A história da destruição cultural da América Latina: da conquista à globalização | Fernand Báez

A história da destruição cultural da América Latina: da conquista à globalização é um dos estudos mais completos sobre o continente americano. O autor aborda em 390 páginas a saga da conquista e da submissão dos povos nativos ao modelo politico europeu.

É uma obra intensa, fundamentada em fontes primárias, coletadas em arquivos europeus e latino-americanos. Fernando Báez analisa criticamente a destruição dos bens culturais, tradições e costumes dos povos nativos e assinala aspectos paradoxais da conquista europeia na América, como a construção do Novo Mundo. Segundo Báez, para o êxito da obra da conquista foi necessário destruir e saquear as sociedades nativas.

A proposta do autor é apresentar a invasão das terras americanas e a destruição das sociedades nativas por meio do ‘genocídio cultural’. Dessa forma, Báez tece considerações sobre a ética da conquista e o sucateamento do Novo Mundo durante os séculos XVI aos dias atuais.

O livro é bem construído metodologicamente. A coleta de dados em arquivos, bibliotecas, acervos particulares, além do apoio de estudiosos e familiares, é apresentada no início da obra, quando Báez estende seus agradecimentos a todos que o auxiliaram durante quatro anos de pesquisa. Pela intensidade da pesquisa, o livro já é um referencial teórico para a história da América.

Deve-se destacar também nesse estudo a construção de novos conceitos para explicar a trajetória da ‘conquista e destruição cultural da América Latina’ e os percalços acadêmicos enfrentados pelo pesquisador como entraves burocráticos para a consecução de uma obra instigante que se confronta com teorias já cristalizadas sobre a história do Novo Mundo. Por fi m, deve-se salientar o fragmento do brilhante discurso de Tácito sobre o sentido de devastação das culturas e a ação dos predadores do mundo.

A obra é elaborada em três partes temática se um Apêndice. Cada parte é composta de capítulos. Na primeira parte, Báez discorre sobre o saque da cultura americana, apontando as causas do ‘etnocídio’, desde o assassinato da memória, quando a estátua da deusa Coatlicue, detentora da vida e da morte dos homens, é encontrada em 1790 e levada para o pátio da Universidade do México. Naquela ocasião, após uma análise ligeira, foi sugerido que deveria ser novamente enterrada para que sua presença não despertasse a recordação da religião antiga entre os ‘indígenas insensíveis à bondade do cristianismo (p.55)’. Em 1804, o barão alemão Alexander von Humboldt, após examinar aquela arte indígena, mandou que a enterrassem. Apenas em 1982 o governo mexicano permitiu que fosse exposta ao público. O mesmo ocorreu com a descoberta da Pedra do Sol, um gigantesco monólito com um calendário asteca, encontrada na Plaza Mayor, e guardada na Catedral Metropolitana. Só a pressão popular conseguiu que a Pedra do Sol fosse levada para o Museu.

Assim como a estátua de Coatlicue e a Pedra do Sol, a memória coletiva e os imaginários astecas foram arrancados da história dos antigos mexicanos.

A História da destruição cultural das sociedades americanas estava apenas começando. Associada à ação predatória dos símbolos materiais, a Igreja inicia o processo de dessacralização da religião indígena para ressacralizar a vida espiritual através evangelização e da força da Inquisição.

Ainda na primeira parte, Báez trata da grande catástrofe que resultou na transição colonial, na censura intelectual e espiritual, além da aplicação de um programa de transculturação definitiva. Este consistiu na aplicação da educação escolástica, através dos princípios rígidos da Contrarreforma para apagar os vestígios da educação indígena dos Calmecacs, no México e dos Amautas, nos Andes. Não se esqueceram, nessa perseguição insana, da cultura africana, abatida da mesma maneira durante os longos séculos de devastação.

A segunda parte do livro focaliza do saque cultural, as guerras, comércio e a implantação do império. Báez discorre sobre os estragos, os primeiros butins e alcança o século XX com o saque nazista. Lembra o Holocausto, a aniquilação sistêmica de milhares de judeus e, sobretudo, o memoricídio, quando milhões de bens culturais tangíveis e intangíveis foram destruídos em expurgos inimagináveis (p.208).

Báez traça um paralelo com a destruição mundial e lembra os saques dos chineses, as questões da Palestina a Sarajevo, além dos ataques à Bamyane à Bagdá.

Na terceira parte, o autor discute a Transculturação e o Etnocídio na América Latina, enfatizando a fatalidade da memória, os esquecimentos e sobretudo, a identidade cultural. No capitulo III apresenta os novos conceitos introduzidos para análise da destruição cultural da América Latina, destacando etnocídio, memoricidio, aculturação e transculturação. Enfatiza também a estratégia do predador, assinalando que a primeira coisa que se ataca numa guerra, entendidas como contenda, confusão e discórdia, é a memória coletiva. Assim, analisa guerra como a arte de confundir o inimigo (p.300) e complementa que qualquer guerra fica incompleta se não causar desconcerto por meio do ataque aos símbolos de identidade, que são fundamentais para a resistência. Dessa forma, a hegemonia, entendida como a supremacia de um estado ou grupo sobre o outro, requer a aniquilação dos motivos principais da resistência do adversário com propaganda ou destruição indireta ou direta (ataque psicológico ou cultural), explica Báez.

O autor conclui, em sua análise sobre a destruição cultural da América Latina, que:

  • O saque cultural foi um etnocídio e memoricídio premeditado para mutilar a memória histórica e atacar a base fundamental da identidade das populações
  • Com essa estratégia perderam- -se 60% do patrimônio tangível e intangível da região.
  • A transculturação produziu uma operação bem sucedida de alienação.

Maria Teresa Toribio Brittes Lemos.

 


BÁEZ, Fernando. A história da destruição cultural da América Latina: da conquista à globalização. Rio de Janeiro: Editora Nova Fronteira, 2010. Resenha de: LEMOS, Maria Teresa Toribio Brittes. Revista Maracanan. Rio de Janeiro, v.7, n.7, p.199-201, 2011. Acessar publicação original [DR]

 

História universal da destruição dos livros: das tábuas sumérias à guerra do Iraque / Fernando Báez

Quando criança, o escritor Fernando Báez, em virtude de seus pais trabalharem fora, passava grande parte de seu tempo enfurnado na biblioteca pública de São Félix, na região de Guayana, na Venezuela. Lá, em meio a imensas estantes, tinha nos livros seus únicos amigos. Até o dia em que a cheia de um rio inundou a pequena cidade onde morava, destruindo todo o acervo da biblioteca. De acordo com suas lembranças, aquela foi a primeira vez que vira um livro destruído: “Nunca me recuperei dessa terrível experiência (…) Consciente ou inconscientemente, o tema chegou a me obcecar”.

Creio ser, justamente, esta a expressão que melhor defina História universal da destruição dos livros, publicado no Brasil, em 2006. Isto porque Báez é um sujeito simplesmente obcecado por quaisquer fatos que envolvam o tema, atravessando de modo vertiginoso séculos de história, diferentes culturas e civilizações. Não é à toa o subtítulo de seu livro: “Das tábuas sumérias à guerra do Iraque”.

Sua viagem começa na Mesopotâmia, com os registros em argila, datados de aproximadamente 5.300 anos, quando os sumérios acreditavam na origem sobrenatural dos livros, atribuindo sua invenção à Nidaba, deusa dos cereais.

Ficamos sabendo que, na Grécia Antiga, o livro era chamado de biblos, em homenagem à cidade fenícia de mesmo nome – e que a venda de livros era conhecida como bibliothekai.

Báez mescla fatos popularmente sabidos, como o controle imposto pela Inquisição e o Bibliocausto Nazista, a exemplos pitorescos, como a mesquinharia de Isaac Newton ao plagiar e depois queimar trabalhos do astrônomo John Flamsteed, ou ainda a costumeira utilização de livros-bomba por grupos terroristas – que teriam como destinatário preferido a Casa Branca.

Entretanto, o que poderia ser o grande trunfo do venezuelano, produzindo uma obra de fôlego sobre o assunto, torna-se justamente seu ponto de maior fragilidade. Historia universal da destruição dos livros é, indiscutivelmente, resultado de uma pesquisa intensa e exaustiva, com uma impressionante riqueza de detalhes quanto a locais, nomes, descobertas, formas de escrita e técnicas de arquivamento.

O problema é que Báez faz com que o leitor saia igualmente exausto dessa experiência, imerso em uma avalanche de dados que muitas vezes denotam muito mais um preciosismo do autor do que a consistência de uma análise. Tome-se como exemplo um capítulo inteiro dedicado aos “Inimigos naturais dos livros”, em que nos deparamos com trechos como este: Em primeiro lugar, devemos mencionar os Thysanura (tisanuros), que incluem o Lepisma saccharina (traça cinza-prateada) que se distingue por sua cobertura de escamas. Tem um corpo fusiforme que culmina em três finos e compridos filamentos. De hábitos noturnos, come papel, cola, couro ou têxteis (BÁEZ, 2006, p.308).

Se por um lado há a comprovação do rigor do processo investigativo, por outro é patente o descuido em transformar o livro mais em um compêndio do que em trazer uma discussão realmente consistente. A impressão é que Báez acumulou uma tonelada de informações, sem contudo saber o que fazer com elas. O que falta em problematização sobra em enciclopedismo.

Um alento até parece surgir quando ele afirma que, na busca por uma teoria sobre a destruição de livros, descobrira como são fartos, em todas as culturas, os mitos que relatam cataclismos cósmicos para explicar a origem de tudo ou anunciar o fim do mundo, sendo recorrentes explicações permeadas pela idéia do eterno retorno.

O escritor venezuelano exemplifica isto citando várias divindades, afirmando, contudo, que, mesmo em épocas que se vangloriam pela sua racionalidade, há o emprego desse substrato para dar conta de algumas ações destrutivas, promovidas pelo homem: a exemplo da noção de instinto, que se inscreveria justamente num mito de libertação característico do homem – seu intento de se livrar da responsabilidade direta sobre sua atividade destrutiva.

Ao destruir, o homem reivindica o ritual de permanência, purificação e consagração; ao destruir, atualiza uma conduta movida a partir do mais profundo de sua personalidade, em busca de restituir um arquétipo de equilíbrio, poder ou transcendência (BÁEZ, 2006, p.23).

É aí que Báez revela, então, aquele que seria o alicerce teórico de seu trabalho: a intenção subjacente à destruição de um livro é aniquilar a memória que encerra, o seu patrimônio de idéias. O que há é a “destruição contra o que se considera ameaça direta ou indireta a um valor considerado superior” (p.24).

Considerações que não deixam de decepcionar, pelo que guardam de absoluto lugar comum. Afinal, o que há de surpreendente e inovador na idéia de que os livros não são destruídos meramente enquanto objetos físicos, e sim pelo que representam em termos de discordância e contestação aos ideais de seus detratores? A explicação de Báez é quase tão cheia de novidade quanto os papiros e tábuas de argila sobre os quais tão apaixonadamente se debruça.

Fabio Henrique Gonçalves Sousa – Graduado em História pela UEMA e em Comunicação Social (Habilitação Jornalismo) pela UFMA. e-mail: fabiojuv@yahoo.com.br.


BÁEZ, Fernando. História universal da destruição dos livros: das tábuas sumérias à guerra do Iraque. Tradução de Léo Schlafman. Rio de Janeiro: Ediouro, 2006. Resenha de: SOUZA, Fabio Henrique Gonçalves. Outros Tempos, São Luís, v.5, n.5, p.191-193, jun./2008. Acessar publicação original. [IF].