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Angus: o primeiro guerreiro. Livro um | Orlando Paes Filho
As narrativas de antigos guerreiros sempre fascinaram o ocidental moderno. Desde o romantismo, diversos romances foram escritos sobre façanhas ancestrais, elegendo principalmente a Idade Média como cenário para tal aventuras. Mas os denominados povos “bárbaros” – celtas, germanos e eslavos – sempre ocuparam uma posição secundária nestas literaturas. Foi somente no século XX que os escritores descobriram o universo encantador das obscuras etnias que sempre estiveram “à margem da civilização”.
Em seu lançamento de estréia, Angus, o escritor brasileiro Orlando Paes Filho realizou um projeto editorial ousado, com uma produção gráfica impecável e um monumental apoio de pesquisa. O livro conta a primeira etapa da formação do clã escocês MacLachlan, acompanhado de belas ilustrações e diversos mapas históricos ao final do texto. A condução da narrativa é bem feita, cativando em muitos momentos a imaginação do leitor. As cenas de batalha, desde seus preparativos até a sua sequência final, são maravilhosas, demonstrando um grande conhecimento do autor sobre a guerra nos tempos antigos. Aliás, a preocupação em conseguir definir um contexto histórico com mais precisão por toda a narrativa, levou o autor a solicitar apoio de acadêmicos, como o de alguns medievalistas brasileiros, alem de pesquisadores em arte sacra, como Marcelo Bertani. Mas devido ao fato da primeira parte da obra utilizar principalmente referências sobre a cultura Viking – praticamente desconhecida da academia brasileira – a obra acabou cometendo inúmeros erros, anacronismos, concepções moralistas e interpretações equivocadas, o que acabou comprometendo a qualidade geral do romance.
Em primeiro lugar, encontramos muitos erros etimológicos no texto, como por exemplo a utilização da palavra drakkar como sendo própria da cultura Viking (p. 31). Na realidade, ela surgiu de uma expressão latinizada na França, e a expressão original em Old Norse é Langrskip (navio longo, Haywood, 2000, p. 171). Já com relação à palavra Viking, no texto menciona-se “homens do norte, que chamavam a si mesmos de vikings” (p. 29). Recentemente, o especialista Jesse Byock demonstrou que o termo não designava originalmente os habitantes da Escandinávia, ou seja, eles não auto conclamavam-se com essa expressão. Ela era empregada para qualquer tipo de pessoa que navegava além mar, seja para motivações de pirataria, comércio pacífico e colonização (Byock, 2001, p. 11-13). Na mesma página, outro erro etimológico: “jarl, palavra da língua deles que significava exatamente comandante”. Porém, em Old Norse ela é traduzida como “conde” ou “lorde”, e segundo Haywood, originalmente significava “meant simply prominent man” (2000, p. 181). Para nomear as sacerdotisas das runas (p. 85), o autor utilizou a palavra “anjos da morte”, utilizada pelo árabe Ibn Fadlan no século IX d.C. e popularizada pelo filme “O 13º guerreiro”. Seria melhor utilizar a expressão original, spá-kona (mulher que conta o destino) ou völva (profetisa) (Boyer, 1981, p. 145).
Continuando a análise do livro, encontramos diversas interpretações incorretas. Logo no início, o autor descreve uma reunião de druídas, sacerdotes da religião celta, onde um monge cristão participa para revelar uma profecia (p. 11-22). A mesma situação se repetirá no desfecho, onde no círculo megalítico de Stonehenge, em meio a monges cristãos, um sacerdote druida oferece a Angus uma espada feita com os cravos da cruz de Cristo. Um situação totalmente impossível, do ponto de vista histórico. Representantes do paganismo nunca permitiriam a participação de cristãos em seus cultos, ainda mais num local muito significativo para as religiões pré-cristãs da Inglaterra, as ruínas de Stonehenge.
Com relação aos marinheiros Vikings, Paes Filho afirma que temiam a grande serpente marinha, Jormungandr, assim como os deuses oceânicos (p. 54). Nada mais incorreto. Esse monstro marinho não era temido, e sim respeitado pelos nórdicos, um verdadeiro símbolo da ordem e do caos no universo (Boyer, 1997, p. 435). Quanto aos deuses primordiais do oceano, Aegir e sua mulher Rán (depois substituidos em importância por Njörðr), eram aplacados facilmente com o transporte de peças de ouro nos navios (Boyer, 1981, p. 136). Aliás, em nosso conhecimento dos escandinavos medievais, podemos afirmar categoricamente que eles não temiam nada!
Outro equívoco do autor é a descrição do ritual Blóðörn (asa de águia) como sendo uma prática específica de um filho para vingar o pai morto. Na realidade, era um ritual utilizado para honrar o deus supremo, Óðinn, e também praticado em criminosos e prisioneiros de guerra (Boyer, 1981, p. 160).
Dois momentos do romance são puramente anacrônicos. No primeiro, o pai de Angus torna-se possuído por um sentimentalismo típico do mundo moderno, de origem hebraico-cristão: “Ninguém mais vai torturar prisioneiros que já foram derrotados e que não têm como se defender!” (p. 113). A prática de oferecer prisioneiros de guerra para rituais ao deus Óðinn era muito comum entre os nórdicos (tanto por afogamento, queima, enforcamento e pelo asa de águia), e de maneira nenhuma podemos considerála sádica, e sim, característica de uma cultura voltada essencialmente ao culto da guerra, ao belicismo e as consequências simbólicas na vitória dos conflitos (Boyer, 1981, p. 158-162). Em outro momento, Angus chora a morte do pai Seawulf (p. 138). Outra situação impensável para um guerreiro Viking e para os bárbaros germânicos em geral, pois mesmo diante da própria morte portavam-se sempre sorridentes e cômicos (Brøndsted, s.d., p. 236).
Comentando sobre antigos reis da Germânia e sua suposta descendência de Woden (Óðinn para os Vikings), Angus se revela perplexo: “Achei impossível e até engraçado alguém descender do próprio Odin” (p. 150). Era muito comum entre os escandinavos a associação entre esse deus com a dinastia dos governantes, e diversos skalds (poetas) e historiadores do século XII montaram verdadeiras listas da descendência divina dos reis nórdicos (Boyer, 1981, p. 142).
Mas apesar dos erros textuais, os piores problemas ocorrem nas ilustrações, obviamente as maiores perpetuadoras de estereótipos sobre os Vikings para a sociedade moderna (Langer, 2002). Nas maioria das imagens do livro os guerreiros são representados com enormes bíceps, musculatura descomunal, quase como praticantes de fisiculturismo moderno. Algo tão irreal quanto anacrônico. Essa maneira de representar os bárbaros surgiu com as primeiras imagens da obra do escritor Robert Howard, especialmente de seus heróis Conan e Kull. Durante os anos 1950, com Frank Frazetta, e posteriormente com Boris Vallejo e os inúmeros quadrinistas dos mesmos personagens, o bárbaro foi idealizado como símbolo do homem perfeito – forte e descomunal até os limites máximos do corpo humano. Com o filme Conan, o bárbaro (1982), o ator Arnold Schwarzenegger encarnou esse ideal, que persiste na arte atual como um verdadeiro modelo estético. Um dos únicos pintores que conseguiu retratar os Vikings com grande perfeição histórica foi Tom Lovell, com magníficas ilustrações realizadas para a revista National Geographic em 1970. Do mesmo modo, as mulheres representadas no livro Angus são irreais: seios gigantescos, corpo esguio e detalhes faciais típicos das modelos atuais.
Em uma análise do equipamento, causa muita admiração o fato dos ilustradores terem realizado uma pesquisa minuciosa, representando corretamente alguns capacetes reais da era Vendel, broches, mantos, escudos e espadas celtas. Mas ao mesmo tempo, apesar do estudo rigoroso, acabaram por perpetuar estereótipos bem conhecidos do grande público, como os fantasiosos capacetes com chifres e asas laterais (a ilustração “funeral de Wulfgar”, foi baseada na pintura “funeral de um Viking”, de F. Dicksee, 1893, uma das popularizadoras do estereótipo dos elmos chifrudos). Consideramos inadmissível um romance moderno sobre escandinavos ainda persistir em uma imagem tão ultrapassada dentro das pesquisas medievalistas (Langer, 2002).
Mas ainda existem outros erros. Por todo o livro, inclusive por parte do personagem central Angus, ocorre a utilização de machados duplos – um equipamento totalmente desconhecido pelos Vikings (utilizavam apenas machados de uma lâmina). Aliás, analisando-se o tamanho proporcional das peças ilustradas, o seu uso por apenas uma das mãos é algo impossível, mesmo por fortes guerreiros. Ainda com relação à esse armamento, na página 59 o autor descreve que no machado de Angus estaria gravado nas duas faces a runa de Þórr (Thor), chamada Thorn. Mas a ilustração “Seawulf, Angus e Hagarth na Ânglia do Leste” (p. 53), dentro deste contexto do romance, traz erroneamente a representação da runa Beorc no machado de Angus. Um descompasso entre texto e imagem.
Também as cotas de malha representadas (cobrindo todo o corpo) estão fora de contexto na época retratada (século IX d.C.) – visto que os escandinavos as utilizaram genericamente somente a partir do século XI d.C., principalmente na área da Normandia.
Em um ponto de vista da religiosidade medieval, a obra trata da conversão de Angus ao cristianismo – e em sentido simbólico – da supremacia teológica do cristianismo sobre o paganismo Viking: “Os deuses nórdicos são geniosos e impetuosos, mais humanos do que divinos. Mas aquele Deus dos cristãos, que fazia reis renunciar ao trono por devoção a Ele, deveria ser muito poderoso” (p. 107). Implicitamente, dizer que os deuses germânicos são mais antropomórficos que o deus monoteista hebraico-cristão é totalmente fantasioso e fora do contexto acadêmico moderno. O autor deveria ter lido alguns pesquisadores como Mircea Eliade, Régis Boyer e Joseph Campbell, que com certeza teria criado uma visão bem diferente das crenças da Europa pré-cristã. Aqui, evidentemente, as opiniões religiosas do escritor prevaleceram sobre seu personagem, tornando o livro uma ode ao triunfo do cristianismo. Uma lamentável opção, segundo o referencial dos leitores mais exigentes.
Em conclusão, devido aos inúmeros anacronismos do romance Angus, recomendamos a leitura dessa obra apenas como um passatempo inconseqüente. Para atingir uma proximidade maior com a verdadeira sociedade dos Vikings, ao leitor só resta aconselhar a busca por obras acadêmicas.
Referências
BOYER, Régis. Yggdrasill: la religion des anciens scandinaves. Paris: Payot, 1981.
_____ A grande serpente. In: BRUNEL, Pierre (org.) Dicionário de mitos literários. Rio de Janeiro: José Olympio Editora, 1997.
BRÖNSTED, Johannes. Os vikings: história de uma fascinante civilização. São Paulo: Hemus, s.d.
BYOCK, Jesse. Viking Age Iceland. London/New York: Penguin, 2001.
DUBOIS, Thomas A. Nordic religions in the Viking Age. Philadelphia: University of Pennsylvania Press, 1999.
HAYWOOD, John. Encyclopaedia of the Viking age. London: Thames and Hudson, 2000.
LANGER, Johnni. The origins of the imaginary Viking. Viking Heritage Magazine, University of Gotland/Centre for Baltic Studies. Visby (Sweden), n. 4, 2002b.
Johnni Langer – Facipal, Faculdades Integradas de Palmas, PR. E-mail: thor_odin7@hotmail.com
PAES FILHO, Orlando. Angus: o primeiro guerreiro. Livro um. São Paulo: Arxjovem, 2003. Resenha de: LANGER, Johnni. Brathair – Revista de Estudos Celtas e Germânicos. São Luís, v.3, n.1, p.67-70, 2003. Acessar publicação original [DR]