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Para além das fronteiras: histórias transnacionais, conectadas, cruzadas e comparadas | Temporalidades | 2016
O presente dossiê de Temporalidades, revista discente do Programa de Pós-Graduação em História da UFMG, confirma a qualidade desta que já se firmou como uma das mais importantes revistas discentes na área de História publicadas no Brasil, cujo número inaugural foi lançado no primeiro semestre de 2009, estando em seu oitavo ano de existência. Inicialmente semestral, a revista passou a ser, a partir de 2013, quadrimestral. O Conselho Editorial é constituído integralmente por doutorandos e mestrandos do PPGH-UFMG, que têm demonstrado uma dedicação e empenho indiscutíveis e louváveis para manter a periodicidade e a qualidade da revista, que publica artigos recebidos de pesquisadores de instituições de todo o Brasil e, inclusive, de outros países.
O processo de globalização do capitalismo, acentuado após a Segunda Guerra Mundial, praticamente impôs à produção historiográfica, em todos os continentes, ir além da perspectiva nacional, dominante desde o século XIX, e intensificar as perspectivas transnacionais. Leia Mais
Intelectuais e circulação de ideias na América Latina / Varia História / 2014
O presente dossiê de Varia Historia é dedicado à História Intelectual Latino-Americana, com ênfase na história dos impressos, das ideias e de sua circulação.
A História Intelectual é um campo de estudos que vem crescendo nas universidades e instituições de pesquisa latino-americanas, particularmente a partir dos anos 1980 e 1990, juntamente com os processos de redemocratização em vários países do continente e a necessidade de se repensar o papel dos intelectuais na vida política e social de cada um dos países e na América Latina como um todo.
O importante ensaísta e crítico literário uruguaio Ángel Rama já havia, em seu famoso livro La ciudad letrada, de 1984, indicado alguns caminhos que seriam percorridos pela história intelectual latino-americana nas décadas seguintes, particularmente sobre as vinculações entre os intelectuais e os núcleos urbanos de poder.[1]
Conforme Carlos Altamirano, em sua introdução geral aos dois volumes da Historia de los intelectuales en América Latina, além das ideias, era necessário aprofundar a reflexão sobre a posição dos letrados latino-americanos no “espaço social, suas associações e formas de atividade, instituições e campos da vida intelectual, seus debates e relações entre ‘poder secular’ e ‘poder espiritual'”.[2]
Os estudos na área de História Intelectual, em um sentido amplo, têm como seus objetos de pesquisa e reflexão não apenas a história do pensamento e o debate de ideias e ideologias, mas questões como a constituição de redes e sociabilidades intelectuais; os variados tipos de impressos, sua circulação e articulação com o debate público; as viagens e intercâmbios; as experiências de exílio e deslocamento etc. São estudos que buscam analisar as conexões entre os intelectuais e as diversas instâncias da vida pública, como a política, a diplomacia, os meios de comunicação, as instituições educativas e científicas, as expressões artísticas, associações e movimentos sociais, entre outras.
Na América Latina, as pesquisas nessa área tiveram um incremento muito vigoroso a partir dos anos 1990. A criação do Programa de História Intelectual da Universidad Nacional de Quilmes, na Argentina, em 1994,[3] e a publicação de Prismas – Revista de historia intelectual pela editora da UNQ, desde 1997, são marcos importantes para essa área de estudos. Em vários países latino-americanos – com destaque para Argentina, Brasil, Chile, Colômbia, México, Peru e Uruguai – é crescente o número de pesquisadores e trabalhos publicados na área de História Intelectual. Esse aumento teve, como um de seus desdobramentos, a realização do I Congreso de Historia Intelectual de América Latina, em Medellín, Colômbia, em setembro de 2012, e o II Congreso de Historia Intelectual de América Latina, que será realizado em Buenos Aires, em novembro deste ano.
O dossiê que ora apresentamos traz cinco artigos que abordam algumas das temáticas elencadas acima: o debate de ideias e sua circulação entre países e continentes; os periódicos, sua importância e repercussão; as trajetórias e inserção de intelectuais na cena pública.
Abrindo o dossiê, Maria Ligia Coelho Prado analisa os artigos publicados a respeito do México na famosa publicação francesa Revue des Deux Mondes, entre 1840 e 1870. A revista, muito lida pelos intelectuais latino-americanos, expressava, como demonstra a autora, os interesses nacionais e a perspectiva imperial da França. De todos os países latino-americanos abordados pela Revue, o México foi o objeto predileto das reflexões do periódico, no período estudado, em cerca de 30 artigos. Os intelectuais franceses que escreveram na Revue defendiam que seu país deveria ocupar um papel de liderança do “mundo latino”. O México era representado, nesses artigos, como um país “exótico, atrasado, anárquico, vivendo nos tempos de Felipe II”. E, como lembra Prado, durante o governo de Napoleão III, os franceses colocaram em prática esta perspectiva, ao enviar tropas para sustentar a monarquia no México, numa intervenção, afinal, derrotada pelos liberais mexicanos. Sendo assim, o artigo de Ligia Prado traz elementos para uma melhor compreensão de um aspecto pouco salientado da ação francesa na América Latina no século XIX, seu papel imperial, para além do lugar da França – e de Paris, especialmente – como o principal centro intelectual, literário e cultural, para onde convergiam, ou desejavam convergir, os intelectuais latino-americanos.
José Luis Bendicho Beired, em seu artigo Hispanismo e latinismo no debate intelectual ibero-americano, analisa a constituição de vertentes defensoras do hispanismo e do latinismo nos dois lados do Atlântico, entre meados do século XIX e meados do XX. Utilizando-se de revistas e jornais como principais fontes documentais, o autor mostra que, até inícios do século XX, não havia evidente oposição entre essas duas correntes, sendo predominante, inclusive, uma visão de complementaridade. Para intelectuais franceses, assim como para espanhóis, devia-se contrapor, às intervenções norte-americanas sobre a América ao sul do Rio Bravo, a “cultura latina”. E nos países hispano-americanos, principalmente após a intervenção dos Estados Unidos na guerra de independência de Cuba, fortaleceu-se uma afirmação latino-americanista. Após a Primeira Guerra Mundial, entretanto, as distinções entre o latinismo, vinculado às pretensões hegemônicas francesas, e o hispanismo, encabeçado pela Espanha, ficaram mais pronunciadas. O autor faz referências, também, acerca do debate sobre o iberismo, tanto na Espanha como em Portugal. Ao analisar concepções formuladas por intelectuais da península Ibérica e da América Hispânica, além de ações concretas para incrementar os vínculos com os países ibero-americanos, tanto por parte da França como da Espanha, Beired mostra a riqueza dos debates que envolviam, por um lado, filiações e vínculos intelectuais entre hispano-americanos e europeus, e, por outro, afirmações identitárias dos países latino-americanos – que cada vez mais se reconheciam como parte de uma região denominada América Latina –, sem ignorar as alterações que se estabeleceram nos termos do debate em função das significativas mudanças ocorridas na Espanha, a partir da Guerra Civil e da vitória franquista, em outros países europeus e nas Américas, ao longo do período enfocado.
No terceiro artigo do dossiê, Alejandra Mailhe analisa a revista Archivos de psiquiatría, criminología, medicina legal y ciencias afines, dirigida pelo médico e ensaísta argentino de origem italiana José Ingenieros (1877-1925), um dos mais importantes intelectuais latino-americanos de sua geração. A revista Archivos, publicada em Buenos Aires de 1902 a 1913, ocupou um lugar central, como mostra Mailhe, no desenvolvimento da psiquiatria e da criminologia como áreas especializadas do conhecimento, não só na Argentina como em muitos países da América Latina, contribuindo para a formação de uma rede de contatos e de ideias no continente. Entre seus colaboradores, Archivos teve autores latino-americanos e europeus. Entre os primeiros, brasileiros como Evaristo de Moraes, Francisco Franco da Rocha e Raimundo Nina Rodrigues. Conforme esclarece a autora, a revista tinha, como principal objetivo, o “estudo científico dos homens anormais”, especialmente criminosos e dementes, com ênfase em concepções positivistas de começos do século XX, mas com aberturas para outros enfoques. Para o leitor brasileiro, é de especial interesse a abordagem de Mailhe sobre as contribuições de Nina Rodrigues a Archivos e as divergências entre o autor brasileiro e José Ingenieros. O artigo de Mailhe procura mostrar, também, como a revista contribuiu para um processo, ainda que “muito moderado”, de “latino-americanização” dos intelectuais argentinos.
Regina Crespo, no artigo seguinte, intitulado O México de Rodrigo Otávio e de Cyro dos Anjos: entre as atribuições do funcionário e o olhar do escritor, analisa os olhares dos dois intelectuais brasileiros sobre o México, a partir de suas experiências no país setentrional em atividades diplomáticas. Depois de breves considerações sobre autores brasileiros que escreveram sobre o México – como Ronald de Carvalho, Erico Verissimo e Vianna Moog –, Crespo dedica-se à análise dos textos que, sobre o México, escreveram dois outros escritores brasileiros: o jurista Rodrigo Otávio e o escritor e funcionário público Cyro dos Anjos. Otávio esteve no México algumas vezes, entre 1923 e 1926, nas quais atuou em missões diplomáticas. Cyro, por sua vez, viveu na Cidade do México três décadas depois, de 1953 a 1954, atuando como professor da cátedra de Estudos Brasileiros na Universidad Nacional Autónoma de México e, a serviço da Embaixada brasileira, dando palestras sobre o Brasil em várias cidades mexicanas. No caso de Rodrigo Otávio, a principal fonte de Crespo foi seu livro México e Peru, publicado em 1940, além de jornais mexicanos da década de 1920 e da correspondência diplomática. Para analisar a visão de Cyro dos Anjos sobre o país hispano-indígena, a autora também se utilizou, principalmente, da correspondência diplomática, além das cartas entre o romancista de Montes Claros e o conterrâneo mineiro Carlos Drummond de Andrade.
Carlos Cortez Minchillo, no artigo que fecha o dossiê – intitulado A América Latina de Erico Verissimo: vizinhança, fraternidade, fraturas –, aborda a presença da América Latina na obra e trajetória do escritor gaúcho Erico Verissimo, com ênfase no seu relato de viagem México, publicado em 1957, e no romance O senhor embaixador, de 1965. Como sustenta o autor, Verissimo pensou a América Latina tendo os Estados Unidos como contraponto, tanto em razão do contexto da Guerra Fria como da polarização do debate político nos países latino-americanos, particularmente após a vitória, em 1959, da Revolução Cubana. A contraposição entre a América Latina e os Estados Unidos deu-se, também, face à própria vivência pessoal e profissional de Erico nos Estados Unidos, como palestrante e professor visitante em universidades norte-americanas, em 1941 e 1943-1945, e como diretor do Departamento de Assuntos Culturais da União Pan-Americana, de 1953 a 1956 – períodos em que Verissimo ampliou sua sociabilidade intelectual não só com norte-americanos como também com vários hispano-americanos. Se nos anos 1940, no contexto da Segunda Guerra, Erico assumiu a defesa do pan-americanismo, na década seguinte, em plena Guerra Fria, o escritor brasileiro tornou-se cada vez mais crítico da política interna e, principalmente, da política externa dos Estados Unidos, e mais sensível às sociedades latino-americanas, suas culturas, histórias e problemas sociais. Carlos Minchillo mostra, entretanto, as ambiguidades das representações do “povo” latino-americano nessas duas obras de Erico. O artigo busca avaliar, ainda, a recepção das obras de Verissimo entre os anos de 1950 e 1970, assim como as possíveis implicações das posições políticas do autor, um social-democrata crítico tanto dos regimes ditatoriais de direita como dos regimes totalitários do Leste Europeu, naqueles anos polarizados e de intensos debates em torno do compromisso político dos escritores e intelectuais.
Esperamos que este dossiê de Varia Historia contribua com o crescimento do interesse pela História Intelectual Latino-Americana e para incrementar as pesquisas, o intercâmbio e a circulação de ideias entre pesquisadores brasileiros e hispano-americanos.
Notas
1. RAMA, Ángel. La ciudad letrada. Hanover, New Jersey: Ediciones del Norte, 1984. [ Links ] A primeira edição brasileira foi publicada no ano seguinte: A cidade das letras. São Paulo: Brasiliense, 1985. Vale lembrar que Rama teve fortes vínculos com a cultura e a literatura brasileiras, tendo ministrado aulas na Universidade de São Paulo, em 1974, em disciplina sob a responsabilidade de Antonio Candido, e retornado ao Brasil em 1980 e 1983, apenas dois meses antes do acidente aéreo que o vitimou. Cf. AGUIAR, Flávio; VASCONCELOS, Sandra G. T. (orgs.). Ángel Rama: literatura e cultura na América Latina. São Paulo: Edusp, 2001, p. 30-35. [ Links ] 2. ALTAMIRANO, Carlos (dir.). Historia de los intelectuales en América Latina. Buenos Aires: Katz, 2008, p. 11. [ Links ] 3. O Programa de História Intelectual esteve sob a direção de Oscar Terán até 2005, Carlos Altamirano até 2009 e, desde então, Adrián Gorelik. Em 2011, foi criado o Centro de História Intelectual da UNQ. Cf. http: / / www.unq.edu.ar / secciones / 243-centro-de-historia-intelectual-chi / . Acesso em: 15 set. 2014.
Kátia Gerab Baggio – Departamento de História. Universidade Federal de Minas Gerais.
BAGGIO, Kátia Gerab. Apresentação. Varia História, Belo Horizonte, v.30, n.54, set. / dez., 2014. Acessar publicação original [DR]
História das Américas: Política e Cultura / Varia História / 2007
O presente dossiê da Varia Historia dedica-se à História das Américas, com artigos que tratam de diferentes temáticas, particularmente relacionadas às dimensões políticas e culturais do conhecimento histórico e, em grande parte dos textos, suas inter-relações. Os artigos, em seu conjunto, têm grande amplitude espacial e temporal: do sul da América do Sul aos Estados Unidos, dos séculos XVI ao XXI. Ao lado de textos que abordam temas mais diretamente relacionados à história de determinados países, o dossiê traz artigos que analisam as circulações e conexões político-culturais entre diferentes países e espaços sociais.
O dossiê expressa o crescimento, diversificação e aprofundamento dos estudos sobre a América Hispânica e os Estados Unidos no Brasil, além de ressaltar o intercâmbio cada vez maior com a produção historiográfica sobre o continente americano produzida em outros países das Américas e da Europa.
Esclarecemos que, em razão da diversidade temática, espacial e temporal, optamos por apresentar os artigos em ordem cronológica.
O dossiê inicia-se com o artigo de Serge Gruzinski, Estambul y México. O autor esteve em Belo Horizonte em junho de 2007, como pesquisador convidado pelo Instituto de Estudos Avançados Transdisciplinares – IEAT, da UFMG, ocasião em que proferiu várias conferências, inclusive sobre o tema do artigo publicado nesse dossiê. O autor apresenta mais um trabalho, em sua já vasta e rica produção historiográfica, em que avança nas suas reflexões em torno das “histórias conectadas” – conforme a proposição do historiador indiano Sanjay Subrahmanyam. No artigo aqui incluído, o autor analisa – em uma primeira aproximação ao tema – duas fontes extremamente interessantes que conectam a Cidade do México e Istambul, entre fins do século XVI e inícios do século XVII. O autor mostra que havia um interesse recíproco entre a Nova Espanha e a Turquia, em uma época em que, a priori, não consideraríamos a possibilidade da existência de conexões intelectuais entre o “Novo Mundo” e o Império Otomano. O autor pretende apresentar, ao abordar suas fontes, problemas teórico-metodológicos que “surgem quando se comparam duas fontes relegadas pela historiografia tradicional”.
Víctor Mínguez analisa – em seu artigo La ceremonia de jura en la Nueva España. Proclamaciones fernandinas en 1747 y 1808 – as cerimônias públicas de juramento de lealdade aos monarcas espanhóis na Nova Espanha, atual México. Essas celebrações marcavam a demonstração coletiva de fidelidade à dinastia governante e ao rei recentemente coroado. Ausentes fisicamente, os monarcas eram materializados simbolicamente, nos vicereinos, através da arte. O autor mostra como imagens, palavras e sons eram combinados habilmente para conformar esses eficazes espetáculos de propaganda da monarquia espanhola nas colônias. Mínguez compara, em seu artigo, as cerimônias de jura de 1747, a Fernando VI, no apogeu da colônia, e a de 1808, a Fernando VII, no ocaso do período colonial. O autor sustenta que, apesar de celebradas em dois momentos significativamente distintos da ordem monárquica espanhola, a cerimônia de juramento manteve sua eficácia, mesmo na conjuntura de 1808, de crise aguda, “quando a situação política da monarquia espanhola era insustentável”.
O artigo de Fabiana de Souza Fredrigo, As guerras de independência, as práticas sociais e o código de elite na América do século XIX: leituras da correspondência bolivariana, revela as contribuições do próprio Símon Bolívar na construção dos mitos em torno de sua figura. A construção do mito Bolívar começou, também, a partir dos textos escritos pelo próprio líder das guerras de independência. Nesse sentido, ganha ainda mais pertinência a análise da correspondência de Bolívar, na qual essa construção da imagem de si mesmo, para a posteridade, começou a se estabelecer. A autora analisa, em seu texto, o vasto epistolário de Simón Bolívar, produzido entre os anos de 1799 e 1830 – mais de 2800 cartas -, demonstrando os vínculos entre a escrita de cartas, a memória e a historiografia.
Stella Maris Scatena Franco dedica-se a analisar – em artigo intitulado Gertrudis Gómez de Avellaneda entre Cuba e Espanha: relatos de viagem e ambivalências em torno da questão da identidade nacional – os relatos de viagem da escritora Gertrudis Gómez de Avellaneda (1814-1873), que nasceu em Cuba, mas viveu muitos anos na Espanha. O artigo mostra as ambivalências presentes no discurso de Avellaneda em relação à sua identidade nacional. Escritora de dois mundos – o cubano / antilhano e o espanhol / europeu -, Avellaneda, como revela Stella Franco, situou-se em meio ao debate na ilha de Cuba em torno da luta pela independência. A autora analisa também os debates políticos e literários em torno da sua personagem, tanto no século XIX como em reflexões mais recentes. No caso das últimas, ganham relevo as análises que procuram compreender o lugar e as possíveis peculiaridades da escrita feminina.
O artigo de Mary Junqueira, Ciência, técnica e as expedições da marinha de guerra norte-americana, U. S. Navy, em direção à América Latina (1838- 1901), também analisa relatos de viagem do século XIX – além de relatórios -, mas de natureza distinta daqueles analisados por Stella Franco. A partir do levantamento das expedições realizadas pela U. S. Navy – a marinha de guerra dos Estados Unidos – em direção à América Latina, no século XIX, a autora faz uma análise dos objetivos e significados das doze viagens realizadas pela U.S. Navy para a América Latina entre 1838 e 1901. Mary Junqueira mostra que, no período anterior à Guerra Civil, o interesse da marinha recaiu principalmente sobre a América do Sul e o Pacífico, revelando claramente o empenho norte-americano em “conhecer, mapear e apreender as possíveis possibilidades comerciais” dos territórios visitados, isso desde a década de 1830. No caso das viagens à América Central, no período posterior à Guerra Civil, o objetivo fundamental foi a busca pelo lugar mais adequado à construção do canal interoceânico, empreitada ambiciosa que foi finalmente concluída em 1914, com o término da construção do Canal do Panamá, sob estrito controle dos Estados Unidos.
A história norte-americana também é alvo do interesse de Cecília Azevedo, no artigo Amando de olhos abertos: Emma Goldman e o dissenso político nos EUA, particularmente a trajetória de Emma Goldman – militante anarquista, pacifista e feminista nos Estados Unidos, entre fins do século XIX e as primeiras décadas do século XX. A autora recupera Emma Goldman, inserindo-a numa tradição de dissenso nos Estados Unidos. Cecília Azevedo contextualiza a trajetória de Goldman dentro do debate político norte-americano da sua época, além de analisar como a memória e o legado de Goldman foram recuperados na década de 1960 e em anos recentes, em meio à crescente oposição às intervenções norte-americanas no Vietnã e no Iraque, respectivamente. O debate sobre o lugar de Emma Goldman – lituana de família judia que escolheu o exílio como uma forma de livrar-se das perseguições do regime czarista – na história dos Estados Unidos relaciona-se, como mostra Cecília Azevedo, às disputas políticoideológicas em torno da identidade nacional norte-americana e de seus mitos fundacionais.
Andrés Kozel, por sua vez, dedica-se, em artigo intitulado En torno a la desilusión argentina, a um tema muito presente no debate intelectual argentino – principalmente na primeira metade do século XX: a discussão sobre o suposto “fracasso argentino”. O autor rediscute a bibliografia que aborda o tema e analisa obras de cinco intelectuais argentinos que endossaram a idéia do “fracasso”: Lucas Ayarragaray, Leopoldo Lugones, Benjamín Villafañe, Ezequiel Martínez Estrada y Julio Irazusta. Ao contextualizar a produção dos cinco autores, Kozel mostra como a concepção de que a Argentina havia “fracassado” foi ocupando o lugar, antes hegemônico, de uma pretensa “grandeza argentina”, denominada pelo autor de “ilusão argentina”.
O artigo de Gabriela Pellegrino Soares, Novos meridianos da produção editorial em castelhano: o papel de espanhóis exilados pela Guerra Civil na Argentina e no México, é mais um exemplo de pesquisa que procura ressaltar as circulações culturais e as histórias conectadas. A autora analisa o impacto da Guerra Civil Espanhola (1936-1939) sobre a produção editorial na Argentina e no México a partir dos últimos anos da década de 1930. O enfoque recai, principalmente, sobre as contribuições de exilados espanhóis para o incremento da indústria editorial argentina e mexicana.
Os três últimos artigos abordam períodos recentes da história latinoamericana. Priscila Antunes e Patricia Funes analisam os sistemas de inteligência das últimas ditaduras militares no continente, abordando, respectivamente, os casos chileno e argentino. Waldo Ansaldi, por sua vez, dedica-se a analisar a situação política argentina dos últimos anos.
Priscila Antunes, em seu artigo O sistema de inteligência chileno no governo Pinochet, faz, inicialmente, um histórico acerca dos serviços de informação e das comunidades de inteligência no mundo ocidental para, em seguida, debruçar-se sobre o caso chileno, durante a ditadura militar chefiada pelo general Augusto Pinochet. A autora analisa a estrutura interna da comunidade de inteligência chilena e destaca seu papel, central, nos mecanismos de controle e repressão da ditadura militar chilena (1973-1989).
O artigo de Patricia Funes, “Ingenieros del alma”. Los informes de los Servicios de Inteligencia de la dictadura militar argentina sobre América Latina: canción popular, ensayo y ciencias sociales, analisa os informes dos serviços de inteligência argentinos – em particular, aqueles contidos no arquivo da extinta Direção de Inteligência da Polícia da Província de Buenos Aires (DIPBA) – sobre a produção artística e intelectual acerca da América Latina, durante a última ditadura militar argentina (1976-1983). A autora analisa os informes dirigidos, principalmente, a controlar e censurar a produção de canções populares, ensaios e obras (livros, artigos e revistas) de cientistas sociais. Patricia Funes parte da “hipótese que o conceito ‘América Latina’ é conotado a priori como ‘subversivo’, ‘comunista’ e ‘revolucionario’ ”. Sendo assim, toda a produção cultural que se propunha a discutir e a pensar a América Latina era colocada, a princípio, sob suspeição. A autora sustenta que a força desses mecanismos repressivos contribuiu para afastar as ciências sociais argentinas da América Latina, com repercussões até o presente. E acredita que, provavelmente, algo similar teria ocorrido nos demais países da região submetidos a ditaduras militares.
As reflexões de Patricia Funes sobre o último período ditatorial na Argentina nos levam a pensar sobre a trajetória da produção intelectual brasileira sobre a América Latina. Se na década de 1960, em razão de vários fatores – entre eles, sem sombra de dúvida, o impacto político-cultural da Revolução Cubana -, foi evidente o crescimento do interesse e da produção artísticointelectual brasileira sobre a América Latina e acerca do lugar do Brasil no continente, a forte repressão desencadeada pelo regime militar a esses artistas e intelectuais, e a censura a toda essa produção, tiveram efeitos mais duradouros do que, num primeiro olhar, poderíamos reconhecer.
Waldo Ansaldi, em seu artigo Tanto andar a los mandobles para terminar a los besuqueos. Acerca de la relegitimación de los políticos argentinos, dedica-se a analisar a história política recente da Argentina, com ênfase nos últimos anos, a partir de dezembro de 2001. Ansaldi discute a crise de legitimação dos partidos e dos políticos argentinos em 2001 e a possível relegitimação nas eleições de 2003. O artigo é um competente exemplo de história do tempo presente e de análise de conjuntura, na interface da história com a ciência política.
Complementam o dossiê as resenhas dos livros, recentemente publicados, de autoria de Gabriela Pellegrino Soares, Semear horizontes: uma história da formação de leitores na Argentina e no Brasil, 1915-1954 – por Sílvia Cezar Miskulin -, e a coletânea organizada por Marcela Croce, Polémicas intelectuales en América Latina: del “meridiano intelectual” al caso Padilla (1927-1971) – por Adriane A. Vidal Costa. As obras constituem relevantes contribuições para a história cultural e intelectual da América Latina.
Esperamos ter colaborado, com esse dossiê de Varia Historia, para incrementar, ainda mais, o interesse pela História das Américas no Brasil e, também, para aprofundar o intercâmbio com pesquisadores de outros países. Agradecemos a todos os autores que nos brindaram com seus textos.
Belo Horizonte, inverno de 2007.
Kátia Gerab Baggio – Organizadora. Departamento História / UFMG. E-mail:
kgbaggio@fafich.ufmg.br
BAGGIO, Kátia Gerab. Apresentação. Varia História, Belo Horizonte, v.23, n.38, jul. / dez., 2007. Acessar publicação original [DR]