The Sleepwalkers: How Europe Went to War in 1914 – CLARK (LH)

CLARK, Christopher M. The Sleepwalkers: How Europe Went to War in 1914. London: Penguin Books, 2013. Resenha de: ASSIS, Jóse Luiz. Ler História, n.66, p.161-169, 2014.

1 Christopher Munro «Chris» Clark é um historiador australiano que estudou na Grammar School na University of Sydney e na Freie Universität Berlin. Desenvolve a sua carreira académica em Inglaterra como professor de História Moderna da Europa na Faculty of History, St. Catherine’s College na University of Cambridge. Os seus interesses estão direcionados para o estudo da História da Alemanha e da Europa Continental. No seu primeiro trabalho The politics of conversion: missionary Protestantism and the Jews in Prussia, 1728-1941. Oxford: University Press, que compreende o estudo de, sensivelmente, dois séculos de atividade protestante, analisa os aspectos teológico, social e racial na relação entre a maioria da população cristã e a minoria judaica na Prússia Oriental. Desde então, publicou vários artigos e ensaios sobre temas relacionados com a religião, a política e a cultura e livros dos quais destacamos: Kaiser Wilhelm II. Harlow, England & New York: Longman; Culture Wars: secular-Catholic conflict in nineteenth-century Europe. Cambridge UK & New York: Cambridge University Press; Iron kingdom: the rise and downfall of Prussia, 1600-1947. Cambridge: Belknap Press of Harvard University Press.

2 Christopher Clark, neste seu trabalho, apresenta-nos um novo olhar sobre as origens da Primeira Grande Guerra Mundial. Afasta-se do estudo das grandes batalhas e dos danos provocados pela guerra que de certo modo têm caracterizado a historiografia (Gilbert: 2013) e centra-se nos factos e nas relações políticas e diplomáticas complexas que levaram os diferentes líderes europeus ao conflito. Com um carácter marcadamente científico, mas também didático, o docente e investigador da Faculty of History da University of Cambridge sintetiza de forma pragmática, mas extremamente esclarecedora, a produção científica da sua investigação sobre as origens da Guerra realizada nos arquivos das principais potências envolvidas (Clark, 2013, p. XXVIII). A partir da narrativa dos factos e dos cortes de relação entre os principais centros de decisão política localizados em Viena, Berlim, São Petersburgo, Paris, Londres e Belgrado, recria o itinerário que levou as nações à guerra (Ibid.). Faz uma análise das décadas de história que antecederam os acontecimentos de 1914 e pormenoriza as incompreensões entre os diferentes líderes europeus que em pouco mais de um mês atiraram a Europa para uma situação de conflito (Ibid.). Percebe-se a necessidade do autor em dividir o seu livro em três partes estruturantes. Na parte I – Caminhos para Sarajevo compreende os pontos 1 e 2, Fantasmas Sérvios e Império sem Qualidades, focaliza-se no estudo dos dois antagonistas, a Sérvia e a Áustria-Hungria, seguindo pormenorizadamente a sua interação até às vésperas do assassinato de Sarajevo (Id., 2013, pp. 3-99). Na parte II – Um continente dividido compreende os pontos 3. Polarização da Europa, 1887-1907, 4. As muitas vozes da política externa europeia, 5. Envolvimentos Balkan, 6. Última oportunidade: desanuviamento e perigo, 1912-1914. Nesta parte afasta-se da abordagem narrativa dos acontecimentos para procurar responder a quatro questões em cada um dos quatro pontos: como ocorreu a polarização da Europa em blocos opostos? Como é que os Balcãs, uma região periférica afastada dos centros de poder e da riqueza da Europa, deram lugar a uma crise de enorme grandeza? E, por fim, como é que o sistema internacional, que parecia estar numa era de détente proporcionou uma guerra geral entre as nações? (Id., 2013, pp. 121-361). Na parte III – Crises, compreende os pontos 7. Assassinato em Sarajevo, 8. O alargamento do círculo, 9. Os franceses em São Petersburgo, 10. O Ultimato, 11. Tiros de aviso, 12. Últimos dias. Esta parte começa com os assassinatos do arquiduque Francisco Fernando (1863-1914) e de sua mulher Sofia Shotek (1868-1914) em Sarajevo e apresenta uma narrativa da crise de julho de 1914. Examina as interações entre os centros políticos, referenciando as decisões que proporcionaram o evoluir da crise (Id., 2013, pp. 367-562). É um argumento central deste livro que os acontecimentos de julho de 1914 só fazem sentido quando analisados a partir das medidas dos principais decisores. Nesse sentido, o autor mais do que simplesmente rever as consequências da crise internacional que antecedeu o início da guerra, procurou entender como é que esses eventos foram produzidos em narrativas que estruturaram as percepções e motivaram os diferentes comportamentos e reconstrói as posições ocupadas pelos principais atores durante o Verão de 1914 (Id., 2013, p. XXIX).

3 Sobre as origens da Guerra, Clark começa por afirmar que os in-
vestigadores devem ter em atenção as interações multilaterais entre as cin-
co grandes nações (a Alemanha, a Áustria-Hungria, a França, a Rússia e a Grã-Bretanha) e a Itália e outros atores soberanos estrategicamente importantes como o Império Otomano e os Estados da Península Balcânica, região de grande tensão e instabilidade política nos anos que precederam a guerra (Id., 2013, p. XXIV). Esta perspectiva é também considerada por MacMillan (2014, pp. 541, 573-612) no seu recente estudo A Guerra que Acabou com a Paz. Contudo, Gilbert (2013) no seu trabalho a Primeira Grande Guerra, afasta-se desta ótica e concentra-se especificamente nos paradigmas da guerra.

4 Clark (2013, p. XXIV) alerta para outro aspecto que considera importante: o facto de as políticas dos Estados envolvidos não serem totalmente transparentes. As estruturas de soberania que criaram e implementaram as políticas durante a crise estavam extremamente desunidas o que criou incertezas quanto à localização do poder que moldava a política dentro dos executivos (Ibid.). As políticas não vinham diretamente do topo do sistema político, podiam emanar de pontos periféricos: do aparelho diplomático, da hierarquia militar, de funcionários ministeriais e de embaixadores que muitas vezes eram os decisores políticos (Ibid.). Neste contexto, também MacMillan (2014, p. 23) alerta para os aspetos relacionados com as forças, as ideias, os preconceitos, as instituições, os conflitos e, obviamente, os atores políticos que tinham o poder de decisão de desencadear ou de parar a guerra. Clark (2013, p. XXIV) anota a sua preocupação com as fontes existentes na medida em que em consequência da sua natureza ajudam a explicar a diversidade de estudos e interpretações sobre as origens da Guerra. Realça que as publicações documentais europeias alemãs, austríacas, francesas, inglesas e soviéticas, além do seu inegável valor histórico para a compreensão dos acontecimentos que levaram à guerra, contêm omissões tendenciosas que criaram uma imagem desequilibrada do papel de cada nação nos acontecimentos do prelúdio da Guerra (Id., 2013, p. XXI). Do mesmo modo, as «memórias» de estadistas, de militares e de outros decisores, embora indispensáveis, também são problemáticas (Ibid.). Algumas são mesmo duvidosas em questões importantes. Clark dá-nos como exemplo: as reflexões sobre a Guerra publicadas em 1919 pelo chanceler alemão Theobald von Bethmann Hollweg (1856-1921) pouco referem sobre os assuntos em que ele e os seus colegas estiveram envolvidos durante a crise de julho de 1914; as «memórias» políticas do ministro das Relações Exteriores da Rússia, Sergey Dmitrievich Sazonov (1860-1927), são intermitentemente falsas, pomposas e desprovidas de informação sobre a sua ação nos assuntos mais sensíveis; as «memórias» do presidente Raymond Poincaré (1860-1934) publicadas em dez volumes são propagandísticas e encerram discrepâncias entre o recordar dos acontecimentos durante a crise e os apontamentos no seu diário; as «memórias» do British Foreign secretary Sir Edward Grey (1862-1933) são vagas sobre a delicada questão dos compromissos que tinha assumido com as potências da Entente antes de agosto de 1914 e o papel desempenhado durante a crise (Id., 2013,
p. XXII). Muito permanece desconhecido acerca dos contactos entre Viena e Berlim quanto às medidas a tomar em resposta aos assassinatos de Sarajevo. As atas da reunião realizada em junho de 1914 em São Petersburgo entre os líderes políticos franceses e russos, que são da maior importância para se compreender esse momento, nunca foram descobertas e os responsáveis diplomáticos franceses não encontraram a versão francesa (Id. 2013, p. XXIV). Esta documentação sobre as origens da Grande Guerra consultada e divulgada por Christopher Clark representa um incomensurável acervo colocado à disposição dos investigadores para apoio à elaboração dos seus estudos.

5 Clark (2013, p. 3) deu início à sua obra sobre as causas da origem da Primeira Grande Guerra Mundial com o assassinato de Alexandre I (1876-
-1903) rei da Sérvia e da rainha Draga (1864-1903) em Março de 1903 pela rede terrorista secreta «Mão Negra» que anos depois, em Sarajevo, capital da província Austro-Húngara da Bósnia e Herzegovina, estaria envolvida no assassínio do arquiduque Francisco Fernando (1863-1914) a 28 de junho de 1914, o que daria origem ao conflito militar mais sangrento da Europa.

6 Na primeira parte do livro delineia os contornos do sistema internacional, em que a Europa em 1913 parecia estar a entrar num período de détente (Id. 2013, pp. 3-118). Partes da história são familiares: a Aliança Germano-Austríaca (1879); a Aliança Franco-Russa (1894-1917); a Entente Cordiale entre a França e a Grã-Bretanha (1904); e o mais dramático de tudo a Entente Anglo-Russa ou Convenção Anglo-Russa (1907) entre os antigos adversários, a Grã-Bretanha e Rússia. De forma brilhante coloca o conflito no contexto da época, mostrando como nos momentos que precederam 1914 a Europa estava numa situação instável e dilacerada por fações étnicas e nacionalistas (Id., 2013, p. XXVI). Esta ideia de uma Europa despedaçada está presente em estudos realizados por Gilbert (2013, pp. 29-49) e MacMillan (2014, p. 22).

7 Devemos ter presente que recentemente, os estudiosos das origens da Grande Guerra acreditavam que a questão da destruição de séculos de progresso técnico e científico na Guerra de 1914-1918 estava resolvida com a opinião de que a Alemanha teria avançado para o conflito temendo o crescente poder Russo (Stone: 2011, 30). Esta corrente germanocentrica começou a perder sentido com os estudos que têm vindo a ser publicados, nomeadamente por Clark nesta sua obra onde é restabelecida a importância dos Balcãs num conflito militar que teve o seu início a 28 de Março de 1914 com o assassinato em Sarajevo. O autor, além de outros pontos, descreve o crescimento do antagonismo entre a Áustria-Hungria e a Sérvia, passando pela anexação da Bósnia-Hersegovina em 1908 e as Guerras Balcânicas de 1912-1913 em que a Sérvia conseguiu aumentar a sua área territorial. Faz uma descrição da diplomacia europeia como se de uma peça de teatro do dramaturgo Harold Pinter se tratasse na qual todas as personagens se conhecem muito bem umas às outras, mas não se estimam (McMeckin, 2014, p. 4). Estabelece o seu ponto de vista numa discussão «hipertrófica de masculinidade» em que os intérpretes são todos homens, contrariamente ao que acontecera anos antes em que predominavam as mulheres de Estado (Idid.). Laqueur (2014, pp. 11-16) acha a discussão de Clark em torno da «crise de masculinidade» pouco convincente porque é muito difícil de afirmar se Bismark era mais seguro na sua masculinidade do que von Moltke. Contudo, os problemas com a «masculinidade» têm estado no centro das guerras desde o século XII a.C. (Id., 2014, p. 8). Parece-nos fazer mais sentido o argumento levantado por MacMillan (2014, pp. 22, 26-27) relacionado com as exigências impostas pela honra e pela virilidade que implicavam não recuar nem demonstrar sinais de fraqueza, ou o darwinismo social que classificava as sociedades humanas como se fossem espécies e promovia a fé não só na evolução e no progresso, mas também na inevitabilidade da luta. Devemos estar conscientes que se estava na presença de uma sociedade bélica, guerreira que aparentemente não é relevada pelo autor.

8 No entender de Clark (2013, p. XVI) a crise de julho de 1914 e o assassinato em Sarajevo são tratados em muitos estudos como um mero pretexto – uma ocorrência com pouca influência sobre as forças que originaram o conflito. Esta ideia tem vindo a ser alterada, nomeadamente com o estudo de MacMillan (2014, pp. 663-697) que lhe atribui especial importância. Trabalhos recentes mostram que não foram os acontecimentos em si mesmos que levaram à guerra, mas o uso que foi feito desse acontecimento (assassinato em Sarajevo) é que levou as nações ao confronto militar (Richar & Holguer: 2004, p. 46). MacMillan, (2014, p. 672) entende que o assassinato de Sarajevo foi o momento oportuno para a Áustria-Hungria resolver a questão dos eslavos do sul, o que significava a destruição da Sérvia e o primeiro momento para a afirmação do domínio Austro-Húngaro nos Balcãs. Clark, (2013, p. XVI) procurou compreender a crise de julho de 1914 como um evento contemporâneo, no seu dizer o mais complexo dos tempos contemporâneos e talvez de todos os tempos. Está mais interessado em compreender como é que a guerra aconteceu do que saber a razão do seu surgimento. Essa visão levou o autor a abordar o acontecimento em duas vertentes distintas. As questões de «como» e «porquê», embora inseparáveis, levam-nos em diferentes direções. A questão do «como» levou o autor a dirigir a sua atenção para a sequência das interações que produziram determinados resultados. A questão do «porquê» dirige-nos para as causas remotas – o imperialismo, o nacionalismo, o armamento, as alianças, a alta finança, as ideias de honra nacional, a mecânica de mobilização. Laqueur (2014, pp. 11-16) também partilha da ideia de que a guerra teve grandes causas: a crise do imperialismo; o nacionalismo em finais do século XIX; a corrida ao armamento; o sistema de alianças; as políticas internas de esquerda e direita; e como referiu o professor Arno Mayer as grandes pressões que começaram a varrer os velhos regimes da Europa em 1789 e finalmente o conseguiram em 1918 (p. 4). Também a historiadora MacMillan (2014, p. 22) aponta nesse sentido.

9 Na análise de Clark, (2013, p. XXV) complexa, brilhante e esclarecedora, podemos ver debatida a ideia de se atribuir a culpabilidade da tragédia apenas a uma nação – a Alemanha. A este respeito importa salientar que também a historiadora MacMillan (2014, pp. 32-33) levanta a questão da culpabilidade da guerra, uma guerra, em que os diferentes Estados proclamavam a sua inocência e apontavam o dedo uns aos outros. Stone (2011, p. 30) por seu lado, indica dois aspectos que poderão tê-la precipitado: a construção da marinha alemã (perfeitamente desnecessária) cujo propósito era atacar a Grã-Bretanha e os militares alemães que queriam claramente uma Guerra, sendo surpreendidos depois no dia 31 de julho pela mobilização geral de São Petersburgo. Clark analisa e evidencia a ação dos diferentes atores em termos de carácter, influência política interna e externa e também de percepção geopolítica. Coloca a ação humana com todas as suas fraquezas, equívocos, falta de lógica e emoções na narrativa dos acontecimentos. Recria as diferentes alianças e crises que antecederam o assassinato do arquiduque Francisco Fernando para depois destacar o elemento humano cujos erros originados pelas más decisões levaram ao detonar da catástrofe mundial.

10 A mestria das últimas duzentas páginas de Os Sonâmbulos está na autoridade científica com que o autor nos elucida de como o desastre aconteceu. Releva que a 6 de julho a Alemanha parecia falar a uma só voz em resposta às súplicas austro-húngaras que o Kaiser Guilherme II e o seu chanceler Theobald von Bethmann-Hollweg (1856-1921) prometeram apoiar, garantindo que o exército estava pronto. Esta ideia sugere que, contrariamente à falta de planos de guerra e mesmo de uma guerra localizada, os líderes alemães demonstram que o seu exército estava preparado para um eventual conflito militar. Foi a conhecida situação do designado «cheque em branco» da Alemanha que alguns historiadores defendem que precipitou a eclosão da guerra (MacMillan: 2014, 705). Contudo, para Clark, (2013, pp. 469-470) existem fortes sinais de que a Alemanha não pretendia a Guerra, mas antes limitá-la a uma guerra local entre a Áustria-Hungria e a Sérvia. Acrescenta que o exército alemão não tinha elaborado os seus planos para uma guerra geral e o Kaiser acreditava que o conflito seria realmente localizado. MacMillan (2014, p. 18) contraria essa ideia e anota que, de facto, a Alemanha tinha planos que implicavam uma guerra em duas frentes, com uma ação de contenção contra a Rússia, o inimigo do leste, e uma rápida invasão e derrota da França a oeste. Entretanto, os alemães esperavam que a Bélgica, país neutro, aceitasse a situação tranquilamente, enquanto as tropas alemãs atravessassem o seu território em direção ao Sul. Essa suposição revelou-se errada, as autoridades belgas decidiram resistir, o que destruiu as pretensões alemãs e levou a Grã-Bretanha, depois de alguma hesitação, a entrar na guerra contra a Alemanha (Id., 2014, p. 18 e 29).

11 Devemos ter presente que a elite militar alemã tinha o exército organizado de modo a que em 17 dias conseguiria colocar 3.000.000 de soldados, 86.000 cavalos, peças de artilharia e respectivas munições em prontidão operacional na fronteira (Stone: 2011, p. 31). Esta versão de MacMillan e de Stone que corroboro, contraria Clark quanto à inexistência de um plano geral de guerra alemão e revela-nos que a Alemanha tinha planos de ação para um conflito de grandes dimensões. Tendo como suporte as opiniões de MacMillan e Stone consideramos que qualquer uma das grandes potências atuais com todo o seu poder científico e tecnológico dificilmente colocaria no mesmo período temporal aquele número de efetivos em prontidão operacional. Nenhuma nação do mundo prepara um efetivo militar daquela dimensão se não tiver objectivos políticos-militares muito precisos.

12 Na Alemanha, também não se entendeu o significado do afastamento do primeiro ministro russo Vladimir Nicolayevich Kokovtsov (1853-1943). Tanto os russos como os britânicos acreditavam que o partido pro-alemão estava em ascensão. Se os russos, de facto, pretendiam aproveitar a ocasião para entrar numa guerra, o momento seria oportuno, uma vez que era melhor nesse momento do que mais tarde. A Alemanha tinha cooperado com a Grã-Bretanha nos Balcãs e, por esse motivo, acreditava que a Inglaterra não se envolveria.

13 O outro aspecto tem a ver com o ultimatum Austro-Húngaro à Sérvia enviado a 23 de julho com as exigências ao governo do reino da Sérvia que poderia ter sido um documento muito diferente. O primeiro lorde do almirantado britânico Winston Churchill escreveu à sua mulher que a Europa «tremia na eminência de uma guerra geral» e que o ultimatum era «o mais insolente documento do seu género alguma vez imaginado» (Gilbert: 2013, p. 60) cujo objetivo seria a criação de um «casos belli» com a Áustria-Hungria a invadir e a punir a Sérvia. A ousadia das exigências referidas no ponto 5 e 6 do ultimatum, frequentemente referido como um impedimento ao compromisso, era uma certeza de um conflito nos Balcãs e, de forma mais ampla, eventualmente uma guerra Mundial. O primeiro deles exigia que a Sérvia permitisse «Aceitar a colaboração de organizações do governo Austro-Húngaro na supressão de movimentos subversivos direcionados contra a integridade territorial da monarquia» e o segundo a «Iniciar uma investigação judicial contra os cúmplices da conspiração de 28 de junho que estão em território sérvio, com órgãos delegados pelo governo Austro-Húngaro fazendo parte da investigação». A França, a Rússia e Belgrado entenderam a atitude da Áustria-Hungria como um ultraje sobre a soberania Sérvia e que o ultimatum era uma declaração de Guerra. Segundo Clark (2013, p. 303) o ultimatum austríaco violou menos a soberania Sérvia que o Acordo de Ramboillet 1999, que Henry Kissinger entendeu como «uma provocação uma desculpa para iniciar o bombardeamento». Para Clark (2013, p. 385) não está claro que foi o papel da Sérvia no plano de 28 de junho e o seu cumprimento que originaram a situação. Além disso, parece que o primeiro ministro sérvio Nikola P. Pašić e os seus colegas estavam concentrados no ultimatum e em evitar uma guerra. Para o autor, foi o pedido de resistência da Rússia à Sérvia e a mobilização do exército que mudaram a situação. Enquanto isso, representantes franceses e russos reuniam-se em São Petersburgo. Aconteceu que mesmo depois disso ocorreram alguns momentos de indecisão (2013, p. 426).

14 A 29 de julho, na resposta ao famoso telegrama «Querido Nicky», o Czar Nicolau II não podia assinar a ordem de mobilização geral, mas finalmente a 30 de julho assinou (p. 352). Segundo Clark (2013, pp. 358-361), os líderes britânicos, depois de várias hesitações e expetativas de se conter a guerra quanto à invasão da Bélgica pela Alemanha, que aliás não consideravam um «casos belli» desde que o exército alemão ficasse a sul da linha Sambre-Mense, a 4 de julho declaravam guerra à Alemanha e a Entente fortalecia a sua aliança.

15 Na sua conclusão, Clark apresenta uma explicação geral e esse é o ponto em que Laqueur entende que Clark está errado. Para Clark (2013, p. 562) os «Protagonistas de 1914» eram sonâmbulos, vigilantes mas adormecidos, assombrados por sonhos, ainda não despertos para a realidade do horror que estava prestes a trazer ao mundo. Para Laqueur (2014, pp. 11-16), há três aspectos errados em tudo isso. Em primeiro lugar, os «passos calculados e vigilantes» de que nos fala ao longo das páginas não constituem sonambulismo. Em segundo lugar, a evidência que Clark mostra para a falta de visão dessa época não é mais do que um gesto baseado num artigo de auto-congratulação publicado em Le Figaro de 5 de Março de 1913 no qual se exalta a «força terrível» das armas francesas e a organização médica da Nação. Em terceiro, de acordo com Laqueur (2014,
pp. 11-16) era mais fácil não dar importância aos horrores provocados por uma guerra convencional do que seria nos momentos posteriores a uma guerra nuclear. Por isso, a Guerra Fria foi a maior guerra da história do mundo e houve maior sensibilidade dos atores políticos para os horrores que podia provocar do que houve nos decisores que levaram, na altura, à Primeira Grande Guerra (Ibid.).Ver o artigo de Le Figaro como sonambulismo é não perceber a questão importante do porquê dos contemporâneos perfeitamente alerta imaginarem o curso da guerra de forma confiante e não conseguirem ver as evidências de que a guerra seria horrorosa (Ibid.). Os protagonistas europeus que tiveram responsabilidades na guerra deveriam saber que a Guerra Civil Americana tirou a vida a centenas de milhares de homens quando em campos abertos progrediam contra o fogo das armas inimigas. Posto isto, Laqueur reforça a sua crítica, lembrando que a História da imaginação não é uma história de Sonambulismo (Ibid.).

16 Os Sonâmbulos é uma obra muito estimulante que combina uma investigação minuciosa com uma análise sensível dos acontecimentos que levaram a Europa a um conflito cruel. Pela extraordinária organização, quantidade e qualidade das fontes consultadas e natureza científica dos seus conteúdos apresentados, é um estudo que os futuros investigadores das origens da Primeira Grande Guerra Mundial não poderão deixar de consultar.

17 Como a obra de Barbara Tuchman The Guns of August publicada em 1960, foi uma referência para o seu tempo, também Os Sonâmbulos é um livro para os tempos de hoje quanto ao seu realce e contingência no que diz respeito ao que o autor designa de múltiplos «mapas mentais».

José Luís Assis – CEHFCi – UE. IHC – UN. E-mail: joselassis@gmail.com.

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