentos do pensamento ético, por isso retoma questões comuns a esses filósofos e Bakhtin: relações ser-ente, homem-existência, humanismo, ser-autoridade-responsabilidade. Na análise dessas questões, a ética só pode ser pensada por meio de um ato individual e único em relação a um sujeito pesquisador, em relação de alteridade com outros pensamentos e contextos. Ainda no campo da filosofia, o texto assinado por Maria do Socorro Cavalcante desenvolve a relação entre o materialismo histórico e noções centrais na análise do discurso de orientação pecheutiana. Além de Pêcheux, o texto dialoga com Lukács, Bakhtin e Leontiev, teóricos que fornecem contribuições para pensar a língua a ideologia e o sujeito. Com Lukács e Leontiev, a autora elabora a questão da consciência. Entendo que o texto toca em um ponto que pode embaraçar uma fatia da AD francesa: esse sujeito sobredeterminado ideologicamente é, portanto, absolutamente previsível e desprovido de liberdade? A essa questão, a autora responde com Bakhtin e Lukács: o sujeito faz escolhas e se marca subjetivamente frente à realidade objetiva tal qual se apresenta a ele.
No terceiro bloco, reuni os textos de Maria Inês Batista Campos (Universidade de São Paulo) e Carme Regina Schons (Universidade de Passo Fundo, RS), que têm em comum o fato de apresentarem importante trabalho analítico.
A partir do texto O autor e a personagem na atividade estética, escrito por Bakhtin na década de 20, Campos analisa as noções de proximidade, distância e excedente de visão estética nos dois epitáfios do romance Macunaíma, de Mário de Andrade. Em discussão estaria a questão da relação autor-personagem no processo de criação estética. Após explorar as noções teóricas, a autora passa à análise dos epitáfios, desvelando o trabalho de pesquisa de Mário de Andrade, realizado a partir de textos de viajantes estrangeiros, mitos, lendas e aspectos do folclore brasileiro. O resultado da obra é um personagem-herói que, no olhar distanciado, se aproxima do povo brasileiro.
O texto que apresento ao final desta resenha, de Carme Shons, vai se debruçar sobre a formação e organização da classe operária, especialmente dos sindicatos no Brasil da primeira metade do século XX – 1ª e 2ª Repúblicas. A partir da análise do discurso, fundada por Michel Pêcheux, a autora analisa a designação sindicato desde seu surgimento, buscando no interior do que denomina de formação discursiva jurídica (constituição e leis do período), como sindicato é predicado nas regulamentações. O texto acompanha o percurso de formação do movimento sindical que, na Primeira República, é pautado em práticas anarquistas e anarcossindicalistas e associado a uma imagem de enfrentamento e luta, e, no Estado Novo, no confronto com a formação discursiva jurídica, passa a um modelo corporativista, tornando-se mero instrumento de reivindicação de melhorias econômicas.
Resenhar uma coletânea traz a dificuldade de falar de um objeto uno, cuja composição por natureza é heterogênea. No entanto, o que está a se olhar são histórias de ideias que fundaram várias das áreas que hoje se agrupam em torno dos estudos do texto e do discurso, com especial destaque às concepções de língua, sujeito e sentido. Refiro-me em parte aos preceitos teóricos do Círculo de Bakhtin, mas também aos acontecimentos históricos e discursivos que foram o advento do marxismo e da Revolução Russa de 1917. História das ideias dá a dimensão da importância desses dois eventos no plano do conhecimento, à medida que ecoa discussões e desdobramentos que passaram o século XX e ainda mobilizam intelectuais, para, longe do ceticismo e da perplexidade diante do século XXI, pensar as ideias que movem a vida dos seres humanos.
Márcia Dresch – Professora da Universidade Federal de Pelotas – UFP/RS -Pelotas, Rio Grande do Sul, Brasil; dreschm@gmail.com.
Nuevo diccionario de la teoría de Mijail Bajtin – ARÁN (B-RED)
ARÁN, Olga Pampa. Nuevo diccionario de la teoría de Mijail Bajtin. Córdoba, Argentina: Ferreyra Editor, 2006. 284p. Resenha de: PISTORI, Maria Helena Cruz. Bakhtiniana – Revista de Estudos do Discurso, v.7 n.2, São Paulo July/Dec. 2012.
Se Aurélio define dicionário como um “conjunto de vocábulos duma língua ou de termos próprios duma ciência ou arte, dispostos alfabeticamente, e com o respectivo significado […]” (grifo nosso), a proposta de um dicionário da teoria de Mikhail Bakhtin poderia se apresentar como a expressão da repetibilidade, do reiterável, da “explicação” monológica de termos. E ainda: se o léxico é apenas um dos aspectos do texto/enunciado/discurso na concepção bakhtiniana, sempre seria bastante complexa a tarefa de reunir o vocabulário do Círculo numa obra, com a finalidade de compreender o significado de cada termo ou conferir-lhe certa estabilidade de sentido. Fiel ao pensamento bakhtiniano, contudo, o diálogo está presente em todos os verbetes deste Nuevo Diccionario: com o autor/autores do Círculo, com o leitor, com diferentes comentaristas e críticos ao redor do mundo, ora com a teoria e/ou crítica literária, ora com a filosofia, a linguística, a psicologia, a antropologia…
O Nuevo diccionario de la teoría de Mijail Bajtin, publicado por Ferreyra Editor, Córdoba, Argentina, é dirigido e coordenado por Pampa Olga Arán, doutora em Letras Modernas e professora de Teoria y Metodología del estudio literario na Escuela de Letras da Facultad de Filosofía y Humanidades na Universidade Nacional de Córdoba. Arán esclarece, no Prólogo, que houve uma primeira edição, em 1998, mas que esta é uma nova versão, fruto do trabalho desenvolvido por ela, com a ajuda de Candelaria de Olmos – mestre em Sociosemiótica no Centro de Estudios Avanzados e chefe de Trabajos Prácticos de Semiótica na Escuela de Letras da Universidade de Córdoba, e uma equipe de investigadores, jovens em sua maioria. As diferentes vozes que se articulam no desenvolvimento dos 55 termos selecionados da obra bakhtiniana estão distribuídas entre as assinaturas de Pampa Olga Arán (13 verbetes), Candelaria de Olmos (8) e Lucas Berone – mestre em Sociossemiótica (9), responsáveis, assim, pela redação de mais da metade dos verbetes; os restantes são trabalhados pela equipe. O projeto contou ainda com o apoio econômico do Centro de Investigaciones de la Facultad de Filosofía y Humanidades e da Secretaría de Ciencia y Técnica.
A obra apresenta uma bem cuidada bibliografia de referência final, dividida em bibliografia específica de textos de Bakhtin; bibliografia específica de textos de Bakhtin e seu Círculo; estudos críticos e biográficos sobre Bakhtin; seleções bibliográficas; publicações periódicas; endereços URL. A seguir, breve notícia biográfica de todos os autores-colaboradores e o índice final dos termos.
Nas palavras da organizadora, “la forma de entradas múltiples y de recorridos simultáneos parece ser la que mejor se adecua al pensamiento abierto e inconcluso de Bajtín para quien nunca había sido dicha la última palabra”. Excelente justificativa, sobretudo ao mencionar as entradas múltiplas e as recorrências simultâneas, porque os termos da obra remetem constantemente uns aos outros, além de apontar para fora de si mesmos. Há mais: todos se inter-relacionam, não há como definir um sem que se defina sua ligação com os demais, constituem um sistema de pensamento “aberto e dinâmico”, em processo, e dependem de uma compreensão responsivo-ativa – de ao menos duas consciências. É por isso que as várias leituras da obra bakhtiniana, e ainda de seus críticos e comentadores, como é o caso deste Nuevo Diccionario, são sempre bem-vindas (ainda que seja para refutá-las, o que não é este caso).
Não há uma justificativa no Prólogo quanto à seleção dos termos. Por exemplo, os verbetes argumento, conhecimento, cronotopo, dialogismo, gêneros discursivos, paródia, texto, na realidade apresentam diferente relevância na obra do Círculo. Isto é, percebemos que não se trata de uma seleção de conceitos-chave para a compreensão da obra bakhtiniana, antes da seleção de noções que, naquele pensamento, assumem sentido e relevo particular.
A escolha do gênero parece ainda estar motivada pela epígrafe: “mi predilección por las variaciones y por heterogeneidad de términos en relación con un solo fenómeno” (Bajtín “De los apuntes de 1970-1971” Bakhtin, From Notes Made in 1970-71). Nesse sentido, lembramos que o problema terminológico na obra do Círculo não se atém apenas a essa predileção por variações e heterogeneidade de termos, expressa na epígrafe. Na realidade, a isso se acrescentam as traduções desconcertantes, surgidas no Ocidente a partir da década de 1960, publicadas fora da cronologia em que foram redigidas, muitas vezes refletindo e refratando teorias do espaço-tempo correspondente. Brandist, para quem a terminologia do Círculo, e especialmente aquela de Bakhtin ele mesmo, é muito particular e tem uma pluralidade de conotações, lembra que há termos como stanovlenie, que conheceu dez diferentes traduções no inglês, aparecendo de quatro formas distintas num mesmo ensaio. Isso também ocorreu de diferentes formas nas traduções para o francês, italiano, alemão, espanhol e português. É só pensarmos na possível confusão que poderia se formar em torno do vocábulo extraposición/exotopia, presente no Nuevo Diccionario. Constando do Prefácio de Tzvetan Todorov, na edição francesa de Estética da Criação Verbal, é o termo que ocorre na primeira tradução – do francês – que tivemos no Brasil. Paulo Bezerra, ao traduzir diretamente do russo, vai substituí-lo por distância ou distanciamento, com uma bela justificativa para isso na Introdução.
Independente dessas questões, ou talvez até por elas mesmas, este Nuevo Diccionario pode (e deve) ser lido como um hipertexto, que organiza cada um dos verbetes com uma introdução, apresentando o sentido mais geral do conceito na obra do Círculo. A partir daí, o autor rastreia a noção nas obras em que é encontrada, muitas vezes seguindo a ordem cronológica, e oferece ao leitor uma visão de como o conceito vai se estabelecendo ou se complementando (ou até se modificando) ao longo de todas elas, caso dos gêneros discursivos, por exemplo; ou então, como o Círculo restringe sua utilização a umas poucas obras, como é o caso de hibridación ou grotesco. No geral, há ainda uma conclusão mais ou menos avaliativa da fecundidade heurística da noção.
Alguns colaboradores são mais explícitos nos comentários e apreciações do conceito e estendem-se em aproximações com outras teorias. A meu ver, essa interação é extremamente enriquecedora. A esse respeito, o verbete sentido/significado, cuja autoria é de Analía Gerbaudo, é exemplar. Inicialmente, a autora já adverte da riqueza dos “aportes teóricos’ bakhtinianos tanto para a literatura como para a linguística. E aí, enquanto faz uma tomada panorâmica da questão sentido/significado na obra do Círculo, vai aproximando (e distinguindo) essa conceituação de outras, sobretudo de teóricos contemporâneos do Ocidente, como J. Derrida, Blanchot, o Barthes tardio, e mesmo Benjamin. Consciente está, porém, do desacordo entre os críticos dessas possibilidades de confrontação, pois conclui apresentando-nos, num breve balanço, especialmente a posição de comentadores bakhtinianos, como Ponzio, Zavala, Stewart, Morson e Holquist a esse respeito. Justifica-se, porém, com trecho do próprio Bakhtin, quando fala da “infinita heterogeneidade de sentidos” nos Apontamentos de 1970-1971: “La redujimos tremendamente mediante selección y modernización de lo seleccionado. […] Estamos empobreciendo el pasado y no nos enriquecemos nosotros mismos”. Desperta a curiosidade intelectual de nós, leitores, na comprovação das potencialidades de tais diálogos.
Convém assinalar que o referido problema de tradução eventualmente dificulta até nossa leitura de brasileiros, ainda que espanhol e português sejam línguas tão próximas. É o que pode ocorrer ao buscarmos o termo discurso. À primeira vista, o Diccionario não trata desse conceito essencial na obra do Círculo… Mas aí nos damos conta da existência do verbete palabra/discurso, assinado por Cristian Cardozo. E evocamos o conhecido ensaio de Voloshinov: no francês, Le discours dans la vie et le discours dans la poésie, Contribution à une poétique sociologique; no espanhol, La palabra en la vida y la palabra en la poesia. Hacia uma poética sociológica; na recente tradução para o português organizada pela equipe de Valdemir Miotello, A palavra na vida e discurso na arte. Introdução ao problema da poética sociológica. No entanto, palabra/discurso estão muito mais próximas no espanhol, diferentemente do que acontece em português (e também parece ser o caso do russo slovo). A partir de uma definição mais geral do termo na obra do Círculo, atribuindo-lhe inclusive a responsabilidade de conceituar toda a obra bakhtiniana como “una larga reflexión sobre ‘la vida de la palabra’ y sus modos históricos y sociales de producción de sentido, apropiación y refración” (p.203), o autor conclui o verbete com a importante afirmação de que “para estudiar la palabra como discurso no se la puede cosificar…” (p.211).
Em alguns momentos da consulta do Diccionario encontramos analogias intrigantes, como a de Candelaria de Olmos ao afirmar que Bakhtin parece substituir o binômio saussuriano langue/parole pelas relações dinâmicas entre gênero/enunciado: “a pesar de ser individual e irrepetible, el enunciado tiene un carácter social, mientras que el género – lejos de ser un sistema abstracto y normativo – , se presenta como un reservorio de reglas más o menos flexibles según el caso, elaboradas a lo largo de su uso, en situaciones histórico-sociales concretas” (p.138). Ou, ao consultarmos o verbete texto, também de responsabilidade de Olmos, constatamos a falta de referências importantes para a compreensão bakhtiniana do conceito, na medida em que a autora não busca o diálogo com as importantes obras de autoria disputada Voloshínov/Bakhtin, que poderiam enriquecê-lo… Por outro lado, há aí o posicionamento crítico frente à noção, situando-a em oposição ao estruturalismo ou ao pensamento sistêmico de Lotman, destacando a perspectiva polêmica bakhtiniana e apontando-lhe uma possível ambiguidade: “Hay que decir, pues, que la definición bajtiniana de texto es, cuanto menos, ambigua y que si en un sentido el término funciona como sinónimo del de enunciado; en otro, es su opuesto diametral y señala más bien, la materialidad del fenómeno (impresión, reproducción, etc). Esta ambigüedad es particularmente notable en ‘El problema del texto en la filología, la lingüística y otras ciencias humanas”. Sem dúvida, a compreensão responsivo-ativa do leitor deve levá-lo a refletir a esse respeito, instaurando novo diálogo com as obras do Círculo.
Cabe ainda um breve comentário sobre o verbete dialogismo, de importância primordial no pensamento bakhtiniano, muito bem organizado e de grande utilidade para o estudioso da linguagem (entre outros). Assinado pela coordenadora da obra, Pampa Olga Arán, de início apresenta uma visão cronológica de seu desenvolvimento e das várias ocorrências na obra do Círculo para, ao final, defini-lo como um “postulado que al condensar el imaginario de la dinámica histórica y social, atraviesa todos los conceptos, los une y les otorga sentido”.
Concluindo, apenas alguns poucos comentários: como esperado em obras coletivas, há diferentes profundidades e perspectivas na exposição e apreensão dos conceitos, o que de nenhum modo invalida o Diccionario. Em termos de complementação, a obra ganharia bastante – e também o estudioso de Bakhtin e seu Círculo, se houvesse a correspondência de cada um dos verbetes com outras línguas (o francês e o inglês); mas esbarramos aí novamente no problema da tradução. Por fim, é preciso destacar que livros organizados ou redigidos por especialistas brasileiros da obra bakhtiniana, como Beth Brait, Carlos A. Faraco, Irene Machado, Gilberto de Castro e Cristóvão Tezza foram consultados e fartamente citados.
Enfim, o Nuevo diccionario de la teoría de Mijail Bajtin revela-nos, antes de tudo, a penetração e a vitalidade da teoria do Círculo no país vizinho e, especialmente, na Universidade Nacional de Córdoba. Mas se, como nos diz Bakhtin, “um enunciado sempre cria algo novo”, na luta constante pela compreensão, este Nuevo Diccionario permite enriquecimento e mudança de todos nós, leitores/autores. Vale a pena!
Maria Helena Cruz Pistori – Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUC-SP/FAPESP, São Paulo, São Paulo, Brasil; mhcpist@uol.com.br.
O método formal nos estudos literários – MENDVIÉDEV (B-RED)
Detalhe da capa de Bakhtin e o círculo, de Beth Brait.
MEDVIÉDEV, Pável Nikoláievitch. O método formal nos estudos literários: introdução crítica a uma poética sociológica. Tradução de Ekaterina Vólkova Américo e Sheila Camargo Grillo. São Paulo: Contexto, 2012. 269 p. Resenha de: FARACO, Carlos Alberto. Bakhtiniana – Revista de Estudos do Discurso, v.7 n.2 São Paulo July/Dec. 2012.
Há muito tempo esperávamos a tradução para o português desse extraordinário livro de Pável N. Medviédev. Por que demorou tanto é difícil de explicar. Talvez o prestígio que o formalismo russo teve nos estudos literários brasileiros nas décadas de 1970 e 80 e a persistência de um certo substrato formalista nas décadas posteriores tenham inibido a vontade de traduzir uma obra crítica – radical e consistentemente crítica – do pensamento daqueles teóricos.
Mas, qualquer que tenham sido os motivos da demora, valeu a pena esperar porque o trabalho cuidadoso e criterioso das duas tradutoras nos legou um texto de altíssima qualidade. Tratou-se de uma feliz conjunção de competências: Ekaterina Vólkova Américo, falante nativa de russo, professora ministrante do curso de russo na Universidade de São Paulo (USP), é também tradutora e doutora em Literatura e Cultura Russa pela Universidade de São Paulo; Sheila Camargo Grillo é uma das mais destacadas estudiosas brasileiras das ideias do chamado Círculo de Bakhtin. Atua como professora na Universidade de São Paulo e foi pesquisadora no Instituto Górki da Literatura Mundial (Moscou).
Para sua tradução, partiram do original russo Formálnyi miétod v literaturoviédenii: kritítcheskoe vvediénie v sociologuítcheskuiu poétiku, publicado na então Leningrado, em 1928. Não se trata, portanto, de uma tradução indireta. Nesse sentido, as tradutoras dão uma contribuição muito valiosa ao mundo acadêmico brasileiro.
Informam também ao leitor que tiveram a preocupação de cotejar seu trabalho com as versões em inglês, espanhol, francês e italiano que – como diz Sheila C. Grillo no Prefácio – “permitiram, tanto em momentos de consonância como de dissonância, balizar nossas escolhas, tornando-as mais conscientes” (p.21). Algumas dessas escolhas estão comentadas numa Nota das Tradutoras (p.39-40), na qual também esclarecem os critérios de transliteração. Por fim, destaque-se que as tradutoras tiveram ainda o cuidado de rechear o livro com Notas (N.T.) em que dão informações sobre autores e obras citadas no texto, facilitando a vida do leitor.
O livro ora publicado pela Contexto vem enriquecido de uma Apresentação, escrita por Beth Brait; de um Prefácio, assinado por Sheila Camargo Grillo; de uma Nota Biográfica, redigida por Iuri P. Medviédev (filho do autor), acrescida de uma lista com a extensa produção bibliográfica de Pável N. Medviédev, com textos que vão de 1911 a 1937.
Beth Brait, em sua Apresentação, dá destaque à importância do livro seja em seu próprio tempo, seja para os leitores de hoje. É uma obra que responde a importantes pensadores da linguagem, “cujos traços fundamentais são recuperados e problematizados a partir de uma nova visão sobre o tema” (p.14). Dentre os muitos pontos abordados no livro, Beth Brait chama nossa atenção especialmente para a fina e sofisticada discussão teórica e metodológica que o autor desenvolve sobre os gêneros do discurso.
Em seu Prefácio, Sheila C. Grillo apresenta o livro e a tradução, e analisa o “espinhoso” problema da autoria do livro. Pessoalmente, considero esse problema altamente irrelevante. Reconheço a autoria pela assinatura. Assim, não tenho dúvidas de que Pável N. Medviédev é o autor deste livro. Isso tem sido heuristicamente muito produtivo porque facilita a percepção das muitas semelhanças, mas também das diferenças que há entre as várias obras dessa “coletividade de pensadores” (para usar a expressão de Iuri P. Medviédev na Nota Biográfica, p.249) que conviveram na década de 1920 e que, por vicissitudes da história de sua recepção posterior, foram agrupados sob o rótulo de “Círculo de Bakhtin”.
No entanto, como todos bem sabemos, há uma espécie de indústria acadêmica que vive de explorar o problema da autoria e, nesse afã, chega, muitas vezes, aos limites do escândalo e do nonsense. Sheila Grillo não podia, portanto, escapar de tratar do assunto. E o fez exemplarmente: buscou informações em múltiplas fontes e escreveu uma exposição desapaixonada, ou seja, ética e academicamente responsável.
Na Nota Biográfica, Iuri P. Medviédev traça um retrato de seu pai que nos permite conhecer mais de perto a vida de um intelectual ativo e apaixonado por seu trabalho naqueles anos fatídicos em que a cultura russa alcançou níveis altíssimos de efervescência e criatividade para, logo em seguida, ser sufocada pela mesmice mediocrizante imposta pelo terror totalitário. Nesse curto espaço de tempo, vemos o brilhante intelectual que nos legou uma obra instigante e que participou ativamente da efervescência de seu tempo ser declarado “inimigo do povo” e fuzilado em 1938.
Indo agora ao texto de P. N. Medviédev, cabe mencionar que ele tem quatro partes e nove capítulos, além de uma Conclusão. Na Primeira Parte (Objeto e tarefas dos estudos literários marxistas), acompanhamos a formulação dos fundamentos do que o autor chama de “a ciência das ideologias”, ou seja, de uma teoria de inspiração marxiana sobre a criação ideológica – entendidos os termos “ideologias” e “ideológico” em seu sentido amplo (e positivo), isto é, como fazendo referência, nos termos de Marx, aos “produtos do espírito humano” (ou ao universo das superestruturas) e não no sentido estrito (e negativo) do falseamento da realidade.
A poética sociológica proposta por Medviédev, no Capítulo Segundo desta Primeira Parte, é, assim, a teoria da “ciência das ideologias” que vai tratar especificamente da criação literária.
Depois dessa discussão geral, o autor, na Segunda Parte do livro (Uma contribuição à história do método formal), faz uma revisão histórica do pensamento formalista nos estudos da arte primeiro na Europa Ocidental e, em seguida, na Rússia, delineando suas diferenças.
A Terceira Parte (O método formal na poética) é uma detalhada discussão dos principais conceitos e pressupostos do Formalismo Russo: apresenta-os e, em seguida, submete-os à crítica sistemática, o que lhe permite expor suas próprias ideias sobre cada um dos temas. Encontramos aqui, nessa metodologia de trabalho, uma das características da “coletividade de pensadores” a que Medviédev pertenceu: o autor aproxima-se do outro criticamente, mas primeiro apresenta-o demorada e respeitosamente. É assim que Voloshinov, por exemplo, discute o freudismo e é também assim que Bakhtin discute a fortuna crítica sobre Dostoiévski.
Dentre os vários temas discutidos criticamente por Medviédev nesta Terceira Parte, merece especial destaque a sua longa argumentação contrária a um dos pilares do método formal: o conceito de linguagem poética que se contraporia à linguagem prática.
Essa argumentação é, sem dúvida, um dos pontos altos do livro por mostrar que a poeticidade não está no linguístico em si, mas decorre do processo de apropriação do elemento linguístico (qualquer que ele seja) por determinados modos de construção poética. Em outros termos, “a linguagem poética adquire as características poéticas apenas em uma construção poética concreta. Essas características não pertencem à língua na sua qualidade linguística, mas justamente à construção, seja ela qual for” (p.142).
Por fim, a Quarta Parte (O método formal na história da literatura) é destinada a uma apresentação crítica do modo como o método formal tratou os temas da história da literatura.
Na discussão crítica da teoria formalista da linguagem poética, Medviédev revisita a concepção de linguagem que ele, Bakhtin e Voloshinov vinham construindo ao longo da década de 1920. Mais do que isso: é nesta discussão que se reiteram também as bases da estética geral elaborada por esta “coletividade de pensadores”. Precisamente por isso é que este livro tem de ser lido juntamente com dois textos assinados por Bakhtin: “O autor e o herói na atividade estética” e “O problema do conteúdo, do material e da forma na arte verbal” (conforme já sugeri em Faraco, 2009). É esse conjunto de textos que explicita a teoria estética desse grupo de pensadores.
A primeira observação que se pode fazer sobre essa estética é que ela é muito afinada com as discussões estéticas próprias do início do século 20. Como nos mostra Medviédev, na Segunda Parte desse seu livro (p.87-127), o discurso teórico sobre a arte – que vivia sob o impacto das transformações do fazer artístico que ocorreram nos fins do século 19 e início do 20 – começou a assumir o caráter construtivo da arte em detrimento das concepções da arte como imitação, representação ou expressão. Punha-se, então, como tarefa para o estudioso revelar a unidade construtiva da obra e as funções puramente construtivas de cada um de seus elementos.
É precisamente nessa direção que vai o discurso bakhtiniano. Em seu texto “O autor e o herói na atividade estética”, Bakhtin (1990, p.9) critica, entre outras, as abordagens biográficas e sociológicas da arte. Ele diz que falta a elas a compreensão estético-formal do princípio criativo fundamental da relação do autor com o herói. Seu foco de atenção é, portanto, declaradamente o estético-formal.
Nesse sentido, ele se afina com as concepções formais, construtivistas da arte, que Medviédev vai resumir no capítulo primeiro da Segunda Parte desse seu livro – resumo que se conclui com a afirmação (p.101) de que o problema formulado por essas concepções (ou seja, a atenção que despertaram para o caráter construtivo da atividade estética) e as tendências fundamentais em direção à sua solução eram, no geral, aceitáveis para ele e seus pares. Acrescenta, porém, a observação: “O que resulta inadmissível é somente o terreno filosófico no qual se dá sua solução concreta” (p. 101).
No correr do livro, Medviédev vai explicitando esse terreno filosófico a que ele se refere de modo crítico. Bakhtin e seus pares não podiam concordar, basicamente, com a ideia de que o estético-formal exclui necessariamente o social, o histórico, o cultural. Ou seja, com a ideia de que o social, o histórico, o cultural são estranhos ao específico da arte.
O que é considerado externo pelo pensamento formal se torna, para Bakhtin e seus pares, interno, imanente ao objeto estético. E isso se faz pelo engenhoso modo como eles concebem o princípio construtivo fundamental da atividade estética, ou seja, a dupla refração. Nada entra na arte diretamente (como se fosse apenas um registro estenográfico). No ato artístico, a realidade vivida (já em si refratada, ou seja, atravessada por diferentes valorações sociais porque a vida se dá numa complexa atmosfera axiológica) é transposta para um outro plano axiológico (o plano da obra) – o ato estético opera sobre sistemas de valores e cria novos sistemas de valores.
Precisamente por isso é que Medviédev retoma, com insistência, nesse seu livro a defesa de um método sociológico único para o estudo das artes e da literatura em particular, opondo-se a uma tradição que assume o pressuposto da necessidade de se separar o estudo imanente das artes do estudo de sua história e de sua inserção social e cultural.
Haveria, nas artes, segundo essa tradição, uma especificidade absoluta, um em-si estético (livre de qualquer interferência do social, do cultural e do histórico) que deveria ser o efetivo objeto de atenção e análise. O estudo da história da arte e da sua inserção sociocultural não deveria ser misturado com o estudo da especificidade da arte, do em-si estético.
Essa perspectiva metodológica do corte radical nos estudos estéticos já tinha sido abordada por Medviédev no texto que publicou em 1926, intitulado “Sociologismo sem sociologia” (MEDVIÉDEV, 1983). Nele, o autor nos lembra que P. N. Sakulin – o teórico russo de literatura que tentou, na década de 1920, reconciliar, numa obra enciclopédica, o saber literário tradicional, a poética formalista e o marxismo – defendia pura e simplesmente dois métodos distintos para o estudo da literatura: o método formal para o estudo imanente e o método sociológico para o estudo histórico, causal da arte.
Medviédev faz uma extensa crítica desse posicionamento dicotômico (voltando a fazê-la nesse seu livro) em que os métodos não conhecem nenhuma conexão interna, nenhuma unidade sistemática. E é precisamente essa conexão interna, essa unidade sistemática que Medviédev e seus pares de Círculo perseguem em suas formulações teórico-filosóficas sobre a atividade estética: um método único que não ignora nem o específico das artes, nem o fato de que as artes, como qualquer produto do espírito humano, são sociais do começo ao fim.
É, por sua engenhosidade, uma bela estética geral que ainda não repercutiu devidamente (cf. discussão em Faraco, 2011). Esperemos que a tradução do livro do Medviédev motive, entre nós, uma retomada desse pensamento heuristicamente tão poderoso.
Referências
BAKHTIN, M. Author and hero in aesthetic activity. In: HOLQUIST, Michael; LIAPUNOV, Vadim (eds.). Art and answerability: early philosophical essays by M. M. Bakhtin. Austin: University of Texas Press, 1990, p.4-256. [ Links ]
_______. The problem of content, material, and form in verbal art. In: HOLQUIST, Michael; LIAPUNOV, Vadim (eds.). Art and answerability: early philosophical essays by M.M.Bakhtin. Austin: University of Texas Press, 1990, p. 257-325. [ Links ]
FARACO, C. A. O problema do conteúdo, do material e da forma na arte verbal. In: BRAIT, Beth (org.). Bakhtin – dialogismo e polifonia. São Paulo: Contexto, 2009, p.95-111. [ Links ]
_______. Aspectos do pensamento estético de Bakhtin e seus pares. Letras de Hoje, Porto Alegre, v. 46, n. 1, p.21-26, jan./mar. 2011. [ Links ]
MEDVIÉDEV, P. N. Sociologism without Sociology: on the methodological works of P. N. Sakulin. In: SHUKMAN, Ann (ed.). Bakhtin School Papers. Oxford: RPT, 1983, p.67-74. [ Links ]
Carlos Alberto Faraco – Professor da Universidade do Paraná – UFPR; Paraná, Curitiba, Brasil; carlosfaraco@onda.com.br.
A construção da identidade nacional nas crônicas da Revista do Brasil – CAMPOS (B-RED)
CAMPOS, Maria Inês Batista. A construção da identidade nacional nas crônicas da Revista do Brasil. São Paulo: Olho d’Água/FAPESP, 2010, 274 p. Resenha de: TREVISAN, Ana Lúcia. A construção da identidade nacional nas crônicas da Revista do Brasil. Bakhtiniana – Revista de Estudos do Discurso v.7 n.1 São Paulo Jan./June 2012.
A obra de Maria Inês Batista Campos, A construção da identidade nacional nas crônicas da Revista do Brasil, propõe um estudo crítico da formulação discursiva implícita às crônicas veiculadas na Revista do Brasil no período de 1922 a 1925. A pesquisa é fruto da tese de doutorado defendida pela autora na PUC-SP e, transformada em livro, consolida-se em um texto de leitura prazerosa e envolvente, que instiga a reflexão sobre a efervescência das vozes representativas da cultura nacional no início do século XX. Além disso, constrói uma sólida análise de um gênero híbrido e inesgotável: a crônica.
Utilizando como diretriz analítica os estudos do discurso conceituados por M. Bakhtin e seu Círculo, a autora tece um panorama esclarecedor sobre o contexto cultural e histórico da Revista do Brasil. Acompanhando a trajetória editorial da revista, que foi dirigida por Monteiro Lobato de 1918 a 1925, e por Afrânio Peixoto, Paulo Prado e Sérgio Milliet em outros períodos, é possível identificar os caminhos e descaminhos trilhados por escritores e intelectuais que traduziram as muitas faces das identidades nacionais. O estudo dos meandros do tempo e do espaço discursivo anuncia de maneira gradativa a amplitude reflexiva que será posteriormente desenvolvida na análise das 17 crônicas – selecionadas como parte constitutiva do cenário plurívoco da cultura brasileira. Cabe destacar que a forma encontrada para apresentar o corpus, assim como os critérios da seleção cuidadosa, remete à construção dos sentidos dialógicos do discurso, pois, no contexto do mundo da linguagem, vão sendo desvendados os sujeitos históricos por meio de suas citações, marcas de erudição, alusões e ironias, enfim, pela palavra que comunga com as muitas experiências individuais, compondo um quadro discursivo plural da identidade, inserido em um período histórico instigante.
As opiniões políticas e engajamentos culturais dos principais editores da Revista do Brasil são também discutidos no que se refere ao conceito de nacionalismo, que é explorado como diretriz da Revista do Brasil e entendido na sua abrangência significativa, marcada pelos aspectos sociológicos, antropológicos, linguísticos e literários. O projeto nacionalista, personificado na complexidade ideológica dos editores da Revista do Brasil, ganha uma dimensão aprofundada a partir do conceito de dialogismo, uma vez que as muitas vozes referidas e exauridas no interior das crônicas mantêm uma relação ora harmoniosa, ora conflitante com a voz que se distingue como égide dos projetos editoriais incorporados na revista. A análise das crônicas em consonância com a percepção dos muitos nacionalismos brasileiros confere amplitude à obra de Maria Inês Batista Campos. Os leitores encontram a riqueza de um trabalho que entende e demonstra a multiplicidade de tempos, espaços, humores e deslizes de sujeitos distanciados cronologicamente, mas que se tornam vivos em suas posições ideológicas, justamente pela sutileza reveladora da análise discursiva dos muitos interditos.
A comunhão entre as crônicas que compõem o corpus do estudo e o aparato teórico que o sustenta faz dessa obra uma referência valiosa para os estudiosos da cultura brasileira e das relações entre a História e as suas formas de manifestação discursiva. A crônica, entendida como um gênero ambivalente, potencialmente híbrido e plurissignificativo, é apresentada como espaço discursivo privilegiado, propício para o exercício analítico que possui a ideia do cronotopo como força centrípeta.
A obra constrói uma análise a partir da leitura do discurso veemente e perspicaz dos cronistas, que revelaram em seus textos recortes do debate sobre a identidade nacional. Na leitura contemporânea do passado, realizada pela autora, o tempo das crônicas estudadas se revitaliza, pois ressurge em diálogo com o olhar do século XXI. Nesse sentido, temas como identidade, nacionalismo, cultura letrada, universalismo são presente e passado, são motivos e consequências, são origem e também arcaísmos. Paulatinamente, o discurso acadêmico da autora também incorpora alguns dos sentidos mais intrínsecos a uma boa crônica de cultura ou crônica de arte. Afinal, como mergulhar em um gênero e não se contaminar de seus contornos e acentos? Os leitores ganham com essa inserção em terreno híbrido, realizam um mergulho nos diferentes tempos atualizados pelas análises e seguem as trilhas de um Cronos moderno que permite a intersecção das pertinentes luzes teóricas com as tonalidades difusas de uma época inclinada a coroar grandes verdades.
No debate sobre a identidade feito nas crônicas da Revista do Brasil, seja nas discussões sobre a cultura ou sobre o nacionalismo, nada melhor que o estudo do discurso para desestabilizar verdades e reler os diálogos implícitos além dos travessões ou das aspas que abrem as citações em língua estrangeira. A obra percorre o tortuoso debate cultural do começo do século XX pelas tangentes, pelas entrelinhas, revivendo as vozes que se ocultam nos parênteses e nas referências indiretas. O estudo do discurso contempla as muitas imagens que marcam o “tempo” da crônica e que são uma porta de entrada para avaliar a ambivalência do passado, surgido nas descrições aparentemente despretensiosas das cidades, das exposições de arte, das notícias e impressões sobre países estrangeiros. A reflexão disseminada nas crônicas está ancorada no intervalo de quase um século, o cotidiano está datado, porém, quando a análise explora a interrelação cultural, o diálogo com o presente é profícuo. Ao perceber a dinâmica das vozes nacionais e estrangeiras que permeiam os textos, entende-se que existe um elo permanente no debate sobre a formação da identidade brasileira. Trata-se do diálogo entre o particular e o universal, tema candente no começo do século que pode ser revisitado nos debates da atualidade, ainda que reapareça com novas roupagens ou, até mesmo, seja silenciado.
Na leitura da cultura brasileira, a autora utiliza o olhar estrangeiro para dividir e somar impressões sobre o nacional. Assim, ao analisar as crônicas escritas por João Ribeiro, Sergio Milliet e Rodrigo Andrade, destaca o diálogo com a cultura francesa. Por outro lado, a presença brasileira se concretiza na esfera dos cronistas Martim Francisco, Gastão Cruls, Câmara Cascudo, Frederico Villar e Orlando Machado. Nessa subdivisão dos olhares em contraponto, há um lugar especial reservado ao estudo das crônicas de Mario de Andrade, que remete a um anexo com seis crônicas do escritor paulista. No capítulo que realiza a detalhada análise do corpus, os leitores experimentam o contato direto com as particularidades e minúcias dos textos; ao ler as crônicas pelo olhar crítico da autora, podem desvendar os sentidos das paródias, das imitações, da mistura de gêneros utilizados pelos cronistas e conseguem, assim, perceber como a memória nacional se constrói pelos ecos das palavras. A memória resgatada pela palavra aprofunda a ideia de que, no ato de transitar pelos sentidos da linguagem, recupera-se a possibilidade de entendimento do genuinamente humano.
O panorama estético da época, o perfil intelectual dos cronistas, os muitos projetos de nacionalismo, enfim, o mergulho no caudal das informações que podem ser apreensíveis por meio da análise do discurso, compõem os temas dos capítulos articulados de forma harmônica, que fazem do estudo crítico de Maria Inês Batista Campos uma bela oportunidade de ingresso na ordem da história e da cultura brasileira por meio de um texto envolvente e lúcido.
Ana Lúcia Trevisan – Professora da Universidade Presbiteriana Mackenzie – UPM, São Paulo, São Paulo, Brasil; ana.trevisan@mackenzie.com.br.
Palavra própria e palavra outra na sintaxe da enunciação. A palavra na vida e na poesia: introdução ao problema da poética sociológica – BAKHTIN (B-RED)
BAKHTIN, M. Palavra própria e palavra outra na sintaxe da enunciação. A palavra na vida e na poesia: introdução ao problema da poética sociológica. São Carlos: Pedro & João Editores, 2011. 184p. Resenha de: CASTRO, Gilberto de. Palavra própria e palavra outra na sintaxe da enunciação. A palavra na vida e na poesia: introdução ao problema da poética sociológica. Bakhtiniana – Revista de Estudos do Discurso, v.7 n.1, São Paulo Jan./June 2012.
De todos os capítulos presentes em Marxismo e filosofia da linguagem: Problemas fundamentais do método sociológico na ciência da linguagem (daqui em diante MFL), editado no Brasil pela primeira vez em 1981, os menos lidos certamente são os últimos quatro, cujo tema central são os processos de citação (discurso citado) no interior da narrativa literária. Não são poucos os leitores, principalmente aqueles que estão nos seus primeiros contatos com a obra bakhtiniana, que afirmam ter sentido certa estranheza ao ler esses capítulos, assim como os que leram MFL somente até o capítulo 7. À primeira vista, parece que esses capítulos não deveriam fazer parte de MFL. Penso, entretanto, que essa deva ser apenas a impressão do leitor ainda não estudioso do pensamento bakhtiniano, já que uma leitura horizontal dos escritos mostra que o tema do encontro vocal dentro das obras do Círculo é fulcral na construção de todo o seu arcabouço teórico sobre a linguagem e a cultura, de toda a sua concepção alteritária de mundo.
O tema do discurso citado, enfim, do discurso no discurso, da palavra na palavra, da voz na voz, é recorrentemente discutido. Bakhtin recorrerá a ele em sua discussão sobre Dostoiévski, na belíssima teoria do romance e também em alguns momentos de seu texto sobre os gêneros do discurso. Apesar dessa presença constante nas obras dos autores do Círculo, não seria exagero dizer que o tema da citação ainda não é o carro chefe da curiosidade acadêmica e das pesquisas no Brasil que, entre tantos outros, às vezes tem preferido alguns já bem batidos, como demonstra o exagero bibliográfico das discussões sobre os gêneros do discurso.
Nesse sentido, é muito bem vinda a publicação de Palavra própria e palavra outra na sintaxe da enunciação, realizada pela Pedro & João Editores, que tem se caracterizado pelo esforço editorial em traduzir e publicar obras sobre o universo bakhtiniano – vale lembrar que é da mesma editora a tradução de Para uma filosofia do ato responsável (2010), texto que demorou bastante para ser vertido para o português. O livro publicado agora contém dois capítulos, sendo que o segundo, que também dá o título à obra, é uma nova tradução dos quatro últimos capítulos de MFL de Voloshinov. Como introdução há um inédito de Augusto Ponzio, intitulado Problemas de sintaxe para uma linguística da escuta. E, como apêndice, a primeira versão para o português brasileiro do texto A palavra na vida e na poesia. Introdução aos problemas da poética sociológica, de Voloshinov, que aliás também aparece como parte do título na capa do livro.
A iniciativa de publicar esse texto de Voloshinov também é muito boa. Trata-se de um texto fundamental dentro do arcabouço bakhtiniano, em que o autor, na intenção de delimitar um método sociológico para os estudos literários, empreende um esforço intelectual no sentido de mostrar as raízes intrinsecamente sociológicas da obra literária, tanto na sua forma quanto no seu conteúdo. Para isso, aborda um evento interativo extremamente simples do cotidiano de dois interlocutores (o já antológico – para quem conhece – exemplo da neve pela janela!) para discutir a dinâmica da interação socioverbal, mostrando o quanto a existência da linguagem só é possível na sua relação intrínseca com o mundo extraverbal. A partir desse exemplo, decorrem as considerações sobre o fato de que o texto literário, respeitadas as proporções e suas complexidades, contém os elementos próprios de qualquer ato interlocutivo, contemplando, nos moldes do enunciados cotidianos, um evento, um herói, um interlocutor. Já tinha passado a hora de traduzir esse texto para o português, visto que nele, além da ousadia e da simplicidade da abordagem sobre a construção literária e da revisitação muito clara de temas bakhtinianos, fica patente a expressão do intenso diálogo estabelecido entre Bakhtin e Voloshinov sobre a linguagem e a literatura.
Problemas de sintaxe para uma linguística da escuta, de Augusto Ponzio, também faz uma reflexão sobre o tema do encontro vocal nas obras bakhtinianas, o que dá uma tonalidade especial ao livro, singularizando a edição na direção da importância do debate sobre os problemas relativos ao encontro de vozes. Ponzio, que é seguramente um dos mais lúcidos e expressivos estudiosos do pensamento bakhtiniano no mundo, aproxima as discussões que Bakhtin faz sobre a palavra em Dostoiévski à reflexão realizada por Voloshinov sobre o discurso citado, com destaque para uma abordagem do discurso indireto livre. É particularmente interessante, na sua argumentação, a reprodução do que diz Pasolini sobre o discurso indireto livre, para quem esse tipo de citação representaria “o espião de uma ideologia” (p.39). De quebra, ao final do seu texto, Ponzio faz, revisitando informações biobibliográficas sobre o Círculo, uma justa reflexão sobre o significado dos termos “bakhtiniano” e “círculo de Bakhtin”. Ele vai destacar a “intensa e afinada colaboração, em clima de amizade, em pesquisas comuns, a partir de interesses e competências diferentes” (p. 46) que se efetivou entre Bakhtin e seus interlocutores mais próximos como Medevedev e Voloshinov, lembrando que eles seriam, “[…] junto a Bakhtin, as vozes. […] de forma ‘igualitária’.” (p.49).
Sobre a nova tradução do texto de Voloshinov, anteriormente publicado no final de MFL, e que agora faz parte do título deste livro da Pedro & João, valem algumas considerações. Em primeiro lugar, dizer que ela foi realizada a partir de uma tradução do italiano que se baseou no original russo de Voloshinov e que, comparando-a à tradução brasileira anterior, realizada a partir da tradução francesa, não apresenta praticamente nenhuma coincidência verbal. Apesar disso, vê-se claramente que se trata do mesmo texto, das mesmas ideias, das mesmas propostas, com exatamente as mesmas dificuldades de leitura impostas pela tradução anterior que são, diga-se de passagem, próprias mais à inovação e à natureza do tema discutido por Voloshinov que outra coisa. Enfim, a comparação entre as duas traduções tem lá o seu quê de pedagógico sobre o tema da tradução na medida em que expõe ao leitor variedades de formas de dizer e construir sentidos. Assim, não dá pra dizer que o teor textual de uma tradução é melhor que o da outra, nem mesmo quando focamos na comparação de pequenas partes, pois elas ora tendem positivamente para a tradução antiga, ora para esta de agora.
Mas a nova tradução do texto de Voloshinov supera a anterior na forma de apresentação. Além da nova edição apresentar um sumário detalhado, facilitando imensamente o trabalho do leitor na busca de um determinado tópico e/ou discussão, o texto foi enriquecido nas suas notas de rodapé, a partir de complementações feitas pelo tradutor e/ou organizador, que trazem novas e importantes informações sobre os autores citados e as ideias apresentadas. Porém, ao contrário da tradução anterior, a atual não tem todas as citações de excertos de literatura traduzidos, o que pode dificultar a leitura para alguns estudiosos.
Embora, como já ressaltei antes, seja extremamente positivo o fato de termos o texto de Voloshinov reeditado num livro à parte, juntamente com o trabalho de Ponzio, em que o tema do discurso citado ganha evidência central, creio que também haja alguma desvantagem nessa nova conformação. Refiro-me aqui basicamente ao fato de que, mesmo que seja um pouco difícil para muitos leitores pensarem a inclusão dos quatro últimos capítulos de MFL dentro daquele livro, prevalece o fato de que todo o fundamento teórico utilizado neles está desenvolvido nos capítulos anteriores do livro, o que evidentemente não ocorre na presente edição que, para compensar essa falta, se apoia em algumas notas de rodapé. Mas, quando Voloshinov, na última parte do seu texto, discute o discurso indireto livre em francês, alemão e russo, ao fazer alusão aos estudiosos que discutiram o tema teoricamente, ele os vincula às duas grandes correntes de estudos de linguagem (objetivismo abstrato e subjetivismo idealista) estudadas e criticadas por ele nos capítulos 4, 5 e 6 do MFL. Como as nominações empregadas por Voloshinov abarcam uma densa e complexa visão crítica e teórica sobre a linguagem, saber do que ele está falando é fundamental para uma compreensão mais completa da crítica que ele faz aos estudiosos do discurso indireto livre que se fundamentaram ora no objetivismo abstrato, ora no subjetivismo idealista.
Outro aspecto que, creio, ainda precisará ser mais bem avaliado, o que deve ocorrer na medida em que forem acontecendo leituras dessa nova tradução, diz respeito à mudança de terminologia empregada nela para descrever o que até hoje conhecíamos como “discurso citado”. Embora nossa cultura de estudos linguísticos tenha firmado certa nomenclatura em relação ao tema da citação, utilizando-se farta e recorrentemente da palavra “discurso” para encabeçar cada uma das denominações genéricas das formas de descrição do discurso citado, conhecidas como “discurso direto”, “discurso indireto” e “discurso indireto livre”, não foi essa a opção dos tradutores desse novo texto. Assim, fique atento o leitor para o fato de que, onde está escrito nos últimos capítulos de MFL “discurso citado”, leia-se, na nova tradução, “palavra outra”. Imagino que a opção dos tradutores veio na esteira das opções feitas por Ponzio no texto que inicia o livro; mas pensando em tradução, em que a consolidação de um sentido cultural e de sua ressonância em leitores concretos tem sempre lá o seu peso, fico na dúvida se a opção escolhida foi mesmo a melhor. Se serve de consolo para o leitor, outra coisa boa que esta nova tradução apresenta é a supressão daquele palavrão presente na tradução do MFL: “outrem”, que praticamente ninguém falava e escrevia no Brasil.
Uma última consideração diz respeito ao fato de apenas o nome de Mikhail Bakhtin aparecer na capa do livro (em desacordo com a ficha catalográfica). Depois de tudo que já se especulou e se sabe sobre a autoria dos textos do Círculo de Bakhtin, causa estranhamento ver que o nome de Voloshinov não aparece na capa de uma obra que traz dois textos assinados por ele. Observe-se, ainda, que a reflexão feita por Ponzio demostra que os chamados membros do Círculo eram todos impactados pela intensidade de um diálogo amigável e especulativo, embora preservando suas individualidades teóricas e autorais.
Enfim, traduzir é sempre um risco e uma ponderação de sentidos em progressão de interlocução. São sempre muitas vozes falando ao mesmo tempo a indicar e a reivindicar os seus sentidos. A oferta da linguagem é quase infinita e a decisão pelo sentido nem sempre é fácil. Do conjunto do trabalho apresentado nesta nova tradução, reitero o peso ideológico e teórico da iniciativa, que ajuda na evidenciação do tema do encontro vocal no Círculo de Bakhtin, o que para mim suplanta até mesmo as opções de sentido que eventualmente podem não agradar tanto assim.
Gilberto de Castro – Professor da Universidade Federal do Paraná – UFPR, Curitiba, Paraná, Brasil; castro1534@gmail.com 270.
XIV Bakhtin conference: Bakhtin: through the test of great time, 04 a 08 de julho de 2011 (B-RED)
XIV Bakhtin conference: Bakhtin: through the test of great time, 04 a 08 de julho de 2011, Universidade de Bolonha, Centro Universitário de Bertinoro (Forli-Cesena), Itália. Resenha de: PUZZO, Miriam Bauab. Bakhtiniana – Revista de Estudos do Discurso, v.6 n.1 São Paulo, Aug./Dec. 2011.
A sedução que a teoria bakhtiniana ainda exerce, em pleno século XXI, pode ser comprovada pelo volume de pesquisas e pelo número de pesquisadores que exploram os mais variados aspectos de uma obra que a cada dia apresenta novas possibilidades de interpretação e aplicação.
Desde que se realizou a 1ª Conferência Internacional sobre Bakhtin, na Universidade de Queen (Canadá), organizada por Clive Thomson e Anthony Wall, as pesquisas decorrentes das reflexões desse teórico têm se multiplicado. É o que sinalizam as edições subsequentes da Conferência, realizadas sistematicamente a cada quatro anos, em países diferentes, congregando pesquisadores que se debruçam sobre a vida e a obra desse filósofo da linguagem.
A XIV Conferência sobre Bakhtin, realizada na Itália, no período de 04 a 08 de julho, comprovou que o interesse pelo autor continua vivo e que sua teoria tem muito a dizer sobre a cultura moderna. Sob os auspícios da Universidade de Bologna, o Centro Universitário de Bertinoro reuniu pesquisadores de várias partes do mundo que investigam tanto a vida e a obra de Bakhtin quanto as possíveis relações que se estabelecem entre suas reflexões sobre a linguagem e as mais diversas teorias.
O tema “Bakhtin: através do Teste do Grande Tempo”, proposto para essa Conferência, motivou debates sob vários ângulos, nem sempre convergentes.
As conferências realizadas por pesquisadores russos, ingleses, italianos, americanos, entre outros, evidenciaram os múltiplos enfoques suscitados pelas obras já publicadas e pelas que ainda estão sendo reveladas pela pesquisa do acervo constituído por textos esparsos, como, por exemplo, as cartas e os rascunhos de suas aulas de literatura ministradas em Saransk. Tais publicações permitem relações bastante diversificadas no uso da linguagem, motivando pesquisas e aplicação de sua teoria em campos distintos. O conjunto das palestras apresentadas na XIV Conferência atesta essa tendência de buscar no pensamento do autor relações possíveis, tanto entre pensadores de sua época, como entre pensadores mais recentes.
Entre as conferências a cargo de pesquisadores, como a que leva por título Discussione intorno alla relazione di L. V. Pumpjanskj sul marxismo (1924) e il passaggio di M. M. Bachtin alle opere della seconda metà degli anni venti, ministrada por N. I. Nikolaev, observa-se a tendência de aproximar Bakhtin de autores que de certo modo atuaram na formação do seu pensamento filosófico, como Pumpianski. Segundo Nikolaev, as discussões do círculo de Nevel a respeito das ideias de Pumpianski, que se opunha ao marxismo por considerá-lo cientificamente inconsistente, foi fundamental para a compreensão da obra de Bakhtin na segunda metade dos anos vinte. Como Pumpianski, a partir de 1927′ aderiu ao marxismo, considerando-o um experimento, um mal necessário, as obras de Bakhtin da segunda metade do século vinte, de acordo com Nikolaev, seriam uma resposta a Pumpianski, demonstrando uma saída possível ao impasse provocado pela teoria marxista.
Nessa mesma linha comparativa, a conferência Nikolaj e Michail Bachtiny: consonanze e contrappunti. Esperimento di analisi comparata di posizioni filosofiche, de Grigory Tulchinsky, verifica as possibilidades de aproximação e distanciamento entre as posições filosóficas dos irmãos Nicolai e Mikhail Bakhtin. Embora, haja uma diferença radical no destino humano dos dois irmãos, Tulchinsky encontra algo profundamente comum aos dois: ambos receberam uma educação filológica de base, manifestaram grande interesse pela metafísica da ética, exibindo cada um, a seu modo, uma posição filosófica cuja sustentação era a metafísica da liberdade e da responsabilidade. A proposta do autor é a de efetivar uma comparação entre as posições filosóficas dos dois irmãos, como um trabalho investigativo interessante capaz de evidenciar uma associação nova e não banal na filosofia russa e talvez mundial do século XX.
Em idêntica linha comparativa, sob o título Gramsci and Bakhtin revisited, Craig Brandist retoma seus artigos escritos há vinte anos sobre a posição crítica de Gramsci e dos membros do Círculo em relação às ideias linguísticas e culturais daquele momento histórico e reavalia-as em função de novas publicações sobre o tema.
Seguindo a mesma orientação comparativa, Cesare Segre, em sua conferência Bachtin e Contini, compara, numa perspectiva historiográfica, a do cronotopo, o percurso, seguido por Contini, de analisar o romance em duas linhas paralelas: a do monologismo e a do plurilinguismo, como o fizera Bakhtin, observando as ligações possíveis entre ambos e aqueles autores por eles referidos.
Numa perspectiva um pouco diferente, Ken Hirschkop, sob o título Urban Irony, procura explorar os conceitos de heteroglossia, ironia e democracia nos centros urbanos, tomando como referência autores que se debruçam sobre essa questão, tais como Simmel, Benjamin e Sennett. Seu objetivo abarca dois momentos: num primeiro, examina os fenômenos descritos por Bakhtin na perspectiva dialógica (estilização, paródia, polêmica interna) como estratégias que tornam a experiência urbana prazerosa e recompensadora. Para o autor, enquanto os textos de Bakhtin, sobre o romance, iniciam a pesquisa sobre a ética cristianizada do romance, esse tema torna-se uma descrição de um modo de interação social que orienta as exigências éticas específicas da vida urbana.
De um ponto de vista mais crítico, em relação à aplicabilidade da teoria de Bakhtin ao romance contemporâneo, o pesquisador canadense Wladimir Krysinski, com Les enjeux dialogiques et monologiques dans l’évolution du roman modern, questiona as categorias de polifonia e dialogismo, de homofonia e monologismo, com as quais Bakhtin analisa as obras de Dostoiévski e Tolstoi, respectivamente. Para Krysinski, tais categorias não são apropriadas para a análise de romances como Ulisses de J. Joyce, Eu, o supremo de Roa Bastos, Ainda uma vez o mar de Arenas, O retorno das caravelas de Lobo Antunes, Paraíso de Sollers, O indizível de Beckett, O Bacharel de René-Louis des Fyrets, Som e fúria de Faulkner, entre outros. Segundo o autor, as questões dialógicas da evolução do romance demonstram uma transformação do dialogismo. Para além de sua posição ética, transforma-se em um monólogo teatral e recitativo. O polimorfismo romanesco, quer dizer, a variabilidade de suas formas, deixa à mostra a constituição dos teatros discursivos pelos quais o dialogismo, nessa nova versão, transcende a perspectiva bakhtiniana. Segundo o autor, as personagens do romance contemporâneo recitam um multilogo, como uma matéria verbal mais complexa que o monólogo do subterrâneo (Dostoiévski). Sob esse aspecto, Krysinski vai além dos conceitos de polifonia e de homofonia cunhando um novo conceito a partir daqueles apontados por Bakhtin.
No conjunto dos trabalhos, evidenciou-se a diversidade de enfoques com que Bakhtin é visto no grande tempo da cultura. Diversidade semelhante pode ser verificada nas comunicações individuais. É preciso destacar a presença de pesquisadores brasileiros, que chamaram a atenção pelo número de participantes, chegando mesmo a provocar questionamentos a respeito do interesse pela teoria de Bakhtin no Brasil. Uma resposta possível seria a abrangência dessa teoria, que pode abrigar pesquisas em várias vertentes, como a teórica, a pedagógica, a comparativa, a analítica, com enfoque para enunciados verbovisuais e literários, como comprovaram as comunicações de pesquisadores brasileiros.
Se, para Krysinski, as categorias de Bakhtin não atendem ao universo da literatura moderna e contemporânea, elas ainda se prestam a múltiplas aplicações, principalmente por tocarem em questões prementes na atualidade, como a responsividade e a responsabilidade tanto de pesquisadores como de enunciadores nas múltiplas esferas de produção, circulação e recepção de enunciado.
Miriam Bauab Puzzo – Professora da Universidade de Taubaté – UNITAU, Taubaté, São Paulo, Brasil; puzzo@uol.com.br.
Literatura e outras linguagens – BRAIT (B-RED)
BRAIT, Beth. Literatura e outras linguagens. São Paulo: Contexto, 2010, p.240. Resenha de: CITELLI, Adilson. Literatura e outras linguagens. Sobre diálogos discursivos. Bakhtiniana – Revista de Estudos do Discurso, v.6 n.1 São Paulo Aug./Dec. 2011.
O novo livro de Beth Brait possui a qualidade de transitar das questões teóricas que circundam os debates acerca dos papeis e funções da linguagem, passando pelos comentários exemplificadores dos conceitos em exame, indo aos depoimentos dos envolvidos nos fazeres textuais: linguistas, romancistas, poetas, gramáticos, cronistas, críticos, professores, usuários. Estudiosos da linguagem, como Maingueneau, Carlos Vogt, Sírio Possenti, José Luiz Fiorin, Ingedore Koch, apresentam ensaios/depoimentos em que falam de suas experiências com o texto literário. Por seu turno, Cristovão Tezza, Milton Hatoum, Chico Buarque, relatam suas vivências nas passagens entre a produção ficcional e as operações sobre a língua. É estimulante acompanhar as reflexões de autores do porte de Graciliano Ramos ou Guimarães Rosa acerca dos múltiplos desafios que a eles foram reservados pelos códigos da linguagem escrita. Cabe verificar, ainda, como as aulas de gramática entraram na vida de futuros professores dedicados à pesquisa com a leitura e a escrita, a exemplo de Marisa Lajolo e Regina Zilberman.
A dança animada pelo texto de Beth Brait prossegue segundo o andamento dos cortes e superposições, lembrando uma montagem desdobrada em várias vozes, desde aquelas que adensam com a sua experiência determinadas reflexões propostas pela Autora, passando por outras que permitem ao leitor discutir modelos teóricos fornecidos pelas diferentes visões acerca do texto, até a inflexão sistematizadora/problematizadora derivada das interrogantes e proposições da Autora elle-même. Essa exposiçãomontagem, sustentada por uma escrita clara e elegante, possibilita ao leitor apreender os tópicos em desenvolvimento ativando uma série de questões presentes, de uma ou outra forma, quando o assunto diz respeito aos mecanismos de produção, circulação e recepção das estruturas linguageiras, dos compósitos discursivos.
É oportuno dizer que, ao cruzar diferentes vozes discursivas – o que amplia para o leitor conceitos como os de literatura, língua, leitura, escrita – , o livro em exame intensifica os procedimentos polifônicos, permitindo não apenas identificar visões, entendimentos e diferenças quanto aos fazeres da linguagem, mas facilitando a compreensão do modelo teórico que enseja as próprias opções teóricas de Beth Brait. Existe um evidente diálogo com a obra de Mikhail Bakhtin, o autor que ampliou os estudos sobre a linguagem, concebendo-a como fenômeno semiótico, conquanto em dimensão não naturalizada, pois envolvida diretamente com as dinâmicas sociais, culturais, estéticas. Tal abertura permite aprofundar reflexões atinentes aos vínculos entre literatura e outras linguagens, facultando ao mesmo tempo a reconsideração do conceito de gênero e o reconhecimento da quebra ou superação dos diferentes dispositivos e formas que pareciam enclausurar as áreas de produção do sentido. As linguagens estão no texto impresso, na oralidade, na telenovela, no anúncio publicitário, sempre forçando limites, agindo de maneira desabusada, refazendo percursos, permitindo que a prosa contamine a poesia, a poesia derive do anúncio publicitário, a publicidade adentre o romance, o romance se transforme em roteiro cinematográfico ou televisivo, o jornal misture informação e ficção: eppur si muove.
Literatura e outras linguagens persegue intensamente esta questão central: saber quais são os vínculos, desdobramentos, cruzamentos, expansões entre a língua e a literatura. E mais, avança na ideia segundo a qual o problema da produção dos sentidos, abrangidos os literários, diz respeito a um variado conjunto de signos e códigos que, ganhando a forma-valor de tipo verbal, espalha-se por sequências não verbais. Daí a preocupação da Autora em arrolar exemplos que poderiam ser pensados como classicamente afeitos ao discurso literário, pois advindos dos planos verbais, com outros, nascidos das páginas dos jornais, dos livros de culinária, das letras de música, em um espetáculo de sons e imagens que evidencia múltiplos cruzamentos verbovisuais. Daqui deriva a categoria das outras linguagens, modos de operar tipos distintos de signos, mas que colaboram na conformação geral dos campos de sentidos.
Tendo esta problemática como pano de fundo, Beth Brait promove algumas provocações sobre as quais convém refletir. Uma delas aponta a confluência permanente nas relações língua/literatura: a “parceria inquestionável”, “sem álibi”.
A assertiva reenvia este resenhista ao ano de 1968. Em uma sala de aula, o professor Antonio Candido ministrava palestra – cujo título se perdeu na claudicante memória de quase 40 anos – aos jovens ingressantes no curso de Letras versando sobre as venturas e desventuras reservadas aos textos literários diante dos desafios apresentados pela então ascendente e galopante cultura de massa. A certa altura, o palestrante fez um parêntese para revelar a sua discordância de um tipo de discurso que apontava serem a língua e a literatura dois fenômenos a correrem em raia própria. O senão possuía alvo e estava claramente dirigido a uma crítica em voga no meio acadêmico e que misturava ao estruturalismo tropical uma linguística de poucas aventuras analítico-discursivas, aparentemente satisfeita em contar sílabas e mensurar a quantidade de informação gerada, digamos, em poemas de Baudelaire ou Mallarmé.
Tal questão é retomada por uma das depoentes/autoras de Literatura e outras linguagens, Ingedore Vilaça Koch. Conquanto longa, vale a pena reproduzir a passagem: “Houve uma ocasião em que, em virtude do afastamento da colega que na época era responsável pelas aulas de literatura no colégio de 2º. grau onde eu então lecionava língua portuguesa e técnicas de redação, fui instada a assumir a disciplina. Aceitei com o máximo prazer, mas nada me deixava mais irritada do que quando os alunos me perguntavam se deviam fazer as anotações no caderno de português ou de literatura; ou ainda quando reclamavam de eu tirar pontos na prova de literatura devido aos ‘erros de português’ ou de utilizar, nas aulas ou provas de língua portuguesa, textos literários. Tentava fazê-los entender que tanto gramática como literatura brasileira faziam parte do estudo de uma língua, quando entendida como atividade interativa de sujeitos sociais, que nela se constituem e são constituídos, de modo que não fazia sentido separá-las como se fossem duas ‘matérias’ estanques”.
A lembrança da passagem de Antonio Candido, corroborada pela prática da então jovem professora Ingedore Vilaça Koch, diz respeito a uma das ideias-chave presentes em Literatura e outras linguagens, e que reitera estarem língua e literatura na mesma estrada, malgrado possam cada uma das áreas desenvolver pesquisas, análises e crítica segundo procedimentos metodológicos próprios. Considerar a particularidade não implica, contudo, tratá-las como fenômenos isolados, como dois times em que os estudiosos de literatura podem afirmar desconhecimento dos fenômenos da língua e ao contrário, infeliz do professor de gramática que diz nada entender de literatura. O problema de fundo é que estamos, epistemologicamente, no interior de um mesmo processo de significação, ou de uma maneira interdependente de articular os campos de sentidos. Tais relações são apresentadas de modo instigante em conhecida passagem de Roland Barthes, posta em A aula (São Paulo: Cultrix, 2007, p.16): “Mas a nós, que não somos nem cavaleiros de fé, nem super-homens, só resta, por assim dizer, trapacear com a língua, trapacear a língua. Essa trapaça salutar, essa esquiva, esse logro magnífico que permite ouvir a língua fora do poder, no esplendor de uma revolução permanente da linguagem, eu a chamo quanto a mim: literatura”.
Certamente o conceito de outras linguagens, suscitado por Beth Brait, possui espectro amplo, tendo sido explorado em algumas de suas vertentes. Entretanto, ao posicionar o discurso literário – marcado por certos elementos canônicos – e as outras linguagens, é admissível ampliar o campo especulativo acerca destas. A se lembrar, neste caso, que as outras linguagens circulam por variados planos expressivos, permitindo a constituição de textualidades marcadas por inúmeras dimensões multimídias e multissígnicas.
Pretende-se dizer, com isto, que estamos diante de um universo de produção de informações, conhecimentos, saberes, conforme o caso, nascido em espaços descentrados, que tendem a fugir da circunscrição imposta por instituições tradicionais como a escola, podendo afirmar-se, por exemplo, na televisão, no rádio, na publicidade, no twitter, no MSN, enfim nos dispositivos, muitos deles tecnológicos, cada vez mais referidos ao conceito de pós-mídia de massa. Desnecessário lembrar que se estabelece outra relação entre suportes, por exemplo, digitais e arranjos sígnicos, trazendo como consequência novos compósitos de linguagem. Este ponto parece importante e permite entender porque Beth Brait analisa o jornal, a placa de trânsito, a receita de bolo, vendo- os como continuidades sígnicas nascidas de codificações próprias, mas capazes tanto de dialogar entre si como de remeter a campos significativos passíveis de apreensão por parte dos destinatários. Em nossos termos, surgem discursividades pouco afeitas ao que tradicionalmente se proclama como literário ou praticado com maior constância na escola, mas que consignam a capacidade de expressar valores, conceitos, ideias, sentimentos, transitando entre planos objetivos e subjetivos, conquanto em cruzamentos pouco canônicos de signos e códigos.
E precisa ser deste modo. Tratar do assunto da linguagem e da língua, tendo em vista o aluno, o professor, o usuário de modo geral, desconsiderando o que chamamos acima de novos arranjos sígnicos, é como pretender o congelamento do tempo.
Aliás, é imperioso ter em mira, quando se trata de pensar as outras linguagens, uma série de autores que sobre elas estão se dedicando em áreas que promovem a fusão de literatura, imagem, som, ou tudo isto ao mesmo tempo. Em 2009, dois holandeses, Win Veen e Ben Vrakking, publicaram um livro instigante chamado Educando na era digital, em que desenvolvem o conceito de homo zapiens. A metáfora é reveladora não apenas de uma extensão tecnológica que permite o processamento de operações a distância, mas inclui uma mudança de perspectiva na maneira como se decompõe/compõe discursividades. Falamos, portanto, de gerações que cresceram utilizando computadores, telefones celulares, promovendo circulação de textos via twitter, MSN, blogs, entrando com certa naturalidade no universo hipertextual. São os nativos digitais, sobre os quais discorre o americano Marc Prensk, em Don’t bother me mom. I’m learning. O título, ele mesmo irônico, pois se trata da resposta que um filho dá à mãe quando é por ela indagado acerca do que está fazendo frente a um videogame, indica a existência de sujeitos nascidos no interior da revolução digital e que se tornam, quase imperativamente, leitores de narrativas multissígnicas. E isto, de certa maneira, já nos obriga a rever conceitos discursivos tradicionais com os de gênero – mister, ademais, para o qual a teoria bakhtiniana fornece importante contribuição.
Compreende-se, conforme posto no livro de Beth Brait, que venha acontecendo um alargamento na própria ideia do que é o fazer literário, segundo trabalhado, entre outros, por Katherine Hayles, em Eletronic literature: new horizons for the literary, livro publicado pela editora da Universidade de Indiana, em 2008. Aqui se acompanha uma forma de produção literária distribuída pela rede – lugar ou não lugar, como quisermos, alternativo às bibliotecas físicas – , em permanente deslocamento por diferentes terminais de computadores, capaz de dispor, associar, combinar signos diversos em tempo real. Textos com feições e tamanhos diferentes, dos microcontos, às narrativas partilhadas, até a epistolografia processada via email, que convida tanto a escritas como a leituras multimídia feitas sob circunstâncias codificadoras variadas. A exemplo das produções que migram por veículos de comunicação com formatos e sintaxes próprias em desdobramentos sinergéticos capazes de levar o capítulo da telenovela para as revistas dedicadas a acompanhar o desenvolvimento das tramas folhetinescas, ou reconverter a história em quadrinhos para o cinema, e mesmo disponibilizar no youtube a sequência audiovisual capturada pela câmera do celular.
Importa, nesta digressão acerca das outras linguagens, permitida pela leitura do livro de Beth Brait, reconhecer que estamos frente a sensórios promotores de novas formas de ver, compreender, perceber. Processo, ademais, largamente trabalhado por Walter Benjamin, que identificou nas mudanças dos instrumentos de produção o desenvolvimento de novas relações de produção e, consequentemente, do conjunto das relações sociais.
O livro em exame instiga-nos, enfim, a pensar como se elaboram as relações entre língua, literatura e novas linguagens. E o faz no pressuposto de que a construção dos sentidos resulta não apenas da enorme flexibilidade nas passagens entre diferentes sistemas de codificação, mas também na montagem das cadeias interlocutivas – em sua gama de experiências afeitas às apropriações das linguagens – e para as quais acorrem diversificadas vivências com o fenômeno mais geral dos signos e das estruturas discursivas. É nesta direção que parece ocorrer a travessia entre uma forma particular de estruturar os afetos, o conhecimento, a sensibilidade, chamada de literatura, as manifestações da língua, e as outras linguagens.
Adilson Citelli – Professor da Universidade de São Paulo – USP, São Paulo, São Paulo, Brasil; citelli@uol,com,br
Navette Literária França-Brasil – A crítica de Roger Bastide – AMARAL (B-RED)
AMARAL, Glória Carneiro do. Navette Literária França-Brasil – A crítica de Roger Bastide. São Paulo: EDUSP, 2010, Tomo I, 259 p; Tomo II, 1084p. Resenha de: ATIK, Maria Luiza Guarnieri. Bakhtiniana – Revista de Estudos do Discurso, v.6 n.1, São Paulo, Aug./Dec. 2011.
Pierre Verger destaca que uma das características das obras de Roger Bastide é o espírito de diálogo. As obras “geralmente se baseiam na aproximação de dois temas complementares, um valorizando o outro. Quer se trate de religiões afro-brasileiras, de interpenetração de civilizações, de dupla herança, de dois catolicismos ou de aculturações recíprocas, são sempre dois temas fundados na complementaridade. […]. Há sempre diálogo, compreensão mútua e não incompatibilidade e agressividade” (LÜHNING, A. (org.). Verger – Bastide: dimensões de uma amizade. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2002, p.256-257).
A contribuição do estudo de Glória Carneiro do Amaral consiste exatamente em nos revelar essa estrutura dialógica dos textos bastidianos, em sua obra Navette Literária França-Brasil – A crítica de Roger Bastide, publicada em 2010 pela EDUSP.
O primeiro mérito da autora é debruçar-se corajosamente sobre uma obra alicerçada sobre “inquietantes areias movediças, de intrínseca vocação interdisciplinar”. Assim, para abarcar as vertentes da crítica bastidiana, lança-se numa análise cuidadosa e percuciente, destacando os procedimentos discursivos dos artigos publicados em diferente periódicos, na França e no Brasil.
O primeiro volume consiste num estudo do percurso de Bastide no universo da literatura, da sociologia e da religião. E o segundo, abarca mais de 200 títulos escritos entre 1920 e 1974, apresentados cronologicamente.
Para compor a antologia do segundo volume, a pesquisadora contou com o material de dois arquivos: “em São Paulo, o arquivo do Instituto de Estudos Brasileiros, e, na França, os arquivos do Imec (Institut de la Mémoire de l’ Édition Contemporaine)”, resgatado, para os estudiosos de Bastide, um vasto material que traz à luz textos sobre a literatura brasileira, a literatura francesa, sobre as relações entre poesia e sociologia, literatura e protestantismo, questões de estética, dentre outros.
A partir de uma análise extremamente refinada, ao mesmo tempo em que nos dá a conhecer alguns dados biográficos do crítico francês, a pesquisadora examina os textos críticos sob uma perspectiva ampla e abrangente, apontando as contradições, os exageros e a desigualdade entre eles, que oscilam desde rápidas resenhas sobre os mais diferentes autores, muitas de interesse duvidoso, até textos fundamentais sobre literatura francesa e brasileira.
Roger Bastide escreveu sobre todos os grandes escritores mas, como atesta Glória do Amaral, o crítico concedeu pouca atenção aos cânones da literatura francesa. Exceção feita a Gide, único escritor pelo qual Bastide se interessou ao longo de toda a sua vida, publicando a obra Anatomie d’André Gide. Escreveu também sobre Marcel Proust e François Mauriac. O seu interesse, contudo, não era o objeto estético enquanto produto literário, e sim o viés religioso presente em suas obras. O judaísmo de Proust, o catolicismo de Mauriac e o protestantismo de Gide são os aspectos fundamentais dos ensaios bastidianos.
Em relação aos escritores brasileiros, a autora percebe no conjunto de artigos analisados que a crítica bastidiana não se fixa no côté exotique, nas imagens estereotipadas do Brasil difundidas na França. Sua crítica “inscreve-se na diferença, como a de um intelectual francês interessado em entender a cultura, a arte e a literatura brasileiras” (p.242). Ressalta, ainda, que muito antes de chegar ao nosso país, Bastide já estava interessado na relação dos escritores brasileiros com a terra e procurou entendêlos de uma perspectiva antietnocêntrica. Sua intensa produção, livros e artigos publicados em revistas e em jornais, mostra sua integração ao nosso meio social e a preocupação em desvelar as especificidades e os contrastes da realidade brasileira. Como assinala Glória do Amaral, Roger Bastide produziu muito material na literatura em geral e na poesia em particular. Dentre as obras analisadas, destacam-se a de Cruz e Sousa, Euclides da Cunha, José Lins do Rego, Mário de Andrade e Machado de Assis.
Concomitantemente à análise cuidadosa e perspicaz do crítico literário, a autora nos revela as preocupações de Bastide como filósofo e sociólogo e o seu interesse maior pelo homem do que pelo escritor, destacando que a idéia de uma alma ancestral, espécie de alma arquetípica, persistia em seu pensamento.
Glória do Amaral dedica um capítulo do primeiro volume de Navette Literária França-Brasil às contribuições de Bastide para as revistas Mercure de France e Anhembi, a primeira francesa e a segunda brasileira. Entre 1948 e 1965, Bastide publicou na revista Mercure de France vinte crônicas sobre a literatura brasileira para um público francês. A composição de suas crônicas, segundo a autora, obedece ao padrão comum da seção “Lettres brésiliennes” da revista: “um pequeno texto crítico, cujo tema varia, seguido de várias resenhas de poucas linhas, com uma apresentação gráfica diferente do texto principal” (p.213). Lançando mão do recurso comparativo, Bastide procura manter o leitor francês a par da vida literária brasileira, apontando aspectos do processo formativo da nossa literatura.
Na revista Anhembi, a colaboração de Bastide se estendeu de 1950 a 1962. E mesmo quando retornou à França continuou a sua atuação como uma espécie de correspondente. Fazendo um balanço de sua produção no referido periódico, Glória do Amaral aponta que os artigos abarcam estudos sobre sociologia, literatura, cinema e teatro, diversidade que contribui para o adensamento de sua crítica. Os textos, “em princípio de caráter informativo, acabam por se transformar em espaço para o desenvolvimento de conceitos e reflexões sobre a vida cultural francesa”.
Navette Literária França-Brasil traz uma importante contribuição para o conhecimento da obra de Roger Bastide, onde o diálogo não é apenas um traço formal. Mostra o percurso de sua reflexão sobre a literatura, bem como o seu interesse por diversas áreas do saber: sociologia, filosofia, religião, artes, estudos culturais. Trata-se de um livro de referência para todos os que se interessam pelas relações França-Brasil, pelas relações entre o eu e o outro.
Maria Luiza Guarnieri Atik – Professora da Universidade Presbiteriana Mackenzie – UPM, São Paulo, São Paulo, Brasil; vatik@uol.com.br.