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Autores lusófonos – João Duns Scotus 1308-2008 – DE BONI (V)
DE BONI, L. A. (org.). Autores lusófonos – João Duns Scotus – 1308-2008. Porto Alegre/Bragança Paulista: EST/Edipucrs/Edusf, 2008, 382 p. Resenha de: DIAS, Cléber Eduardo dos Santos. Veritas, Porto Alegre v. 54 n. 3, p. 193-196, set./dez. 2009.
No ano de 2008 celebrou-se o sétimo centenário da morte de João Duns Scotus, o mais brilhante dos pensadores franciscanos medievais.
Entre as muitas atividades acadêmicas, que aconteceram pelos mais diversos países, cabe mencionar o volume em tela, no qual 21 autores lusófonos se fazem presentes. Organizado pelo Prof. Luis Alberto De Boni, trata-se, sem dúvida, da obra mais importante sobre Duns Scotus redigida em língua portuguesa e, assim penso eu, haverá de decorrer muito tempo antes que algo semelhante venha a ser produzido. Trabalharam como co-organizadores: Cléber E. S. Dias, Joice B. da Costa, Roberto H. Pich e Thiago Soares Leite. Antes de prosseguir este comentário, cito o nome do autor e o título de todos os textos, seguindo sua sequência interna: – João Lupi (Florianópolis): Contexto cultural da primeira formação acadêmica de João Duns Scotus. – Guilherme Wyllie (Cuiabá): A falácia de petição de princípio em Duns Scotus. – Carlos Eduardo Loddo (Montreal): Duns Scotus e os universais lógicos nas Quaestiones in Porphyrii Isagogem. – Frei Sinivaldo Tavares (Petrópolis): A teologia e seu método no prólogo da Ordinatio de Duns Scotus. – Carlos Arthur Nascimento (São Paulo): João Duns Scot e a subalternação das ciências. – Roberto H. Pich (Porto Alegre): Duns Scotus sobre a credibilidade das doutrinas contidas nas Escrituras. – Maria Leonor Xavier (Lisboa): João Duns Escoto e o argumento anselmiano. – Joaquim Cerqueira Gonçalves (Lisboa): A questão da Onto-Teologia e a Metafísica de João Duns Escoto. – César Ribas Cezar (São Paulo): Teologia positiva e Teologia negativa em Duns Scotus. – Pedro Leite (Porto Alegre): A crítica de Ockham à noção de natureza comum de Scotus. – Thiago Soares Leite (Porto Alegre): Os transcendentais em Duns Scotus. – Antonio Pérez-Estévez (Maracaibo): Duns Scotus e sua metafísica da natureza. – Maria Manoela Brito Martins (Porto): A noção de individuação em São Tomás e Duns Escoto. – Pedro Parcerias (Porto): Duns Escoto e o conceito heterogeológico de Tempo. – José Rosa (Beira-Baixa): Da relacional antropologia franciscana. – Alfredo Culleton (Unisinos): A lei natural em Duns Scotus. – Luis A. De Boni (Porto Alegre): Duns Scotus: a Política. – André Alonso (Niterói): Reditio iterata: Scotus e as bases antropológicas da ressurreição. – José Meirinhos (Porto): Escotistas portugueses do século XIV. – Mário Santiago de Carvalho (Coimbra): Duns Escoto na tradição portuguesa do século XVII. –
Examinando a ordem dos textos, percebe-se que os organizadores seguiram, na medida do possível, os caminhos da obra de Scotus, colocando inicialmente os textos referentes à lógica e, a seguir, tomam a Ordinatio como guia. Todos os textos são importantes, e não cabe aqui tentar fazer uma classificação entre eles. Limito-me, apenas, a mencionar alguns, em parte pela forma de abordagem, em parte por chamarem ao debate o pensamento moderno e alguns pela relativa raridade do tema.
O artigo de Guilherme Wyllie, tratando da questão lógica conhecida como “falácia da petição de princípio”, parte da caracterização desta como sendo uma “falácia caracterizada como um argumento em que as premissas pressupõem a verdade ou admissibilidade da conclusão” (p. 15). O autor, valendo-se de inúmeros estudos contemporâneos, provenientes na maioria do mundo anglo-saxônico, mostra que, por vários motivos, tal definição não se sustenta, e passa, então, a analisar este tipo de falácia a partir de Aristóteles, o primeiro filósofo que a estudou detalhadamente. Este a examinou tanto sob o aspecto epistêmico, que postula o conhecimento das premissas independentemente do conhecimento da conclusão, quanto sob o aspecto dialético, o qual afirma que existe tal falácia quando são transgredidas certas regras do debate.
Passando do pensador grego para Duns Scotus, Wyllie afirma que Scotus não redigiu um tratado específico sobre a falácia, mas a conhece muito bem e, a partir dos textos dele, fica claro que a analisa sob o aspecto epistêmico, “segundo o qual, um argumento acometido pela presente falácia, é válido e pretende provar a respectiva conclusão, embora não o faça, por força da ausência de premissas necessárias e auto-evidentes”
Também na área de lógica é importante e, em parte, inovador, o artigo de Carlos Eduardo Loddo, que se ocupa com os universais lógicos nos comentários de Scotus a Porfírio. Loddo observa que há um consenso no modo de considerar os universais lógicos, ou segundas intenções, em Scotus, como entidades puramente semânticas. Para uns, diz ele, as intenções primeiras de Scotus são classificadas como as coisas reais, enquanto as intenções segundas são conceitos aplicáveis diretamente a estas coisas. Com isso, só as intenções primeiras se referem à metafísica, ficando as intenções segundas classificadas como tema de uma semântica pura. Para outros, já as intenções de primeira ordem são consideradas como conceitos aplicáveis às coisas naturais, ficando as de segunda ordem como conceitos aplicáveis aos conceitos de primeira ordem. Neste caso, os conceitos de ambas as ordens acabam transformados em representações subjetivas, que dispensam qualquer isomorfia entre os termos linguísticos e as coisas e acaba-se tendo uma semântica muito próxima ao nominalismo (p. 25-27). Em sua crítica, longamente desenvolvida, o autor propõe uma interpretação alternativa do texto escotista, mostrando que nele transparece o realismo do frade franciscano, inclusive e muito especificamente, com respeito aos universais lógicos. Para tanto, o jovem autor discorda, sem temor, de alguns dos mais célebres escotistas da atualidade, aos quais critica pelo fato de, em muitos casos, fazerem aproximações muito fáceis entre o pensamento medieval e o contemporâneo, principalmente aquele de proveniência analítica. Com isso ele não está negando a possibilidade e a importância de interfaces entre eles, mas é necessário ver quais delas são pertinentes e quais não passam de anacronismo, pois, “as comparações paralelas, tanto quanto as transversais, se operadas demasiado rapidamente na historiografia filosófica, conduzem ao erro” (p. 29).
Chama a atenção também o artigo de Sinivaldo Tavares a respeito da importância do Prólogo da Ordinatio. Esse texto, que não é apenas o prólogo de uma obra, mas uma espécie de Discurso sobre o Método de um teólogo medieval, podendo-se, se examinado a fundo, perceber que nesse texto recuperam-se elementos dos debates acadêmicos das décadas anteriores, principalmente os referentes à pergunta sobre o lugar da Teologia e das demais ciências no conjunto dos saberes. Scotus, como bem observa o autor, desce a minúcias, vai ao fundo nas distinções, mas não se perde nelas; pelo contrário, a cada passo vai brilhando sempre mais a originalidade e a profundidade do pensamento escotista. A conclusão que aqui mais interessa é de uma posição nova, entre teólogos, a respeito da posição da Teologia no conjunto dos saberes. “Duns Scotus se revela um autêntico defensor do pluralismo epistemológico. (…] Scotus propõe com traços firmes e claros a autonomia dos saberes em um ambiente cultural marcado por uma sadia pluralidade” (p.105). Isto era o oposto do que defendiam quase todos os teólogos de seu tempo, para os quais as demais ciências estavam subalternadas ou reduzidas à Teologia. Com razão o autor fala de algo como uma “epistemologia débil” escotista, que, por razões históricas diferentes, foi suprimida dos círculos académicos católicos, mas que hoje se abre para o diálogo com a sociedade contemporânea.
Entre os demais artigos, que percorrem praticamente todo o leque de interesses de Scotus, cabe recordar dois deles também por uma nota trágica: seus autores (António Pérez-Estévez e Pedro Parcerias) não estavam mais presentes entre nós quando o volume foi publicado.
Para brasileiros, mas também para portugueses, são importantes os textos de Mário Santiago de Carvalho e José Meirinhos, estudando o importante significado do escotismo em Portugal. O vigésimo primeiro artigo, de Cléber Eduardo dos Santos Dias, é um levantamento de tudo o que foi publicado por escotistas lusófonos durante cinco séculos.
Num trabalho de paciência, que poderia ser classificada de beneditina, Cléber Eduardo pesquisou as mais diferentes fontes, correspondeu-se com inúmeros especialistas e fez descobertas inesperadas, em cujo final surgiram 323 títulos.
Enfim, cabe uma palavra especial ao Prof. De Boni. Esse exímio medievalista definiu a ‘universidade como a casa da razão’. Sua organização teórico-metodológica dos artigos de Duns Scotus confirma, mais uma vez, sua crença no debate de idéias e aproximação de saberes.
Sílvia Contaldo
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